Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
136/09.2TAESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: PROVA PERICIAL
VALOR JURÍDICO
Nº do Documento: RP20131009136/09.2TAESP.P1
Data do Acordão: 10/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A prova pericial isolada não é suficiente para, em fase de julgamento, permitir uma condenação ou uma absolvição.
II - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial reporta-se à percepção ou apreciação dos factos submetidos à perícia e é restrito aos especiais conhecimentos do perito, não abrangendo matéria que não é da sua competência.
III - O juízo técnico, científico ou artístico formulado pelo perito terá que ter como suporte determinados factos, factos esses que serão o seu ponto de partida e que lhe irão permitir retirar as respectivas conclusões.
IV - A perícia também pode ser impugnada pela refutação dos factos de que partiu o perito para chegar à conclusão que formulou. Essa forma de impugnar a perícia não se confunde com divergência do juízo emitido pelo perito.
V - Não cabe no âmbito do juízo pericial a pronúncia sobre a intenção com que o agente actuou; o juízo relativo à intenção do agente compete apenas ao juiz.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 136/09.2TAESP.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
Nos autos de processo comum (Tribunal Singular) nº 136/09.2TAESP, a correr termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho, foi proferida sentença, em 21.3.2013 (fls. 1037 a 1061 do 5º volume), constando do dispositivo o seguinte:
Face ao exposto, decido:
Julgar a acusação pública totalmente improcedente e, em consequência:
A) Absolver a arguida B…, da prática como autor material, na forma consumada, de um crime de crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 e nº 4, al. b) do Código Penal.
B) Sem custas.
(…)
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Não se conformando com essa sentença, o Ministério Público recorreu (fls. 1065 a 1088), apresentando as seguintes conclusões:
I. O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e sempre que este divergir daquele, deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação;
II. De acordo com a perícia contabilistica, a arguida todos os meses, retirou da sociedade que geria, valores muito superiores ao seu vencimento mensal líquido (1.073,10€) e efectuou pagamentos a terceiros que não eram devidos pela empresa, apropriando-se indevidamente dessas quantias;
III. No caso “sub judice” o Tribunal afastou-se das conclusões da perícia com base na presunção de que ao fazer “anotações” manuscritas nos suportes de papel entregues aos técnicos oficiais de contas a arguida justificou tais movimentos e que a falta de “arrumação contabilistica” não significa que aquela se tenha apropriado das quantias em causa;
IV. Contudo, a arguida não apresentou nem aos contabilistas, nem ao perito, nem ao tribunal, os documentos comprovativos que os movimentos que realizou foram efectuados em prol da actividade da empresa;
V. Ao divergir de forma infundada do juízo pericial, o Tribunal “a quo” violou as regras sobre a apreciação e o valor da prova, circunstância que se enquadra no conceito amplo de erro notório na apreciação da prova;
VI. A arguida não recebeu quantias da sociedade a título de adiantamentos por conta de vencimentos, nem se apropriou de um crédito ou direito da empresa que esta pudesse vir a reclamar em sede cível;
VII. A arguida na posse do dinheiro, aplicou-o para cobrir necessidades pessoais, as quais sendo laterais ao giro da empresa, constituem, uma “disposição injustificada”, tendo a sua conduta sido acompanhada de dolo directo.
VIII. A arguida não tinha uma “pretensão jurídico-civilmente válida, incondicional e vencida” em relação à sociedade “C…, Lda.” que justificasse a apropriação ilegitima do dinheiro que fez da sociedade.
Termina pedindo o provimento do recurso, com a consequente revogação da sentença.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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Nesta Relação, a Srª. PGA limitou-se a apor visto (fls. 1101 do 5º volume).
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Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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Na sentença sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1 - A arguida foi sócia gerente da sociedade C…, Lda, com sede na Rua .., nº …, em Espinho, desde 21 de Dezembro de 1993 até 30 de Abril de 2010, data em que a sociedade foi declarada insolvente.
2 - A sociedade dedicava-se à actividade própria das agências de viagens e tinha como sócios, a arguida, D… e E….
3 - Assim, a gestão corrente da sociedade estava a cargo da arguida, competindo a ela actos de gestão e direcção da vida comercial da sociedade, decidindo da afectação dos respectivos recursos financeiros ao cumprimento das obrigações correntes, designadamente ao pagamento dos salários dos trabalhadores e dos débitos aos fornecedores.
4 - A arguida realizou transferências bancárias das contas da sociedade para pagamento das seguintes importâncias:



5 - Durante o período de Dezembro de 2007 a Outubro de 2008, a arguida realizou pagamentos a terceiros no valor global de 13.724,31€ (treze mil, setecentos e vinte e quatro euros e trinta e um cêntimos.
6 - A arguida recebia a título de remuneração mensal líquida 1.073,10€ (mil, setenta e três euros e dez cêntimos), sendo que acordou com os restantes sócios que receberia mensalmente €1.250,00 líquidos
7 - A arguida está desempregada, vive com o seu marido, pagam de empréstimo à habitação € 600,00 e tem o bacharelato em Turismo como habilitações literárias.
8 - A arguida não tem antecedentes criminais.

Quanto aos factos dados como não provados consignou-se o seguinte:
1 – Que os movimentos referidos em 4) dos factos provados não sejam custos da sociedade.
2 - No exercício das suas funções de gerente, a arguida nos anos de 2006, 2007 e 2008, resolveu fazer suas determinadas quantias em dinheiro que pertenciam à sociedade para pagamento de despesas em proveito próprio.
3 - Durante o período de Dezembro de 2007 a Outubro de 2008, a arguida realizou pagamentos a terceiros no valor global de 13.724,31€ (treze mil, setecentos e vinte e quatro euros e trinta e um cêntimos), que não eram devidos pela sociedade, apropriando-se de tal quantia.
4 – Que a arguida recebeu mais do que lhe era devido a título de remunerações e ficou devedora à sociedade que representava, causando-lhe um prejuízo patrimonial em valor não inferior a 48.071,39€ (quarenta e oito mil, setenta e um euros e trinta e nove cêntimos).
5 - A arguida agiu sempre de forma livre, com o propósito, concretizado, de fazer suas quantias em dinheiro que pertenciam à sociedade que representava, e dessa forma as incorporar no seu património, fazendo-as suas, bem sabendo que as mesmas lhe não pertenciam e que as recebia, com a condição de as utilizar no giro da sociedade, estando tais quantias apenas à sua consignação para proceder ao cumprimento das obrigações da sociedade, facto que conhecia.
6 - Apesar desse conhecimento, a arguida utilizou tais quantias para pagamento de despesas em proveito próprio como se fossem suas, bem sabendo que causava, como causou, prejuízo patrimonial à ofendida, o que representou.
7 - Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Da respectiva motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, fez-se constar:
Os factos provados tiveram por base a conjugação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente:
- a confissão efectuada pela arguida quanto aos pontos 1 a 4 dos factos provados;
- o teor do relatório de peritagem à contabilidade de fls. 678 a 725 dos autos, complementado pelos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito que o elaborou - Dr. F…, referindo o mesmo, de forma segura, que analisou a contabilidade da empresa de 2007 a Novembro de 2008 e que a gerência da empresa era exercida pela arguida, sendo esta a única sócia que auferia vencimento mensal numa média de € 1.073,10. Referiu também que a arguida e o queixoso eram ambos sócios de direito.
Quanto à existência de empréstimos da arguida à sociedade, declarou não existir nada na contabilidade que demonstre que os empréstimos deram entrada pois teria que haver um documento de suporte.
Disse ainda não existirem viaturas registadas em nome da sociedade, pelo que as despesas com gasolina têm falta de suporte contabilístico.
No que se refere à condição sócio económica da arguida valoraram-se positivamente as suas declarações, bem assim como as de seu marido G….
Quanto aos antecedentes criminais da arguida teve-se em conta o CRC de fls. 865.

Os factos não provados tiveram por base, os depoimentos:
- da arguida B…, a qual se esforçou, de forma empenhada, em justificar os movimentos de apropriação de que foi acusada, prestando um depoimento sincero e verosímel, comprovado pelos depoimentos testemunhais prestados e também pelos documentos existentes nos autos.
Assim a mesma indicou ser sócia gerente da sociedade e a única remunerada, tendo efectivamente realizado os movimentos descritos em 4) dos factos provados. Aliás, afirmou que o contabilista da empresa sabia de todos os movimentos realizados porque lhe dava conhecimento dos mesmos e colocava mesmo notas pessoais nos documentos com a respectiva justificação.
Relativamente ao seu salário, afirmou estar acordado com os restantes sócios que recebia o salário mensal líquido de € 1.250,00, nunca recebendo tudo e de forma regular.
Em relação à “conta salários” foi, no seu entender, o contabilista que processou mal os documentos que lhe entregava. Na verdade, negou ter recebido tais quantias a mais a título de salários. Aliás, a empresa pagava-lhe mal e sempre atrasado.
No que tange às transferências bancárias, mencionou que existe uma delas a favor de H…, sua sogra, por conta do pagamento de um empréstimo que esta lhe fez no montante de €10.000,00 e que serviu para pagar a licença da I.A.T.A. (cópia de cheque constante de fls. 1003 dos autos). Em relação a esta disse que o seu sócio – Sr. E… – entrou também com idêntico valor, tendo ficado acordado que ambos seriam reeembolsados de tais valores de forma gradual pela empresa, tendo mesmo entregue àquele dois cheques da empresa para pagamento de tal valor.
As transferências para I…, foram efectuadas para pagamento de um empréstimo que este pediu à J… no valor de € 5.000,00 e que se destinou a pagar valores em dívida ao operador turístico “K…”.
Mencionou que utilizava os seus cartões de crédito pessoais e de seu marido G… para fazer pagamentos relativos à actividade da empresa, com por exemplo, para pagamento de reservas de hóteis, sendo depois esses valores objecto de ressarcimento da empresa (p. exemplo o cartão de crédito do L…). Tais movimentos eram também feitos pelo Sr. E…, como comprovou através da junção do documento de fls. 982.
Deu conta de, por vezes, passar cheques da empresa para levantar dinheiro e depositar na conta dos operadores turísticos.
Esclareceu que o seu sócio - Sr. E… - pediu um crédito bancário para acorrer a necessidades financeiras da empresa mas teve de lhe passar cheques pessoais por sua exigência, que depois tinham que ser ressarcidos.
Relativamente à sua filha, declarou que a mesma foi contratada pela “C…”, tendo para o efeito a mesma tirado o curso de turismo. Trabalhou na empresa desde Maio de 2008 e até fechar a loja. O Sr. E… sabia que a filha da arguida era funcionária da empresa.
Quanto aos valores relativos a combustíveis, afirmou que utilizava o seu veículo pessoal e de seu marido em deslocações a serviço da empresa, tais como visitas a clientes e deslocações ao aeroporto do Porto. O Sr. E… sempre soube e apoiou o pagamento das gasolinas. Sempre entregou os comprovativos – talões de gasolina ao contabilista.
No que se refere ao seu sócio Sr. E…, declarou que este estava a par de tudo o que se passava pois ia à sociedade conforme havia necessidade, às vezes aparecia por livre vontade, mandava-lhe e-mails e telefonava-lhe com muita frequência dar conta de tudo o que se passava. Assim, aquele sabia das dificuldades de tesouraria, também falava com o contabilista. Quando lhe penhoraram a casa por dívidas que contraiu a favor da empresa, falou com o sr. E… e o mesmo sabia de I… e do empréstimo pedido ao mesmo.
Referiu a existência de um empréstimo contraído por si e seu marido que foi para acorrer a necessidades da empresa e que está a ser pago actualmente através da penhora de salário de seu marido.
Justificou os seguintes movimentos:
- o pagamento efectuado a M…, trata-se do site da empresa na internet - alojamento do site da empresa;
- o pagamento à TV Cabo era da sua habitação e foi por conta do seu vencimento;
- o pagamento a N… – trata-se de uma vacina, e foi por conta do vencimento;
- o pagamento a AE… foi por conta do vencimento e
- o pagamento a O… – não sabe o que é.
Por último, negou peremptoriamente ter-se apropriado dos valores referidos na acusação. Afirmou que havia sempre dinheiro em numerário, pelo que se quisesse apoderar-se do mesmo fazia-o, não ia lidar com cheques e contas bancárias, que deixam registos.
Com toda esta situação só ficou prejudicada pois ficou sem emprego, ficou com dívidas, teve que vender o ouro de família que tinha e o seu marido tem o salário penhorado;
- do contabilista P…, Técnico Oficial de Contas que prestou serviços de contabilidade à C… desde Julho de 2008 abrangendo o período de Janeiro a Dezembro de 2008:
Este afirmou de forma segura ter sido convidado pela arguida que lhe disse que o TOC anterior se recusou a fazer a contabilidade por falta de pagamento.
Reuniu-se com os sócios E…, D… e B… e começou a fazer recuperação desde Janeiro de 2008 e concluiu pela existência de pagamentos sem suporte contabilístico.
Toda a documentação lhe foi facultada pela arguida.
Todos os documentos apresentados foram contabilizados como movimentos de caixa.
Como a empresa não tinha viaturas próprias deveria ser feita uma folha de quilómetros, o que não ocorria, entregando-lhe a arguida os talões de combustível.
Eram-lhe apresentados sempre os documentos de transferência bancária.
Quanto à justificação do movimento I…, a arguida disse que era de um empréstimo. Pediu-lhe o contrato de empréstimo mas a mesma respondeu que não havia qualquer documento. Só podia imputar tal quantia na conta dela o que não quer dizer que a mesma ficou com o dinheiro. Os sócios desconheciam tal empréstimo.
Alguns cheques não tinham justificação e foram parar ao Caixa.
Os sócios, na reunião, declararam não saber dos empréstimos feitos pela arguida.
- Q…, ex-funcionária da empresa “C…”:
Afirmou, de forma isenta, ter trabalhado na “C…” cerca de 3 anos até 2008/2009. Os seus patrões eram a arguida, o sr. E… e um 3º sócio que raramente vinha à empresa. Quem estava na empresa diariamente era a arguida.
O sr. E… ia à empresa assinar cheques e ia lá ao final do dia, após o expediente.
Recebia o seu salário através de transferência bancária da “C…”.
O sr. E… também falava directamente com o contabilista.
A empresa não tinha carro. A arguida deslocava-se muito para entregar documentos ao domicilio, ir ao aeroporto e dar assistência aos clientes, usando o seu carro pessoal. Muitas vezes era o marido da D. B… que fazia o serviço de paquete.
Começou a aperceber-se dos problemas económicos quando os fornecedores começaram a ligar para a empresa a pedirem os valores atrasados.
Mais tarde entrou, como funcionária da empresa, a filha da D. B…. Trabalhou com ela durante cerca de 1 ano. O Sr. E… sabia que ela lá estava, viu-a lá a trabalhar no posto de trabalho.
No ultimo ano o sr. E… não atendia o telefone à D. B… e ela queria falar com ele. Um ano antes de fecharem a empresa as dificuldades financeiras agudizaram-se. O sr. E… sabia de tais dificuldades.
Havia algumas falhas de recibos de pagamentos efectuados a hotéis na Alemanha (p. ex), casos esses em que eram exigidos pré-pagamentos;
- S…, trabalhadora na C… de 1997 a 2005.
A mesma não revelou qualquer conhecimento quanto aos factos da acusação ocorridos entre 2007 e 2008 porque saiu da empresa em 2005. Contudo, indicou que a patroa era a D. B… e que o sr. E… era sócio mas nunca recebeu ordens directas dele. Era habitual às sextas-feiras o sr. E… vir à agência de … ao final da tarde.
Quando saiu da empresa esta já estava em dificuldades económicas. Quem lidava com o contabilista (sr. T…) era a arguida.
A arguida dizia-lhe que para que o seu salário fosse pago aquela não recebia.
Havia empréstimos bancários da empresa – dificuldades de pagamento.
A D. B… sempre utilizou o veículo próprio (de marca OPEL) em deslocações.
O marido da arguida também ajudava na empresa;
- T…: Contabilista da “C…” desde a constituição da empresa até 1990 e de 2002 a 2007, declarou de forma espontânea e descomprometida, que lidava mais com a D. B… do que com o sr. E…. Havia muita falta de documentos de suporte de compras e de despesas. Acontecia muito não aparecer depósitos de recebimentos. Havia muita coisa que era paga com o cartão de crédito dela – dizia que depois regularizava.
O procedimento que adoptava era o de quando não havia documentos de suporte reverter para o Caixa, o mesmo acontecendo quanto aos cheques sem justificação documental.
Havia pagamentos com o cartão de crédito sem justificativo, ambos os sócios tinham conhecimento disso – imputava-os ao Caixa.
Confrontou a D. B… e o Sr. E… com esses problemas, em diversas reuniões tidas com ambos, e este dizia que não poderia ser assim. Todos os anos alertava para a falta de documentos, mas a situação continuava;
- G…: marido da arguida, o qual declarou de forma sentida e genuína, que a arguida andava sempre preocupada com a situação da sociedade. Tem conhecimento de tudo o que lá se passava pois passava muito tempo na empresa porque trabalhava por turnos.
A sua mãe emprestou € 10.000 à sua mulher destinados a pagar a IATA, sendo que o Sr. E… também colocou € 10.000 na empresa com o mesmo fim. Fizeram um acordo de pagamento durante um ano – foi tudo pago.
Deu conta de ter contraído um empréstimo de € 90.000 que se destinou a acorrer a necessidades da empresa que está a pagar sozinho com penhora de salário.
Disse que I…, ex-marido de sua filha, pediu um empréstimo à J…, no valor de € 5.000,00 a pedido de sua mulher. Esta quantia foi paga pela C… e destinou-se à actividade da empresa para pagamento de um operador.
Afirmou que a sua mulher utilizava as viaturas pessoais ao serviço da empresa e que ele mesmo o fazia com frequência.
Demonstrou conhecimento de o salário de sua mulher não incluir o combustível e de ser de mil e poucos euros. Ela tinha salários em atraso em 2007.
A sua filha trabalhou em 2007 e 2008 na empresa e o Sr. E… sabia bem disso já que assistiu a uma conversa entre a sua mulher e o queixoso sobre a admissão da sua filha com funcionária da firma.
Disse ainda que fizeram pagamentos de cartão de crédito dele e dela para a empresa, que depois eram reembolsados.
Houve saída de dinheiro da empresa para pagamento de valores por causa de um cartão de crédito seu que usou para a empresa.
O sr. E… ia lá 2 vez por semana. Todos os dias havia telefonemas da sua mulher para o sr. E… a dar conta das dificuldades.
Devido aos problemas de tesouraria da empresa, a sua mulher teve até que vender ouro de família para pagar as dívidas e ainda está a pagar as dívidas da C….
Actualmente a sua mulher não trabalha sendo ele o único suporte da família trabalhando, embora com o seu salário penhorado no montante de € 320;
- I…, ex-genro da arguida, declarou de forma sincera e coerente que a D. B… pediu-lhe para fazer um crédito pessoal em seu nome para acorrer a problemas (despesas) da empresa. O montante pedido foi de € 5.000 que eram pagos através de € 150 mensais. Foi pagando e ainda hoje continua a ser pago. Inicialmente retiravam o dinheiro da agência através de transferências para a sua conta.
Quanto à sua ex-mulher U…, referiu que esta trabalhou na “C…” desde o ano de 2007. Tem ideia de que a mesma recebia cerca de € 500, desconhecendo se havia contrato, todavia nem sempre o salário era pago e quando era feito o pagamento era de forma fraccionada;
- U…, filha da arguida, referiu, de forma genuína, que foi contratada para trabalhar na “C…”, tendo estudado turismo com o objectivo de ingressar na firma. Frequentou desde sempre a empresa indo lá também para aprender. Começou a trabalhar no final de Maio de 2007 – o contrato foi verbal. A sua mãe é que tratou de tudo consigo. Antes de Maio de 2007 não atendia o público, após tal data começou também a vender pacotes turísticos e organizava a montra.
Todavia foi celebrado um contrato de trabalho consigo 4 meses antes do encerramento da agência.
O Sr. E… sabia de tal facto porque a sua mãe lhe comunicou, além disso ele via-a lá a trabalhar. O Sr. E… ia à agência duas vezes por semana. Ia por volta da hora do almoço ou perto da hora de fecho e via-a a atender clientes.
Recebia € 500 a título de salário, quase sempre em numerário.
A sua mãe não retirava o salário dela ao final do mês. Ia tirando, por exemplo, € 200 de cada vez e fazia o pagamento da TV Cabo ou pagava o combustível como parte de salário. Fazia sempre uma anotação de quanto tirava e deixava na caixa.
A sua mãe queixava-se de dificuldades. A mesma precisou de um empréstimo pelo que falou com o I… seu marido à altura. Esse dinheiro foi para a agência para pagar umas passagens para África de uns clientes. Foi efectuado um pedido de empréstimo à J… no valor de € 5.000. Para cumprimento de tal empréstimo eram pagos € 150 por mês. Como os clientes já tinham pago tal quantia esse dinheiro foi usado para efectuar pagamentos urgentes/imediatos da agência.
Pediu muitas vezes ao sr. E… para entrar com dinheiro.
Pediu dinheiro à sua avó também.
A sua mãe vendeu todo o ouro que tinha, passando grandes dificuldades.
Ainda hoje vive pior do que vivia no início da “C…”.
Há mesmo uma penhora no ordenado do seu pai por causa de uma dívida a um operador turístico.
Ela passou dificuldades mesmo a nível da alimentação.
Por várias vezes pediu-lhe o seu cartão pessoal para fazer reservas de hotéis – depois era o valor devolvido por transferência bancária.
Nunca recebeu subsídios de férias ou natal.
A sua mãe fartava-se de chorar por causa das dificuldades.
Ela dizia ao sr. E… de que tinha de colaborar para salvar a agência porque ela já estava a fazer isso.
Por outro lado, da análise dos documentos juntos aos autos, resulta a preocupação da arguida em justificar, através de anotações, os movimentos efectuados e demonstram também a existência de comprovativos dos movimentos efectuados, entregues pela arguida ao contabilista da empresa. Ora, se a mesma quisesse apoderar-se ilicitamente de tais montantes não entregaria certamente comprovativos documentais dos mesmos nem deixava um rasto bancário que facilmente é constatado através dos extractos bancários da própria empresa.
Senão, vejamos:
Ano de 2007:
1) Fls. 129 Capa 9 2007 - Pagamento bancário a favor de “J1…”, ou seja, J…, contem a indicação “por conta de vencimento Outubro” manuscrita pela arguida;
2) Fls. 130 Capa 9 2007 - Pagamento bancário a favor de “J1…”, ou seja, J…, contem a indicação “por conta do meu vencimento de Outubro 2008” manuscrita pela arguida;
3) Fls. 131 Capa 9 2007 – Transferência Bancária a favor de “I…”, contem a indicação “2ª prestação J… cobrada a 1/1/2008” manuscrita pela arguida e ainda, no descritivo da transferência “2 PRESTACAO”;
Ano de 2008:
4) Fls. 36 Capa 1 2008 – Pagamento a favor de “V…, S.A.”, contem a indicação “parte do meu vencimento” manuscrita pela arguida;
5) Fls. 155 Capa 1 2008 - Transferência Bancária a favor de “I…”, contem a indicação “J… emprestimo” manuscrita pela arguida e ainda, no descritivo da transferência “3 PRESTACAO”;
6) Fls. 160 Capa 1 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
7) Fls. 275 Capa 1 2008 – Extracto Bancário contendo transferência Bancária a favor de “I…”, contem no descritivo da transferência “PRESTACAO”;
8) Fls. 341 Capa 1 2008 – Pagamento a favor de “W…, S.A.”, contem a indicação “parte do meu vencimento Fevereiro 2008” manuscrita pela arguida;
9) Fls. 347 Capa 1 2008 – Cheque ……., descrito pelo Sr. Contabilista P… a fls. 7 do “Diário 5 – Bancos/Diversos como “…” (Hotel …?);
10) Fls. 360 Capa 1 2008 – Cheque 434399, descrito pelo Sr. Contabilista P… a fls. 7 do “Diário 5 – Bancos/Diversos como “pgt hotel” (logo, inserido no âmbito de actividade da empresa de que a arguida era sócia);
11) Fls. 363 Capa 1 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
12) Fls. 369 Capa 1 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
13) Fls. 125 Capa 2 2008 – Cheque ……, “pgt hotel” (logo, inserido no âmbito de actividade da empresa de que a arguida era sócia);
14) Fls. 33 Capa 2 2008 - Pagamento a favor de “V…, S.A.”, contem a indicação “att: P… Esta transferência foi do meu cartão de crédito para descontar do meu subsídio de férias não gozadas ano 2008” manuscrita pela arguida;
15) Fls. 118 Capa 2 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
16) Fls. 122 Capa 2 2008 – Cheque ……, “pgt hotel” (logo, inserido no âmbito de actividade da empresa de que a arguida era sócia);
17) Fls. 124 Capa 2 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
18) Fls. 130 Capa 2 2008 – Cheque ……, com a menção “pgt. Gasóleo”;
19) Fls. 176 Capa 2 2008 – Extracto bancário onde figura no descritivo “trf. p/ U… Abril“(filha da arguida), assim como figura transferência para arguida no valor de € 800,00 e transferência p/ Q… – “Abril parte”, funcionária da empresa, o que comprova o pagamento de parte dos salários dos trabalhadores da C…;
20) Fls. 183 Capa 2 2008 – Pagamento a favor de “V…, S.A.”, contem a indicação “Para pagar hotéis de C…” manuscrita pela arguida;
21) Fls. 186 Capa 2 2008 - Pagamento bancário a favor de “J1…”, ou seja, J…, contem a indicação “por conta de vencimento Maio” manuscrita pela arguida;
22) Fls. 202 Capa 2 2008 – cópia de cheque ...... e talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
23) Fls. 254 Capa 2 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
24) Fls. 281 Capa 2 2008 – Extracto Bancário contendo transferência Bancária a favor de “I…”, contem no descritivo da transferência “PRESTACAO”;
25) Fls. 296 Capa 2 2008 – Pagamento bancário a favor de “X…, S.A.”, contem a indicação “por conta de vencimento Maio 2008” manuscrita pela arguida;
26) Fls. 297 Capa 2 2008 – Pagamento bancário a favor de “X…, S.A.”, contem a indicação “por conta de vencimento Maio” manuscrita pela arguida;
27) Fls. 300 Capa 2 2008 – Pagamento bancário a favor de “Y…, S.A.”, contem a indicação “por conta de vencimento Maio” manuscrita pela arguida;
28) Fls. 301 Capa 2 2008 – Extracto Bancário contendo transferência Bancária a partir do Z… (conta da C…) para pagamento de cartão de crédito L… utilizado para pagar hotéis …, contendo ainda a expressão “cartão de crédito Hóteis” manuscrita pela arguida;
29) Fls. 304 Capa 2 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “I…”, contem no descritivo da transferência “PRESTACAO” e a menção “Prestação dívida C…. J…”, manuscrita pela arguida;
30) Fls. 315 Capa 2 2008 – cópia de cheques …… e …… com a indicação “Penhora VCT: B…”
31) Fls. 324 Capa 2 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
32) Fls. 396 Capa 2 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis com a indicação + 60€:
33) Fls. 397 Capa 2 2008 – Cheque ……, talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
34) Fls. 401 Capa 2 2008 – Cheque ……, descriminado pelo Sr contabilista AB..., fls. 8 do Diário 5 – Bancos/Diversos, como “H…”, a qual é mãe da arguida (empréstimo dos € 10,000 para pagamento IATA):
35) Fls. 43 Capa 3 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “N…”, contem no descritivo da transferência “B…” e a menção “Complemento Vcto mês de Junho”, manuscrita pela arguida;
36) Fls. 58 Capa 3 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “I…”, contem no descritivo da transferência “PRESTACAO” e a menção “Prestação da J… dívida da C…”, manuscrita pela arguida;
37) Fls. 59 Capa 3 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “M…”, contem no descritivo da transferência “ANUIDADE C…” e a menção “Anuidade Internet Alojamento”, manuscrita pela arguida. Refere-se este movimento ao pagamento da anuidade do alojamento do site da empresa “C…”, logo feito no seu interesse e no âmbito da sua actividade;
38) Fls. 91 Capa 3 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
39) Fls. 101 Capa 3 2008 – cópia de cheque n.º ……, contendo a menção “107,14 Seguro Meu (por conta vencimento) diferença Seguro AC… (C…) Acidentes de Trabalho”, manuscrita pela arguida;
40) Fls. 102 Capa 3 2008 – cópia de cheque n.º ……, à ordem de “O…” contendo a menção “Por conta vcto”, manuscrita pela arguida;
41) Fls. 103 Capa 3 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
42) Fls. 107 Capa 3 2008 – cheque …… contem a indicação AD… colocada pelo Sr. Contabilista (combustíveis?)
43) Fls. 109 Capa 3 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
44) Fls. 120 Capa 3 2008 – cheque …… contem a indicação AD… colocada pelo Sr. Contabilista (combustíveis?);
45) Fls. 184 Capa 3 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “AE…”, contem no descritivo da transferência “MEMBRO N ……” e a menção “por conta meu Vcto de Julho”, manuscrita pela arguida;
46) Fls. 188 Capa 3 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “AF…”, no descritivo da transferência “P1119/0.8J5T5TBVNG-L” com a indicação “Penhora VCTº B…”, manuscrita pela arguida;
47) Fls. 218 Capa 3 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
48) Fls. 242 Capa 3 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis – pagamento em cheque;
49) Fls. 271 Capa 3 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis e nota de lançamento do cheque n.º …… com a indicação “AG…” colocada pelo Sr. Contabilista;
50) Fls. 10 Capa 4 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “G…”, no descritivo da transferência “PRESTACAO” com a indicação “Por conta do meu Vcto de Agosto”, manuscrita pela arguida;
51) Fls. 13 Capa 4 2008 – comprovativo de pagamento a “AH…, SA”, com a indicação “Por conta do meu Vencimento de Agosto”, manuscrita pela arguida;
52) Fls. 57 Capa 4 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis;
53) Fls. 63 Capa 4 2008 – talão comprovativo de pagamento de combustíveis, acompanhado de nota de lançamento do cheque …… com a indicação “AG…” colocada pelo Sr. Contabilista;
54) Fls. 85 e 181 Capa 4 2008 – notas de lançamento elaborada pelo sr. Contabilista contendo a indicação “I…”. Serão transferências bancárias a favor de I… conforme as que vimos descrevendo e pelo mesmo valor – €150,00.
Quanto aos alegados vencimentos a mais, verifica-se que:
Os movimentos imputados à arguida FLS 155 e 275 CAPA1 2008; FLS 281 CAPA 2 2008; FLS 304 CAPA 2 2008: FLS 58 CAPA 3 2008; FLS 85 e 181 CAPA 4 2008 – correspondem a transferências para I… no valor unitário de € 150,00 e não a pagamento de salários à arguida.
Os montantes descritos a fls. 113, 114, 200, 344, 347, 348, 352, 353, 361, 363, 369, Capa 1 2008 e 115, 117, 120, 121, 124, 133, 135, 250, 255, 383, 399, 400, 401 Capa 2 2008; fls. 100, 106, 107, 108, 120 capa 3 2008; fls. 56, 67 capa 4 2008, correspondem a cheques sem outra justificação.
Os montantes descritos a fls. 360, Capa 1 2008 e fls. 122, 125, 183, 301 capa 2 2008 correspondem a cheques para pagamento de hotéis.
O montante imputado como salário à arguida de fls. 160 capa 1 2008 e fls. 118, 130, 202, 254, 324, 396 (parcialmente), 397, capa 2 2008; fls. 91, 103, 109, 218, 242, 271 capa 3 2008; fls. 57, 63 capa 4 2008 correspondem a aquisição de combustíveis.
A fls. 176 capa 2 2008 não existe nenhum movimento a favor da arguida no valor de € 300,00, mas sim a favor de U….
O movimento de Fls. 59 Capa 3 2008 – comprovativo de transferência Bancária a favor de “M…”, contem no descritivo da transferência “ANUIDADE C…” e a menção “Anuidade Internet Alojamento”, manuscrita pela arguida. Refere-se este movimento ao pagamento da anuidade do alojamento do site da empresa “C…”, logo feito no seu interesse e no âmbito da sua actividade e não por conta do vencimento da arguida.
Curioso é notar que existem diversos movimentos repetidos (por exemplo os pagamentos a I…) que não podem fundamentar duas apropriações diversas pela arguida, uma a título de valores pagos a terceiros e outra por ter recebido o mesmo valor a título de salário a mais. Seria uma duplicação injustificada de apropriações.
De referir que os contabilistas da empresa disseram que todos os movimentos em justificação válida contabilisticamente eram imputados à conta de vencimento da arguida, dizendo ainda o contabilista P…, de forma clara e expressa que isso não significa que a arguida se tenha apoderado de tais valores. Ora, não é pelos movimentos não terem “arrumação contabilística” e terem sido processados da maneira que o foram, que podemos concluir que a arguida se apropriou indevidamente das quantias referidas na acusação pública.
*********
O depoimento de E…, não mereceu acolhimento probatório porquanto se revelou um depoimento reservado, não espontâneo, demonstrando má fé em relação à arguida e incongruências.
Na verdade, afirmou que apenas ia à empresa meia dúzia de vezes por ano, quando a arguida, o seu marido e trabalhadoras da loja disseram que aquele lá ia cerca de duas vezes por semana.
Não podia desconhecer que a arguida utilizava o seu carro pessoal em deslocações ao serviço da firma, uma vez que é inerente à actividade empresarial a necessidade de efectuar deslocações.
Não podia ter noção da situação real da empresa apenas em meados de 2008 (Agosto) porquanto os contabilistas da empresa lhe deram sempre conhecimento do que se passava, designadamente no que se refere aos movimentos sem suporte documental.
Também não é possível desconhecer que a filha da arguida era funcionária da empresa pois que essa lá trabalhou cerca de um ano desempenhando funções ao balcão e aquele ia lá semanalmente.

A nível da fundamentação de direito escreveu-se:
À arguida vêm-lhe imputados factos susceptíveis de a fazer incorrer na prática de um crime de Abuso de Confiança qualificado p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1 e 4 al. b) do C.Penal.
Para que se tenha por praticado este ilícito típico por parte do arguido, é necessário que se preencham, com a sua conduta, os elementos objectivos e subjectivos do respectivo tipo legal, e não se verifiquem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Dispõe o art.º 205.º, n.º 1 do C.P. que comete este crime quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade.
São, assim, elementos do tipo objectivo de ilícito a apropriação ilegítima de coisa móvel e a entrega ao agente por título não susceptível de transmitir a propriedade.
Torna-se, pois, necessário que no momento da apropriação o agente já tenha a posse ou detenção da coisa objecto da acção, mas não a propriedade, caracterizando-se a sua apropriação, precisamente, por uma inversão do título dessa posse, passando o agente a agir em relação à coisa uti dominus, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, que o revelem.
Quanto ao elemento subjectivo, exige-se o dolo nos termos gerais, previsto no art.º 14.º do C.P., em relação a todos os elementos do tipo objectivo de ilícito.
A agravação do n.º 4 al. b) do art. 205º do C. Penal resulta do valor de que alegadamente a arguida se apropriou ser consideravelmente elevado, nos termos previstos no art. 202º al. b) do C.P., ou seja, exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
Quanto à alegada apropriação de valores por conta de salários, seguimos a jurisprudência que nos indica que:
“Não comete um crime de abuso de confiança quem recebe importâncias, a título de adiantamento de vencimentos, e, posteriormente, rescinde o contrato a que respeite o adiantamento, visto que a percepção de tais importâncias é feita na qualidade de proprietário das mesmas, sem obrigação da sua restituição, e que a não prestação dos serviços correspondentes só gerará, em tais circunstâncias, responsabilidade civil (e desde que não haja elementos que permitam concluir pela existência de crime de burla) - Ac. da Rel. de Lisboa de 84/10/17, CJ IX, 4, 150, referido por Leal Henriques e Simas Santos em Código Penal Anotado, 3.a Edição, II VOLUME, pág. 694”.
Na verdade, os pagamentos feitos por conta de vencimentos e subsídios da arguida não são geradores de responsabilidade penal mas sim e tão só de responsabilidade civil, a ser dirimida nos meios próprios.
Acresce, como assinala o Prof. Figueiredo Dias (no «Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial», tomo II, Coimbra Ed., 1999, pp. 94 e segs), a essência típica do abuso de confiança configura-se como uma apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio, trata-se de violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção.
Sabido que o objecto da acção é, no caso, uma coisa móvel alheia, não pode olvidar-se que créditos e quaisquer outros direitos, não sendo coisas em sentido material, nem em sentido jurídico, não podem constituir objecto do crime de abuso de confiança.
Por outro lado, tem de sublinhar-se que, quando a coisa móvel alheia é constituída por objectos fungíveis, nomeadamente por dinheiro (cfr. Eduardo Correia, na Revista de Direito e Estudos Sociais, VII-1-62 e segs. (65)), o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não é integrado pela mera confusão ou o simples uso da coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos, ao que terá de acrescer o correspondente dolo (Figueiredo Dias, «Comentário», citado, pág. 104, § 25).
Por fim, importa reconhecer que, nestes casos (em que o objecto da pretensão é uma soma em dinheiro, uma certa medida ou quantidade de dinheiro), a apropriação (suposta a existência de uma pretensão juridico-civilmente válida, incondicional e vencida), não pode considerar-se ilegítima e, consequentemente, o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não se encontra integrado pela conduta – no dizer do mesmo Prof. Figueiredo Dias, é a apropriação qua tale que inexiste e não apenas a sua ilegitimidade (Ob. e loc. cit., pp. 105/106, § 28).
Efectivamente, resulta da prova produzida em sede de audiência de julgamento que nunca existiu por parte da arguida qualquer intenção de apropriação das quantias monetárias referidas na acusação pública. A mesma, pelo contrário, sempre procurou ajudar a saúde financeira da empresa de que era sócia mobilizando para o efeito o seu próprio património pessoal e familiar. E disso sabia o seu sócio Sr. E…, que também o fez por diversas vezes, quer através do seu cartão de crédito quer injectando na empresa dinheiro, como foi o caso, por exemplo, dos € 10.000,00 para pagamento da licença da IATA.
Por outro lado, este sócio foi sucessivamente alertado pelos contabilistas da sociedade, em reuniões tidas também com a arguida, para a existência dos movimentos sem suporte documental, pelo que não podia desconhece-los.
Demonstrativo ainda que a mesma não se apropriou das quantias monetárias em causa é o facto de o seu marido ter uma penhora no seu salário derivada de uma dívida da sociedade e de a arguida ter vendido o seu próprio ouro de família para acorrer a necessidades de tesouraria da “C…”, estando actualmente a sua situação económica bastante debilitada.
Porque assim é, nada mais resta do que absolver a arguida do crime porque vem acusada.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso, interposto pelo Ministério Público, demarcado pelo teor das suas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), suscita a apreciação das seguintes questões:
1ª- Verificar que existe erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c), do CPP);
- Apurar se há erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito.
Passemos então a apreciar cada uma das questões colocadas no recurso aqui em apreço.
1ª Questão
Invoca o recorrente que há erro notório na apreciação da prova, por entender que deviam ter sido dados como provados os factos alegados na acusação pública que vieram a ser dados como não provados (v.g. que no período em questão nos autos, entre Dezembro de 2007 e Outubro de 2008, a arguida realizou pagamentos a terceiros, que não eram devidos pela sociedade que geria, deles se apropriando indevidamente e, igualmente nesse período de tempo, retirou da sociedade que geria, de forma ilegítima, a título de remunerações, uma quantia muito superior ao seu vencimento mensal liquido, que computou em 48.071,39 €, causando dessa forma um prejuízo patrimonial à mesma sociedade).
Para tanto argumenta, em síntese, por um lado, que o tribunal se afastou de forma infundada do juízo pericial (resultante da perícia contabilística efectuada), que resulta das respostas aos quesitos 20º, 4º e 18º, sem que tivesse “resultado da prova produzida em julgamento qualquer elemento capaz de o colocar em crise” e, por outro lado, faz a sua própria apreciação de declarações e depoimentos que alega terem sido prestados em julgamento, censurando a análise crítica das provas efectuadas pelo julgador, constante da fundamentação de facto da sentença (sem, contudo, ter impugnado amplamente a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art. 412º, nº 3 e nº 4 do CPP).
Pois bem.
Dispõe o art. 410º, nº 2, do CPP:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Assim, os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[1].
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2-a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”[2]
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2-b), do CPP) “é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.
O erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2-c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”[3]
De esclarecer que a invocação dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, não se confunde com a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, efectuada no âmbito do art. 412º, nº 3 e nº 4 do CPP.
Neste caso concreto, o recorrente não quis impugnar amplamente a decisão proferida sobre a matéria de facto (nos termos do art. 412º, nº 3 e nº 4 do CPP), pelo que, como bem sabe, não pode socorrer-se de elementos estranhos ao texto da decisão sob recurso.
Por isso, quando invocando o erro notório na apreciação da prova, apela ao que teria sido dito em julgamento pela arguida, pelo perito (em esclarecimentos que prestou) e pelas testemunhas, mas que não consta, nem resulta do texto da sentença sob recurso, essas considerações que faz (algumas delas descontextualizadas) não podem ser atendidas por este Tribunal (precisamente porque o recorrente não impugnou amplamente a decisão proferida sobre a matéria de facto).
Ora, verificado o texto e o contexto da sentença sob recurso não se detecta o invocado vício previsto no art. 410º, nº 2, alínea c), do CPP.
A fundamentação da matéria de facto constante da decisão recorrida conforma-se com a apreciação crítica das provas aí indicadas.
Além disso, a apreciação objectiva feita pelo julgador (que consubstancia o exame crítico das provas produzidas em julgamento), não contraria as regras da experiência comum, baseando-se em opção aceite na imediação e oralidade.
Nem sequer há distorções de ordem lógica e tão pouco foi feita qualquer apreciação que seja ilógica, arbitrária, incongruente ou insustentável, não patenteando a decisão sob recurso qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
Do texto da sentença sob recurso também não resulta que o tribunal a quo tivesse violado o disposto nos arts. 127º e 163º do CPP.
Das considerações feitas pelo recorrente decorre que o mesmo, no essencial, limita-se a contrapor a sua própria apreciação das provas àquela que foi a convicção do tribunal.
O recorrente quer substituir-se ao tribunal, quando pretende impor a sua própria apreciação (subjectiva e parcial) de parte das provas produzidas em julgamento, o que não pode ser.
Isto é, o recorrente esqueceu o teor do art. 127º do CPP, sendo a sua divergência pessoal e subjectiva, carecida de relevância jurídica.
Relativamente à prova pericial, ao contrário do que alega o recorrente, não se vê que o julgador se tivesse afastado, de forma infundada, do juízo pericial.
A este propósito, convém lembrar, que a prova pericial, só por si não é suficiente para, em fase de julgamento, permitir uma condenação ou uma absolvição.
Desde logo porque os factos de que parte a prova pericial terão sempre de ser complementados por outros elementos de prova.
O juízo técnico, científico ou artístico reporta-se à percepção ou apreciação dos factos submetidos à perícia e é restrito aos especiais conhecimentos do perito, não abrangendo matéria que não é da sua competência.
Portanto, o juízo técnico, científico ou artístico formulado pelo perito terá que ter como suporte determinados factos, factos esses que serão o seu ponto de partida e que lhe irão permitir retirar as respectivas conclusões.
No entanto, a perícia pode ser impugnada pela refutação dos factos de que partiu o perito para chegar à conclusão que formulou.
No caso concreto, a prova pericial partiu apenas da análise de documentos (v.g. elementos contabilísticos e bancários) relativos à sociedade “C…, Lda”, a que o perito teve acesso.
Portanto, não teve em atenção as demais provas produzidas em julgamento (particularmente as declarações da arguida, os depoimentos das testemunhas e alguma prova documental junta em audiência) nem a análise crítica que delas foi feita pelo julgador.
Tendo em atenção a fundamentação que consta da sentença sob recurso, a qual também atendeu ao teor da prova pericial e esclarecimentos prestados pelo perito, nada impedia o julgador, visto ainda o disposto no art. 127º do CPP, de não acreditar no depoimento prestado pela testemunha E… (sócio da sociedade C…, Lda) em julgamento, e valorar, nos termos em que o fez, as declarações que a arguida prestou em julgamento, tendo ainda em atenção a prova documental, designadamente a junta em audiência (incluindo, assim, o que resultava das ditas “anotações” e “post-it” – que também revelam a forma desorganizada como a sociedade funcionava, sobretudo em termos contabilísticos, o que também decorre dos depoimentos das testemunhas que exerceram funções de contabilistas e da própria perícia, considerando-a na sua globalidade) e os depoimentos das testemunhas P… (TOC, que prestou serviços de contabilidade para a sociedade em questão, abrangendo o período de Janeiro a Dezembro de 2008), Q… (que trabalhou para a dita sociedade cerca de 3 anos até 2008/2009), S… (que trabalhou para a mesma sociedade de 1997 até 2005), T… (contabilista da sociedade desde a sua constituição até 1990 e de 2002 a 2007), G… (marido da arguida), I… (ex-genro da arguida, que foi casado com a U…) e U… (filha da arguida, que passou a trabalhar na sociedade em questão desde final de Maio de 2007).
O facto das explicações apresentadas pela arguida não servirem, em termos contabilísticos, para “justificarem saídas de capital da empresa” não significa (como pretende o recorrente) que aquela tivesse cometido o crime de que foi acusada.
Também, a falta de documentos que tivessem valor contabilístico, apesar de levarem à elaboração da contabilidade da sociedade de forma que não correspondia à realidade/verdade, só por si não significa que a arguida tivesse praticado factos integradores do crime de abuso de confiança que lhe foi imputado.
Da prova oral produzida em julgamento (tal como decorre da fundamentação de facto da sentença) resulta desde logo que, na perícia, não foi considerado (por não resultar da prova documental com valor contabilístico analisada), que o salário mensal líquido da arguida era de € 1.250,00 (e não apenas de € 1.073,10), tal como veio a ser dado como provado no ponto 6 (facto esse que podia assentar igualmente em prova oral, como sucedeu).
Para além disso, dessa mesma prova oral, articulada com a análise da prova documental, designadamente junta em audiência, o tribunal admitiu a possibilidade (não contemplada na perícia) de:
1º- a arguida não ter recebido o salário mensal liquido de € 1.250,00 de forma integral e regular[4];
2º- a arguida ter feito transferências de contas bancárias da sociedade que geria para:
- pagamento de despesas pessoais por conta do vencimento[5];
- pagamento de empréstimos (contraídos junto da sogra H… e do então genro I…) cujos valores serviram para pagar montantes em dívida pela sociedade[6];
- pagamento de salários e penhora de vencimento[7];
- pagamento de gastos em combustível, por utilizar o seu veículo pessoal e o do marido em deslocações ao serviço da empresa[8];
3º- a arguida utilizar os seus cartões de crédito pessoais e do seu marido G... para fazer pagamentos relativos à actividade da empresa[9];
4º- haver falta de documentos de suporte de compras e despesas da sociedade e, quando não havia essa documentação de suporte (o que também sucedia, v.g. com levantamento de cheques sem justificação documental e com pagamentos com cartão de crédito sem justificativo), os contabilistas imputavam-nos ao Caixa e na conta de vencimento da arguida[10].
Dizemos que admitiu essa possibilidade de justificação para as transferências bancárias e pagamentos a terceiros no valor global de € 13.724,31 (pontos 4 e 5 dados como provados) porque, efectivamente, ao contrário do que constava da perícia, deu como não provado (além do mais) que esses pagamentos “não eram devidos pela sociedade, apropriando-se de tal quantia” a arguida.
Ou seja, perante as demais provas (oral e documental) que analisou criticamente o julgador ficou sem saber se o que a arguida pagou a terceiros (valor global de € 13.724,31 mencionado no ponto 5 provado, correspondente à soma das transferências aludidas no ponto 4) provado) era ou não devido pela sociedade (se representavam ou não custos da sociedade) e, assim, ficou sem saber se houve ou não apropriação indevida do valor global de € 13.724,31 por parte da arguida.
Daí resulta que não se pode concluir (como o faz o recorrente) que o julgador tivesse divergido do juízo pericial; o que sucedeu antes foi que, das provas produzidas em julgamento, houve factos (ponto 6 provado) que não foram considerados pelo perito e, colocaram-se hipóteses de justificação, que também não foram ponderadas pelo perito (que apenas analisou a prova documental a que teve acesso, tendo em atenção, na apreciação que fez, aquela que podia ser atendida em termos contabilísticos).
Ou seja, a divergência não é em relação ao juízo técnico do perito (daí que não haja violação do disposto no art. 163º do CPP[11]), mas antes em relação aos factos de que o perito partiu para responder aos quesitos (nomeadamente 20º, 4º e 18º citados pelo recorrente).
Por admitir como possíveis aquelas justificações apresentadas pela arguida para a sua conduta relativa aos pagamentos a terceiros e por ter constatado que a contabilidade feita não reflectia a realidade da vida empresarial da sociedade em questão (apesar de não dar como provados – certamente por entender que, para esse efeito, as provas produzidas eram insuficientes – os factos que consubstanciavam aquelas justificações apresentadas pela arguida, salvo quanto à remuneração liquida mensal que recebia) o tribunal não deu como provada a demais matéria alegada na acusação.
A falta de rigor contabilístico e a forma desorganizada como a arguida fazia a gestão corrente da dita sociedade não significa (como pretende o recorrente) que tivesse cometido o crime de que foi acusada.
A conclusão da arguida ter cometido o crime, também não podia ser extraída da perícia, sendo certo igualmente que esta (a perícia) só por si também não era bastante para dar como provada toda a matéria alegada na acusação pública.
Ainda que a perícia tivesse concluído que os documentos que suportam os pagamentos que a arguida fez a terceiros, no valor global de € 13.724,31 não podem considerar-se custos elegíveis, isso só por si não significa que houvesse apropriação ilegítima da arguida desses montantes que titulavam os referidos pagamentos a terceiros.
Aliás, da resposta ao quesito 20º da perícia, citado pelo recorrente[12], também não se pode concluir sem mais que a arguida se tivesse apropriado daqueles montantes que pagou a terceiros.
O que se retira da resposta a esse quesito 20º é que a arguida efectuou aqueles pagamentos a terceiros de modo indevido e ilegítimo (os documentos apresentados não permitiam considerá-los como “custos elegíveis”) e não que deles se apropriou ilegitimamente.
No entanto, tendo presente por um lado que a perícia foi feita a partir da análise dos documentos a que o perito teve acesso, considerando os que tinham valor contabilístico e, por outro lado, que a contabilidade analisada não foi feita com o rigor devido, razão pela qual não reflectia a realidade da vida da sociedade (tal como se extraía da prova oral produzida em julgamento), logicamente que o julgador, face à avaliação que fez do conjunto das provas produzidas (de acordo com o que fez constar da sentença) não podia dar como provado que os pagamentos efectuados a terceiros fossem indevidos e ilegítimos e que deles a arguida se havia apropriado.
O mesmo se passou no que respeita ao valor global que a arguida recebeu a título de remunerações entre Dezembro de 2007 e Outubro de 2008.
Com efeito, como resulta da fundamentação da sentença, por um lado o perito não teve em atenção o que se provou quanto ao salário liquido mensal da arguida (ponto 6 dado como provado) e, por outro lado, na perícia foram atendidos valores ou movimentos iguais (e que, como tal foram repetidos, como sucedeu por exemplo com pagamentos a I…) que tanto serviram para fundamentar a conclusão retirada quanto a pagamentos feitos pela arguida a terceiros, como para sustentar a conclusão de que a arguida recebeu remunerações em quantia superior ao seu vencimento mensal liquido.
Percebe-se, assim, que o tribunal tivesse ficado na dúvida e acabasse por dar como não provado “que a arguida recebeu mais do que lhe era devido a título de remunerações e ficou devedora à sociedade que representava, causando-lhe um prejuízo patrimonial em valor não inferior a € 48.071,39”.
E, independentemente dessa descrição factual (assim articulada nos artigos 7º e 8º da acusação pública) não ser bastante para concluir que, nessa parte, foram alegados todos os pressupostos que integram o crime de abuso de confiança imputado à arguida, o certo é que o tribunal, perante as demais provas (oral e documental) que também analisou ficou sem saber se a arguida recebeu ou não mais do que lhe era devido a titulo de remunerações.
Compreende-se a dúvida do tribunal tendo em atenção que, em audiência, as testemunhas que exerceram funções de contabilistas referiram que quando havia falta de documentos de suporte de compras e despesas da mesma sociedade, quando não havia essa documentação de suporte (o que também sucedia, v.g. com levantamento de cheques sem justificação documental e com pagamentos com cartão de crédito sem justificativo), imputavam essas operações ao Caixa e na conta de vencimento da arguida (o que evidencia que a forma como fizeram a contabilidade não correspondia à realidade).
Ora, perante esses depoimentos dos contabilistas, é evidente que o tribunal (apesar da falta de documentos de suporte com valor contabilístico) não podia com segurança dar como provado que a arguida recebera mais do que lhe era devido a título de remunerações.
De resto, as respostas aos quesitos 4º e 18º da perícia, citados pelo recorrente[13], assentam apenas nos registos efectuados na contabilidade da sociedade e, como resulta dos depoimentos das testemunhas que efectuaram a contabilidade da sociedade, esses registos não reflectiam a realidade.
Portanto, as respostas aos quesitos dadas pelo perito ficaram condicionadas pelos pressupostos fácticos de que partiu, os quais, como já vimos, assentaram em registos contabilísticos que não reflectiam a realidade/verdade da vida daquela sociedade, para além de não abarcarem aquelas outras provas que convenceram o julgador (como sucedeu com o que deu como provado no ponto 6), nem atenderem (ainda que só como hipótese de raciocínio) a explicações apresentadas pela arguida, apesar de estas não servirem, em termos contabilísticos, para “justificar saídas de capital” da sociedade.
Ao contrário do que alega o recorrente, as provas oral (produzida em julgamento) e documental analisadas pelo tribunal, perante as dúvidas que se suscitaram, indicadas na motivação de facto, apenas permitiram ao julgador formar a sua convicção no sentido da decisão que proferiu sobre a matéria de facto, sem que por isso se possa concluir que violou o disposto no art. 163º (valor da prova pericial) e/ou no art. 127º (livre apreciação da prova) do CPP ou que incorreu em erro notório na apreciação da prova.
Para além disso, como é sabido, não cabe no âmbito do juízo pericial a pronuncia sobre a intenção com que o agente actuou; esse juízo relativo à intenção compete apenas ao juiz.
Acresce que, a análise pessoal que o recorrente faz das provas oral e documental aludidas na fundamentação da sentença (nomeadamente quando critica a avaliação feita pelo julgador) não evidencia que exista qualquer erro notório na apreciação das provas.
O que sucede é que o recorrente fez a sua própria apreciação das provas, o que não é bastante para concluir que ocorre o vício previsto no art. 410º, nº 2, al. c), do CPP.
A argumentação do recorrente está viciada desde logo porque, apesar da prova produzida em julgamento, também não concorda com a apreciação que dela fez o julgador.
No entanto, essa discordância é irrelevante uma vez que não está evidenciada a existência de erro notório na apreciação da prova e muito menos do tribunal ter violado o disposto no art. 163º do CPP, quanto à valoração da prova pericial.
Aliás, como resulta da fundamentação da sentença, para além das provas acima indicadas, o tribunal teve também em atenção o “teor do relatório de peritagem à contabilidade de fls. 678 a 725 dos autos, complementado pelos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito que o elaborou (…)”.
Como não podia deixar de ser, o julgador teve em atenção esse relatório pericial, os esclarecimentos prestados pelo perito e também a análise que fez das demais provas produzidas em julgamento, como explicou na fundamentação da sentença.
E, por isso mesmo, é que deu como não provados os factos que enunciou, os quais haviam sido alegados na acusação pública.
Note-se que, do que foi dado como não provado não se pode extrair a prova do contrário, como parece sugerir o recorrente quando crítica a avaliação das provas feitas pelo julgador.
Assim, para além dos factos apurados permitirem ao tribunal proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência), não se detecta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, sendo certo que a apreciação feita pelo julgador não evidencia qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
As divergências do recorrente, quando apresenta a sua própria análise de parte da prova produzida em julgamento, são irrelevantes porque é ao tribunal que incumbe valorar todas as provas, sendo certo que não se pode confundir essas divergências com impugnação da matéria de facto ou com a invocação dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP.
Esqueceu o recorrente que o que é relevante é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, e não a sua (do recorrente) convicção pessoal[14].
De resto, não se vê do texto da sentença sob recurso que o tribunal da 1ª instância tivesse usado “pré-juízos” ou “presunções” para avaliar as provas que indicou e tão pouco se detecta que tivesse recorrido a provas proibidas ou tivesse violado os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência.
Por isso, não há qualquer surpresa quanto ao teor da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Ora, não ocorrendo qualquer dos vícios aludidos no art. 410º, nº 2, do CPP e, não existindo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, está definitivamente fixada a decisão sobre a matéria de facto, acima transcrita.
Improcede, pois, nesta parte a argumentação do recorrente.
2ª Questão
Importa agora analisar se existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito.
Neste aspecto o recorrente apresenta a sua discordância quanto a parte da fundamentação de direito constante da sentença sob recurso.
De qualquer modo, independentemente da análise das considerações de direito constantes da sentença (análise que se torna desnecessária perante a decisão proferida sobre a matéria de facto, já definitivamente fixada), o certo é que os factos dados como provados não são bastantes para se considerar que se verificam os tipos, objectivo e subjectivo, do crime de abuso de confiança imputado à arguida.
Nem o recorrente o afirma, apesar de discordar de parte da fundamentação de direito constante da sentença.
Tanto basta para se concluir que não se mostram preenchidos todos os pressupostos do crime imputado à arguida.
Em conclusão: improcede a argumentação do recorrente, sendo certo que não foram violados os preceitos legais por ele invocados.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso do Ministério Público.
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Sem custas por delas estar isento o recorrente.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)

Porto, 09-10-2013
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (relatora)
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento (Adjunto)
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[1] Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/12/1990, BMJ nº 402/232ss.
[2] Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13/7/2005, proferido no processo nº 2122/05, relatado por Henriques Gaspar (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais).
[3] Ibidem.
[4] O que se extrai do texto da sentença, designadamente das declarações da arguida que, nessa parte, convenceram o julgador.
[5] O que se extrai do texto da sentença, designadamente das declarações da arguida articuladas com a prova documental que juntou em audiência (parte dela pelo menos também analisada na perícia, mas considerada como custos não ilegíveis) e bem assim com o depoimento da testemunha U… (filha da arguida).
[6] O que se extrai do texto da sentença, designadamente das declarações da arguida articuladas com os depoimentos de G… (marido da arguida), I… (ex-genro da arguida) e U… (filha da arguida).
[7] O que se extrai do texto da sentença, designadamente das declarações da arguida.
[8] Ao contrário do que pretende o recorrente, é do conhecimento genérico que existem empresas de turismo que, para aumentar a clientela e/ou manterem a que tem, deslocam-se a casa dos clientes para entregar documentação, fazem o transporte dos clientes das respectivas residências para o aeroporto por exemplo e vice-versa, razão pela qual não constitui qualquer surpresa que a arguida efectuasse gastos em combustível em deslocações de automóvel (seu e do marido) que fazia ao serviço da empresa, tanto mais que a C…, Lda não tinha viatura. A própria testemunha P… (TOC) confirmou (como se diz na sentença) que “Como a empresa não tinha viaturas próprias deveria ser feita uma folha de quilómetros, o que não ocorria, entregando-lhe a arguida os talões de combustível.” Igualmente a testemunha Q… esclareceu (como consta da sentença) que “A empresa não tinha carro. A arguida deslocava-se muito para entregar documentos ao domicílio, ir ao aeroporto e dar assistência aos clientes, usando o seu carro pessoal. Muitas vezes era o marido da D. B… que fazia o serviço de paquete.”
[9] O que se extrai do texto da sentença, resultando das declarações prestadas pela arguida, articuladas com os depoimentos das testemunhas T… (contabilista) e G… (marido da arguida).
[10] O que se extrai do texto da sentença, resultando dos depoimentos das testemunhas P… (TOC) e T… (contabilista), referindo a primeira testemunha que isso não significava que a arguida se tivesse apoderado de tais valores, e da análise crítica que o julgador deles fez.
[11] Artigo 163º (Valor da prova pericial) do CPP
1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.
[12] Resposta ao quesito 20º: “Durante o período de Dezembro de 2007 a Outubro de 2008, a sociedade efectuou pagamentos a terceiros que não são considerados custos do exercício da actividade corrente da sociedade no valor de 13.724,31€, por isso, indevidos e ilegítimos.”
[13] Resposta ao quesito 4º: “Assim, somos de entendimento que, de acordo com os registos efectuados na contabilidade da empresa, todos os salários foram pagos à sócia gerente remunerada, nomeadamente, B….”
Resposta ao quesito 18º: “Concluímos que, de acordo com os registos efectuados na contabilidade da sociedade, a sócia gerente e arguida recebeu da sociedade, mensalmente, valores superiores aos destinados ao pagamento da sua retribuição.”
Note-se que foi ao quadro (intitulado “Remunerações Órgãos Sociais”) constante da resposta ao quesito 4º que o recorrente foi buscar o total geral de € 48.071,39. No entanto, nesse quadro constam valores que igualmente foram considerados no quadro intitulado “Movimentos que podem traduzir apropriação ilegítima de 2008” que também consta da resposta ao quesito 20º (portanto, o que se refere aos pagamentos a terceiros).
[14] Aliás, como tem vindo a ser decidido por esta Relação, “o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação (…) e também não pode destinar-se a substituir a convicção formada pelo tribunal recorrido, objectivamente motivada, plausível segundo as regras da lógica, da experiência da vida e do senso comum e coerente com o sentido das provas produzidas” (assim, Ac. proferido no proc. nº 4133/05-1, relatado por Guerra Banha, citando outra jurisprudência).