Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0422149
Nº Convencional: JTRP00036960
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: EMBARGOS
FUNDAMENTOS
EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
Nº do Documento: RP200406010422149
Data do Acordão: 06/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Na execução para entrega de coisa certa estão previstos dois momentos para dedução de embargos:
- um, destinado a pôr em causa o título executivo e a execução (artigo 929 do Código de Processo Civil);
- outro, para a oposição à conversão da execução em "pagamento de quantia certa" (artigo 931).
II - Mas não se podem confundir os fundamentos de um e de outro dos embargos, sendo que em cada momento só se pode alegar matéria atinente à fase referida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto..

I. Relatório
Em acção declarativa instaurada por B....., AS, actualmente integrada no “Banco....., SA”

contra os RR.

“D....., Ld.ª”
“E....., SA”
e F.....,

pedia o A. que fosse(m):
1) reconhecido o direito de propriedade da A. sobre o veículo de matrícula ..-..-ID;
2) declarada a nulidade dos contratos de compra e venda celebrados entre a l.ª Ré e a 2.ª Ré, e entre a 2.ª R e o 3.º R., relativos ao veículo em questão, considerando-se os mesmos sem efeitos;
3) ordenada a restituição do referido veículo à A.;
4) ordenado o cancelamento dos registos sobre o veículo referido a favor da 2.ª e do 3.º R. já efectuados na Conservatória do Registo Automóvel e os eventuais registos que eventualmente se efectuem na pendência da acção;
5) ordenado o registo de aquisição do direito de propriedade sobre o veículo referido na Conservatória do Registo Automóvel a favor da A.;
6) os RR. condenados no pagamento das custas, procuradoria e demais encargos legais.

No referido processo veio a ser proferida sentença, onde ficou exarado

- serem os RR. condenados a reconhecerem o direito de propriedade do A. sobre o veículo automóvel de matrícula ..-..-ID, Alfa Romeu.... e declarado nulos os contratos de compra e venda celebrados por ter recaído sobre bens alheios, ordenando se a restituição do veículo ao A. e bem assim o cancelamento dos registos efectuados e ordenando-se a realização do competente registo a favor da A.

A referida sentença foi devidamente notificada aos RR. e transitou em julgado.

O Exequente veio então em 2001.12.20 dar à execução a referida sentença, tendo os então RR. e ora Executados sido citados para a entrega do veículo no prazo de vinte dias, podendo no mesmo prazo deduzir embargos.

A executada E....., SA (agora C....., SA), foi citada para a execução em 6 de Março de 2002, e nada disse.
Nenhum dos executados entregou o veículo, nem este veio a ser encontrado.

Em 5 de Agosto de 2002 o Exequente veio requerer a conversão da execução para entrega de coisa certa, por não ter sido encontrado o veículo, e assim se passar à liquidação.
Por despacho de 20 de Setembro de 2002 foi ordenada a notificação dos executados, por carta datada de 23 de Setembro do mesmo ano.

Em 17 de Outubro de 2002 veio então a “E....., AS”, actualmente designada por “C....., AS”, deduzir embargos à execução e oposição à liquidação, dizendo que da leitura da sentença ressalta que sobre ela incide apenas a obrigação de reconhecer o direito de propriedade sobre o veículo automóvel dos autos, não podendo recair sobre ela a obrigação a parte da sentença que obriga à sua restituição pois ela nunca, em momento algum, teve a posse ou foi detentora do veículo, sendo apenas beneficiária de uma cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo em questão, que foi constituída para garantir o pagamento das prestações devidas pelo financiamento concedido para efeitos de aquisição do veículo pelo 3.º executado.
Depois, continuando a sustentar não recair sobre ela executada a obrigação de entrega, concluiu que, por isso mesmo, não poderia ser imposta sobre si mesma qualquer responsabilidade pelo incumprimento dessa obrigação, e, do mesmo modo e pelas mesmas razões, não lhe poderia ser imposta a obrigação decorrente da liquidação dos montantes referentes ao valor do referido veículo nem a indemnização pelos prejuízos resultantes da falta de entrega
No entanto, para o caso de assim não ser entendido, e meramente à cautela, impugnou subsidiariamente o montante da liquidação, e sustentou que a existir o dever de pagamento, nunca esse valor será superior ao da data da conversão - indicando então € 10.000,00 -, e que, mesmo assim, essa obrigação seria uma obrigação conjunta e não solidária, pois que a solidariedade só existe se for determinada por lei ou estipulada pelos interessados, o que não era o caso.
Concluiu a petição dos embargos com a formulação de pedido da procedência destes e a consequente improcedência da execução quanto a ela (E....., SA- agora C....., SA).

O embargado Banco...., SA contestou os embargos da C....., SA - ex E....., SA, sustentando a inadmissibilidade destes, por extemporâneos, já que a embargante havia sido citada em 6 de Março de 2002 para os efeitos dos arts. 928.º-1 e 929.º-1 do CPC., e nesse prazo não procedeu à entrega nem deduziu embargos.
Por outro lado, foi recordando que requerera a entrega judicial do veículo em tempo oportuno, sendo essa entrega deferida por despacho de 14 de Maio de 2001, encontrando-se a referida decisão transitada em julgado, como também havia já transitado em julgado a decisão que admitira o seu pedido de conversão da execução, sucedendo que o veículo não lhe foi entregue por qualquer dos executados.
Para além disso, e sem prescindir, invocou a má fé da embargante na interpretação do conteúdo da sentença, pois dela resulta terem sido todos os RR. condenados a restituir o veículo à embargada.

Quanto à oposição à liquidação, referiu o embargado (Banco....., SA) ser a mesma inadmissível, pois isso corresponderia a dar um prémio aos faltosos. O que se pretende com tal actuação é apenas a entrega da importância correspondente ao valor do veículo já que o mesmo lhe não foi entregue pelos executados, nem ele o conseguiu recuperar, por não ter sido encontrado, não obstante as diversas diligências efectuadas quer pelo embargado quer pelas autoridades competentes. Sem prescindir, sustentou que sempre lhe assistiria o direito à quantia que peticionou a título de prejuízos resultantes da falta de entrega, e, por fim, que a natureza solidária da obrigação resulta da sentença e da lei, não se estando em presença de uma obrigação conjunta.
O embargado Banco concluiu pedindo que sejam os embargos e a oposição à liquidação julgados inadmissíveis e improcedentes, solicitando também a condenação da embargante – E...., SA/C....., SA em multa e indemnização ao embargado não inferior a € 2.500,00, a título de litigância de má fé.

O M.º Juiz lavrou então saneador onde decidiu que os embargos da C....., SA - ex-E..... são manifestamente extemporâneos. Por outro lado, julgou também improcedente a oposição à conversão da execução para entrega de coisa certa (automóvel) em pagamento, por estarem todos os executados obrigados à entrega e não o haver feito qualquer deles, nem havendo sido encontrado o bem, não sendo assim legalmente admissível que a executada C....., SA venha opor-se à conversão já que impendia sobre todos os executados a obrigação de entregar o veículo ao exequente.

Seguiram os autos no tocante à restante parte dos embargos, condensando-se a parte da matéria assente e aquela que deveria passar a constituir a base instrutória.

A C....., SA (ex-E....., SA) interpôs recurso da parte do saneador que julgara extemporâneos os embargos por ela deduzidos bem como da parte em que não admitia a oposição à conversão da execução para entrega de coisa certa (veículo) em pagamento para quantia certa, com prévia liquidação.
Este recurso foi admitido como de agravo, a subir com o primeiro que depois dele interposto houvesse de subir, e com efeito meramente devolutivo.
A agravante apresentou então alegações de recurso (fls. 67-70)
O agravado contra-alegou. (fls. 82-85)

O processo seguiu os seus normais termos, tendo então sido realizada a audiência de discussão e julgamento.
Foram dadas as respostas aos quesitos da base instrutória em 2003.06.18, e, em 2003.06.30 veio a embargante reclamar das respostas dadas aos quesitos 2.º, 4.º e 5.º.
A embargada opôs-se à admissibilidade da reclamação a respeito das respostas dadas por não ter sido apresentada no momento oportuno, isto é, em audiência e após a sua leitura. Não obstante, e sem prescindir, acentuou que não se verificava qualquer dós factos que poderiam sustentar a reclamação das respostas dadas (deficiência, obscuridade, contradição da decisão ou a falta da sua motivação), sendo que no caso se não estava no domínio da prova vinculada, vigorando assim o princípio da liberdade de julgamento para a convicção do Juiz relativamente aos meios de prova apresentados.

Foi depois proferida, sentença e nesta foram julgados parcialmente procedentes os embargos, julgando líquido o valor de € 22.000,00 como sendo o valor do veiculo cuja entrega não foi efectuada e ainda o valor de € 2.460,00 pelos prejuízos resultantes da falta de entrega.

A embargante voltou a recorrer, sendo agora o recurso admitido como de apelação.
Alegou a apelante-embargante (fls. 149-155)
A apelada-embargada contra-alegou (fls. 159- 165)
Ordenada a remessa a este Tribunal foram os recursos aceites com a adjectivação e efeitos que lhe vinham atribuídos.
Correram os vistos legais.
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II. Âmbito dos recursos

O âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões que os recorrentes apresentem nas alegações de recurso respectivas, como pode ver-se da leitura dos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC.
Daí que passemos a transcrever as conclusões apresentadas pela recorrente embargante C....., SA (ex E....., SA) nessas suas peças processuais:

II-A) No agravo (fls. 69-71):

a) O n.º 2 do art. 806.º do CPC, para o qual expressamente remete o art. 931.º do mesmo diploma, confere ao executado, face ao incidente de liquidação, a possibilidade de o no mesmo momento apresentar a contestação à liquidação e deduzir embargos;
b) A agravante ao cumular a contestação da liquidação com a dedução de embargos mais não fez do que dar cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 806.º do C PC;
c) Nestas circunstâncias, não podem os embargos improceder por extemporaneidade;
d) Aquela mesma remissão para o n. º 2 do art. 806.º do CPC, também nos leva à conclusão que o executado pode cumular a oposição à liquidação com a oposição à própria conversão;
e) Resulta claramente do teor do n.º 1 do art. 931º do CPC que para haver conversão da execução é necessário que a coisa a entregar não seja efectivamente encontrada, esgotadas que tenham sido as diligências necessárias para o efeito;
f) Não estando demonstrado nos próprios autos a impossibilidade de ser encontrado o bem a entregar, haverá que concordar que não se encontra preenchido o requisito exigido para que haja conversão da execução.
Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita considerar procedente os embargos deduzidos e, bem assim, que aceite a oposição à conversão, reconhecendo que não estão preenchidos os requisitos legais exigidos para o efeito.

II-B) Na apelação (fls. 154-155):

1. O Tribunal “a quo”, ao considerar que o veículo dos autos tinha. à data da sentença. o valor de € 22.000,00 fez uma errada interpretação da prova;
2. Na verdade, ao concluir dessa forma, o Tribunal “a quo” baseou-se exclusivamente no depoimento prestado por um alto dirigente da apelada. que não é conhecedor do mercado automóvel, desprezando o único meio de prova, objectivo e isento, ou seja, os documentos juntos aos autos fls. 92-95, que indicam precisamente, o valor de mercado, em determinada data, dos veículos comercializados em Portugal;
3. De acordo com esse elemento, rigoroso e objectivo, ao veículo dos autos não pode ser atribuído um valor superior a €15.550,00;
4. Para além do valor do veiculo, reclamado pela apelada, esta não teve nenhum outro prejuízo pelo qual deva ser ressarcida;
5. Seja como for, a apelante não pode ser condenada no pagamento de uma indemnização à apelada pelos prejuízos resultantes da falta de entrega do veículo, na medida em que, nunca tinha tido a posse nem a detenção do veículo, não estando reunidos, no que lhe diz respeito, os pressupostos essenciais da responsabilidade para esse pagamento.
6. Nos termos do disposto no art. 748.º do CPC, a apelante declara que mantém interesse no recurso de agravo interposto da decisão que julgou extemporâneos os embargos deduzidos e julgou improcedente a oposição à conversão da execução, devendo esse recurso de agravo subir com o presente recurso de apelação.
Nestes termos e nos demais de Direito (..) deverá o presente recurso obter provimento, revogando-se em consequência o decidido na sentença recorrida”.
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Como pode ver-se da leitura dessas conclusões, são as seguintes as questões colocadas em cada um dos recursos interpostos, e sobre as quais a embargante C....., SA(ex-E....., SA...) pretende que nos pronunciemos:
No agravo:
a) extemporaneidade para dedução dos embargos
b) inadmissibilidade de oposição à conversão da execução

Na apelação:
a) sindicalização da prova a respeito das respostas aos quesitos 2,º,4.º e 5.º
b)incidência da obrigação de indemnização pela não entrega da viatura ao embargado e sua natureza
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III - Fundamentação

III-A) Os Factos:

III-A) - a) Quanto ao agravo
Os factos a ter em consideração para a análise do agravo constam já do Relatório e são aqueles que aí vem referidos quanto aos pontos seguintes:
- referência à sentença como título executivo e sua parte condenatória, com expressa referência ao seu trânsito em julgado (vide infra A) dos factos assentes);
- petição executiva (vide infra B) dos factos assentes);
- data de citação da ora embargante para a execução;
- referência ao facto de não ter sido encontrado o veículo (vide infra C) dos factos assentes);
- data em que a exequente veio requerer a conversão da execução e liquidação;
- data do despacho que ordenou a notificação dos executados para a conversão e liquidação, bem como da aposta nas respectivas cartas de notificação;
- data em que a embargante C....., SA deduziu embargos à execução e conversão

Sobre esses factos não existe qualquer controvérsia, pelo que aqui se consideram como definitivamente fixados.
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III - A -b) Quanto à apelação

Foram considerados assentes ou provados na primeira instância os factos seguintes, que seguimos fazer de letra ou número entre parêntesis, por referência à respectiva fonte (alínea da matéria assente ou quesito da base instrutória):
- Por sentença já transitada em julgado foram os RR. D....., Ld.ª", E....., SA , F..... condenados a reconhecerem o direito de propriedade da A. “Banco....., SA,” sobre o veículo automóvel de matrícula ..-..-ID, Alfa Romeo.... 2.0 TS 16 v, declarando-se nulos os contratos de compra e venda celebrados por ter recaído sobre bens alheios, ordenando-se a restituição do veículo àquela e bem assim o cancelamento dos registos efectuados e a ordenar a realização do competente registo a favor da A. (A)
-O Banco...., AS, veio deduzir execução para entrega do veiculo descrito em A) Contra “D....., Ld. n", “E....., SA” e F..... (B)
- O veiculo referido em A) não foi encontrado. (C)
- O veículo referido em A) é do ano de 1997 (1)
- A data do trânsito em julgado da sentença referida em A) a embargante obteria pelo veiculo o valor de € 22.000,00. (2)
- Tendo sido entregue o veiculo à data do trânsito em julgado da sentença referida em A) o embargante tê-lo-ia colocado no mercado, vendendo-o ou locando- o (3)
- auferindo o valor de € 2.460,00 (4)
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Análise dos recursos

III-B)-a) Quanto ao agravo:

III-B-a) -1- Da intempestividade da dedução dos embargos à execução

Na execução para entrega de coisa certa prevê o CPC dois momentos específicos para dedução de embargos:
- Um, destinado a pôr em causa o título executivo e a execução, que se encontra previsto no art. 929.º do CPC e que pode ter como fundamentos (na parte aplicável) os motivos especificados nos arts. 813.º, 814.º e 815.º, mas também as benfeitorias quando a elas haja direito o executado;
- Outro, para oposição à conversão da “execução para entrega de coisa certa” em “execução para pagamento da quantia apurada”, quando não seja entregue nem encontrada a coisa que o exequente devia receber - art. 931º.

A embargante C....., SA (ex-E....., SA), citada para a execução, não deduziu embargos no primeiro momento relativamente ao título executivo e respectiva execução, título este que este se consubstancia numa sentença devidamente transitada em julgado onde, sem distinção ou restrição alguma quanto aos RR., está referida no plural a obrigação de entrega do veículo; no entanto veio deduzir embargos após a notificação para o requerimento de conversão, opondo-se então à parte da execução no tocante àquilo que abrangia a obrigação de entrega, conversão e liquidação.
Explicitando melhor:
Porque entende que nunca lhe poderia ser imposta a obrigação de entregar o veículo porque não foi possuidora ou detentora dele, e porque entende que resulta claramente da sentença que apenas recai sobre ela embargante a obrigação de reconhecer o direito de propriedade sobre o veículo automóvel dos autos, questionou a conversão da execução “para entrega do automóvel” em execução “para cobrança de uma quantia apura (após liquidação)”.
No entanto, as objecções colocadas pela ora agravante de que nunca em momento algum teve a posse ou foi detentora do veículo - e por isso não poderia recair sobre ela a obrigação de entrega do veículo diz respeito à apreciação do mérito da sentença e sua validade como título executivo, e por isso, o momento oportuno para a reacção a essa decisão deveria ocorrer quando a referida sentença ainda não havia transitado em julgado (através da via de recurso), ou então, logo após a citação do processo executivo, se porventura quisesse então sustentar que inexistia título executivo, quanto a ela, nessa parte da sentença.
Por outro lado, relativamente ao teor da sentença, constatamos que a sua parte decisória da sentença está formulada no plural, sem qualquer distinção de RR., e encontra-se transitada em julgado, pelo que o seu conteúdo a todos obriga, não parecendo assim que possa aceitar-se ser ela clara no sentido de exclusão da ora apelante dessa obrigação. Não pode, por outro lado, discutir-se agora a bondade dessa decisão, por respeito ao caso julgado formulado quanto à existência de título executivo e exigibilidade da obrigação.
Concluímos portanto ter sido correcta a decisão do M.º Juiz que considerou ser agora extemporânea essa discussão, e por isso, nessa parte, julgou intempestivos os embargos à execução.

III-B)-a)-2 – Da inadmissibilidade da oposição à conversão da execução para entrega de coisa certa (automóvel) em entrega de quantia certa, após prévia liquidação, por parte de quem estava obrigada à entrega

Na linha do raciocínio já atrás desenvolvida na questão antecedente, estando na enunciada sentença todos os RR. obrigados à entrega do veículo, e nenhum deles havendo reagido A ordem da entrega quando tal foi ordenado no processo, é inadmissível a oposição por parte de qualquer deles à conversão da “execução para entrega de coisa certa” consubstanciada na entrega do veículo em causa), em “execução para pagamento”, na quantia que vier a apurar-se, em liquidação, como correspondente ao respectivo valor e prejuízos decorrentes da não entrega.
Se tal oposição fosse possível, isso significaria a absoluta irrelevância da sentença declarativa, que depois de reconhecer como nulos os contratos celebrados entre os RR. e de obrigar todos eles - sem qualquer restrição - a procederem à respectiva entrega ao A., em nada viria sancionar os RR. pelo não cumprimento da entrega em que haviam sido condenados.
E assim, o A., ver-se-ia privado não só do veículo - que ficou provado pertencer lhe - como também do valor correspondente a essa perda, bem como aos prejuízos decorrentes da sua não entrega pelos RR. obrigados, quando é certo que o art. 931º do CPC expressamente o admitia.

Improcede, por isso, também nesta parte a argumentação utilizada pela agravante C....., SA-ex E....., SA.

O agravo terá consequentemente de ser negado.
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III- B)-b) Quanto à apelação

III-B) - b) -1: Da sindicalização da prova a respeito das respostas dadas aos quesitos 2.º 4.º e 5.º da base instrutória

A apelante C....., SA (ex-E....., SA), entende que as respostas aos quesitos 2.º, 4.º e 5.º deveriam ter sido diferentes das respostas dadas, não se conformando com o facto de o M.º Juiz ter eleito como meio de prova o depoimento testemunhal de um director comercial da apelada contra a prova documental por ela apresentada, baseada na tabela indicativa da cotação de veículos da Eurotox, que a apelante entende constituir um meio de prova objectivo e isento porque elaborado por entidade que não é parte na causa.
No entanto não pode deixar de ter-se presente que o poder sindicalizante da Relação exerce-se apenas nos estreitos limites do art. 712.º do CPC.
Ora, o documento apresentado pela apelante é apenas um documento particular, cuja objectividade foi impugnada pela apelada (ao conotar a sua publicação com o interesse das seguradoras no pagamento de indemnizações baixas), e à qual a apelada não atribui especial crédito porque existem muitas outras tabelas indicadoras noutras revistas, com valores diferentes da tabela da Eurotox, e que a apelante, podendo apresentá-las, não o quis fazer.

Encontramo-nos, portanto, perante um simples documento particular, de apreciação livre pelo Tribunal, como aliás resulta do art. 366.º do CC.

Por outro lado, encontra-se devidamente fundamentada a forma por que chegou o M.º Juiz ao valor indicado a respeito do provento ou lucro que a apelada auferiria (€ 2.460,00) se lhe tivesse sido entregue a viatura, já que lhe aplicou o factor de 12% sobre o valor encontrado para a venda do veículo, que a testemunha G..... referiu como sendo a margem de lucro.

Não estava portanto o M.º Juiz sujeito ao regime de prova vinculada, decorrente de confissão da apelada ou de prova plena decorrente de qualquer documento, estando devidamente fundamentadas as respostas dadas.

Ora, dentro deste enunciado enquadramento rege o princípio da liberdade de julgamento, consagrado no art. 655.º-1 do CPC, segundo o qual, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Como ensinam A. Varela/M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil. 2ª ed.- 470, “As provas são apreciadas livremente sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que realmente gerem no espírito do julgador acerca da existência de cada facto”.
No caso em presença, aquele documento não era de molde a impor decisão diversa da decorrente da resposta dada, pelo que nos termos do art. 690.º-A do CPC, não há que alterar o conteúdo dessas respostas [Temos citado com frequência, como exemplos, de que, no domínio da prova livre, impor-se-ia decisão diversa da tomada nos casos seguintes:
- se viesse a constatar-se que o M.º Juiz fundamentara a resposta a um quesito num documento inexistente ou num depoimento de uma testemunha que não foi chamada a depor,
- se se verificasse que, a fundamentar uma resposta, tivesse o M.º Juiz invocado documentos de cuja prova de forma alguma pudesse retirar-se a enunciada indicação,
- ou tivesse o M.º Juiz assentado a resposta na reprodução de testemunhos, imputando aos depoentes afirmações que não produziram ou de significação contrária àquelas que resultam da audição das gravações].
A imediação do Juiz da primeira instância, em contacto directo e físico com os próprios depoentes na audiência de discussão e julgamento, funciona como a mais valia para o julgamento, pelo que não deve ser destruída a matéria de facto considerada provada, sem fortes razões que nos levem a pensar e a convencer que a resposta aos quesito não poderia ser aquela mas teria que ser outra.
Um facto só passa a considerar-se provado a partir do momento em que o Juiz se convença da sua produção. E Relação só deve alterar esse juízo se efectivamente, nos termos do art. 690.-A-l-b) do CPC, não pudesse considerar-se provado esse facto porque, perante as provas, se impunha outro.

Não ficamos convencidos, face aos argumentos utilizados pelos apelantes, que se impusessem aqui outras respostas, pelo que mantemos inalteráveis as respostas dadas.
Consideramos assim definitivamente fixados os factos provados na primeira
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III-B) b) -2: Da incidência da obrigação de indemnização pela não entrega da viatura ao embargado e sua natureza

Já está decidido no agravo que, a partir do momento em que a apelante deixou transitar em julgado a sentença que serve de título executivo - em que, sem distinção ou restrição alguma, todos os RR. foram condenados -, e a partir do momento em que deixou também transitar em julgado a decisão que, - também sem distinção alguma de executados -, a todos citava para a execução e para nela procederem à respectiva entregado veículo, não pode mais voltar a questionar-se a bondade dessa decisões.
Assim, passou a ser uma obrigação juridicamente vinculante sobre todos os executados, a de entregar o veículo ao apelado.

Caso essa obrigação não fosse cumprida nem o veículo encontrado, como aconteceu; decorria da própria lei (art. 931.º do CPC), que o exequente poderia fazer liquidar o seu valor e o prejuízo resultante da falta de entrega.

Diz a apelante que não poderia entregar o veículo nem lhe poderia ser imputado a responsabilidade pelo prejuízo da não entrega, porque não praticou qualquer acto ilícito, na medida em que não era a possuidora ou detentora do veículo, nem há um nexo causal entre a sua actuação e o dano...
Mas esse argumento não é aqui consistente:
No contexto indicado, o facto ilícito da apelante traduzia-se no incumprimento do dever imposto nas decisões judiciais para proceder à entrega, e relativamente às quais, em devido tempo, não reagiu, e de cujo incumprimento resultou o dano. Ora é aí, neste cenário com o qual juridicamente temos que lidar, que se encontra o acto ilícito (incumprimento da ordem), o dano (não recuperação da viatura nem do valor que ela poderia ainda proporcionar) e o nexo de causalidade entre o acto ilícito e o dano (sendo a obrigação imposta sobre todos os RR., sem distinção ou restrição alguma na respectiva sentença, o prejuízo decorrente da não entrega do objecto a cuja entrega estavam todos eles vinculados, a todos responsabiliza).

Face ao exposto, atendendo à inacção da apelante para reagir a tempo quanto à eventual bondade de decisões anteriores, nenhuma censura se pode tecer à douta sentença recorrida, que, no contexto enunciado, e face ao ordenamento jurídico existente, aplicou correctamente o direito.

Assim, a apelação está também ela condenada à improcedência.
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IV. Deliberação
Na negação do agravo e na improcedência da apelação, mantêm-se a primeira decisão recorrida e confirma-se também a sentença.
Custas pela agravante e apelante, em ambos os recursos.

Porto, 01 de Junho de 2004
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso