Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3529/11.1TBVLG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
FIXAÇÃO
Nº do Documento: RP201206123529/11.1tbvlg-B.P1
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O rendimento do trabalho ou de pensão de reforma excluído da cessão aos credores - usualmente designado como "rendimento indisponível" - é a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor e do seu agregado familiar, preenchida prudentemente pelo juiz, tendo em vista também o interesse dos credores, exemplificada na lei com um limite máximo de três vezes o salário mínimo nacional - art° 239° n°3 al.b) CIRE.
II - A sua fixação deve obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da "proibição do excesso" (art° 18° n°2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida).
III - Tendo a Apresentante gastos com uma auxiliar temporária na vigilância a sua mãe (incapacitada e doente de Alzheimer), com a renda de casa e com o demais passadio de vida, incluindo alimentação de duas pessoas, água, luz e gás, despesas medicamentosas e fraldas, o mínimo de dignidade aludido na lei de insolvência deve atingir o limite máximo previsto (embora passível de superação fundamentada) de 3 salários mínimos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec.3529/11.1TBVLG-B.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria das Dores Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão de 1ª instância de 01/03/2012.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação em separado interposto na acção com processo especial de insolvência nº3529/11.1TBVLG-B, do 2º Juízo da comarca de Valongo.
Apelante/Apresentante/Insolvente – B….
Apelados – Credores da insolvente C…, SA, e D…, SA.

Em 10/10/2011, a ora Apelante veio apresentar-se à insolvência, alegando ser professora do ensino secundário aposentada, vivendo com sua mãe, incapacitada por doença, que se encontra a cargo dela Apelante.
As dívidas da Apresentante, já vencidas e que a mesma não possui quaisquer meios financeiros para pagar, ultrapassam 160 mil euros. Os bens móveis que possui pertencem a sua mãe e à herança de seu pai.
A Apresentante vê penhorado o seu salário de € 1.791,60 em € 750,03, possuindo despesas fixas com empregada (para sua mãe) e renda de casa, para além de outras genéricas de passadio de vida, que em muito ultrapassam o rendimento da Apresentante.
Apresenta relação detalhada de dívidas e credores.
Peticiona a exoneração do passivo restante, mais requerendo lhe fosse concedido um rendimento disponível nunca inferior ao valor da pensão que aufere.
Por despacho judicial de fls. 76ss. dos autos foi, além de declarada a insolvência da Apresentante, decidido que o tribunal remetia a decisão sobre exoneração do passivo restante para momento posterior à assembleia de apreciação do relatório, nos termos do artº 239º CIRE.
Na Assembleia, pronunciaram-se contra a concessão da exoneração de passivo restante os credores C…, SA, e D…, SA.
Alegam que a Insolvente se absteve de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação, pelo menos desde Março de 2011. Por outro lado, não é legalmente possível conceder exoneração do passivo sem existir cessão do rendimento disponível aos credores, que, no caso concreto, não existe (artº 239º nº2 CIRE).
Na decisão recorrida, foi concedida a exoneração do passivo restante, mas subordinada a que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da Insolvente, isto é, uma vez e meia o SMN, ficasse cedido ao Sr. Administrador da Insolvência, ficando a insolvente obrigada, nesse período, a observar as imposições previstas no nº4 do artº 239º CIRE.

Conclusões do Recurso de Apelação:
1 – A douta decisão recorrida violou por erro de interpretação e aplicação o contido na subalínea i) da al.b) do nº3 do artº 239º CIRE.
2 – A decisão que fixou como rendimento disponível uma vez e meia o salário mínimo nacional deve ser revogada, por ser insuficiente para cobrir os encargos mensais da Apelante, devendo ser disponibilizado todo o rendimento auferido pela Recorrente ou, em alternativa, deverá ser-lhe fixado como rendimento disponível o montante equivalente a três salários mínimos nacionais.

Factos Provados
Encontram-se provados os factos relativos à tramitação processual, à alegação da Apresentante e à fundamentação e teor do despacho judicial impugnado, supra resumidamente descritos.
Designadamente da alegação da petição inicial, conjugada com demonstração documental e o relatório do Sr. Administrador da Insolvência, importa relevar os seguintes factos:
- a Apresentante é divorciada e tem 62 anos de idade;
- é aposentada como professora do ensino público, auferindo a título de pensão a quantia mensal líquida de € 1.791,60;
- tem a seu cargo sua mãe, E…, entre o mais doente de Alzheimer, arcando com o custo de uma auxiliar temporária no valor de € 600;
- vive em casa arrendada na cidade de Valongo, ascendendo a renda à quantia de € 425;
- possui as demais despesas de um normal passadio de vida, nas concretas condições da Apresentante, incluindo alimentação, transportes, medicação e demais despesas de saúde (designadamente com sua mãe), fraldas, água, luz e gás.

Fundamentos
A pretensão resultante do presente recurso de apelação consiste em saber se, em face dos factos que resultam do processo, deverá o rendimento indisponível da ora Apelante fixar-se no rendimento que aufere, ou, pelo menos, em montante equivalente a três salários mínimos.
Vejamos pois.
I
Consoante consta do preâmbulo do D.-L. nº 53/2004 que aprovou o CIRE, se é verdade que a finalidade precípua do processo de insolvência é a possibilidade de execução universal do património do devedor (artº 1º), não menos verdade é que o CIRE concede aos “devedores singulares insolventes a possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a reabilitação económica”.
Assim, se os devedores pessoas singulares, de boa fé, houverem incorrido fortuitamente em situação de insolvência, poderão iniciar nova vida, mas libertos de eventuais dívidas que tenham ficado por solver, passada a liquidação ocorrida na insolvência, e passados cinco anos sobre o encerramento do processo de insolvência (incluindo, naturalmente, os rendimentos obtidos pelo devedor nesse período de cinco anos).
A exoneração do passivo restante deve assim ser concedida, na base de dois pressupostos essenciais: por um lado, que a conduta do devedor, anterior à declaração de insolvência, se tenha pautado pela rectidão, ou seja, sem que o devedor haja incorrido em qualquer das situações tipificadas no artº 238º nº1 CIRE; de outro lado, que o devedor venha a cumprir as suas obrigações para com os credores durante o “período de cessão”, isto é, o período de cinco anos posteriores ao encerramento do processo, nos termos dos artºs 239º e 244º CIRE. Na verdade, sendo o devedor uma pessoa singular, a actual lei falimentar concede-lhe a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo ou nos cinco anos posteriores ao respectivo encerramento, requerida que se mostre a “exoneração do passivo restante”, nos termos dos artºs 235º e 236º CIRE.
Apesar de não ficar totalmente satisfeito o passivo, o devedor logra libertar-se definitivamente do mesmo, no que se caracteriza como uma “segunda oportunidade”, um “começar de novo” ou, na expressão anglófona, um “fresh start”.
Todavia, a obtenção de tal benefício sujeita o devedor, após a declaração da insolvência, a permanecer por um período de 5 anos, o chamado “período de cessão”, adstrito ao pagamento dos créditos sobre o Insolvente, ainda não integralmente satisfeitos.
Durante um tal período, o devedor terá de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre os Administradores de Insolvência), que afecta os montantes recebidos a título de “rendimento disponível” ao pagamento dos credores (artºs 239º nºs 1 e 2 e 241º nº1 CIRE).
O rendimento disponível, nos termos do disposto no artº 239º nº3 CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.
Este rendimento excluído da cessão – correctamente designado como “rendimento indisponível” (cf. Ac.R.L. 12/4/2011 Col.II/129, relatado pela Desembª Ana Resende) – encontra-se assim caracterizado como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor; por forma exemplificativa, a norma legal indica tal limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário, naturalmente fundamentada, como o deve ser qualquer decisão judicial (pensamos assim não ter adequadamente atingido o escopo legal a caracterização efectuada no douto Ac.R.P. 15/7/09 Col.III/216, quando vê um “mínimo legal” na ideia de sustento minimamente digno, e um “máximo legal” na ideia de 3 vezes o salário mínimo nacional; na verdade, aquilo que se encontra em causa é apenas uma cláusula aberta de “sustento digno”, a preencher prudentemente pelo juiz, exemplificada na lei com um limite máximo; consideramos que o sustento digno apenas se acha em concreto, e não pode dizer-se que, em si mesmo entendido, constitui um “mínimo” ou então que esse mínimo é integrado por noções de dignidade do trabalho, redução da pobreza, segurança ou socorro social, como o são o salário mínimo nacional ou, ainda configurável, a fixação do montante de um rendimento social de inserção; no sentido em que a lei não fixa um limite mínimo para o rendimento indisponível, cf. Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, I, pg. 63).
Visando o processo falimentar a execução universal do património do devedor e a satisfação tanto quanto possível integral dos direitos dos credores, a interpretação relativamente ao montante devido a título de rendimento indisponível, nos casos concretos, deve obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida) – assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 3ª ed., pgs. 428ss.
A proibição do excesso, na hipótese de fixação do “rendimento indisponível”, olhará, de um lado, às necessidades fundamentais para um sustento minimamente do devedor e do seu agregado familiar, mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores (olvidado este escopo do processo falimentar, facilmente a “exoneração do passivo restante” se transformaria num prémio ou na cobertura a uma fraude, como significativamente alude o Ac.R.E. 13/12/2011 Col.V/263, relatado pelo Desemb. Canelas Brás).
II
Que se observa nos presentes autos?
Em primeiro lugar, que, a título de referência, se deve considerar o salário mínimo nacional para 2012, fixado em € 485 (D-L nº 143/2010 de 31 de Dezembro, que, enquanto não alterado, mantém em vigor o citado montante do “salário mínimo”).
Em segundo lugar, que o sustento minimamente digno da Apresentante e do respectivo agregado familiar, a própria e sua mãe, acamada e portadora do mal de Alzheimer, consabida causa do que poderia outrora ser considerado como demência senil, passa por despesas essenciais que constituem o pagamento a uma auxiliar temporária (pois não é concebível que a Apresentante dedique 24 horas do seu dia à vigilância de sua mãe, como o exigem os doentes de Alzheimer), o pagamento da renda da casa onde habita (€ 425) e as demais despesas de um normal passadio de vida, água, luz, gás, alimentação, mais gastos médicos e medicamentosos com sua mãe, incluindo fraldas.
Tais despesas essenciais ou relativas ao mínimo de dignidade facilmente atingem os três salários mínimos, também referenciado como limite máximo da impenhorabilidade na lei processual civil – cf. artº 824º nº2 CPCiv.
Nesse montante se fixa, nesta instância, o total do rendimento indisponível concedido ao sustento da Apresentante.

Resumindo a fundamentação:
I – O rendimento do trabalho ou de pensão de reforma excluído da cessão aos credores – usualmente designado como “rendimento indisponível” - é a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor e do seu agregado familiar, preenchida prudentemente pelo juiz, tendo em vista também o interesse dos credores, exemplificada na lei com um limite máximo de três vezes o salário mínimo nacional – artº 239º nº3 al.b) CIRE.
II – A sua fixação deve obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida).
III – Tendo a Apresentante gastos com uma auxiliar temporária na vigilância a sua mãe (incapacitada e doente de Alzheimer), com a renda de casa e com o demais passadio de vida, incluindo alimentação de duas pessoas, água, luz e gás, despesas medicamentosas e fraldas, o mínimo de dignidade aludido na lei de insolvência deve atingir o limite máximo previsto (embora passível de superação fundamentada) de 3 salários mínimos.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Na parcial procedência do recurso, revoga-se o douto despacho recorrido, fixando-se agora em 3 salários mínimos o montante do rendimento indisponível atribuído à Apresentante, montante a que alude o disposto no artº 239º nº3 al.b) CIRE.
Custas pelos Apelados.

Porto, 12/VI/2012
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa