Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00037466 | ||
Relator: | FERNANDO BAPTISTA | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO DETERIORAÇÃO BOA-FÉ | ||
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Nº do Documento: | RP200412090436434 | ||
Data do Acordão: | 12/09/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | ALTERADA A DECISÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I- No domínio do regime do arrendamento predial há um corpo extenso de normas imperativas a justificar uma forte limitação do princípio da liberdade contratual. São normas que visam tutelar interesses públicos e as que pretendem proteger o arrendatário contra a sua fraqueza - sobretudo económica - em relação ao senhorio. II- Onde não se trate de normas imperativas as partes podem dar à relação locatícia conteúdo diverso do conteúdo legal. III- Também no domínio da relação locatícia, sob o império da nossa ordem jurídica, há um dever geral de boa fé a impor um dever geral e recíproco de cooperação entre senhorio e arrendatário no desenvolvimento da relação contratual. IV- Ao locatário não cumpre reparar as deteriorações inerentes a uma prudente utilização em conformidade com os fins do contrato; ao senhorio também as não cumpre reparar, salvo até onde fique coberto pelo seu dever de “assegurar o gozo” do prédio ao inquilino para os fins a que se destina. V- Da mesma forma, quanto às obras necessárias a assegurar o conforto e comodidade do arrendatário, à falta de convenção expressa em contrário, pode este fazê-las. Mas terá de as reparar antes da restituição do prédio ao senhorio, salvo se tiver feito tais obras no uso de uma utilização prudente do arrendado. VI-A lei ao falar em “deteriorações” (do latim, deter= pior) do arrendado a reparar pelo arrendatário, refere-se, em primeira mão, àquelas que são provocadas por acção do locatário. O que, desde logo, faz ressalvar aquelas que são decorrentes da simples usura do tempo, ou vetustez. VII-Por outro lado, a responsabilidade do arrendatário está sempre ligada a um comportamento negligente, culposo, sendo de rejeitar a ideia de uma espécie de responsabilidade objectiva do locatário. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO: Na ..ª Vara Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia, B.................................., e mulher C...................................-- tendo aquele, entretanto falecido e habilitados como seus sucessores aquela sua mulher e D...........................e E........................-- intentaram acção com processo sumário contra F................................e mulher G............................. . Pedem: Que os réus sejam condenados a pagarem-lhes a quantia de 908.227$00, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento. Alegam, em síntese: Que o Réu marido foi arrendatário do rés-do-chão de um prédio, à altura, pertencente à Autora C...................... e seu falecido marido B.............. . Entre outras clausulas, constava do contrato escrito a obrigação de a parte arrendada ser entregue ao senhorio, findo o contrato, em bom estado de conservação, sendo certo que todas as obras de conservação e limpeza do prédio, interiores e exteriores, ficariam a cargo dos inquilinos. Alegam, ainda, que quando os Réus procederam à entrega do arrendado, entregaram no em estado substancialmente diferente daquele em que o receberam - descrevem todas as alterações detectadas. Indicam, ainda, os valores que despenderam para reparar e eliminar as deficiências encontradas e repor o arrendado no estado em que se encontrava quando foi entregue aos Réus. Os Réus apresentaram contestação, pretendendo a improcedência da acção. Para tanto, impugnam os factos vertidos na p.i., dizendo que sempre fizeram do arrendado uma normal utilização e que os Autores o reconheceram pois que, na ocasião da sua entrega, lhes pagaram a quantia de 600.000$00, a título de benfeitorias. Foi proferido Despacho Saneador e elaborados a Especificação e o Questionário. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, finda a qual se proferiu despacho contendo as respostas aos quesitos (cfr. fls. 134 e verso). De seguida, foi lavrada sentença, julgando-se a acção parcialmente procedente. Inconformados com essa decisão condenatória, vieram interpor recurso Autores e Réus, tendo esta Relação proferido Acórdão a anular a decisão da matéria de facto quanto ao ponto 29º da Base Instrutória. Teve, então, lugar novo julgamento da causa para apreciação da matéria daquele artº 29º da Base Instrutória, após a qual o tribunal respondeu a tal quesito, de que não houve reclamação (cfr. fls. 219). Foi, então, lavrada sentença, pela qual se julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenados os Réus: a)- No pagamento aos Autores da quantia a liquidar em execução de sentença, referente à sua quota-parte no montante despendido na reparação das canalizações do arrendado e substituição de um tubo; b)- no pagamento aos Autores da quantia por eles despendida no levantamento do plástico que estava colocado nos pisos dos aposentos, na limpeza das superfícies das paredes e tectos e das superfícies com aplicação e acabamentos de madeira, na pintura dos quatro tectos dos aposentos que estavam pintados a cor castanha, bem como das paredes de um dos quartos de dormir que estavam pintadas com esmalte a cor azul esverdeada em policromia de cores e segundo desenhos de contorno de superfície e no levantamento da alcatifa que estava aplicada sobre o parquet, quantia esta igualmente a liquidar em execução de sentença; c)- no pagamento aos Autores da quantia por eles despendida na colocação do telefone de porta, também a liquidar em execução de sentença; d)- no pagamento ao autores de juros de mora sobre as quantias referidas em a), b) e c) contados à taxa legal, desde a citação na acção executiva e até efectivo e integral pagamento; e)- no pagamento aos Autores da quantia de 19.000$00 (€ 94,97), referente a consumos de electricidade efectuados durante a vigência do contrato e não pagos, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento. Foram os Réus absolvidos do demais peticionado. lnconformados, com o assim sentenciado, vieram (de novo) Autores e Réus recorrer (cfr. fls. 237 e 240), recursos esses recebidos a fls. 242. No entanto, apenas os Réus/Apelantes F................. e mulher apresentaram as suas alegações que rematam com as seguintes “CONCLUSÕES: Deve revogar-se a douta sentença, julgando-se apenas parcialmente procedente e provada a acção, - não se questiona o pagamento da quantia de 19.000$00, correspondente aos consumos de electricidade - pois dos autos mostra-se que: a) as partes acordaram livremente em revogar o contrato de arrendamento, e assim cessaram os direitos e deveres de ambas as partes, mormente os ora pretendidos; b) nunca os apelados beneficiaram o prédio arrendado e no decurso dos vinte (20) anos de vigência do contrato de arrendamento, ou nele repararam o que quer que fosse; c) acresce que também não reclamaram as reparações juntos dos apelantes, como seria sua obrigação, e se na verdade pretendessem que fossem reparadas tais anomalias, o que demonstra o seu entendimento de que cessara o seu direito de reclamação após o mencionado acordo de resolução; d) as deficiências pretendidas não resultam de imprudente utilização, e mesmo algumas delas estão muito para além das obrigações que devem ser imputadas aos locatários, v. g. a correcção do sistema de esgotos comuns; e) ainda assim os juros na hipótese de procedência da acção, só devem ser considerados após a douta decisão, pois não sabem ainda hoje os apelantes quanto tinham a pagar, e face ao facto de não terem sido previamente interpelados; A douta decisão violou pois assim o disposto nos artigos 217, do C.C.,50 e 62 do R.A. U., 1043, 804, todos do C.C. e 659 do CPC. por assim ser de Justiça”. Os Autores/Apelados contra-alegaram, sustentando dever ser negado total de provimento ao recurso dos réus/apelantes. Colheram-se os vistos legais. Cumpre decidir, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso. II. FUNDAMENTAÇÃO II. 1. AS QUESTÕES: Tendo presente que: - O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil); - Nos recursos se apreciam questões e não razões; - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões suscitadas pelos apelantes são as seguintes: - Se por via da revogação do contrato de arrendamento por mútuo acordo das partes (doc. de fls. 41 e verso), ficaram os Autores impedidos de reclamar dos réus/arrendatários a indemnização aqui peticionada pela reparação e eliminação de defeitos do arrendado aquando da sua entrega aos autores/senhorios. - Se a reparação e/ou eliminação dos aludidos defeitos no arrendado, são da responsabilidade dos réus/arrendatários, designadamente por resultarem de imprudente utilização que do arrendado fizeram, e qual a medida dessa responsabilidade. - Juros de mora. II. 2. FACTOS PROVADOS: Da discussão da causa emergiram os seguintes factos provados: 1) O autor e o réu (maridos) celebraram um acordo, cujo teor consta do documento de fls. 8, pelo qual o primeiro cedia ao segundo o gozo do rés-do-chão de um prédio urbano sito na Avenida Gil Vicente, nº 202, em Mafamude, Vila Nova de Gaia, mediante retribuição mensal (alínea A) da especificação). 2) As partes celebraram um acordo mediante o qual, entre outras, os réus se obrigaram a entregar o referido arrendado livre e devoluto de pessoas e bens em 15 de Janeiro de 1993 e os autores se obrigaram a pagar, a título de indemnização por benfeitorias feitas por aqueles no arrendado, a quantia de 600.000$00, tendo sido cumprido o aí estipulado (alínea B) da especificação). 3) Os réus foram os primeiros ocupantes do arrendado (resposta ao quesito 1º do questionário). 4) Após a sua construção de novo (resposta ao quesito 2º do questionário). 5) Na data em que ocuparam o arrendado, os pisos dos aposentos da cozinha, casa de banho principal e de serviço eram revestidos a cerâmica ladrilhada (resposta ao quesito 3º do questionário). 6) Os pisos dos restantes aposentos eram revestidos a parquet de madeira envernizado (resposta ao quesito 4º do questionário). 7) À excepção da cozinha e casas de banho, as paredes dos aposentos eram pintadas a tinta plástica a uma só cor (resposta ao quesito 5º do questionário). 8) E os tectos pintados a alvaiado a cor branca (resposta ao quesito 6º do questionário). 9) Quando os réus entregaram o locado aos autores, o sistema de canalizações de esgotos, comum às habitações do 1º e 2º andar do prédio, não estava limpo (resposta ao quesito 7º do questionário). 10) E carecia da substituição de um tubo (resposta ao quesito 8º do questionário). 11) Os pisos dos aposentos referidos em 5) estavam revestidos a plástico (resposta ao quesito 9º do questionário). 12) Colocado por cima da cerâmica ladrilhada, (resposta ao quesito 10º do questionário). 13) Dez azulejos da cozinha estavam partidos (resposta ao quesito 12º do questionário). 14) Quatro tectos dos aposentos estavam pintados a cor castanha (resposta ao quesito 17º do questionário). 15) As paredes de um dos quartos de dormir estavam pintadas com esmalte a cor azul esverdeada (resposta ao quesito 18º do questionário). 16) Em policromia de cores e segundo desenhos de contorno de superfície (resposta ao quesito 19º do questionário). 17) O reboco e pintura da parede onde está fixado o cilindro eléctrico estavam deteriorados (resposta ao quesito 20º do questionário). 18) Não tinha telefone de porta (resposta ao quesito 23º do questionário). 19) As superfícies das paredes e tectos e as superfícies com aplicação e acabamentos de madeira estavam sujos (resposta ao quesito 24º do questionário). 20) Com pregos espetados (resposta ao quesito 25º do questionário). 21) Esburacadas por aplicação de outros pregos (resposta ao quesito 26º do questionário). 22) E autocolantes (resposta ao quesito 27º do questionário). 23) Estava aplicada alcatifa sobre o parquet referido em 6) (resposta ao quesito 28º do questionário). 24) Para reparar o referido nos nºs 7 a 10, 12, 17 a 20 e 23 a 28 (da Base Instrutória) os Autores gastaram 835.337$00 (montante com IVA incluído) (resposta ao quesito 29º do questionário - cfr. fls. 219). 25) Os réus não pagaram os consumos de electricidade devidos até à data da entrega do arrendado, no total de 19.000$00 (resposta ao quesito 30º do questionário). 26) E que os autores tiveram de pagar à E.D.P. (resposta ao quesito 31º do questionário). 27) No decurso dos 20 anos nunca os autores beneficiaram o prédio (resposta ao quesito 36º do questionário). 28) Ou nele repararam o que quer que fosse (resposta ao quesito 37º do questionário). III. O DIREITO: Saliente-se, antes de mais, que a matéria de facto a ter em conta é apenas a supra referida, pois não houve impugnação da decisão sobre tal matéria e não vislumbramos motivo para a modificar ao abrigo do disposto no artº 712º do CPC. Vejamos, então, das questões suscitadas nas conclusões das alegações do recurso. 1ª questão: Se por via da revogação do contrato de arrendamento por mútuo acordo das partes, ficaram os Autores impedidos de reclamar dos réus/arrendatários a indemnização aqui peticionada pela reparação e eliminação de defeitos do arrendado aquando da entrega aos autores/senhorios. Não cremos que assista razão aos apelantes. É certo que pelo documento de fls. 41, outorgado a 20.11.92 (cfr. verso do mesmo), as partes - senhorio e arrendatário - declararam revogar, por mútuo acordo, “distratando-o, o contrato de arrendamento com destino a habitação” a que os autos se reportam (celebrado em 1973), “com efeitos no dia 15 ( quinze) de Janeiro de 1993”. Mais declararam que “em consequência desta revogação”, os arrendatários se obrigavam a entregar, naquele data, o locado, devoluto de pessoas e bens, sendo que os senhorios se obrigavam a pagar, “a título de indemnização por benfeitorias feitas” pelos arrendatários no locado, a quantia de 600.000$00. Tal estipulação foi cumprida (al. B) da matéria assente). Entendem os réus/arrendatários/apelantes que com a outorga de tal documento a pôr termo à relação locatícia, ficaram os autores/senhorios/apelados arredados de poder vir a exigir indemnização por deteriorações feitas no arrendado pelos arrendatários no decurso da mesma relação. Não há dúvida que no nosso Código Civil se impõe aos sujeitos da relação obrigacional, de forma ainda mais clara e incisiva do que, v.g., no código italiano, um dever de correcção e lealdade de comportamento expresso pela ideia de boa fé. É o que se dispõe no artº 762º-2, CC - com afloramentos noutros preceitos do mesmo Código, como é o caso dos artsº 227º1 e 272º. No entanto, não cremos que mesmo ao abrigo deste dever geral de boa fé possa justificar-se a pretensão dos apelantes. De facto, o documento revogatório supra referido mais não é do que isso mesmo: um acordo mútuo para a cessação do contrato de arrendamento. Nada mais! É certo que foi acordado o pagamento de uma indemnização “a título de benfeitorias feitas” no arrendado. O que poderia ser-se levado a pensar que no cômputo do valor das mesmas já estaria feita a compensação do eventual crédito dos senhorios sobre os arrendatários relativo ao valor das reparações a fazer por aqueles resultantes de deteriorações (ilícitas) feitas por estes últimos no arrendado. Cremos, porém, que para que tal acontecesse se impunha, ou que tal constasse do mesmo documento, ou, pelo menos, que se tivesse feito a prova - pelos réus/inquilinos - da renúncia dos autores/senhorios a exigir tal indemnização. E tal prova não foi feita - nem, sequer vem tal matéria alegada, como se vê da (lacónica) contestação de fls. 37ss. Diz-se renúncia o negócio jurídico unilateral pelo qual o respectivo titular abdica do seu direito, faculdade ou qualidade jurídica. É certo que, segundo cremos, este acto não parece estar sujeito a qualquer requisito de forma. Mas para se fazer valer em juízo, impõe-se, primeiro, a sua alegação e, depois, a sua prova. Prova essa que in casu não lograram os apelantes fazer. Daqui que se mantenha intacto o direito dos apelados a exigir dos apelantes indemnização pelos danos indemnizáveis que, enquanto inquilinos, tenham causado no locado. Diga-se, aliás, que se é certo que nada impedia os senhorios de exigirem que no dito acordo revogatório escrito se clausulasse que a indemnização acordada a título de benfeitorias em nada afectava o eventual direito indemnizatório por danos causados no arrendado pelos inquilinos, da mesma forma nada impedia - antes se lhes impunha, e com muita maior acuidade - que os inquilinos exigissem que no mesmo acordo escrito ficasse (bem) expressa e clara a renúncia dos senhorios à aludida indemnização, pois só assim teriam a certeza que o valor a receber a título de benfeitorias... não corria o risco de vir a ser “diluído” numa futura pretensão indemnizatória dos senhorios - como aquela a que os autos consubstanciam! Não tendo sido afastada no dito documento-- ou por outra forma--, qualquer das obrigações legais e contratuais do arrendatário (cfr. cláusulas do contrato de arrendamento e arts. 4º, 5º ro RAU e 1043º, CC), obviamente que as mesmas se mantêm de pé. E não há dúvida de que tais obrigações contratuais e legais se impunham aos arrendatários até à produção dos efeitos do acordo revogatório, ou seja, 15 de Janeiro de 1993 (cfr. fls. 41). Razão têm, como tal, os apelados ao escrever (fls. 270) que “Benfeitorias e estado do prédio são conceitos diversos. O prédio pode ter tido benfeitorias, e contudo apresentar mau estado”. Foi o que aconteceu no caso presente: Presume-se que foram feitas no locado benfeitorias - pois caso contrário não seria acordada uma indemnização expressa a tal título. Mas também não há dúvidas de que o locado foi entregue em estado tal que, em princípio, justifica o ressarcimento indemnizatório aos senhorios/apelados. Trata-se de diversas situações que - por nada em contrário constar, quer do dito documento revogatório, quer de outro com força probatória bastante, quer ainda porque nenhuma outra prova foi produzida nos autos - seguramente justificam e impõem soluções diferentes. Daqui, portanto, que nos não pareça correcto afirmar-se que por via da referida revogação contratual ficaram os Autores/senhorios impedidos de reclamar dos réus/arrendatários indemnização pela reparação e eliminação de eventuais defeitos do arrendado aquando da sua efectiva entrega. Dizem os apelados que nada indicia que aquando da celebração do acordo revogatório pudessem saber em que estado os réus lhe iriam fazer a entrega do arrendado. Numa primeira análise, poder-se-á pensar que assim não é, pois parece que se os senhorios aceitaram pagar benfeitorias foi porque reconheceram a sua existência. E tal reconhecimento só se compreende desde que ... visualizado. No entanto, as coisas não são assim tão simples. É que, por um lado, não se faz menção no dito documento de revogação do contrato ao tipo de benfeitorias em causa-- podendo até acontecer que se trate de benfeitorias feitas no exterior da habitação ou visíveis de fora, ou outras de que os senhorios tenham há muito conhecimento e sejam indiscutíveis entre as partes; e, por outro lado, basta atentar na distância temporal havida entre a outorga do dito documento e a data em que o mesmo acordo revogatório iria produzir efeitos para se poder dizer ser, afinal, verdade que não podiam os apelados saber -- com razoável segurança, pelo menos--, em que estado o locado lhes seria entregue, pois antes de se entregar a casa retiram-se mobílias e objectos, movimentam-se inúmeras coisas e só então poderão vir ao de cima “eventuais danos escondidos”. Improcede, assim, esta primeira questão. Quanto à segunda questão: se a reparação e/ou eliminação dos defeitos provados no arrendado, são da responsabilidade dos réus/arrendatários, designadamente por resultarem de imprudente utilização que do mesmo tenham feito, e qual a medida dessa responsabilidade. Quanto a esta questão, há que anotar o louvável esforço vertido na sentença recorrida na análise das obrigações contratuais emergentes do arrendamento, em específico as do locatário, bem assim da questão da realização de obras no locado, sua natureza e cabimento legal, designadamente as que se impõem para colmatar deteriorações indevidas por banda do locatário. Algumas discordâncias, anotações e correcções se impõem, porém. Vejamos as diversas alíneas da decisão condenatória - com o fito de aferir se, nos termos vertidos na sentença, estavam em causa (e em que medida) obrigações do locatário. 1- Quanto à “reparação das canalizações do arrendado e substituição de um tubo”: Provado ficou que os réus foram os 1ºs ocupantes do arrendado (quesito 1º), bem assim que quando os réus entregaram o locado aos autores, o sistema de canalizações de esgotos, comum às habitações do 1º e 2º andar do prédio, não estava limpo e carecia da substituição de um tubo (respostas aos quesitos 7º e 8º do questionário). Igualmente provado ficou que o contrato de arrendamento celebrado entre autor e réu teve início em 1 de Abril de 1973 (cfr. doc. de fls. 8 e al. A) da “Especificação”) - ou seja, tinha 20 anos à data da instauração da acção. Começamos por dizer que nos parece que as obras atinentes à manutenção e substituição (se necessária) das canalizações - de águas ou saneamentos--, estão a cargo do senhorio. É que trata-se de obras absolutamente indispensáveis a que o prédio possa ser gozado para o fim a que se destina - in casu a habitação (ut artº 1031º, al. b) do CC e arts. 11º e 12º do RAU. As reparações ora em questão nada têm, por outro lado, a ver com obras feitas pelo arrendatário ao abrigo do artº 4º do mesmo RAU. Assim, aliás, se entendeu na sentença recorrida, quando, a fls. 227/228, se escreveu: “sendo certo que as deteriorações em questão” - no sistema de canalizações de esgotos” - “não são enquadráveis no artigo 4º do RAU, bem como os autores não lograram fazer prova da aplicação da coisa a fim diferente do convencionado ou de uma utilização imprudente dela, quer por parte do arrendatário, quer por parte de terceiro a quem a coisa a quem a coisa tenha sido facultada e, ainda, que tais reparações são enquadráveis no conceito de obras de conservação ordinária, dúvidas não restam que nos termos do disposto no artº 12º do RAU as mesmas são da responsabilidade do senhorio” - sublinhado nosso. Entendeu-se, porém, na mesma decisão recorrida que, face ao teor da cláusula 8ª do dito contrato de arrendamento (fls. 8 verso), a reparação do sistema de canalizações de esgotos, com substituição de um tubo, passaria a ser encargo dos arrendatários e não do senhorio, com sustento na validade de tal cláusula. Qui juris? Antes de mais não se deve olvidar que estamos no domínio do arrendamento para habitação - onde, obviamente, os sistemas de canalizações de esgotos assumem importância básica, atento, desde logo, o facto de estarem ao serviço da realização de funções básicas ou mesmo vitais dos ocupantes do prédio. E o que se questiona, então, é a legalidade da dita cláusula 8ª. Tal cláusula é do seguinte teor: “O inquilino obriga-se também [............]:a)- A conservar em bom estado todas as canalizações de água, esgotos, instalações sanitárias e de luz e respectivos acessórios, pagando à sua custa as reparações, se se entupirem ou danificarem; [.............]”.-sublinhado nosso. No domínio do regime do arrendamento predial há um corpo extenso de normas imperativas, do que resulta uma forte limitação do princípio da liberdade contratual neste domínio, quer no sentido de que está aqui muito limitada, relativamente ao senhorio, a liberdade de celebrar o contrato e de o manter, quer no sentido de que está igualmente limitada a liberdade de as partes decidirem, conforme lhes aprouver, sobre os termos e condições do contrato. Quanto a este último aspecto, temos, v.g., um “numerus clausus” de causas de resolução (cfr. artº 64º do RAU) e inúmeras cláusulas proibidas. É precisamente no domínio destas cláusulas proibidas que navega a questão ora em apreço. Cremos que o princípio regra a ter aqui em conta deve ser este: “Onde não se trate de normas imperativas as partes podem dar à relação locatícia conteúdo diverso do conteúdo legal” (Prof. Pereira Coelho, Arrendamento e Filiação, Sumários, 1980, Coimbra, a pág. 165/166). Ora, são imperativas as normas que visam tutelar interesses públicos e as que pretendem proteger o arrendatário contra a sua fraqueza - sobretudo económica - em relação ao senhorio (Pereira Coelho, ob. e loc. cits.- onde enumera vários exemplos de cláusulas desta natureza). Face a este enquadramento, não cremos que a cláusula 8ª do contrato de arrendamento sub judice se deva considerar nula, pois os interesses ali em jogo não parece terem natureza imperativa. Não cremos, efectivamente, que tal cláusula ofenda algum dos princípios básicos ou fundamentais do regime arrendatício ou esteja em manifesta contradição com qualquer disposição legal. Efectivamente, manter as canalizações de esgotos das habitações limpas e em bom estado afigura-se-nos que é um interesse que só aos próprios (proprietários e/ou inquilinos) respeita ou interessa. Pelo menos directamente. É que, se é certo que de forma indirecta podem ser afectados terceiros-- v.g. por eventuais cheiros que daquela falta de limpeza e bom estado possam emanar para fora do prédio--, sempre não se vê que se possa estar perante um interesse de natureza pública tal que imponha a proibição da convenção de que tal limpeza e manutenção dos esgotos fique a cargo do inquilino. A questão, porém, deve, a nosso ver, ser apreciada (ainda) por prisma. Efectivamente, como dissemos supra, às partes contratantes impõem-se que, quer na formação do contrato, quer no seu cumprimento e desenvolvimento, actuem de boa fé (cfr. artº 762º-2 CC). O que significa que no caso presente, v.g., o senhorio entrega ao arrendatário o prédio porque acredita que o mesmo dele vai fazer a tal “prudente utilização” de que fala o artº 1043º CC. Para o direito espanhol, o Código Civil estabelece expressamente o dever de uso do arrendatário como “un diligente padre de família”, mencionando os autores que este é um dos deveres a que o arrendatário está adstrito de tal modo que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal, se o uso se não acomoda à diligência exigível a um homem médio, incorre-se em incumprimento contratual (José León- Castro Manuel Cossio, Arrendamientos urbanos, 1995, a pág. 286). Assim, também sob o império da nossa ordem jurídica há um dever geral de boa fé que pode levar a exigir-se do credor que coopere com o devedor no cumprimento no desenvolvimento da relação contratual. Ou seja, cremos que, não só ao devedor - in casu o arrendatário--, mas também ao credor - in casu o senhorio - se impunha um dever geral de cooperação. Daqui que, por exemplo, o devedor seja, por sua vez, credor daquela cooperação, em termos tais que tal situação até justifica a resolução do contrato (ver arts. 801º-2 e 816 CC). E não parece, aliás, que seja indispensável que exista uma disposição legal que imponha esse dever de cooperação entre as partes. Trata-se de um dever jurídico que decorre precisamente daquele imperativo geral da boa fé contratual. Escreve o Prof. Pereira Coelho, Arrendamento, cit., pág. 122, que, além de entregar ao locatário a coisa locada, “Tem o senhorio uma obrigação positiva de manutenção do gozo, isto é, de assegurar o gozo do prédio ao inquilino”. Isto é, tem o senhorio não só a obrigação paralela consignada no artº 879º-b), CC, como a de assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que se destina. O que significa, no caso que nos ocupa, a obrigação de manter em pleno funcionamento todo o sistema de canalizações de esgotos e outras, pois sem elas o gozo do prédio fica na sua essência prejudicado ou afectado. A síntese a fazer parece, assim, ser esta: ao locatário não cumpre reparar as deteriorações inerentes a uma prudente utilização em conformidade com os fins do contrato; ao senhorio também as não cumpre reparar, salvo até onde fique coberto pelo seu dever de “assegurar o gozo” do prédio ao inquilino para os fins a que se destina.” (cfr. ver. Leg. Jur., Ano 100º-377 e Pires de Lima e ª Varela, Anotado, em anotação ao artº 1031º). Tem, assim, o locador a obrigação específica de efectuar as reparações ou outras despesas essenciais ao gozo do locado, quer a sua necessidade resulte do simples desgaste do tempo, de caso fortuito ou de facto de terceiro. Se o senhorio não fizer as reparações ou cumprir defeituosamente a obrigação a que está obrigado, tem o locatário o direito de ser indemnizado pelos prejuízos sofridos (arts. 798º ss. CC)-- além de poder compelir o senhorio a efectuar as obras a que está obrigado. Ver, ainda, sobre esta matéria, o Ac. STJ, de 16.5.75, in Bol. M.J. 274/112 e João de Matos, Manual do Arrendamento e do Aluguer”, vol. II, pág. 21. Voltando aos autos, face à matéria de facto apurada temos, desde logo, que se não vê que o apontado estado das canalizações de esgotos - a necessidade de “substituição de um tubo” dos esgotos - tenha resultado de utilização imprudente dos réus/inquilinos. Tal não resulta dos factos provados. O que deles resulta, sim, é que passados mais de vinte anos sobre o arrendamento o sistema de canalizações de esgotos carecia da substituição de um tubo. Nada mais se provou - como emerge das respostas aos quesitos 7º e 8º). Mas, pergunta-se desde já: o que é que se esperava que acontecesse passados vinte anos? Não é normal e/ou plenamente natural tal degradação passado tanto tempo? E não vimos já que, nos termos do artº 12º do RAU, a substituição dos tubos dos esgotos deteriorados - não por utilização imprudente do inquilino, naturalmente, o que in casu não ficou provado - se enquadra nas obrigações do senhorio, por se tratar de “obras de conservação ordinária”? E porque tais canalizações se tornam essenciais para que seja assegurado ao inquilino o gozo do prédio ao fim a que se destina? Se violação de algum dever houve foi tão só e apenas por banda dos autores/senhorios, pois deixaram de cooperar com os réus/inquilinos no desenvolvimento da relação contratual - desta forma, também, violando a boa fé que presidiu à celebração do contrato. Na contestação os réus referiram que “no decurso dos referidos vinte anos nunca” os senhorios “beneficiaram o prédio, ou nele repararam o que quer que fosse ( fls. 39). A tal afirmação não se dignaram responder os autores! É certo, como vimos, que existe a dita cláusula 8ª. Mas - pergunta-se: será que perante o quadro descrito não será abusivo exigir-se dos inquilinos a mera substituição de um tubo de esgoto - saliente-se que, apesar de na alínea a) da decisão condenatória se falar em “reparação das canalizações do arrendado e substituição de um tubo”, não se vê onde a Srª Juiz a quo foi fundamentar a decisão de “reparação das canalizações”, pois que apenas se provou que o sistema de canalizações “não estava limpo” (quesito 7º) “e carecia de substituição de um tubo” (quesito 8º)? - sublinhado nosso. Como se sabe, reparar significa consertar, restaurar, emendar - o que nada tem a ver com o simples limpar....! Não cremos, assim, que, no quadro fáctico provado, a obrigação de substituição de um tubo de esgotos se possa impor aos inquilinos. E é assim - repete-se -- apesar do que se escreveu na dita cláusula 8ª. É que há que ponderar, ainda, o seguinte. O que na dita cláusula 8ª se escreveu foi simplesmente que passava a ser da conta do inquilino “conservar em bom estado as canalizações de água, esgotos,......................, pagando à sua custa as reparações, se se entupirem ou danificarem”. Que leitura deverá ser feita de tal cláusula? Cremos que o que ali se pretendeu dizer mais não foi, afinal, do que reiterar o que a lei já prescreve: que o inquilino deve fazer do locado uma utilização prudente e caso o não faça, então sim, suportará as despesas com os danos que dessa imprudência resultarem. Cremos ser, aliás, este o entendimento que resulta da chamada teoria da impressão do destinatário. Ou seja, era este o entendimento que o inquilino teria entendido resultar da dita cláusula, aquando da celebração do contrato: que seriam da sua conta as despesas atinentes ao entupimento ou danificação das canalizações, designadamente de esgotos, mas desde que estes resultassem de imprudência sua. Pois agindo o inquilino com a normal prudência, que se exige ao homem medianamente cuidadoso, e, apesar disso surgisse um dano nas ditas canalizações - estranho, portanto, à mesma conduta do inquilino--, certamente que não lhe passaria pela cabeça reparar tal dano, designadamente - e no caso sub judice - proceder à substituição de tubos de esgotos, quando até resulta da lei que se trata de obrigação do senhorio, por inserido nas obras de conservação ordinária. É isto que alguém na posição do real declaratário (o arrendatários) teria entendido. O nº 1 do artº 236º do CC representa a consagração da chamada «teoria da impressão do destinatário», teoria que entende que a declaração negocial deve ser interpretada como a interpretaria um destinatário mediadamente sagaz, diligente e prudente, colocado na posição concreta do destinatário. O Código Civil não se pronunciou sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação, ensinando Mota Pinto que «se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficiente ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria em conta» (Teoria Geral do Direito Civil, 1980, 421). Entre os elementos a tomar em conta destacam-se os posteriores ao negócio, elementos estes que são «os modos de conduta porque posteriormente se prestou observância ao negócio concluído» (Rui Alarcão, in Bol. nº 84, 334). Manuel de Andrade refere, a título exemplificativo, «os termos do negócio», «os usos de outra natureza que possam interessar», a «finalidade prosseguida pelo declarante» e «os interesses em jogo no negócio» (teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1960, 313, nota 1). Posto isto, concluir-se-á que -- numa apreciação superficial--, obrigar os réus/inquilinos a proceder à substituição do tubo, não só extravasaria da leitura que cremos deve ser feita à dita cláusula, como, até, atentaria contra o aludido princípio da boa fé que presidiu à feitura do contrato de arrendamento. Não se esqueça que a boa fé está presente tanto na preparação como na formação do contrato (artº 227º do C. Civil), como, também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (artº 762º, do mesmo Código). É um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando-a por frma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional--princípio, é certo, que deve ser observado com as restrições apontadas por Salvatore Romano, em “Enciclopédia del Diritto”, Milão, 1959, - “Buona Fede”, págs. 667 e segs. Ver, ainda, a Boa Fé nos Contratos, de Armando Torres Paulo, pág. 124 e “A Boa Fé no Direito Comercial”, in “temas de Direito Comercial”, conferência no Conselho Distrital do Porto da ordem dos Advogados, págs. 177 e segs. e Baptista Machado, in Obras Dispersas, vol. I. Como se vê, v.g., no Ac. do Supremo T.J., de 14-4-1972, Bol. M.J. nº 216º, a pág. 137, o senhorio só terá, em princípio, direito a ser ressarcido dos prejuízos que com a sua imprudente utilização o arrendatário lhe causar. Por isso, percute-se: a leitura que da própria cláusula 8ª fazemos - na parte que ora analisamos -, afinal, mais não é do que esta: o inquilino só suportará as despesas com os danos havidos no sistema de canalizações dos esgotos caso não tenha sido normalmente cuidadoso na sua utilização e haja uma relação de causa-efeito entre a sua conduta imprudente e os danos verificados. É isto, ao fim e ao cabo, o que resulta da conjugação dos normativos contidos nos artsº 1038º, al. i) e 1043º a 1046º CC, designadamente do conteúdo do dever de custódia e de manutenção da coisa locada por banda do arrendatário. O mesmo é dizer, portanto, que o dito clausulado (do contrato de arrendamento junto a fls. 8 e verso) - que mais não é do que uma mera minuta/modelo, vulgo “choca”, elaborada não se sabe por quem e à venda em qualquer papelaria ou quiosque! -, afinal, nem sequer está em oposição (pelo menos clara e/ou frontal) com as normas legais, de entre elas os ditos artsº 4º e 12º do RAU e 1043º do CC e os princípios jurisprudenciais e doutrinais explanados. Antes com eles se parece conciliar.... Assim, também por esta via se nos afigura não se justificar a imposição aos réus/inquilinos da obrigação de substituição do (simples) tubo de esgotos - constante da alínea a) da decisão condenatória (fls. 233), pois, como dissemos, não vemos que, além da danificação do dito tubo, tenha sido provada qualquer outra danificação do sistema de canalização dos esgotos que justifique a “reparação” ali ordenada! Acrescente-se, ainda, o seguinte: A lei ao falar em “deteriorações” (do latim, deter= pior) do arrendado a reparar pelo arrendatário, refere-se, naturalmente, em primeira mão àquelas que são provocadas por acção do locatário. O que, desde logo, faz ressalvar aquelas que são decorrentes da simples usura do tempo, ou vetustez. É este, a nosso ver, o correcto entendimento - e é, aliás, por exemplo, o expresso nas leis civis francesa e italiana (cfr., respectivamente, arts. 1730º e 1590-III), que afastam a responsabilização do locatário pela degradação resultante do envelhecimento da coisa--, sufragado, designadamente, por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1986, em anotação ao artº 1043º, nº4, p. 404; 1997, 4ª 3d., rev. e act., p. 380. Por outro lado, a responsabilidade do arrendatário está sempre ligada a um comportamento imprudente - quer dizer, negligente, culposo. Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, 1997, 4ª ed., a pág. 381, entendem que a responsabilidade do locatário é uma espécie de responsabilidade objectiva. Não cremos que seja esta a melhor doutrina. Antes a melhor doutrina parece ser aquela que já resulta do supra referido e que é igualmente sufragada pelo Prof. Pereira Coelho, Arrendamento (ed., pol), 1988, p. 204), que sustenta que o locatário “não é responsável se as deteriorações provierem de facto seu mas de facto não culposo”. Seria injusto – acrescente - “o agravamento excepcional da responsabilidade do locatário”, a que conduziria a interpretação à volta da referida responsabilidade objectiva. Aliás, é bom que se diga que não é aceitável, nem justo, que a responsabilidade do locatário seja mais grave do que a do comodatário (artº 1136º CC) ou do próprio depositário (artº 1188º CC) que, como se sabe, apenas respondem pela perda ou deterioração da coisa, unicamente a título de culpa. Assente, portanto, que o arrendatário apenas responde pelas deteriorações do arrendado desde que tenha agido com culpa--, isto é, desde que o tenha actuado de forma imprudente. Surge, então, a questão do onus probandi: se é ao senhorio que cumpre provar a culpa do locatário (falta de prudência), ou se é a este que incumbe a prova de que nem o arrendatário nem o terceiro a quem tenha permitido a utilização do arrendado foram os causadores das (perdas ou) deteriorações? Ora, o princípio ou regra, parece ser o de que é ao inquilino que incumbe o aludido onus probandi. O que, aliás, está em sintonia com a presunção de culpa do devedor, vigente na responsabilidade contratual) ut artº 799º CC). Se postas assim as coisas, seriamos levados a concluir que aos réus/inquilinos incumbia a aludida reparação do tubo dos esgotos, dado que não lograram provar que não foram imprudentes, os causadores de tal estrago ou deterioração. Não cremos, porém, que na situação concreta em apreço tal solução seja a melhor. Efectivamente, tendo em conta que: estamos em face de um contrato de arrendamento com mais de vinte anos e que ao longo do mesmo o senhorio nunca fez no arrendado qualquer beneficiação ou reparação - como alegam os réus (fls. 39) e não é posto em causa pelos autores; é sabido (facto notório, não carecendo de alegação e prova, ut artº 514º CPC) que ao longo de tal período de tempo as canalizações se vão deteriorando e perdendo resistência (corroendo, etc.), carecendo, por isso, de manutenção e eventual substituição; está-se em face de obras de conservação ordinária, que a lei refere serem encargo do senhorio, só podendo o mesmo recair sobre o arrendatário em caso de utilização imprudente. Então parece-nos que era ao senhorio que, para se desobrigar do dever de proceder à substituição do tubo deteriorado, incumbia o ónus de alegação e prova que, não obstante o decurso daquele (longo) tempo, o dano na canalização resultou da imprudente utilização do inquilino. E tal prova não a logrou fazer. Assim sendo, é nosso entendimento que não foi acertada a decisão de condenar os réus/ inquilinos no pagamento aos autores da quantia correspondente à (sua) quota parte no montante despendido “na reparação das canalizações do arrendado e substituição de um tubo” - reiteramos que, quando muito, tal condenação apenas poderia respeitar à “reparação do tubo”, pois, como deixamos dito supra, não vemos onde se foi buscar a “reparação das canalizações”, atentos os factos provados (cfr. respostas aos quesitos 7º e 8º). Insubsistente (por errada) fica, assim, a condenação vertida na al. a) do “DISPOSITIVO” condenatório, de fls. 232 - nesta parte devendo os réus serem absolvidos, assim vingando as respectivas conclusões das alegações da apelação. 2. Quanto à condenação dos réus “no pagamento aos Autores da quantia por eles despendida no levantamento do plástico que estava colocado nos pisos dos aposentos, na limpeza das superfícies das paredes e tectos e das superfícies com aplicação e acabamentos de madeira, na pintura dos quatro tectos dos aposentos que estavam pintados a cor castanha, bem como das paredes de um dos quartos de dormir que estavam pintadas com esmalte a cor azul esverdeada em policromia de cores e segundo desenhos de contorno de superfície e no levantamento da alcatifa que estava aplicada sobre o parquet,...”. Não concordamos inteiramente com este segmento da decisão recorrida. Efectivamente, é certo que o prédio deve ser restituído pelo arrendatário no estado em que o recebeu “ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com o fim do contrato” (artº 1043º-1 CC). Igualmente é certo que o arrendatário pode fazer no arrendado pequenas deteriorações, desde que sejam necessárias para assegurar o seu conforto e comodidade (artº 4º-1 RAU). Por fim, é igualmente certo que ficou provado que “os réus foram os primeiros ocupantes do arrendado” (resposta ao quesito 1º) - o que, obviamente, faz presumir que receberam o prédio em bom estado, designadamente no que tange às superfícies com aplicação e acabamentos das madeiras, às pinturas, etc., etc. Ora, se nos parece que, face a todo o supra explanado concernente às obrigações das partes contratantes, em especial do inquilino, se justifica a condenação dos réus no pagamento “da quantia ... despendida no levantamento do plástico que estava colocado nos pisos dos aposentos” - por cima da cerâmica ladrilhada--, bem como da quantia despendida com o” levantamento da alcatifa que estava aplicada sobre o parquet...”, já entendemos não parecer ter justificação a condenação dos réus no pagamento das quantias despendidas “na limpeza das superfícies das paredes e tectos e das superfícies com aplicação e acabamentos de madeira, na pintura dos quatro tectos dos aposentos que estavam pintados a cor castanha, bem como das paredes de um dos quartos de dormir que estavam pintadas com esmalte a cor azul esverdeada em policromia de cores e segundo desenhos de contorno de superfície”. Efectivamente, não se pode aqui olvidar que os inquilinos ocuparam o arrendado durante vinte (20) anos - sem que os senhorios tenham nele feito quaisquer obras de beneficiação ou conservação, como foi alegado pelos réus e não desmentido pelos Autores. Ora, ao longo destes mais de vinte anos é perfeitamente natural que as “superfícies das paredes e tectos” e “superfícies com acabamentos de madeira” se tenham deteriorado, desgastado, mesmo eventualmente corroído, o mesmo acontecendo com a “pintura dos quatro tectos dos aposentos” e as “paredes de um dos quartos de dormir”. Não alegaram - muito menos provaram - os autores que tais desgastes nas superfícies das madeiras nas pinturas das paredes e tectos resultaram de uma imprudente utilização por banda dos inquilinos, indo além do mero desgaste decorrente da simples usura do tempo, ou vetustez - já acima acentuamos que, v.g., as legislações francesa e italiana são expressas em referir que o locatário não responde pela degradação resultante do envelhecimento da coisa. Aliás, isto mesmo foi ressaltado na própria sentença, onde se escreveu: “repare-se que o arrendamento em questão se prolongou por 20 anos”, pelo que é perfeitamente normal e perceptível para um homem médio que o arrendado apresente algumas deteriorações decorrentes de uma prudente utilização”. Dir-se-á o que se é certo que o arrendatário pode fazer pequenas obras para assegurar o seu conforto e comodidade, deve, porém, repará-las antes da restituição do prédio, salvo estipulação em contrário - como se consigna no artº 4º do RAU, em conformidade com o anterior artº 1092º do CC. Cremos, no entanto, que da conjugação destes normativos com o artº 1043º do CC, o que parece resultar é que, salvo convenção em contrário, apenas as pequenas deteriorações feitas pelo arrendatário para assegurar o seu conforto e comodidade e não também as que resultam duma prudente utilização do arrendado de acordo com o fim do contrato, devem ser reparadas antes da restituição do prédio ao senhorio. Ou seja, à falta de convenção expressa em contrário, desde que se trate de obras necessárias a assegurar o conforto e comodidade do arrendatário, pode fazê-las, mas terá de as reparar antes da restituição do prédio ao senhorio. Só que tal reparação não se estende às obras que tenha feito no uso de uma utilização prudente do arrendado. Voltando ao caso dos autos, o que se verifica é que no que concerne às pinturas feitas pelo arrendatário dos tectos dos aposentos e das paredes dos quartos de dormir - tal como o respeitante às superfícies com acabamentos de madeira--, o que fez o arrendatário nem se configura, sequer, como “obras para assegurar o seu conforto e comodidade”, mas, sim, obras que o longo decurso do tempo justificava ou impunha (novas pinturas de tectos e paredes). Afinal, mais não se tratou do que obras que eram necessárias à.... realização dos fins do arrendamento, também visando assegurar o gozo do prédio ao inquilino, logo da conta do senhorio (artº 1031º-b), CC). É que é inconcebível que o arrendado permaneça - sem culpa do inquilino - com as paredes estragadas pela aludida “usura do tempo, ou vetustez” E muito mais o é proibir o inquilino de proceder às pinturas dessas mesmas paredes! - afinal do interesse do... senhorio! E a respeito das cores usadas nas aludidas pinturas, é oportuna e de todo pertinente a seguinte observação dos apelantes (fls. 258): “A pergunta é simples: teriam” - os tectos e paredes - “de se ser restituídos à sua cor original de há vinte (20) anos e constatando-se que do senso comum nenhuma tinta daquela época aguentaria um normal uso desse espaço temporal?”. É patente a razão dos apelantes, salvo sempre, naturalmente, o devido respeito por diferente entendimento. Assim sendo, se o inquilino pintou à sua custa as paredes de um dos quartos de dormir e os tectos dos aposentos, mais não fez, afinal, do que beneficiar o arrendado - sempre longe, portanto, de qualquer actuação... imprudente! E se o senhorio não gosta das cores da nova pintura, uma de duas: ou tinha o cuidado de, oportunamente, pintar ele próprio os ditos espaços degradados pelo decurso do tempo; ou.... pinta de novo, agora com as cores que mais lhe agradem - afinal, mais não despenderá do que o que despenderia caso tivesse cumprido a sua obrigação em tempo oportuno! Como tal, e em conclusão, a al. b) do “DISPOSITIVO” condenatório, de fls. 232/233, ficará limitada à condenação dos réus no pagamento aos autores da “quantia por eles despendida no levantamento do plástico que estava colocado nos pisos dos aposentos” “e no levantamento da alcatifa que estava aplicada sobre o parquet, quantia essa a liquidar em execução de sentença”. Do mais ali referido devem ser os réus absolvidos. 3. Quanto à “condenação dos réus no pagamento aos Autores da quantia por eles despendida na colocação do telefone de porta, também a liquidar em execução de sentença”; Neste aspecto, cremos nenhuma censura entendemos dever ser feita à decisão recorrida, atentos os fundamentos nela vertidos (fls. 230/231), que se nos afiguram correctos e para os quais remetemos (ut artº 712º, nº5, CPC). De todo o exposto resulta que procede parcialmente a segunda questão suscitada pelos apelantes. 4. Quanto aos juros de mora: Discordam os apelantes da condenação em juros moratórios - à parte os respeitantes à quantia de “19.000$0” referente aos consumos de electricidade, condenação essa aceite pelos ora apelantes e, assim, fora do objecto da apelação (cfr. fls. 261)--, sustentando que “na hipótese de procedência da acção, só devem ser considerados após a douta decisão”. Cremos que os apelantes não leram com o devido cuidado a decisão recorrida quanto a juros moratórios, pois se o fizessem seguramente que não suscitariam esta questão. Que a não leram com cuidado, mostra-o o simples facto de logo no início das suas doutas alegações começarem por dizer que a sentença condenou os apelantes “[.....................,,,,,]; e) no pagamento de juros de mora sobre as quantias referidas em a), b) e c), contados à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento” (cfr. fls. 255).” O que não corresponde à verdade. É que o que se escreveu na sentença foi que tal condenação em juros sobre as quantias referidas em a), b) e c) era “desde a citação na acção executiva [.....]”. O que se nos afigura correcto. Efectivamente, tratando-se de responsabilidade contratual e sendo ilíquido o crédito dos autores sobre os réus que se vier a liquidar em execução de sentença, os juros nesta parte somente podem ser arbitrados desde a citação na acção executiva por força do estatuído no artº 805º CC (cfr. Acs. STJ, de 23.11.1994, Col. STJ, Ano III, T. 3, a pág. 297 r de 28.01.1997, mesma Col., Ano V, Tomo 5, a pág. 83). Concordamos, por isso, nesta parte, com a decisão condenatória - obviamente tendo em conta que a condenação em juros apenas incidirá sobre as quantias objecto de condenação que mereceu a nossa concordância, supra identificadas. Nesta parte improcedem as conclusões da apelação. CONCLUINDO: No domínio do regime do arrendamento predial há um corpo extenso de normas imperativas a justificar uma forte limitação do princípio da liberdade contratual. São normas que visam tutelar interesses públicos e as que pretendem proteger o arrendatário contra a sua fraqueza - sobretudo económica - em relação ao senhorio. Onde não se trate de normas imperativas as partes podem dar à relação locatícia conteúdo diverso do conteúdo legal. Também no domínio da relação locatícia, sob o império da nossa ordem jurídica, há um dever geral de boa fé a impor um dever geral e recíproco de cooperação entre senhorio e arrendatário no desenvolvimento da relação contratual. Ao locatário não cumpre reparar as deteriorações inerentes a uma prudente utilização em conformidade com os fins do contrato; ao senhorio também as não cumpre reparar, salvo até onde fique coberto pelo seu dever de “assegurar o gozo” do prédio ao inquilino para os fins a que se destina. Da mesma forma, quanto às obras necessárias a assegurar o conforto e comodidade do arrendatário, à falta de convenção expressa em contrário, pode este fazê-las. Mas terá de as reparar antes da restituição do prédio ao senhorio, salvo se tiver feito tais obras no uso de uma utilização prudente do arrendado. A lei ao falar em “deteriorações” (do latim, deter= pior) do arrendado a reparar pelo arrendatário, refere-se, em primeira mão, àquelas que são provocadas por acção do locatário. O que, desde logo, faz ressalvar aquelas que são decorrentes da simples usura do tempo, ou vetustez. Por outro lado, a responsabilidade do arrendatário está sempre ligada a um comportamento negligente, culposo, sendo de rejeitar a ideia de uma espécie de responsabilidade objectiva do locatário. IV. DECISÃO: Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando-se, por consequência, a sentença recorrida nos seguintes termos: A)- Vão os réus F........................... e mulher G.............................. condenados no pagamento aos autores: a)- Da quantia por eles despendida no levantamento do plástico que estava colocado nos pisos dos aposentos, bem como no levantamento da alcatifa que estava aplicada sobre o parquet, quantia essa a liquidar em execução de sentença;------------ b)- da quantia por eles despendida na colocação do telefone de porta, também a liquidar em execução de sentença; ----------- c)- de juros de mora sobre as quantias referidas em a) e b), contados à taxa legal, desde a citação na acção executiva e até efectivo e integral pagamento; d)- da quantia de 19.000$00 (€ 94,97), referente a consumos de electricidade efectuados durante a vigência do contrato e não pagos, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento. B)- Vão os Réus absolvidos do demais peticionado. Quanto a custas: Suportarão os réus as respeitante ao valor de 19.000$00 (€ 94,97)-- já liquidado; As restantes serão suportadas por ambas as partes na medida do decaimento - relegando-se a fixação definitiva para depois da liquidação. Porto, 9 de Dezembro de 2004 Fernando Baptista Oliveira José Manuel Carvalho Ferraz Nuno Ângelo Raínho Ataíde das Neves |