Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1607/09.6TVPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: ARRENDAMENTO MISTO
DUALIDADE DE FINS
TEORIA DA ABSORÇÃO
NRAU
MORTE DO ARRENDATÁRIO
CADUCIDADE DO CONTRATO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RP201206051607/09.6TVPRT.P2
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando em contrato de arrendamento para fins não habitacionais o arrendatário morrer após a entrada em vigor do NRAU a regra passa a ser, nestes casos, a caducidade do contrato.
II - De acordo com a parte final do n° l do art 58° do NRAU, a transmissão do arrendamento constitui uma excepção - que se verifica apenas quando ao arrendatário sobreviva sucessor que, no período correspondente aos três últimos anos de vida daquele, explorou, em comum com o arrendatário, o estabelecimento instalado no local.
III - O preenchimento desta excepção bastar-se-á com o desenvolvimento por parte do sucessor, há mais de três anos, de uma actividade no locado explorado pelo arrendatário falecido, independentemente da natureza do vínculo que o liga a esse estabelecimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1607/09.6 TVPRT.P2
1º Juízo Cível do Porto – 2ª secção
Apelação
Recorrente: B…
Recorrida: C…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
A autora C…, residente na Rua …, nº …, Porto, intentou a presente acção declarativa contra a ré B…, residente na Rua …, nº …, Porto, pedindo que se condene a ré a ver declarada a caducidade do contrato de arrendamento em causa nos autos e a despejar de imediato o arrendado, entregando-o à autora livre de pessoas e bens, mas com tudo o que o compõe, bem como a pagar à autora uma indemnização correspondente ao prejuízo mensal de €300,00, desde 03/02/2008 até efectiva entrega do imóvel, acrescida dos juros legais de mora.
Invoca a autora, como causa de pedir, a sua qualidade de proprietária do prédio urbano constituído por casa de quatro pavimentos e fachada poente, sito na Rua …, nsº … a …, da freguesia de …, do concelho do Porto; a celebração entre a anterior proprietária e D…, pai da aqui ré, de um contrato de arrendamento que teve por objecto o rés-do-chão do referido prédio, com o nº …, contrato esse que foi sucessiva e automaticamente renovado; a caducidade do referido contrato de arrendamento, na sequência do falecimento do arrendatário, em 3 de Agosto de 2008; a não entrega do arrendado por parte da ré e o valor médio de €300/mês, considerado ajustado pela autora, face à localização e estado de conservação do imóvel, como valor a pagar pela ré, a título de indemnização pela ocupação ilícita do imóvel, desde 03/02/2008 até efectiva entrega do arrendado.
A ré contestou excepcionando a transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário e peticionando a condenação da autora como litigante de má fé.
A autora respondeu à matéria de excepção invocada pela ré, concluindo como na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador, o qual teve o Tribunal por competente, o processo por próprio e as partes por capazes e legítimas.
Com observância do legal formalismo, realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
Seguidamente proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- declarou a caducidade do contrato de arrendamento em causa nos autos;
- condenou a ré a despejar de imediato o imóvel referido na al. b) dos factos provados e a entregá-lo à autora, livre de pessoas e bens, mas com tudo o que o compõe;
- condenou a ré a pagar à autora a quantia mensal de €13,08, desde 4/2/2008 até efectiva entrega do referido imóvel, acrescida dos juros legais de mora desde a data da sua citação, em 2/9/2009.
No mais absolveu-se a ré do peticionado.
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a ré B…, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
a) Não foi valorada devidamente a prova produzida na audiência de discussão e julgamento, quanto à matéria de facto alegada no art.º 26.º e 27.º da contestação;
b) De acordo com os meios probatórios constantes da gravação realizados no processo, impunha-se que tivesse sido dado como provado que “pelo menos desde o ano de 1983 que a ré habitualmente abria e encerrava o estabelecimento de tabacaria e papelaria, atendia também a clientela e fornecedores durante o período da sua actividade e assegurava o regular funcionamento e exploração do estabelecimento, actividades essas que exercia em comum juntamente com o seu falecido pai.”
c) As passagens da gravação do processo relativas ao depoimento da testemunha E… permitem concluir que a ré não se limitava a atender clientes e fornecedores, pois abria e encerrava o estabelecimento, começou a tomar conta do estabelecimento, que o pai, primitivo arrendatário começou a passar as contas, as coisas para ela, que quanto a cheques e compras para o estabelecimento era a ré que fazia tudo, e quando o pai ficou doente, estava a ré à frente da loja.
d) Também as passagens da gravação do processo relativas ao depoimento da testemunha F…, levam a concluir que a ré fazia trocas de mercadorias com outros comerciantes para servir clientes, quando havia falhas de jornais ou revistas, actos próprios de quem realmente está a explorar um estabelecimento.
e) Por sua vez, as passagens da gravação do processo relativas ao depoimento da testemunha G… permitem concluir que a ré não teve outro trabalho, ou modo de vida, que não fosse trabalhar na tabacaria instalada no arrendado, juntamente com o pai, num período de tempo que se situa desde 1962 até hoje, o que mostra que a ré se sustentou dali.
f) Ou ainda, as passagens das gravações do processo relativas aos depoimentos das testemunhas H… e I…, que conhecem a ré há mais de 30 anos, e sempre a viram a praticar actos próprios do quotidiano do estabelecimento comercial, precisando que essa actividade decorria desde que a mãe dela ficou doente, perdendo o pai capacidade física para tomar conta do negócio.
g) E, finalmente, a prova documental dos autos, designadamente, a carta registada e o sobrescrito do Tribunal Cível de Lisboa endereçadas à ré com a designação “J…”, colocam-na ligada à actividade comercial do estabelecimento, a assegurar o seu regular funcionamento e exploração.
h) O tribunal recorrido errou na apreciação da prova quanto à matéria de facto alegada no art.º 27 da contestação, tendo ficado provado o requisito previsto na parte final do nº 1 do art. 58º do NRAU, uma vez que a ré desenvolvia, há mais de três anos, uma actividade no locado explorado pelo arrendatário falecido, seu pai.
i) Tanto a Doutrina como a última Jurisprudência, designadamente, Menezes Leitão (Arrendamento Urbano, pag. 123) e Maria Olinda Garcia “Arrendamentos para o Comércio pag. 74), e os AC do TRPorto proferido no Proc. 2367/09.6T2OVR.P1, 2009 e o Ac. Rel. de Lisboa de 29.10.2009 (Proc. 380/07.7 TJLSB.L1.6 – disponíveis em www.dgsi.pt, respectivamente, são no sentido de que “o preenchimento da excepção prevista na parte final do nº 1 do art. 58º do NRAU basta-se com o desenvolvimento, há mais de três anos, de uma actividade no locado explorado pelo arrendatário falecido, independentemente da natureza do vínculo que o liga à empresa a funcionar no estabelecimento.”
j) Com a alteração à matéria de facto fica demonstrado que a ré há mais de três anos no período que antecedeu imediatamente a morte do arrendatário, seu pai, vinha explorando, em comum com ele, o estabelecimento que funcionava no arrendado sito na Rua …, …, Porto.
k) O contrato de arrendamento a que os autos se reportam, celebrado em 1965, tem, como fim principal, o exercício do comércio, pelo que prevalecem, como foi bem decidido, quanto às causas de extinção do contrato, o regime que é próprio para tais contratos.
l) O óbito do primitivo arrendatário, pai da ré, ocorreu durante a vigência do Novo Regime do Arrendamento Urbano, pelo que cumpre aplicar o regime previsto nas normas transitórias (art.º 26.º, 27.º e 58.º da Lei 6/2006 de 27/02).
m) Não operou a caducidade do contrato de arrendamento, tendo-se transmitido para a ré o direito ao arrendamento, que é da maior importância para ela, quer para poder continuar a actividade comercial e sustentar-se economicamente, quer ainda, porque ali tem a sua habitação.
n) O tribunal recorrido violou o disposto no n.º 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil e o disposto na parte final do nº 1 do art. 58º do NRAU (Lei 6/2006 de 27/02).
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.
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Aos presentes autos, face à data da sua entrada em juízo, é aplicável o regime de recursos resultante do Dec. Lei nº 303/2007, de 24.8.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º – A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Impugnação da matéria de facto (arts. 26º e 27º da contestação);
IICaducidade/transmissão por morte do arrendamento.
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A matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância é a seguinte:
a) A autora é proprietária do prédio urbano constituído por casa de quatro pavimentos e fachada poente, sito na Rua …, nºs … a …, da freguesia de …, do concelho do Porto, inscrito na matriz urbana sob o artº 6841 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 385 do Livro B-4, conforme documento junto a fls. 14 a 16 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
b) Por contrato de arrendamento celebrado em 8 de Outubro de 1965, a anterior proprietária K… deu de arrendamento a D…, pai da aqui ré, o rés-do-chão do supra referido prédio, com o número …, conforme fotocópia da escritura pública outorgada no 6º Cartório Notarial do Porto junta a fls. 39 a 43 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
c) Tal arrendamento foi efectuado pelo prazo de um ano, com início a 01/10/1965 e renovável nos termos da lei, pela renda mensal de Esc. 400$00.
d) Nos termos da cláusula terceira do aludido contrato, ficou a constar que o arrendado se destina a “comércio de tabacaria e papelaria e habitação do arrendatário”.
e) O arrendamento foi sucessiva e automaticamente renovado, sendo a última renda de €13,08.
f) Em Março de 2003, aquando da proposta de venda do prédio à autora pela primitiva proprietária, D.ª K…, o pai da aqui ré mostrou-se também interessado na aquisição do mencionado prédio, pelo que foram feitas licitações entre a aqui autora e o pai da ré, uma vez que eram ambos inquilinos do prédio.
g) Tais licitações foram efectuadas no escritório do mandatário da proprietária, tendo o direito de preferência sido adjudicado à aqui autora por ter apresentado o lance mais alto, conforme documento junto a fls. 76 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
h) O pai da ré, primitivo arrendatário, é identificado, pela anterior proprietária, como "inquilino do Rés-do-chão".
i) O arrendatário faleceu em 3 de Agosto de 2008 no estado de viúvo, conforme documento junto a fls. 22 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
j) A ré é filha do primitivo arrendatário D….
l) Na sequência do falecimento do arrendatário, a ré enviou à autora, em 08/09/2008, a comunicação cuja cópia se encontra junta a fls. 23 dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido, onde solicitou a transmissão a seu favor do arrendamento relativo ao rés-do-chão do prédio sito na Rua …, n.º …, no Porto.
m) Em resposta à comunicação da ré, a autora, por carta datada de 10/09/2008, cuja cópia se encontra junta a fls. 24 dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido, informou que o referido contrato de arrendamento caducou em virtude do fim principal ser o habitacional.
n) O número … da Rua …, onde existe uma montra, dá acesso ao estabelecimento comercial de tabacaria e papelaria sito no rés-do-chão do prédio e o número …, presentemente, só dá acesso ao 1.º e 2.º andares, de utilização independente.
o) A parte do arrendado onde a ré tem a sua habitação e onde o seu pai também habitava, só é presentemente acessível através da porta do estabelecimento comercial.
p) A parte do arrendado destinada exclusivamente à habitação tem área superior à área afecta à parte comercial.
q) Nos recibos emitidos, assinados e entregues contra o recebimento da renda por parte da autora, cuja cópia se encontra junta a fls. 44 dos autos, a autora declarou que a quantia recebida era pelo arrendamento do “Quiosque”.
r) Nas cartas enviadas pela autora, datadas de 17/11/2004, 16/12/2006 e 21/11/2007, cujas cópias se encontram juntas a fls. 45 a 47, é referido “em relação ao quiosque de que é inquilino” e “coeficiente de actualização de contrato de arrendamento”.
s) Na data da celebração do contrato, a habitação do pai da ré era na Rua …, no Porto, onde então vivia com a mulher e 4 filhos e passaram ainda a viver durante mais algum tempo.
t) O arrendado da Rua … não tinha, então, quarto de banho nem cozinha e as divisões eram feitas em paredes de madeira.
u) O pai da ré, sua esposa e os seus quatro filhos (incluindo a ré) viveram no arrendado até estes constituírem família.
v) A ré continuou a viver no arrendado com os seus dois filhos e seus falecidos pais.
x) O arrendado não possui banheira.
z) A ré continua a ter a sua habitação no arrendado.
aa) A ré enviou à autora a carta datada de 25/09/2008, cuja cópia, talão de aceitação e aviso de recepção se encontram juntos a fls. 49 a 52 dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
bb) A ré, já há mais de 3 anos antes da morte de seu pai, atendia a clientela e fornecedores durante o período de actividade do estabelecimento de tabacaria e papelaria.
cc) O falecido pai da ré estava colectado para o exercício da actividade comercial.
dd) A ré só se colectou após o falecimento do seu pai.
ee) Após o falecimento do seu pai, a ré passou a explorar o estabelecimento, a abrir, a encerrar e a manter a funcionar, com a mesma clientela e os mesmos fornecedores.
ff) O estabelecimento encontra-se aberto ao público, exercendo ali a ré, diária e habitualmente, o comércio de tabacaria e papelaria.
gg) Após o falecimento de seu pai, a ré não esteve no estabelecimento durante o tempo da consulta de fisioterapia, por ter partido um pé.
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Não resultaram provados quaisquer outros factos, com relevância para a decisão a proferir, nomeadamente, que:
- O valor médio da renda mensal praticável para o rés-do-chão referido em b) é de € 300,00;
- A ré passa grande parte do tempo em casa de familiares;
- O arrendado não tem, ainda hoje, canalização para água quente;
- O pai da ré já estava a exercer o comércio no arrendado, quando tomou a iniciativa de passar também ali a habitar;
- Desde os seus 14 anos de idade que a ré habitualmente abria e encerrava o estabelecimento de tabacaria e papelaria, atendia também a clientela e fornecedores durante o período da sua actividade e assegurava o regular funcionamento e exploração do estabelecimento, actividades essas que exercia em comum juntamente com o seu falecido pai;
- O referido estabelecimento está frequentemente encerrado;
- O facto referido em bb) é do conhecimento pessoal da autora.
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I – A ré B…, no seu recurso, insurge-se em primeira linha contra a matéria de facto que foi dada como provada e não provada pela 1ª Instância, sustentando que ocorreu erro na apreciação da prova no que tange ao por si alegado nos arts. 26º e 27º da contestação.
Pretende assim que seja dado como provado que “pelo menos desde o ano de 1983 que a ré habitualmente abria e encerrava o estabelecimento de tabacaria e papelaria, atendia também a clientela e fornecedores durante o período da sua actividade e assegurava o regular funcionamento e exploração do estabelecimento, actividades essas que exercia em comum juntamente com o seu falecido pai.”
Nesse sentido aponta os depoimentos prestados pelas testemunhas E…, F…, G…, H… e I… e ainda a prova documental junta aos autos a fls. 152/4.
Procedemos assim à audição dos depoimentos prestados pelas testemunhas referidas, as quais foram arroladas pela ré.
E… é irmão da ré. Disse que após o falecimento da sua mãe em 1983 o seu pai ficou sozinho e a irmã começou também a tomar conta do negócio para o ajudar. Havia coisas que a irmã fazia, muitas vezes ficava no estabelecimento e o pai ia fazer compras. Tinha que estar sempre alguém. Quanto a pagamentos e coisas administrativas disse que era a irmã que normalmente fazia tudo. Confrontado com o cheque junto a fls. 153, datado de 20.3.1983, respeitante à “J…”, confirma que a assinatura nele aposta é da sua irmã. Quando o seu pai faleceu já era a irmã que estava à frente da loja, até porque o pai tinha problemas de saúde (diabético) e desde que enviuvou (em 1983) foi-se um “bocadito” abaixo. Por isso, respondeu de forma afirmativa quando o ilustre mandatário da ré lhe perguntou se a sua irmã, em conjunto com o seu pai, abria e encerrava o estabelecimento e atendia clientes e fornecedores durante o período em que o estabelecimento estava a funcionar.
F… tem um estabelecimento comercial (também de tabacaria) na vizinhança do que se discute nestes autos. Disse que a ré vivia lá e trabalhava com o pai. Por vezes, quer o pai, quer a ré, quer a sua falecida mãe iam ao seu estabelecimento a propósito de alguma coisa de que necessitassem – por exemplo, jornais -, o que sucedia desde há vinte e tal anos. Mais adiantou que quando foi ele a necessitar de jornais – e foi ao estabelecimento vizinho - chegou a ser atendido pela Dª B… (a ré), esclarecendo que aquilo é a mesma coisa que era no tempo em que o pai estava vivo.
G… conhece a ré desde 1962. Disse que a ré sempre trabalhou no estabelecimento e nunca lhe conheceu outro emprego. Respondeu afirmativamente quando o ilustre mandatário da ré lhe perguntou se a via a atender ao público, a receber jornais e a contar as sobras. Sublinhou, aliás, o facto de ela atender ao balcão e de sempre a ter visto a trabalhar na tabacaria, o que continua a suceder depois do pai ter falecido.
H… conhece a ré há 34 anos por ser vizinha. Disse que veio para o Porto trabalhar para a Constituição e todos os dias de manhã ia lá buscar o jornal. Era a mãe que a atendia enquanto foi viva; depois ficaram lá a Dª B… (a ré) e o pai a vender os jornais e as revistas e a atender ao balcão. Ela até estava lá mais do que o pai, pois este já não “atinava” muito.
I… conhece a ré há 31 anos por ter um estabelecimento quase em frente ao arrendado. É cliente dela desde essa altura por comprar lá o jornal todos os dias. A Dª B… trabalhava no balcão juntamente com o pai. Era ela que a atendia, que colocava o escaparate virado para a rua e que depois o desmontava à noite, o que tudo faz há muito mais que três anos. Mais adiante referiu que depois do falecimento da mãe umas vezes era ela, outras o pai que lhe entregavam o jornal.
Procedemos também à audição das testemunhas que foram arroladas pela autora.
L… é amiga da autora, de quem foi colega de trabalho. Conhece o local desde a década de 80. À porta do “quiosque” via sempre um senhor de idade vestido de escuro. Nunca viu lá mais ninguém. Depois deixou de o ver, foi quando soube que tinha falecido. Após este acontecimento, por vezes via o estabelecimento fechado. Quando estava aberto via lá uma mulher.
M… é genro da autora. Disse que das duas vezes que foi ao estabelecimento quem o atendeu foi o senhor que faleceu. Nunca viu a ré atrás do balcão. Via-a a passear o cão na rua.
N… conhece a autora desde 1975/6, visitando a sua casa. Referiu que quando passava cedo junto ao arrendado via lá uma senhora e um senhor. A senhora seria a mãe da ré. Depois da morte do senhor o estabelecimento continuou aberto e quem começou a ver lá foi a ré. Antes, só via a ré a entrar e a sair do estabelecimento.
O… é filha da autora. Quanto ao estabelecimento disse que, enquanto foi viva, era a mãe que estava lá. Depois desta falecer, passou a ver lá o marido. Nunca viu a Dª B… no estabelecimento. Só a via a estender roupa porque vivia no arrendado. Aliás, quando ia comprar jornais ao estabelecimento quem a atendia era a mãe ou o pai da ré. A seguir ao falecimento do pai o estabelecimento nunca teve um horário fixo e quem passou a ver lá, quando está aberto, foi a Dª B….
Analisando os depoimentos que foram produzidos na audiência de julgamento, o que se constata é que sobre a questão factual ora em apreciação as testemunhas indicadas pela ré apontam no sentido de que desde há muito – pelo menos desde o falecimento da mãe em 1983 – o funcionamento do estabelecimento comercial arrendado era assegurado em conjunto pela ré e pelo seu pai, entretanto falecido. Referenciam-na a tomar conta dos assuntos do estabelecimento, a atender clientes ao balcão, a receber jornais, a colocar o escaparate virado para a rua, a abrir e a encerrar o estabelecimento.
Já as testemunhas arroladas pela autora vão numa direcção divergente, desligando a ré da actividade do estabelecimento comercial, que circunscrevem ao seu pai.
A 1ª Instância, embora tenha dado como provado em bb) que “a ré, já há mais de 3 anos antes da morte de seu pai, atendia a clientela e fornecedores durante o período de actividade do estabelecimento de tabacaria e papelaria”, já não deu como assente que a ré assegurasse em conjunto com o seu pai o regular funcionamento desse estabelecimento.
Isto é, restringiu a actividade da ré ao atendimento à clientela e a fornecedores. A exploração do estabelecimento por parte da ré só a deu como provada após o falecimento do seu pai [alínea ee)].
Entendemos, porém, que da análise do conjunto dos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela ré (E…, F…, G…, H… e I…), que se nos afiguraram credíveis, chegamos a conclusão algo diversa da atingida pela 1ª Instância.
Com efeito, destes depoimentos o que resulta é que a ré, pelo menos desde que a sua mãe faleceu em 1983, começou a gerir o estabelecimento de tabacaria e papelaria em conjunto com o seu pai, o que em tudo se compagina com os dados da experiência.
É que ficando o pai viúvo, torna-se inteiramente plausível que a ré, sua filha, passe a desempenhar um papel de muito maior significado no funcionamento do estabelecimento, tanto mais que com o decorrer dos anos vai aumentando a debilidade do pai, em virtude do seu envelhecimento e também da doença que o afecta (diabetes).
O papel da ré no estabelecimento teria inevitavelmente que se reforçar a partir do marco que é o falecimento da sua mãe.
Por isso, apesar dos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela autora não apontarem nesse sentido, procurando desvalorizar a participação da ré na actividade do estabelecimento, os mesmos não nos convenceram.
Aliás, a participação da ré nesta actividade sai ainda reforçada pela prova documental junta aos autos (fls. 152/4), da qual decorre que já em 1983 a ré emitira um cheque assinado por si para pagamento a um fornecedor do estabelecimento – “P…, Lda” – e que uma carta remetida pelo 15º Juízo Cível de Lisboa é endereçada a “B… – Estabelecimento comercial “J…” – Rua …, … PORTO”.
De resto, a designação do estabelecimento como “J…”, sendo, como é do conhecimento de todos que “Q…” é diminutivo do nome próprio “Q1…”, mais reforça a ligação da ré a esse mesmo estabelecimento.
Neste contexto, consideramos que a 1ª Instância, neste concreto ponto, não avaliou correctamente a prova produzida ao reduzir, no período temporal que ora nos interessa, a actividade da ré ao atendimento a clientes e fornecedores. A sua actividade, tendo como base a prova testemunhal e documental já referida, era, a nosso ver, bem mais ampla, daí que a factualidade vertida nos arts. 26º e 27º da contestação tenha que ser dada como provada com referência pelo menos ao ano de 1983.
Deste modo, aditar-se-à à matéria fáctica dada como assente a alínea hh) com o seguinte texto:
Pelo menos desde o ano de 1983 que a ré habitualmente abria e encerrava o estabelecimento de tabacaria e papelaria, atendia também a clientela e fornecedores durante o período da sua actividade e assegurava o regular funcionamento do estabelecimento, actividades essas que exercia em comum com o seu falecido pai.”
Paralelamente, para evitar contradições na factualidade dada como provada, suprimir-se-à da mesma a alínea bb) – [a ré, já há mais de 3 anos antes da morte de seu pai, atendia a clientela e fornecedores durante o período de actividade do estabelecimento de tabacaria e papelaria] – que, em bom rigor, traduz resposta restritiva aos ditos arts. 26º e 27º da contestação.
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II – O contrato de arrendamento em causa nos presentes autos, relativamente ao qual a autora pretende ver declarada a sua caducidade na sequência do falecimento do arrendatário, foi celebrado em 8.10.1965 entre a anterior proprietária e D…, pai da ora ré, tendo por objecto o rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua …, nº …, freguesia de …, concelho do Porto.
O arrendado destina-se a comércio de tabacaria e papelaria e habitação do arrendatário, tratando-se, por isso, de um contrato de arrendamento com dualidade de fins – um comercial e outro habitacional.
Na sentença recorrida, interpretando-se o texto do contrato de arrendamento e atendendo-se também às circunstâncias que o envolveram, onde se incluem as características do arrendado à data da sua celebração, considerou-se como fim principal do contrato o comercial, ao qual o fim habitacional estava subordinado.
Havendo, assim, um fim principal e outro subordinado, o regime que prevalecerá, face ao que preceitua o art. 1028º, nº 3 do Cód. Civil, onde se consagra a chamada teoria da absorção, será o correspondente ao fim principal. O outro regime só será aplicável na medida em que não contrarie o primeiro e a sua aplicação não se mostre incompatível com o fim principal.
Em caso de conflito, prevalecerá pois o regime correspondente ao fim principal, não apenas quanto às matérias versadas no nº 2 do art. 1028º do Cód. Civil, mas quanto a quaisquer outros pontos da relação contratual.[1]
No caso “sub judice”, sendo o fim principal do contrato o comércio de tabacaria e papelaria, o regime aplicável, quanto às suas causas de extinção, será o regime dos contratos de arrendamento para comércio.
Estando-se perante um contrato de arrendamento não habitacional celebrado em 1965 e, por isso, antes do Dec. Lei nº 257/95, de 30.9, terá que se ter em conta o estatuído no art. 28º da Lei nº 6/2006, de 27.2. (NRAU), que lhe manda aplicar, com as devidas adaptações, o previsto no seu art. 26º.
Ora, deste preceito, do seu nº 1 resulta a aplicabilidade ao presente contrato do regime do NRAU, com as especificidades dos números seguintes, decorrendo depois do seu nº 2 que à transmissão por morte se aplica o disposto nos arts. 57º e 58º.
O art. 58º, sob a epígrafe “Transmissão por morte no arrendamento para fins não habitacionais”, estatui o seguinte no seu nº 1:
«O arrendamento para fins não habitacionais termina com a morte do arrendatário, salvo existindo sucessor que, há mais de três anos, explore, em comum com o arrendatário primitivo, estabelecimento a funcionar no local.»
Acrescenta a seguir o nº 2 que «o sucessor com direito à transmissão comunica ao senhorio, nos três meses posteriores ao decesso, a vontade de continuar a exploração.»
No caso presente o arrendatário D… faleceu no dia 3.8.2008 e na sequência do seu falecimento a ré, sua filha, enviou à autora, em 8.9.2008, carta na qual manifestou a sua vontade de continuar a explorar o estabelecimento comercial de tabacaria instalado no arrendado, invocando a sua qualidade de sucessora e alegando que há mais de três anos no período que imediatamente antecedeu a morte do pai, vinha explorando, em comum com ele, tal estabelecimento comercial.
Até este ponto a nossa argumentação em nada dissente da que mais detalhadamente foi explanada na sentença recorrida.
Sucede, porém, que nesta, embora se tenha escrito acertadamente que era à ré que incumbia demonstrar que explorava há mais de três anos, em comum com o arrendatário primitivo, o estabelecimento comercial instalado no arrendado, veio-se depois a concluir que a matéria fáctica apurada era insuficiente para se concluir pela verificação da situação a que se refere o art. 58º, nº 1 do NRAU susceptível de impedir a caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário.
O art. 58 do NRAU, atrás transcrito, estabelece como regra a caducidade do arrendamento por morte do arrendatário nos arrendamentos para fins não habitacionais, tendo introduzido uma regra oposta àquela que, desde há muito tempo, tem vigorado quanto aos arrendamentos para comércio, indústria e exercício de profissões liberais.
Quando o arrendatário morrer após a entrada em vigor do NRAU a norma passa a ser, nestes casos, a caducidade do contrato.
A transmissão do arrendamento constitui uma excepção que se verifica apenas quando ao arrendatário sobreviva sucessor que, no período correspondente aos três últimos anos de vida daquele, explorou, em comum com o arrendatário, o estabelecimento instalado no local.
Não é inteiramente clara a forma como se deverá interpretar a expressão “exploração em comum com o primitivo arrendatário”, o que tem levantado dúvidas na doutrina, dúvidas essas de que nos dá sobejamente conta o Ac. da Relação do Porto de 10.1.2011[2].
Em primeiro lugar, Urbano Dias, no seu trabalho publicado na revista “O Direito” (ano 140, 2008, tomo II, pág. 340), lança diversas interrogações: “O que se pretende com o requisito “exploração em comum”? Será comunhão nos lucros e perdas? E estará também contemplada a chamada “sociedade de facto”? Ou refere-se apenas à eventual ajuda de alguém na gestão diária do estabelecimento? E, sobretudo num contrato de arrendamento para o exercício de profissão liberal em que é que consiste essa exploração em comum? Tem o sucessor de exercer a mesma profissão ou basta trabalhar como secretário?”
Depois, Olinda Garcia[3], continuando na senda das dúvidas, escreve: “Por outro lado, também é difícil perceber o alcance da exigência de o estabelecimento ter sido explorado em comum com o arrendatário. Se, por exemplo, o sucessor é o cônjuge, caso o estabelecimento seja bem comum do casal, parece que existirá sempre exploração em comum, sem ser, portanto, necessário que o cônjuge trabalhasse efectivamente naquele estabelecimento.”
E seguidamente adianta: “Esta norma cria uma situação de desigualdade entre situações que podem ser materialmente semelhantes (embora juridicamente não o sejam). É o que se verificará entre o arrendatário empresário em nome individual e o arrendatário que, entretanto, constituiu uma sociedade unipessoal, porque nesta última hipótese, sendo a sociedade a arrendatária o arrendamento não caduca por morte.”
Menezes Leitão[4] igualmente nos dá conta das dificuldades na interpretação do preceito e, reportando-se ao estudo de Manteigas Martins, Raposo Subtil e Luís Filipe Carvalho sobre o NRAU (Vida Económica, 2006), escreve: “... (o preceito) não pode ser entendido em sentido literal, na medida em que a exploração do estabelecimento em comum com o arrendatário, sem autorização do senhorio, representaria uma violação do art. 1083º/2 e), o que permitiria ao senhorio a resolução do contrato. Estes autores propõem assim que esta expressão seja interpretada no sentido de abranger os familiares do arrendatário que, com ou sem remuneração, trabalhavam no estabelecimento e dele retiravam o seu sustento.”
E Menezes Leitão, apoiando-se nestes autores, defende, então “que esta disposição apenas exige que o sucessor trabalhe no estabelecimento a funcionar no locado, independentemente da natureza do vínculo que o liga a esse estabelecimento.”
Por sua vez, Olinda Garcia numa outra obra (“Arrendamentos para Comércio”, pág. 74) escreve: “o objectivo da norma é permitir a continuação da actividade económica do locado por parte de quem tenha aptidão e conhecimentos nessa área e possua alguma expectativa de sucessão, abrangendo consequentemente múltiplas situações para além da estrita contitularidade do estabelecimento no local arrendado, incluindo a existência de vínculo laboral entre o arrendatário e o seu sucessor.”
Da análise de todas estas referências doutrinárias é legítimo concluir, tal como se fez no Acórdão da Relação de Lisboa de 29.10.2009[5], no sentido de que o preenchimento da excepção prevista na parte final do nº 1 do art. 58º do NRAU se basta com o desenvolvimento, há mais de três anos, de uma actividade no locado explorado pelo arrendatário falecido, independentemente da natureza do vínculo que o liga a esse estabelecimento.
Feitas todas estas considerações há então que retornar ao caso concreto.
Ora, face à alteração da matéria fáctica operada em I, encontra-se provado que pelo menos desde o ano de 1983 que a ré habitualmente abria e encerrava o estabelecimento de tabacaria e papelaria, atendia também a clientela e fornecedores durante o período da sua actividade e assegurava o regular funcionamento do estabelecimento, actividades essas que exercia em comum com o seu falecido pai.
Sucede que desta modificação factual decorre, a nosso ver, de forma inequívoca, que à data da morte do arrendatário a ora ré, sua filha, explorava há mais de três anos (mais concretamente, pelo menos desde o ano de 1983), em comum com este, o estabelecimento comercial de tabacaria e papelaria a funcionar o local.
Tal significa que se mostra preenchida a excepção prevista na parte final do nº 1 do art. 58º do NRAU, razão pela qual não operou a caducidade do contrato de arrendamento em apreço nestes autos, antes o mesmo se transmitiu para a ré.
Por conseguinte, impõe-se a integral procedência do recurso de apelação interposto pela ré e a consequente revogação da sentença recorrida, que se substituirá por outra que julgue totalmente improcedente a acção proposta pela autora.
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Sintetizando:
- Quando em contrato de arrendamento para fins não habitacionais o arrendatário morrer após a entrada em vigor do NRAU a regra passa a ser, nestes casos, a caducidade do contrato.
- De acordo com a parte final do nº 1 do art. 58º do NRAU, a transmissão do arrendamento constitui uma excepção que se verifica apenas quando ao arrendatário sobreviva sucessor que, no período correspondente aos três últimos anos de vida daquele, explorou, em comum com o arrendatário, o estabelecimento instalado no local.
- O preenchimento desta excepção bastar-se-á com o desenvolvimento por parte do sucessor, há mais de três anos, de uma actividade no locado explorado pelo arrendatário falecido, independentemente da natureza do vínculo que o liga a esse estabelecimento.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela ré B…, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra que julga integralmente improcedente a acção intentada pela autora C… e absolve a ré dos pedidos por esta formuladas.
As custas serão suportadas em ambas as instâncias pela autora.

Porto, 5.6.2012
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
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[1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., pág. 373.
[2] Proc. nº 2367/09.6 T2OVR.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[3] In “A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano”, 2ª ed., pág. 77.
[4] In “Arrendamento Urbano”, 1ª ed., pág. 123.
[5] P. 380/07.7 TJLSB.L1.6, disponível in www.dgsi.pt.