Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
105/12.5TTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: TEMPO DE TRABALHO
CONVENÇÃO COLECTIVA DE TRABALHO
INTERPRETAÇÃO
USOS
Nº do Documento: RP20131021105/12.5TTPRT.P1
Data do Acordão: 10/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I – À face do artigo 197.º do Código do Trabalho, é de considerar que o tempo dispendido pelo motorista que, finda a sua primeira etapa diária de trabalho, necessita de se deslocar para empreender o início da segunda etapa de trabalho, se qualifica como tempo de trabalho, ainda que a interrupção do período de trabalho diário possa alcançar as 7 horas.
II - Nesse período de dispêndio necessário de tempo para retomar e realizar o trabalho já nesse dia iniciado, é patente a adstrição que aí se verifica do trabalhador à realização da prestação que interrompeu e que, por ordem do empregador, deve nesse dia retomar num outro local e umas horas mais tarde, necessitando, para o efeito, de para ali se deslocar.
III - Na interpretação das convenções colectivas deve aplicar-se o disposto nos arts. 236.º e ss. do Código Civil quanto à parte obrigacional, e o preceituado no artigo 9.º do Código Civil, no respeitante à parte regulativa, uma vez que os seus comandos jurídicos são gerais e abstractos e produzem efeitos em relação a terceiros.
IV - Os usos não podem afastar normas legais absolutamente imperativas, nem, tão pouco, se podem afastar de normas legais supletivas ou estabelecidas em instrumento de regulamentação colectiva, a não ser que num sentido mais favorável para os trabalhadores.
V – Se os vínculos contratuais que os motoristas denominados “escalados” executam denotam que é da essência da sua actividade a prática de horários de trabalho que podem variar com frequência – pois prestam o serviço que seja necessário assegurar em virtude da ausências dos motoristas denominados “encaixados” em serviços normais ou em serviços “fora de regras”, quando se verifica a ausência destes trabalhadores –, se é este o seu status quo em termos de organização do tempo de trabalho, cada comunicação que lhes é feita dos serviços a efectuar (que podem ter contornos de início e termo da prestação, bem como de intervalos de descanso, diversos) não configura uma alteração daquele mesmo status quo, a exigir que o empregador lance mão do complexo procedimento previsto no n.º 2 do artigo 217.º do Código do Trabalho para a alteração do horário de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 105/12.5TTPRT.P1
4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
II
1. Relatório
1.1. A B…, instaurou no Tribunal do Trabalho do Porto a presente acção declarativa condenatória, contra C…, S.A., peticionando que:
A. se declare ilegal a actuação da R. por não considerar como tempo de trabalho o tempo gasto nas deslocações efectuadas entre locais distintos das etapas diárias de serviço, sempre que o local final da 1ª etapa não coincida com o do reinício da 2ª etapa;
B. se declare ilegal a actuação da R. na imposição de serviços com mais de duas horas de intervalo entre etapas sem o consentimento por escrito dos trabalhadores;
C. se condene a R. no cumprimento de todas as medidas legais e convencionais que se mostrem violadas pela elaboração e alteração dos horários praticados sem dar conhecimento dos mesmos com a antecedência mínima de 7 (sete) dias.
Alega, para tanto, e em síntese: que no horário de trabalho chamado de “fora de regras”, a fim de acorrer às necessidades dos “períodos de ponta”, em que os trabalhadores prestam serviço tendo sempre um intervalo diário superior a 2 horas e inferior a 7 horas, a ré implementa escalas em que o reinício da 2.ª etapa não coincide com o final da anterior, a R. não contabiliza o tempo de deslocação entre os diferentes locais de trabalho como tempo de serviço, ao contrário do que sucede nos restantes serviços e horários por ela praticados; que com esta actuação discrimina um grupo de motoristas e viola o artigo 197.º do Código do Trabalho; que a R. mantém motoristas “escalados” sem horário pré definido, que só têm conhecimento dos horários a realizar com antecedência de 2 dias, e impõe a muitos motoristas escalados a prática destes horários com intervalos superiores a duas horas contra a sua vontade.
Na contestação apresentada, a R. excepcionou a ilegitimidade do A. e alegou, em suma: que os motoristas a laborarem em regime de fora de regras trabalham 38 horas por semana e os colegas em serviço normal laboram 40 horas, em média, por semana e todos usufruem do mesmo vencimento; que nos serviços normais o tempo de deslocação entre etapas é incluído directamente no tempo de trabalho constante da escala diária de serviço, daí que a média de trabalho semanal seja de 40 horas e os serviços fora de regras têm uma espécie de “bónus” de 20 minutos diários (x 6 dias) que vão ter efeitos na média semanal do seu trabalho, que é de 38 horas, pelo que na prática o tempo de deslocação entre etapas é pago como tempo de trabalho a uns e a outros; que muitas vezes o fim da primeira etapa e o início da segunda ocorre no mesmo local; que, atento o previsto no n.º 5 da Cláusula 26.ª do AE aplicável, não é exigível a prévia concordância dos motoristas para lhes ser fixado horário no regime de “fora de regras” e, ademais, a ré lança concursos para os diversos horários (“grupo de serviço”), entre eles o “fora de regras”, e os motoristas concorrem livremente ao serviço que entendem; que, quanto à falta de conhecimento de horários com a antecedência mínima de 7 dias, tal sucede com os motoristas “escalados” no regime fora de regras, mas não com os “encaixados” em regime de fora de regras, e sucede porque a ré não pode prever todas as ausências que vão ocorrer de modo a poder disponibilizar as escalas com aquela antecedência.
O autor apresentou a resposta de fls. 150 e ss..
Foi proferido despacho saneador (fls. 171 e ss.) em que se declarou a B… parte legítima para, por si (enquanto radica a sua legitimidade no art. 5.º/1 do CPT), demandar a ré, e se dispensou a selecção dos factos assentes e base instrutória.
Fixou-se ainda à causa o valor de € 30.000,01.
Procedeu-se ao julgamento, tendo-se seguidamente proferido despacho que decidiu a matéria de facto controvertida (fls. 218 e ss.).
Foi em 01 de Fevereiro de 2013 proferida sentença (fls. 229 e ss.), a qual terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, declara-se que é tempo de trabalho o tempo gasto pelos trabalhadores nas deslocações efectuadas entre locais distintos das etapas diárias de serviço, sempre que o local final da 1ª etapa não coincida com o do reinício da 2ª etapa.
Quanto ao mais peticionado, julgo improcedente a acção.
Custas pela ré, na proporção de 1/3, tendo-se em conta a isenção de que beneficia o autor (art. 4.º/1 f) do Regulamento das Custas Processuais).»
1.2. A Ré, inconformada interpôs recurso desta decisão e terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:
“a) Na sua decisão o Tribunal não considerou o consagrado nos artigos 3.º do Código Civil e n.º 1 e n.º 2 alínea a) do artigo 197.º do CT, porquanto, não teve em conta, nem apreciou, o uso laboral praticado na Recorrente relativamente ao tempo de trabalho dos motoristas afetos ao regime trabalho “fora de regras”, quando o devia ter feito.
b) O tribunal a quo não interpretou corretamente o n.º 4 da cláusula 7.ª do AE, na medida em que, não é pelo facto daquele preceito não fazer a distinção ente motoristas de serviço normal e motoristas de serviço “fora de regras” que se pode concluir, sem mais, que o regime aí previsto se aplica a todos os motoristas de igual modo.
c) Se o AE nada refere, não pode o Tribunal dizer que se suporta naquele instrumento de regulamentação coletiva para interpretar a cláusula no sentido em que a interpretou, pois, não referindo a letra do AE, que aquele regime se aplica aos motoristas “fora de regras” também será legítimo fazer o raciocínio inverso e concluir que o mesmo não se lhes aplica.
d) Não obstante a douta sentença referir que “Por outro lado, a Ré não provou ter sido esse o sentido correspondente à vontade real das partes – cf. n.º 2 do art. 238.º do CC”., tal não significa o contrário e que não seja essa a vontade real das partes.
e) Ficou provado conforme consta, do ponto 26 dos factos assentes que “Estando tal regime a ser praticado há dezenas de anos, sendo o mesmo conhecido pela Comissão de Trabalhadores, por todas as organizações Sindicais e por todos os trabalhadores da Ré.”
f) As partes sempre agiram em conjunto no sentido de uma conduta constante, pelo que não pode concluir-se ter existido uma prática unilateral da Recorrente no sentido de alterar o AE
g) Estando tal regime a ser praticado pelo menos desde 1977, sendo o mesmo conhecido pela Comissão de Trabalhadores, por todas as organizações Sindicais (onde se inclui o B...) e por todos os trabalhadores da Ré e praticado, sem contestação, até data recente, entende-se que existe um verdadeiro costume, por ser uma prática social reiterada, acompanhada da convicção generalizada da sua obrigatoriedade.
h) Ainda que não se entendesse que tal prática não revela uma norma jurídica e não constitua uma fonte imediata do Direito, tal não afasta o facto desta se traduzir num uso laboral que se caracteriza pela generalidade, uniformidade, continuidade, publicidade e frequência.
i) Pelo que, resulta daquele uso interpretativo que o disposto no n.º 4 da cláusula 7ª do AE não é aplicável aos motoristas a laborar em régie de “fora de regras” da mesma forma que se aplica a motoristas que praticam horários normais
j) Carecendo os usos de intermediação da Lei para serem juridicamente relevantes, certo é que, o artigo 3.º do Código Civil, lhe atribui valor jurídico.
k) Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça pois, “Nada impede que, através de prática da empresa constante, genérica e aceite, se estabeleça um uso relevante como fonte de direito, e por isso vinculativo (…)” - Acórdão de 05 de Julho de 2007 – Processo 06S2576.
l) Tendo em conta o alegado pela Recorrente no artigo 42.º da contestação, conforme vem pugnando e a matéria assente, o tribunal a quo devia ter tido em conta a prática constante, genérica e aceite praticada na Recorrente relativamente ao tempo de trabalho dos motoristas afetos ao regime de trabalho “fora de regras” no sentido de o considerar nas 38 horas de trabalho com redução de 2 horas em relação aos restantes motoristas.
m) Existe um uso laboral interpretativo do AE, no sentido de que o disposto no n.º 4 da cláusula 7.ª, não é aplicável aos motoristas a laboral em “fora de regras” da mesma forma que o é para os motoristas que praticam horários normais e que tal entendimento resulta do facto dos motoristas em “fora de regras” trabalharem apenas 38 horas semanais, ao invés das 40 horas semanais trabalhadas pelos motoristas que praticam horários normais, sendo que, em ambos os casos, o vencimento é o mesmo (factos provados n.º 6 e n.º 15).
n) O cumprimento da douta sentença do Tribunal a quo implicará um tratamento desigual entre os motoristas da Recorrente, alterando o uso da empresa e violando o princípio da igualdade, previsto no artigo 23.º do CT, acarretando tratamento diferenciado entre os motoristas da Recorrente, porquanto, os motoristas que já recebem o mesmo vencimento por 38 horas de serviço semanal passarão a auferir um vencimento superior aos motoristas que prestam 40 horas de serviço semanal, sempre que o tempo de deslocação entre locais de início de etapas seja contabilizado como tempo de trabalho.
o) O número 5 da cláusula 26.ª do AE, referido pelo Tribunal a quo, para sustentar a sua posição de considerar tempo de trabalho o tempo de deslocação, pela “(…) maior penosidade (…)” é incompatível com o raciocínio elaborado na douta sentença, porquanto, este carece do enquadramento do número 4 daquela mesma cláusula que prescreve “O período de trabalho diário deve ser interrompido por um intervalo de refeição não inferior a 1 hora nem superior a 2, de modo a que os trabalhadores não prestem mais de 5 horas de trabalho consecutivo”.
p) É pelo respeito pela prática da empresa - em não considerar o tempo de deslocação entre locais de etapas, para os trabalhadores que laboram 38 horas semanais em regime de fora de regras - que se garante o respeito pelo princípio da igualdade.
q) Para que o estatuído na alínea a) do n.º 2 do invocado artigo 197.º do CT se preencha não basta considerar o estabelecido no AE, sendo determinante o resultante do uso ou costume da Empresa.
r) A prática sempre seguida, sem exceções, demonstra qual foi o sentido correspondente à vontade real das partes e não o que a douta sentença defende
s) Deve considerar-se que constitui um uso laboral vinculativo e relevante como fonte de direito a prática constante, uniforme que a empresa adotou, desde sempre, face à matéria dada como provada e atrás destacada, pelo que, devia o tribunal a quo ter absolvido a Recorrente do pedido formulado
t) Dispõe o Código Civil no seu artigo 3.º n.º 1 que “Os usos que não forem contrários aos princípios da boa-fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine.”
u) O artigo 12.º n.º 2 da LCT que “Desde que não contrariem as normas acima indicadas e não sejam contrários aos princípios da boa-fé, serão atendíveis os usos da profissão do trabalhador e das empresas, salvo se outra coisa for convencionado por escrito”.
v) O Código de Trabalho de 2003 e de 2009 estipula ainda no seu artigo 1.º sob a epigrafe “ Fontes Especificas” que: O contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa-fé.
w) Outras disposições dos Códigos do Trabalho mandam atender aos usos da empresa, como sucede com o disposto nos arts. 155.º e 156.º alínea a) do Código de Trabalho de 2003 e 197 ns.º 1 e 2 alínea a) do CT 2009.
x) O uso laboral tem forçosamente que acarretar uma interpretação ajustada da cláusula 7.º n.º 4 do AE de acordo com as regras constantes do art. 9º do C. Civil.
y) “Constitui um uso laboral vinculativo e relevante como fonte de direito a prática constante, uniforme e pacífica que a empresa adoptou durante cerca de 13 anos relativamente aos seus trabalhadores afetos ao regime de dois turnos rotativos de remunerar e contar o período de 30 minutos para refeição como tempo de trabalho” Acórdão STJ n.º 06S2576 de 05-07-2007.
z) A cláusula 7.º n.º 4 do AE tem sido interpretada pelas partes da mesma forma e sem qualquer exceção e com aplicação uniforme, pelo que, se entende que os usos da empresa determinam que a prática da empresa constitui um uso laboral vinculativo e relevante como fonte de direito e que o entendimento que a Recorrente faz do AE não o desrespeita, não alterando unilateralmente o período normal de trabalho fixado para os trabalhadores que desempenham o denominado serviço “fora de regras”
aa) Se nas palavras do acórdão do STJ um uso se caracteriza pela (…) prática constante, uniforme e pacífica que a empresa adoptou durante cerca de 13 anos (…)” , a fortiori, a prática dada como provada no artigo 42.º da contestação com duração de décadas, certamente também terá de ser considerada um uso.
bb) O Tribunal a quo não se pronunciou, na sentença, quanto à força da matéria de facto alegada e provada no artigo 42.º.
cc) Tal matéria é relevante e essencial para a decisão da causa, porquanto os usos laborais, como fonte de direito, são uma das soluções plausíveis da questão de direito.
dd) Ao considerar o Tribunal a quo que é tempo de trabalho o tempo gasto pelos trabalhadores em regime de “fora de regras” nas deslocações efetuadas entre locais distintos das etapas diárias de serviço, sempre que o local final da 1ª etapa não coincida com o reinício da 2ª etapa, fez errada interpretação e aplicação do AE, nomeadamente, das cláusulas 7.ª n.º 4 e 26.ª e da Lei, designadamente os artigos, 23.º e 197.º números 1 e 2 alínea a) ambos do Código do Trabalho e os artigos 3.º e 9.º ambos do Código Civil.
Pelo que deve ser substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente e absolva a Recorrente do pedido, assim se fazendo JUSTIÇA.”
1.3. Também o A. interpôs recurso de apelação da sentença final.
Concluiu as suas alegações do seguinte modo:
“I - O presente Recurso consiste na impugnação jurisdicional da decisão de facto (reapreciação da prova gravada) e da decisão de direito proferidas pelo Tribunal recorrido que são desfavoráveis ao aqui recorrente.
II- Analisando os vários documentos juntos aos Autos pela própria R. (horário do pessoal tripulante - Fora das Regras) facilmente se depreende que, em muitos deles, entre a data de Planeamento e Programação, e a data de entrada em serviço não têm uma antecedência superior a sete dias.
III- Entende o A. que deverá ter aqui aplicação directa o art.º 217 n." 2 do Código do Trabalho, pois tratando-se a R. de uma grande empresa nos termos do art.º 100 alínea d), a verdade é que a recorrida, e como ficou provado, nem sequer cumpre o requisito do n.º 2 que se aplica às microempresas,
IV-A comunicação da alteração dos horários com a antecedência de dois dias, e mesmo assim inferior àquela que o legislador expressamente fixou nos três dias para as microempresas.
V - Como referiu a sentença recorrida e considerando que "um conhecimento prévio de apenas 48 horas não é seguramente um prazo confortável para qualquer trabalhador organizar a sua vida... " não pode por outro lado, este prazo de comunicação ser considerado razoável.
VI - Não é por isso de acompanhar o entendimento da decisão recorrida, que em clara violação do disposto no n.º 2 do art. 217 considera como admissível a comunicação aos motoristas dos horários a cumprir com dois dias de antecedência.
VII - A sentença recorrida deu como "Provado que esta tem sido a prática da Ré há décadas, prática essa que é do conhecimento das Organizações Sindicais e Comissão de Trabalhadores e que é seguida pelos motoristas”.
VIII- Ora tomando em consideração todos os depoimentos produzidos em audiência de julgamento, nomeadamente das testemunhas D... e E... verifica-se que nunca pode ser dado como provado que essa prática é “seguida” pelos motoristas, mas ficou provado que é imposta pela R. aos mesmos, ao atribuir -lhe os respectivos horários.
IX - O Tribunal não considerou o consagrado no n.° 3 do art.º 213 do Código do Trabalho que consagra "Compete ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral, mediante requerimento do empregador, instruído com declaração escrita de concordância do trabalhador abrangido e informação à comissão de trabalhadores da empresa e ao sindicato representativo do trabalhador em causa, autorizar a redução ou exclusão de intervalo de descanso, quando tal se mostre favorável ao interesse do trabalhador ou se justifique pelas condições particulares de trabalho de certas actividades."
X - O n.º 2 do art." 213 prevê expressamente, que por Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho o intervalo de descanso previsto no n.º 1 possa ter duração superior, porém é entendimento do A. que a entidade patronal está obrigada a comunicar através de requerimento tal situação ao ministério responsável pela área laboral com declaração escrita de concordância do trabalhador.
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, ser a douta Sentença revogada no sentido de considerar ilegal a actuação da R. na imposição de serviços com mais de duas horas de intervalo entre etapas sem o consentimento por escrito dos trabalhadores e condenar a R. no cumprimento de todas as medidas legais e convencionais que se mostrem violadas pela elaboração e alteração dos horários praticados sem dar conhecimento dos mesmos com a antecedência mínima de 7 (sete dias), condenando a recorrida nas demais consequências legais, fazendo-se a reclamada Justiça!.”
1.4. A A. respondeu ainda à alegação da R., pugnando pela improcedência do recurso por esta interposto e manutenção da sentença quanto à matéria recorrida.
1.5. A R. também apresentou contra-alegações ao recurso da A., sustentando a sua improcedência.
1.6 Os recursos foram admitidos por despacho de fls. 306.
1.7 Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se em douto Parecer no sentido de se negar provimento aos recurso interpostos.
As partes não se pronunciaram quanto a tal Parecer.
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, as questões que incumbe enfrentar são, por ordem lógica da sua apreciação e atenta a ordem de interposição dos recursos, as seguintes:
1.ª – da impugnação da decisão de facto (recurso da A.);
2.ª – saber se deve considerar-se como tempo de trabalho o despendido pelos motoristas do serviço “fora de regras” quando se deslocam entre locais de trabalho nos dias em que não coincidem o local do fim da 1.ª etapa e o do início da 2.ª etapa (recurso da R.);
3.ª – saber se pode considerar-se haver um uso laboral relevante no sentido de que não é devido aos motoristas a laborar no serviço “fora de regras” o pagamento do tempo de deslocação entre locais de trabalho da mesma forma que é pago a motoristas que praticam horários normais (recurso da R.);
4.ª – saber se a consideração como tempo de trabalho do tempo de deslocação entre locais de etapas para os trabalhadores que laboram 38 horas semanais no serviço “fora de regras” viola o princípio da igualdade (recurso da R.);
5.ª – saber se é lícito à R. elaborar e alterar os horários praticados pelos trabalhadores “escalados” sem dar conhecimento da alteração com a antecedência mínima de 7 dias (recurso da A.);
6.ª – saber se é necessária a concordância escrita dos trabalhadores “escalados” para que o intervalo de descanso entre as duas etapas de trabalho tenha duração superior a 2 horas (recurso da A.).
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3. Fundamentação de facto
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3.1. Da impugnação da decisão de facto
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A A. recorrente afirma a sua intenção de impugnar a matéria de facto e invoca “os vários documentos juntos aos Autos pela própria R. (horário do pessoal tripulante - Fora das Regras)”, bem como “todos os depoimentos produzidos em audiência de julgamento, nomeadamente das testemunhas D… e E…”, não especificando nas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
No seu douto Parecer, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta vem defender que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto tal como foi efectuada, uma vez que a recorrente não dá cumprimento aos ónus impostos pelo n.º1, alínea b) e n.º 2 do artigo 685.º-B do Código de Processo Civil.
A propósito dos requisitos para a impugnação da matéria de facto, estabelece o artigo 685.º-B do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, lei processual aplicável à data em que foram produzidas as alegações[1] o seguinte:
«Artigo 685.º-B
Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
4 - Quando a gravação da audiência for efectuada através de meio que não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos, as partes devem proceder às transcrições previstas nos números anteriores.
5 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 684.º-A.»
Para sindicar o cumprimento destas especificações legais, cabe ter presente o objectivo da sua previsão.
Com as normas relativas à interposição de recurso e apresentação da motivação, o legislador pretendeu criar um conjunto de regras de natureza prática a observar pelos recorrentes e que permitam ao tribunal ad quem apreender, de forma clara, as razões que levam o recorrente a atacar a decisão recorrida, de modo a que possam ser apreciadas com rigor (nem mais, nem menos do que é pedido, com ressalva das matérias de conhecimento oficioso).
Assim, o critério subjacente à definição da conformidade das conclusões com o comando dos artigos 685.º-A e 685.º-B do CPC está necessariamente relacionado com a respectiva aptidão para exercerem a sua função delimitadora e sinalizadora do campo de acção interventiva do tribunal de recurso. É esta função das conclusões que legitima a existência de normas processuais que as exijam.
Na mesma lógica delimitadora e sinalizadora da intervenção do tribunal de recurso se situam os requisitos legais para a impugnação da matéria de facto, cuja inobservância, atenta a especificidade desta impugnação, justifica a rejeição do recurso no que se refere a tal matéria, com vista a prevenir o uso injustificado do recurso e a delimitar o seu objecto e os termos da cognição do tribunal ad quem (pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância), tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio recursório.
Além disso, cabe ter presente que, uma vez que as conclusões delimitam o objecto do recurso – artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, aplicáveis ex vi do disposto nos artigos 1.º, n.º 2, alínea a), e 87.º do Código de Processo do Trabalho, na redacção aprovada pelo Decreto-Lei n.° 295/2009, de 13.10 –, é necessária a indicação, nas conclusões, pelo menos, dos concretos pontos de facto de cuja decisão a recorrente discorda, embora se admita que a indicação dos meios de prova em que o recorrente sustenta a sua discordância possa ter lugar nas alegações, pois que consubstancia matéria relativa à correspondente fundamentação.
No caso em análise, a A. recorrente não especificou nas suas conclusões os concretos pontos de facto elencados na sentença que considera incorrectamente julgados. Esclarece-se que impugnar especificadamente os factos é enumerá-los um a um, para que o tribunal de recurso identifique, sem margem para dúvida, quais os pontos de facto que deverá apreciar, o que a recorrente, in casu, não fez, limitando-se a considerações genéricas sobre a matéria factual e jurídica, sem uma delimitação precisa e sem que individualizasse os concretos pontos de facto de que discorda.
Tanto basta para que se rejeite o recurso no que respeita à impugnação da decisão de facto.
Mas, além disso, a recorrente invocou “os vários documentos juntos aos Autos pela própria R. (horário do pessoal tripulante - Fora das Regras)”, não precisando minimamente os documentos pertinentes por referência à sua localização individual no processo, limitando-se a exprimir um juízo conclusivo e omitindo qualquer exercício de análise dos mesmos com referência à sua idoneidade para servirem de prova de factos concretos, pois que não cuidou de explicar como interpretar os referidos horários do “pessoal tripulante-Fora de Regras” de maneira a concluir que os mesmos não permitam aos destinatários conhecerem o seu horário de trabalho com 7 dias de antecedência.
E invocou também “todos os depoimentos produzidos em audiência de julgamento, nomeadamente das testemunhas D… e E…”, sendo que apenas relativamente a um deles (a testemunha E…) indicou no corpo da alegação as passagens da gravação em que se funda.
Deve dizer-se que, ainda que se entendesse ser quanto a esta testemunha suficiente a concretização que é feita das passagens do seu depoimento, a não indicação precisa nas conclusões dos pontos de facto que a recorrente pretende ver decididos de modo diverso com base na reapreciação daquele meio de prova, constitui fundamento bastante para a rejeição da impugnação deduzida a este propósito.
De acordo com a parte final do corpo do artigo 685.º-B, n.º1 do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, não é possível o aperfeiçoamento das conclusões quando não se cumpram as especificações legais previstas no artigo 685.º-B (regime este que foi assumido pelo artigo 640.º, n.º 1 do NCPC).
Esta maior exigência do legislador tem plena justificação uma vez que, dirigindo o recorrente a sua pretensão a um tribunal que não intermediou a instrução da causa na 1.ª instância e que vai actuar através de um reexame da decisão recorrida quanto a concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, deve cumprir com rigor e precisão as exigências legais, sinalizando correctamente o que pretende, e não limitar-se a uma manifestação inconsequente de inconformismo[2].
Em suma, tendo em consideração as apontadas deficiências, e na sequência do que ficou a constar do douto Parecer da Exma. Procuradora-Geral Adjunta, impõe-se a rejeição do recurso no que diz respeito à impugnação deduzida pela A. recorrente da decisão proferida sobre a matéria de facto.
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3.3. Factos provados
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Os factos materiais relevantes para a decisão da causa foram fixados pela sentença recorrida nos seguintes termos:
«[...]
1 - A R. tem como objecto a exploração do transporte colectivo de pesados de passageiros, na área metropolitana do Porto.
2 - O A. é uma Associação sindical de direito privado, sem fins lucrativos, que tem por finalidade cumprir a natureza, fins e objectivos consignados na lei das associações sindicais, designadamente a defesa dos direitos e interesses dos associados, motoristas, negociar acordos laborais com a Administração da R., celebrar convenções colectivas, entre outras.
3 - Nos horários “fora de regras”, em que por vezes os motoristas iniciam a 2ª etapa do trabalho em local diferente, e por vezes distante, do local onde terminaram a 1ª etapa, a ré não contabiliza esse tempo de deslocação como tempo de trabalho.
4 - Por regra, os motoristas “escalados” só têm conhecimento dos horários a realizar com antecedência de dois dias, horários esses que por vezes têm mais de duas horas de intervalo.
5 - Há trabalhadores que solicitaram expressamente para não serem colocados nas escalas - “escalados” - com intervalos superiores a duas horas, sem que a R. tenha atendido a essas solicitações.
6 - A cada horário corresponde um serviço e os serviços a assegurar pelos motoristas da R. podem ser de dois tipos:
A) Serviços Normais, que podem ser diurnos, nocturnos – realizados entre as 18 horas e as 02horas – e madrugadas – realizados entre as 24horas e até cerca das 06 horas.
- Os serviços normais que podem ser:
i) Seguidos, sem interrupção do período de trabalho diário, ou com interrupção do período de trabalho diário que pode ir no máximo até uma hora;
ii) Em duas etapas, com interrupção do período de trabalho diário entre 1 e 2 horas.
Nos serviços normais, a duração da interrupção do trabalho diário não pode ser superior a 2 horas e a média semanal de trabalho corresponde a 40 horas.
B) Fora de regras - são serviços realizados em duas etapas, uma de manhã e outra à tarde. Estes serviços visam reforçar a oferta de serviço de transporte por parte da R. nos períodos de ponta, ou seja nos períodos em que há mais procura de transporte público por parte dos seus utentes. O período de trabalho diário dos serviços fora de regras, é interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas. A duração do trabalho efectuado em regime de fora de regras corresponde a uma média mensal de 38 horas.
7 - Há motoristas encaixados nos serviços normais e nos fora de regras.
8 - Os motoristas escalados não estão encaixados em nenhum daqueles serviços na medida em que podem prestar qualquer tipo de serviço que seja necessário assegurar em virtude de ausências dos motoristas encaixados.
9 - Por norma os motoristas escalados são os que têm menor antiguidade na empresa e que não reúnem condições para concorrer aos concursos de encaixes que são lançados, normalmente 2 vezes por ano pela C…
10 - Os serviços fora de regras pretendem ocorrer às necessidades dos períodos de ponta, ou seja, visam reforçar o serviço de transporte público prestado pela R. nos períodos em que este é mais procurado por parte dos clientes. Pese embora, os períodos de ponta possam sofrer alterações, decorrentes da procura, actualmente estes situam-se, na parte da manhã, no período compreendido entre as 7 e as 10 horas e na parte da tarde, no período compreendido entre as 18 e as 20 horas.
11 - O desfasamento dos períodos de ponta a assegurar pelos serviços denominados fora de regras, levam a que o período de trabalho diário dos motoristas que praticam esses serviços seja interrompido por um período de tempo mais alargado – superior a 2 horas e não superior a 7 horas.
12 - A prestação de serviço em regime de encaixe em fora de regras, pressupõe que os motoristas tenham, por iniciativa própria, concorrido ao concurso de encaixes lançado pela C…,
13 - A prática dos serviços em regime de fora de regras nem sempre implica que o início da segunda etapa do serviço ocorra em lugar distinto daquele em que terminou a primeira etapa.
14 - Se nuns casos tal acontece, muitos outros há em que o fim da primeira etapa e o início da segunda ocorrem no mesmo local.
15 - Não obstante o facto dos motoristas a laborarem em regime de fora de regras, trabalharem 38 horas, em média, por semana, a verdade é que estes usufruem do mesmo vencimento que auferem os seus colegas que laboram 40 horas, em média, por semana.
16 - Nos serviços normais, o tempo de deslocação entre etapas, quando o fim da primeira etapa não coincide com o início da segunda etapa é incluído no tempo de trabalho constante da escala diária de serviço.
17 - Estando tal regime a ser praticado há dezenas de anos, sendo o mesmo conhecido pela Comissão de Trabalhadores, por todas as Organizações Sindicais e por todos os trabalhadores da Ré.
18 - A Ré lança, por regra duas vezes por ano, por norma nos meses de Março e Setembro, um concurso interno que se destina ao preenchimento dos vários serviços.
19 - Os concursos internos são abertos com a divulgação de uma lista, que contém as vagas existentes para cada grupo de serviço dos chamados “encaixados”, desde logo o de “fora de regras”.
20 - Desta forma os motoristas concorrem livremente ao serviço – dos chamados “encaixados” - que entendem, de entre eles o de fora de regras.
21 - Para se deslocarem, todos os trabalhadores da Ré e os motoristas não são excepção, usufruem gratuitamente de um passe de rede geral que lhes permite utilizar o transporte em todos os veículos e rede da Ré, 24 horas por dia e 365 dias por ano.
22 - Os motoristas escalados são aqueles que efectuam serviços na Ré, em substituição de outros motoristas, ausentes da prestação de serviços, encaixados em serviços normais, (diurnos, nocturnos ou madrugadas) ou em serviços fora de regras.
23 - As ausências dos motoristas ao trabalho, são, por via de regra, inesperadas e chegam ao conhecimento da Ré com pouca antecedência.
24 - Daí que a Ré não consiga prever todas as ausências que vão ocorrer e não tenha, no que aos motoristas escalados diz respeito, possibilidade de disponibilizar sempre as escalas com os horários a praticar por aqueles com uma antecedência superior a 48 horas.
25 - Os restantes motoristas, de entre os quais os encaixados em regime de fora de regras têm conhecimento dos serviços que vão realizar, durante a semana, com uma antecedência superior a 7 dias.
26 - Esta tem sido a prática da Ré há décadas, prática essa que é do conhecimento das Organizações Sindicais e Comissão de Trabalhadores e que é seguida pelos motoristas.
27 - A Ré assegura a todos os seus trabalhadores, incluindo os motoristas, um descanso no máximo de sete em sete dias.
28 - Os motoristas escalados não concorrem a esse tipo de serviços.
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5. Fundamentação de direito
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5.2. Do recurso da R.
5.2.1. Ao caso sub judice aplica-se a disciplina legal que consta do Código do Trabalho aprovado pela n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro (entrado em vigor no dia 17 de Fevereiro de 2009 — artigo 2.º da Lei), já que a petição inicial deu entrada no tribunal em 21 de Janeiro de 2012 e se reporta a um circunstancialismo de facto que se verificava à data.
A sentença recorrida, não obstante o A. não tenha invocado em fundamento da sua pretensão o clausulado de um qualquer instrumento de regulamentação colectiva, considerou que, para além das normas legais que regulam a matéria, “importa analisar e interpretar, também, o que a propósito dispõe o Acordo de Empresa que, como as partes estão de acordo, é aplicável no caso, publicado no BTE, 1.ª série, de 29.09.98”.
O presente processo carece de elementos suficientes para afirmar a aplicabilidade directa do Acordo de Empresa (AE) a que alude a sentença aos contratos de trabalho estabelecidos entre a R. e os associados da A., que só foi criada em 31 de Outubro de 2009 (BTE, 1.ª série, n.º 16, de 2009.12.15) e mudou de denominação em 2011 (BTE, 1.ª série, n.º 13, de 2011.08.04).
Mas à luz dos Códigos do Trabalho de 2003 e 2009 admite-se, ainda como vinculativa a aplicação facultativa do AE ou do ACT por parte do empregador subscritor a todos os seus trabalhadores, independentemente da sua filiação sindical, designadamente para uniformizar as condições de trabalho na empresa, por não haver obstáculo legal a tal realidade, e fazendo apelo ao valor que o artigo 1.º do Código do Trabalho conferem aos “usos”[3].
Tendo em consideração que resulta dos autos que a R, aplica a disciplina constante do referido AE a todos os seus motoristas que laboram nos diversos regimes, ter-se-á também presente, para além do regime legal em que o A. radica a sua pretensão, o clausulado do referido AE.
5.2.2. Perante os termos como se mostra estruturada a apelação da R., a primeira questão a analisar consiste em saber se deve considerar-se como tempo de trabalho o despendido pelos motoristas do serviço “fora de regras” quando se deslocam entre locais de trabalho, nos dias em que não coincidem o local do fim da 1.ª etapa e o do início da 2.ª etapa.
Sustenta a R. recorrente que o tribunal a quo não interpretou correctamente o n.º 4 da cláusula 7.ª do AE, na medida em que não é pelo facto daquele preceito não fazer a distinção ente motoristas de serviço “normal” e motoristas de serviço “fora de regras” que se pode concluir, sem mais, que o regime aí previsto se aplica a todos os motoristas e que, se o AE nada refere, também será legítimo fazer o raciocínio inverso e concluir que o mesmo não se lhes aplica. Invoca, ainda, que o facto de não ter provado ter sido vontade real das partes a de que aquele regime não se aplica aos motoristas de serviço “fora de regras”, não significa o contrário, e que não seja essa a vontade real das partes.
Vejamos.
Nos termos do preceituado no artigo 197.º, n.º 1, do Código do Trabalho, considera-se tempo de trabalho “qualquer período durante o qual o trabalhador exerce a actividade ou permanece adstrito à realização da prestação”. Segundo o n.º 2 do mesmo preceito, consideram-se ainda compreendidos no tempo de trabalho períodos que não são, em termos naturalísticos, tempo de trabalho, mas que são a ele equiparados, a saber:
«a) A interrupção de trabalho como tal considerada em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, em regulamento interno de empresa ou resultante de uso da empresa;
b) A interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de consentimento do empregador;
c) A interrupção de trabalho por motivos técnicos, nomeadamente limpeza, manutenção ou afinação de equipamento, mudança de programa de produção, carga ou descarga de mercadorias, falta de matéria-prima ou energia, ou por factor climatérico que afecte a actividade da empresa, ou por motivos económicos, designadamente quebra de encomendas;
d) O intervalo para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no espaço habitual de trabalho ou próximo dele, para poder ser chamado a prestar trabalho normal em caso de necessidade;
e) A interrupção ou pausa no período de trabalho imposta por normas de segurança e saúde no trabalho.»
O período normal de trabalho é “o tempo que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana” (artigo 198.º do Código do Trabalho). Quanto ao horário de trabalho, consiste o mesmo na “determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e dos intervalos de descanso, bem como do descanso semanal” (artigo 200.º do Código do Trabalho). O período de descanso, por seu turno, é definido pela negativa como sendo “o que não seja tempo de trabalho” (artigo 199.º do Código do Trabalho).
Como refere Luís Miguel Monteiro[4], o conceito de tempo de trabalho “é normativo e não naturalístico”. As situações jurídicas subsumíveis às previsões do artigo 197.º do Código do Trabalho “constituem tempo de prestação relevante, independentemente de o trabalhador se encontrar, ou não, a realizar a prestação para que foi contratado. Situações há, subsumíveis ao n.º 2 do preceito em análise, em que nem mesmo existe do trabalhador disponibilidade para oferecer aquela prestação.”
No que diz respeito à situação equiparada a tempo de trabalho prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 197.º, não basta que um instrumento de regulamentação colectiva, regulamento interno da empresa ou uso reiterado estabeleçam uma pausa, sendo ainda necessário que a mesma seja ali qualificada ou considerada como tempo de trabalho.
É o que ocorre com a cláusula 7.ª, n.º 4 do AE que a R. aplica na sua empresa, na qual se mostra estabelecido, após se referenciar o local do início e do fim das etapas de serviço para o pessoal do movimento, que “[a] etapa seguinte deverá iniciar-se de acordo com a final da anterior e, se assim não acontecer, o percurso a efectuar será considerado tempo de trabalho.”
A defesa da recorrente radica na sua consideração de que o regime previsto nesta cláusula não se aplica aos motoristas de serviço “fora de regras”.
Para melhor compreensão, cabe lembrar que no caso sub judice ficou apurado que os motoristas da R. asseguram dois tipos de serviços: os serviços “normais” (que podem ser diurnos, nocturnos – realizados entre as 18 horas e as 02horas – e madrugadas – realizados entre as 24horas e até cerca das 06 horas, em que a duração da interrupção do trabalho diário não pode ser superior a 2 horas e a média semanal de trabalho corresponde a 40 horas) e os serviços designados de “fora de regras” (que correspondem aos horários “fora das regras” e são realizados em duas etapas, em que o período de trabalho diário é interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas e a média semanal de trabalho corresponde a 38 horas) – facto 6.
Ficou também apurado que nos horários “fora de regras”, em que por vezes os motoristas iniciam a 2ª etapa do trabalho em local diferente, e por vezes distante, do local onde terminaram a 1ª etapa – o que implica a necessidade de se deslocarem para local distinto daquele em que se verificou o final da etapa anterior –, a ré não contabiliza esse tempo de deslocação como tempo de trabalho, ao invés do que sucede com os serviços normais, em que o tempo de deslocação entre etapas, quando o fim da primeira etapa não coincide com o início da segunda etapa é incluído no tempo de trabalho constante da escala diária de serviço – factos 3., 13., 14. e 16.
A sentença da 1.ª instância, debruçando-se sobre a questão de saber se deve considerar-se como tempo de trabalho o despendido pelos motoristas do serviço “fora de regras” quando se deslocam entre locais de trabalho nos dias em que não coincidem o local do fim da 1.ª etapa e o do início da 2.ª etapa, teceu as seguintes considerações:
“Não havendo, nessa cláusula [a cláusula 7.ª, n.º 4 do AE], qualquer distinção entre motoristas de serviço normal e motoristas de serviço “fora de regras”, conclui-se que o percurso a efectuar por estes últimos, nas situações em causa, deverá ser considerado como tempo de trabalho, sendo certo também que, nessas deslocações originadas pelo facto de o reinício da 2.ª etapa não coincidir com o final da anterior, o trabalhador está, sem dúvida, adstrito à realização da sua prestação laboral – cf. ainda o já citado art. 197.º/2 a) do CT.
É certo que os motoristas que desempenham serviço “fora de regras” estão obrigados a prestar uma média mensal máxima de 38 horas enquanto que os motoristas de serviço normal uma média semanal de 40 horas.
Mas isso não afasta o entendimento que, se os percursos que os trabalhadores necessariamente têm de efectuar entre etapas localizadas em sítios distintos devem ser contabilizados, à luz do Acordo de Empresa, como tempo de trabalho, os períodos despendidos nessas deslocações devem ser incluídos nessas 38 horas.
A interpretação da Ré no sentido de que essas deslocações são contabilizadas (20 minutos x 6 dias) a fim de igualar os períodos normais de trabalho de 40 horas (motoristas de serviços normais e de fora de regras) pois auferem os mesmos vencimentos, salvo o devido respeito, não tem qualquer suporte na letra do acordo.
Como é pacífico, no que concerne à interpretação da parte obrigacional das convenções colectivas, deverão ser seguidas as regras do artigo 236.º e ss. do Código Civil (cf. Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, pág. 234).
Assim, temos de fazer apelo ao disposto no art. 236.º n.º 1 do C.C. (“A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” ); posto que se trata de interpretar o sentido da declaração produzida num negócio formal, haverá que ter também em conta o disposto no art. 238.º n.º 1 do mesmo Código (“...não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” ).
Sucede que à luz destes princípios a interpretação de acordo com a tese da ré tem de ser rejeitada, não sendo crível, para um declaratário normal, que as partes outorgantes do AE quisessem dar à citada cláusula um sentido diferente daquele que lhe apontamos.
Com efeito, a propugnar-se a tese da ré, estes trabalhadores, ao invés de prestarem uma média mensal máxima de 38 horas, como lhes está garantido na cláusula 26.º, n.º 5 do AE, passariam, afinal, a trabalhar, quiçá e pelo menos em tese, durante as mesmas horas estabelecidas para os outros motoristas ou até mais.
A diminuição de horas do período normal de trabalho dos motoristas de serviços “fora de regras”, apesar de auferirem igual retribuição, pode ser explicável pela maior penosidade resultante da interrupção do período de trabalho diário ser superior ao dos outros motoristas (superior a duas horas e não superior a 7 horas).
O que, aliás, parece resultar da cláusula 26.º, n.º 5 do AE “…Para os trabalhadores do movimento, a fim de acorrer às necessidades dos períodos de ponta, poderá o período de trabalho diário ser interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas; porém, nestes casos, a duração do trabalho corresponderá a uma média mensal máxima de 38 horas.”
O segmento referente à duração do trabalho destes trabalhadores (38 horas) está interligado com o anterior, através da referência a “nestes casos”, os quais respeitam a um intervalo superior a duas horas.
Afigura-se-nos, assim, que o entendimento da Ré desrespeita o acordo de empresa na medida em que altera unilateralmente o período normal de trabalho fixado para estes trabalhadores que desempenham serviço “fora de regras”.
Por outro lado, a Ré não provou ter sido esse o sentido correspondente à vontade real das partes – cf. n.º 2 do art. 238.º do CC.
E se para além da vertente obrigacional das Convenções Colectivas de Trabalho da celebração destes instrumentos resulta uma vertente normativa, também dita regulativa – “porque contém regras que produzem efeitos, não entre as partes celebrantes, mas no âmbito de contratos individuais de trabalho, autónomos relativamente à convenção.” (cf. José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2.ª Edição, AAFDL, 2004, pág. 149) a qual se reporta, pois, aos efeitos produzidos nos contratos individuais de trabalho, igualmente sobre este prisma não merece acolhimento a pretensão da ré, pois que, v.g. a citada cláusula 7.ª/4 do AE, interpretada, na sua vertente regulativa, e à luz dos critérios legais (art. 9.º do CC), só pode significar que o tempo dispendido no percurso que o trabalhador tenha de efectuar entre etapas é tempo de trabalho. Mas já também, e com o devido respeito por diverso entendimento, aponta claramente no mesmo sentido o disposto no art. 197.º, n.º 2, al d), do CT, ao prever que é tempo de trabalho “o intervalo para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no espaço habitual de trabalho ou próximo dele, para poder ser chamado a prestar trabalho normal em caso de necessidade” pois, se é assim quando o trabalhador tem de estar disponível, próximo do local de trabalho, para poder prestar trabalho se necessário, mais se justifica que assim seja nos casos em que, como sucede no presente, o trabalhador no período em que tem de deslocar-se de um local para outro não pode efectivamente dispor, não pode gerir, como quer do seu tempo – dedicando-se a actos do seu próprio interesse -, que está, sim, a dispor em benefício do empregador, e para o que nada importa, salvo melhor opinião, os motoristas usufruírem de um passe gratuito fornecido pela ré (cf., a propósito, Ac. RP de 2.10.2012, Proc. 487/09.6TTBCL.P1, in www.gde.mj.pt/jtrp.»
Embora não subscrevendo a utilização primeira dos critérios hermenêuticos da interpretação da declaração negocial previstos no artigo 236.º do Código Civil para a interpretação da cláusula do AE aqui em causa (como resulta do que adiante se dirá), concordamos, na sua essencialidade, com estas considerações.
Efectivamente, à face do regime legal (artigo 197.º do Código do Trabalho) e convencional (cláusula 7.ª, n.º 4 do AE) em presença, é de considerar que o tempo dispendido pelo motorista que, finda a sua primeira etapa diária de trabalho, necessita de se deslocar para empreender o início da segunda etapa de trabalho, deve ser considerado como tempo de trabalho, ainda que a interrupção do período de trabalho diário possa alcançar as 7 horas.
Nesse período de dispêndio necessário de tempo para retomar e realizar o trabalho (já nesse dia iniciado, não se esqueça) não estamos evidentemente a operar com o conteúdo nuclear do conceito de tempo de trabalho – que se identifica com o exercício efectivo do trabalho –, mas é patente a adstrição que aí se verifica do trabalhador à realização da prestação que interrompeu e que, por ordem do empregador, deve nesse dia retomar num outro local e umas horas mais tarde, necessitando, para o efeito, de para ali se deslocar. Assim, embora consideremos não preenchida a 1.ª parte do artigo 197.º, n.º 1, temos por preenchida a sua 2.ª parte.
E, no limite, temos ao menos como preenchida a extensão do conceito prevista na 3.ª parte do n.º 1 do artigo 197.º e concretizada no seu n.º 2. Nesta perspectiva, a situação em análise enquadra-se desde logo na alínea a) do n.º 2 do artigo 197.º do Código do Trabalho, por estabelecido no instrumento de regulamentação colectiva que “será considerado tempo de trabalho” o percurso a efectuar entre o final da anterior etapa e a seguinte. Mas deve considerar-se que se enquadra também na economia das demais alíneas – vg. as alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 197.º –, das quais emerge a valorização da disponibilidade do trabalhador para o trabalho e a atribuição ao empregador do risco do não aproveitamento de tal disponibilidade. Estando nas mãos do empregador, no exercício do seu poder de direcção e organização do trabalho, fixar o início da 2.ª etapa de trabalho diária no mesmo local em que findou a 1.ª, ou em local distinto, compreende-se que se considere que, na segunda hipótese, o trabalhador deva considerar-se na disponibilidade do empregador ao deslocar-se de um para outro dos locais.
A recorrente, a este propósito, centra a sua discordância na interpretação que o tribunal a quo fez do AE, defendendo que não é pelo facto de o n.º 4 da cláusula 7.ª do AE não fazer a distinção ente motoristas de serviço normal e motoristas de serviço “fora de regras” que se pode concluir, sem mais, que o regime aí previsto se aplica a todos os motoristas e que, se o AE nada refere, também será legítimo fazer o raciocínio inverso e concluir que o mesmo não se lhes aplica.
Não podemos concordar, como se passa a expôr.
Na interpretação das convenções colectivas deve aplicar-se o disposto nos arts. 236.º e ss. do Código Civil quanto à parte obrigacional, e o preceituado no artigo 9.º do Código Civil, no respeitante à parte regulativa, uma vez que os seus comandos jurídicos são gerais e abstractos e produzem efeitos em relação a terceiros[5].
Como faz notar Menezes Cordeiro[6], em sede de convenções colectivas, aplicam-se “as regras próprias de interpretação e de integração da lei, com cedências subjectivas quando estejam em causa aspectos que apenas respeitam às partes que os hajam celebrado”.
Está em causa a interpretação do n.º 4 da cláusula 7.ª, havendo que descobrir se a mesma tem em vista todos os motoristas que realizam etapas de serviço ou se visa apenas aqueles que laboram em horários normais, excluindo os que laboram em horário “fora das regras”.
Para interpretar esta cláusula de cariz regulativo, há que ter presente, antes de mais, o que estabelece o artigo 9º, n.º 1 do Código Civil, nos termos do qual a “interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (nº 1 do preceito). Porém – como resulta do seu nº 2 - não pode “ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
É neste específico aspecto que a nossa perspectiva não coincide inteiramente com a expressa na sentença recorrida, pois que, apesar da natureza regulativa da cláusula 7.ª, n.º 4, fez um exercício interpretativo fundado, em primeiro lugar, nas regras previstas nos artigos 236.º e ss. do Código Civil.
Lançando mão dos critérios hermenêuticos da interpretação da lei, o elemento linguístico (a letra da norma) surge como um elemento de peso, pois que o comando ali expresso tem uma natureza geral, não havendo qualquer vocábulo que indicie uma restrição ou distinção entre categorias de motoristas.
Quanto ao elemento lógico (o espírito da norma) em que se agrupam três categorias distintas de dados (o elemento racional, o elemento sistemático e o elemento histórico), também não conforta a tese da recorrente[7].
Desde logo o fim visado com o estabelecimento da referida norma (elemento racional), é o de retribuir um tempo que, como resulta do que já foi dito, é manifestamente um tempo em que o trabalhador está adstrito à realização da prestação, embora no específico condicionalismo de estar a retomar a 2.ª etapa de trabalho diário.
Apelando ao elemento histórico, nada resulta da matéria de facto susceptível de levar a compreender as razões desta estatuição, não tendo ficado demonstrado nada que justifique a interpretação propugnada pela recorrente, designadamente que, como afirma, as deslocações entre as duas etapas dos motoristas em serviço “fora das regras” que têm um período normal de trabalho semanal de 38 horas são contabilizadas (20 minutos x 6 dias) com vista a igualar os períodos normais de trabalho de 40 horas (motoristas de serviços normais e de fora de regras), pois auferem os mesmos vencimentos.
É certo que também não emergem claramente da matéria de facto as razões por que os motoristas em serviço “fora das regras” têm um período normal de trabalho semanal de 38 horas e os “normais” um período normal de trabalho de 40 horas, embora possamos compreender as razões hipotisadas na sentença recorrida, no sentido de que a diminuição de horas do período normal de trabalho dos motoristas de serviços “fora de regras”, apesar de auferirem igual retribuição, pode ser explicável pela maior penosidade resultante da interrupção do período de trabalho diário ser superior ao dos outros motoristas - superior a duas horas e não superior a 7 horas – como parece resultar da cláusula 26.ª, n.º 5 do AE.
Aliás, este n.º 5 da cláusula 26.ª, ao estabelecer que “[p]ara os trabalhadores do movimento, a fim de acorrer às necessidades dos períodos de ponta, poderá o período de trabalho diário ser interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas; porém, nestes casos, a duração do trabalho corresponderá a uma média mensal máxima de 38 horas”, distingue claramente os motoristas do serviço “fora das regras”, estabelecendo para esta específica categoria de motoristas um regime diferente dos demais, denota que os outorgantes do AE tinham presentes as duas espécies de motoristas e que, quando o entenderam, estabeleceram um regime próprio para aqueles que acorrem às necessidades dos períodos de ponta e têm um período de descanso mais amplo. O que legitima a afirmação de que, se na cláusula 7.ª, n.º 4 os contraentes do AE não fizeram qualquer distinção, é porque entenderam por bem nela abarcar todos os motoristas da R. e não foi sua vontade excluir do regime nela estabelecido qualquer espécie de motoristas, vg. aqueles que acorrem às necessidades dos períodos de ponta e têm um período de descanso mais amplo.
Não pode, pois, afirmar-se que há razões históricas susceptíveis de justificar que se interprete a cláusula em causa de modo a considerar que a mesma se aplica somente aos motoristas em serviço normal.
Ao invés, é de considerar que, se os outorgantes do AE quisessem restringir o âmbito de aplicação do n.º 4 da cláusula 7.ª – como sucedeu em relação a outras matérias –, tê-lo-iam dito de forma clara, referindo expressamente essa restrição, em vez de manterem o carácter de generalidade que a mesma ostenta.
Em termos sistemáticos, tudo aponta, também, para a generalidade da cláusula e sua aplicabilidade a todas as categorias de motoristas, uma vez que a mesma se encontra inserida nas primeiras cláusulas do AE, todas elas enunciadas com carácter de generalidade e sem restrições relativamente a categorias de trabalhadores da empresa. Além disso, perspectivando a globalidade do clausulado, também aqui é relevante atender a que há uma outra norma no mesmo AE em que essa distinção foi estabelecida (a já referida cláusula 26.ª, n.º5), pelo que, por uma questão de coerência interna, se o AE não faz na cláusula 7.ª a destrinça entre os motoristas do serviço normal e os que acorrem às necessidades dos períodos de ponta e têm um período de descanso mais amplo, não é legítima uma interpretação que restrinja a sua aplicabilidade a uma só destas duas espécies de motoristas.
Mas, decisivamente, a letra da norma, ao não proceder a qualquer distinção, impede que o intérprete a faça, levando-nos a apelar ao velho princípio de que “ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”, isto é, onde a lei não distingue, também o intérprete não deve distinguir, sendo certo que, no caso em análise, o espírito da norma não nos leva a sacrificar o sentido verbal do texto por em nada justificar uma sua interpretação restritiva.
Invoca, ainda, a recorrente que o facto de não ter provado ter sido vontade real das partes a de que aquele regime não se aplica aos motoristas de serviço “fora de regras”, não significa o contrário e que não seja essa a vontade real das partes.
É patente a falibilidade deste raciocínio. Se o apuramento da vontade real das partes (entenda-se, aqui, dos outorgante do instrumento de regulamentação colectiva) poderia dar um contributo histórico para a tarefa de fixar o sentido da norma convencional em causa, o seu não apuramento não pode significar mais do que isso, ou seja, de que se não conhece essa vontade e que, por isso, não pode da mesma retirar-se um qualquer contributo para a interpretação a empreender. O que não pode é arvorar-se uma mera hipótese (a de ter sido, eventualmente, vontade real das partes a de não aplicar o regime aos motoristas em serviço “fora das regras”) em elemento interpretativo.
De todo o modo, e como resulta do já exposto, a distinção a que os outorgantes do AE procederam na cláusula 26.ª, n.º 5 constitui um forte índice de que os seus intentos não coincidiram com esta vontade de exclusão apontada pela recorrente no que diz respeito à cláusula 7.ª, n.º 4. Se ali fizeram uma evidente distinção e aqui não a fizeram, é porque não tinham a intenção de, aqui, excluir qualquer espécie de motoristas.
Finalmente, deve notar-se que o nº 2 do artigo 9.º, ao impedir que o intérprete considere “o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, impede, no caso sub judice, a interpretação restritiva que pretende fazer a recorrente.
Pelo que, por via meramente interpretativa do AE, não procede a tese expressa pela recorrente.
5.2.3. Mas a recorrente coloca o enfoque do seu recurso num outro aspecto que nos coloca a questão de saber se pode considerar-se haver um uso laboral relevante no sentido de que não é devido aos motoristas a laborar no serviço “fora de regras” o pagamento do tempo de deslocação entre locais de trabalho, da mesma forma que o é aos motoristas que praticam horários “normais”.
Segundo alega, as partes sempre agiram em conjunto no sentido de uma conduta constante, pelo que não pode concluir-se ter existido uma prática unilateral da Recorrente no sentido de alterar o AE e, estando tal regime a ser praticado pelo menos desde 1977, sendo o mesmo conhecido pela Comissão de Trabalhadores, por todas as organizações Sindicais (onde se inclui o B…) e por todos os trabalhadores da Ré e praticado, sem contestação, até data recente, entende-se que existe um verdadeiro costume, por ser uma prática social reiterada, acompanhada da convicção generalizada da sua obrigatoriedade, ou um uso laboral que se caracteriza pela generalidade, uniformidade, continuidade, publicidade e frequência, pelo que resultaria daquele uso interpretativo que o disposto no n.º 4 da cláusula 7ª do AE não é aplicável aos motoristas a laborar em regime “fora de regras”, da mesma forma que se aplica a motoristas que praticam horários “normais”.
Esta alegação da recorrente parte do facto, que se provou, de este regime “ser praticado há dezenas de anos, sendo o mesmo conhecido pela Comissão de Trabalhadores, por todas as organizações Sindicais e por todos os trabalhadores da Ré.” – ponto 17. da matéria de facto.
Importa pois aferir se a prática seguida pela R. desde há décadas no sentido de não aplicar o n.º 4 da cláusula 7ª do AE aos motoristas a laborar em regime “fora de regras”, constitui um uso da empresa relevante como fonte de direito e vinculativo nos termos e para os efeitos do art. 1.º do Código do Trabalho.
O Código Civil estabelece no seu art. 1.º serem fontes imediatas de direito as leis e as normas corporativas, vindo no seu art. 3.º, n.º 1 a especificar a posição dos “usos” ao estatuir que “são juridicamente atendíveis quando a lei o determine” os usos não contrários aos princípios da boa fé.
Os “usos” referidos no art. 3.º do Código Civil são as práticas ou usos de facto, como ensina Mota Pinto[8], não constituindo verdadeiras normas jurídicas, nem se confundindo com o costume como fonte do chamado direito consuetudinário. Correspondem, sim, a práticas sociais reiteradas, não acompanhadas da convicção da obrigatoriedade[9].
O Direito do Trabalho é um dos sectores da ordem jurídica em que é tradicionalmente reconhecido um relevo particular aos usos, não só pela importância que as práticas associadas a determinadas profissões têm na organização do vínculo do trabalho, como ainda porque os usos da empresa são frequentemente tomados em consideração para integrar aspectos do conteúdo do contrato individual de trabalho que não tenham sido expressamente definidos pelas partes[10].
Já o art. 12.º, da LCT relativo às normas aplicáveis aos contratos de trabalho, admitia no seu n.º 2 que se atenda aos “usos da profissão do trabalhador e das empresas” desde que não contrariem a lei, os instrumentos de regulamentação colectiva, os princípios da boa fé e a convenção das partes. Segundo Monteiro Fernandes, a norma reporta-se às “práticas usuais ou tradicionais” deste ou daquele sector do mundo laboral que não se revestem de características de norma jurídica, antes se apresentam como “mero elemento de integração das estipulações individuais (ou seja, destinado a preencher condições a que as partes não se referiram, de harmonia com aquilo que elas presumivelmente estariam dispostas a aceitar)”. E, de acordo com o mesmo autor, havendo estipulações expressas os usos poderão também ter uma função interpretativa das mesmas: “o sentido a dar às cláusulas pouco claras pode ser procurado, também, com recurso às práticas habituais da empresa, sem que isso importe a dispensa dos restantes critérios de interpretação dos negócios jurídicos”[11].
Os Códigos do Trabalho de 2003 e de 2009 incluem também nas fontes específicas do direito do trabalho os “usos laborais que não contrariem o princípio da boa fé” (art. 1.º), também eles afastando o princípio decorrente do artigo 3.º do Código Civil, no sentido de que a eficácia dos usos depende da existência de um dispositivo legal que em concreto lhes atribua relevo.
No que diz respeito ao critério de atendibilidade dos usos, a legislação codicística exige simplesmente que os usos “não contrariem o princípio da boa fé”, o que pode suscitar o problema da sua inserção na hierarquia das fontes do direito, problema que a LCT resolvia expressamente, colocando-os no sopé da hierarquia normativa.
Como defende Maria do Rosário Palma Ramalho, já a propósito do Código do Trabalho de 2003, “dado o seu papel eminentemente integrador do conteúdo do contrato de trabalho, os usos laborais não devem prevalecer sobre disposição contratual expressa em contrário; na mesma linha não prevalecem, também os usos sobre disposição do regulamento interno com conteúdo negocial, porque esta pressupõe que os trabalhadores sobre ela se tenham podido pronunciar, podendo tê-la afastado; e, por fim, podem os usos ser afastados pelos instrumentos convencionais de regulamentação colectiva do trabalho, já que estes correspondem a uma auto-regulamentação laboral. Já no que respeita à relação dos usos com a lei, parece decorrer da formulação da norma que o uso pode afastar normas legais supletivas, mas, naturalmente, não valerá se contrariar uma norma imperativa.”[12]
Júlio Vieira Gomes, por seu turno, sustenta que o artigo 1.º do Código do Trabalho “terá pretendido, ao usar a mesma expressão relativamente aos IRCT’s e aos usos laborais, deixar claro que os usos laborais são fonte (mediata) de direito, mantendo, ao mesmo tempo, aquela referência genérica que o artigo 12.º já continha. Em suma, o escopo do artigo 1.º terá sido o de esclarecer que as normas criadas por IRCT’s e por usos laborais se aplicam ao contrato individual e à relação por ele criada, que o contrato de trabalho é o destinatário, o alvo, de tais normas, que o contrato está exposto «sujeito» a essas normas”[13].
No caso em análise, cabe desde logo notar que, ao invés do dito pela recorrente, não se provou que a prática unilateral da R. fosse “praticada, sem contestação, até data recente”. Veja-se a alegação do artigo 42.º da contestação e a resposta que lhe foi dada a fls. 221, em conformidade com o que ficou fixado no ponto 17. da matéria de facto elencada na sentença, a saber, tão só que este regime [de não pagar aos motoristas a laborar no serviço “fora de regras” o tempo de deslocação entre locais de trabalho da mesma forma que é pago a motoristas que praticam horários normais] está a “ser praticado há dezenas de anos, sendo o mesmo conhecido pela Comissão de Trabalhadores, por todas as organizações Sindicais e por todos os trabalhadores da Ré.”, não se tendo incluído na resposta a alegação da R. de que o regime foi praticado sem contestação até data recente.
E também não pode afirmar-se, como alega a recorrente, que esta prática é acompanhada da “convicção generalizada da sua obrigatoriedade”, independentemente do relevo que possa conferir-se a esta convicção para a atendibilidade do uso laboral como fonte de direito[14].
Mas, essencialmente, entendemos não ser possível que se forme um uso com comportamentos que podem ser qualificados como o incumprimento de obrigações pré-existentes.
Tendo os trabalhadores da R., por força da interpretação da lei que temos por correcta ou, mesmo, por força da interpretação do instrumento de regulamentação colectiva que também temos por correcta, direito a determinada prestação patrimonial que lhes não tem sido concedida, não pode atribuir-se à prática seguida pelo empregador, de todos conhecida, no sentido dessa não concessão, e ao facto de os trabalhadores seguirem tal prática – o que, no fundo, significa que continuaram a prestar o seu trabalho apesar de lhes não serem pagos os tempos de deslocação entre etapas de trabalho – o valor de um uso laboral com relevância jurídica.
Se geralmente se explica a relevância do uso da empresa pelas ideias de auto-vinculação do empregador por força da boa fé na execução do contrato, da tutela da legítima confiança dos trabalhadores gerada pelo comportamento voluntário e regular do empregador face a um colectivo, naturalmente geradora da expectativa dos trabalhadores na continuação da aplicação de uma regra da qual resultam para si pretensões individuais que se inserem nos respectivos contratos de trabalho[15], tais considerações não têm qualquer pertinência numa situação em que se pretende invocar o uso para justificar a não concessão de uma prestação patrimonial prevista na lei (e no instrumento de regulamentação colectiva), maxime num sistema como o nosso em que a lei consagra a irredutibilidade da retribuição por decisão unilateral do empregador [cfr. o artigo 129.º, n.º 1, alínea d) do Código do Trabalho].
Por isso se tem defendido que os usos não podem afastar normas legais absolutamente imperativas, nem, tão pouco, se podem afastar de normas legais supletivas, a não ser que num sentido mais favorável para os trabalhadores. Como refere Júlio Gomes, “se o contrato individual de trabalho não puder afastar-se em sentido desfavorável de uma norma legal, tão pouco tal desvio será permitido a um uso de empresa”[16]. E é também pacífico que os usos não podem afastar-se do instrumento de regulamentação colectiva aplicável em sentido desfavorável para os trabalhadores[17].
Concluímos assim que, no caso vertente, não pode consubstanciar o alegado uso laboral o regime que vem sendo praticado pela R. no sentido de não considerar como tempo de trabalho o tempo de deslocação dos motoristas a laborar em regime “fora de regras” entre locais distintos de etapas diárias de serviço, quando o início da 2.ª etapa não coincida com o fim da 1.ª.
Improcedem, também quanto a esta questão, as alegações da R. recorrente.
5.2.4. Ainda relativamente ao primeiro pedido formulado na petição inicial pela A. – que obteve procedência na 1.ª instância – a R. recorrente veio invocar que a consideração como tempo de trabalho do tempo de deslocação entre locais de etapas para os trabalhadores que laboram 38 horas semanais no serviço “fora de regras” viola o princípio da igualdade.
Segundo alega, é pelo respeito pela prática da empresa - em não considerar o tempo de deslocação entre locais de etapas, para os trabalhadores que laboram 38 horas semanais em regime de fora de regras - que se garante o respeito pelo princípio da igualdade previsto no artigo 23.º do CT, acarretando diferente entendimento um tratamento diferenciado entre os motoristas da recorrente, porquanto os motoristas que já recebem o mesmo vencimento por 38 horas de serviço semanal passarão a auferir um vencimento superior aos motoristas que prestam 40 horas de serviço semanal, sempre que o tempo de deslocação entre locais de início de etapas seja contabilizado como tempo de trabalho.
Salvo o devido respeito, a afirmação da recorrente não encontra sustento na factualidade apurada.
Na verdade, a consideração do tempo de deslocação entre locais de trabalho como tempo de trabalho relativamente a todos os motoristas (do serviço normal e “fora das regras”), aplica-se a todos estes trabalhadores que iniciem a 2.ª etapa diária de trabalho em local distinto daquele em que findou a anterior, em igualdade de circunstâncias, pelo que não pode afirmar-se que a recorrida está a discriminar negativa ou positivamente qualquer destas categorias de trabalhadores.
O facto de os motoristas do serviço “fora das regras” receberem o mesmo vencimento por 38 horas de serviço semanal que os motoristas do serviço normal auferem por 40 horas de serviço semanal, não pode, por si só, levar a que o pagamento dos tempos de deslocação aqueles motoristas seja discriminatório ou violador do princípio da igualdade de tratamento, na medida em que não ficou demonstrado, nem tem qualquer suporte na letra do AE que, como alega a recorrente, nos serviços normais o tempo de deslocação entre etapas é incluído directamente no tempo de trabalho constante da escala diária de serviço e que os serviços “fora de regras” têm uma média semanal de 38 horas por contarem com uma espécie de “bónus” de 20 minutos diários (x 6 dias).
Independentemente da explicação que se possa aventar para esta discrepância no período normal de trabalho semanal – e afigura-se-nos plausível a explicação referida na sentença da 1.ª instância de que a diminuição de horas do período normal de trabalho dos motoristas de serviços “fora de regras”, apesar de auferirem igual retribuição, pode ser explicável pela maior penosidade resultante de a interrupção do período de trabalho diário (entre 2 e 7 horas) ser superior à dos outros motoristas (não mais que 2 horas), como parece resultar da cláusula 26.º, n.º 5 do AE[18] – cabe lembrar que numa acção em que se não invocam quaisquer factos que possam inserir-se na categoria dos factores de discriminação referidos nos artigos 24.º e 25.º do Código do Trabalho de 2009, não funciona a presunção constante do n.º 5 deste último preceito e compete a quem alega a discriminação, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, alegar e provar factos que, referindo-se à natureza, qualidade e quantidade de trabalho prestado por trabalhadores da mesma empresa, permitam concluir que a igual retribuição de períodos de trabalho semanal diferentes (de 38 horas, num caso, e de 40, no outro) viola o princípio da igualdade.
No caso vertente, a R. recorrente não logrou demonstrar que a consideração como tempo de trabalho do referenciado tempo de deslocação entre etapas relativamente a todos os seus motoristas implicasse um tratamento discriminatório ou «desigual», em violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, totalmente, o recurso da R.
*
5.3. Do recurso da A.
5.3.1. A primeira questão suscitada no recurso da A. consiste em saber se é lícito à R. elaborar e alterar os horários praticados pelos trabalhadores “escalados” sem dar conhecimento da alteração com a antecedência mínima de 7 dias (ou seja, se deve aplicar-se o artigo 217.º, n.º 2 do Código do Trabalho à comunicação dos horários a este pessoal).
Na sua petição inicial, a A. invocou em fundamento do pedido adrede formulado que a R. mantém um grupo de motoristas “escalados” sem horário pré-definido que, por regra, são utilizados para fazer face às faltas dos outros motoristas e ficam sujeitos a todo e qualquer horário de trabalho, e que estes motoristas só têm conhecimento dos horários a realizar com a antecedência de 2 dias e não com a antecedência mínima de 7 dias, nem nos termos do artigo 217.º, n.º 2, nem do artigo 221.º, n.º 5, ambos do Código do Trabalho.
A sentença recorrida, a este propósito, discorreu nos seguintes termos:
“Efectivamente, ficou provado que as ausências dos motoristas ao trabalho, são, por via de regra, inesperadas e chegam ao conhecimento da ré com pouca antecedência, e daí que a ré não consiga prever todas as ausências que vão ocorrer e não tenha, no que aos motoristas escalados diz respeito, possibilidade de disponibilizar sempre as escalas com os horários a praticar por aqueles com uma antecedência superior a 48 horas – pontos 23 e 24 da matéria de facto.
E que, por regra, os motoristas “escalados” só têm conhecimento dos horários a realizar com antecedência de dois dias, horários esses que por vezes têm mais de duas horas de intervalo – ponto 4 da matéria de facto.
As «escalas» são, todavia, e como resulta dos factos provados, um dos horários em vigor na ré. É da essência desse tipo de horário, que vá variando ao longo do tempo, e não que os períodos em que deva ser prestado trabalho e, no reverso, os períodos de descanso, permaneçam fixos.
Daí que concordemos que não tem aqui – à situação em apreço - aplicação «directa» o regime previsto no art. 217.º do CT, que tem por epígrafe Alteração do horário de trabalho, e que, como logo resulta dos seus n.ºs 1 e 2, dispõe sobre as regras a observar em caso de alteração de horário de trabalho, tenham ou não sido individualmente acordados (embora, naturalmente, tenham um tratamento legal diferenciado).
Na situação em análise, e salvo melhor opinião, não está em causa uma alteração do horário de trabalho ou, pelo menos, não se tratará de uma alteração do horário de trabalho relevante para efeitos de enquadramento na previsão legal, taxativa, do artigo em questão: o horário de trabalho atribuído mantém-se.
E seria um tanto absurdo, parece-nos, que a cada nova escala (e uma alteração a uma escala já comunicada/afixada traduz-se numa nova escala) tivesse a entidade empregadora de (no caso, para além de diligenciar pela anuência do trabalhador) ouvir a comissão de trabalhadores, a comissão sindical ou intersindical ou os delegados sindicais, aliás, afigurando-se, diga-se em abono da verdade, que também o autor o não defende.
Pugna sim o autor, ao menos expressamente, para que seja dado conhecimento das escalas (dito de outro modo, do horário de trabalho que vai sendo concretizado através das escalas efectuadas) aos trabalhadores com, pelo menos, sete dias de antecedência.
Sucede que quanto a este ponto já se nos afigura mais curial (e mesmo que, como se disse, não se aplique «directamente») que se traga à colação o mencionado art. 217.º do CT, que no seu n.º 2 prevê (ainda) que as alterações dos horários devem “ser afixadas na empresa com a antecedência de sete dias”.
Com efeito, não esquecendo que existência de o horário de trabalho é desde logo essencial para que os trabalhadores possam organizar a sua vida, as suas “horas” para a família, para o lazer, etc., mal se compreende – e ainda que se tenha em consideração o que a ré alegou e se encontra assente sob os pontos 23 e 24 da matéria de facto (mas relativamente ao que, note-se, o autor é terceiro) – que não haja uma antecedência razoável, mínima, para que aos trabalhadores seja comunicada a nova escala a que ficam sujeitos (e nova como sucessão normal de escala, ou nova como alteração de escala já comunicada e ainda não cumprida, que em termos substantivos e para o que aqui interessa, é a mesma coisa).
Como assinala António Meneses Cordeiro, o horário de trabalho tem “características básicas de previsibilidade, estabilidade e segurança” – cf. António Meneses Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, pág. 699.
Mesmo admitindo-se que sendo ínsito ao regime de escalas a organização de horários de trabalho individualizados, destinados a assegurar a prestação de trabalho por períodos não regulares (no que respeita às horas de entrada e de saída e até à duração diária e semanal) não pode pura e simplesmente descurar-se aqueles princípios, postergando-os sem mais - há-de, dentro da irregularidade própria do horário, procurar-se a estabilidade possível -, sendo certo, aliás, que tendo em vista tal desiderato existem Convenções Colectivas de Trabalho que, prevendo o trabalho por escalas, estipulam igualmente uma antecedência mínima para ser dado conhecimento das mesmas aos trabalhadores.
Porém, se é já suficiente o prazo de 48 horas de antecedência na comunicação das novas escalas para que se mostrem respeitados aqueles princípios ou se, pelo contrário, é insuficiente para que se tenha por respeitado aquele mínimo de “previsibilidade” do horário de trabalho (sublinhe-se que estamos a falar do horário normal de trabalho, e não de trabalho extraordinário), é questão que não tem, afigura-se, uma resposta óbvia.
Um conhecimento prévio de apenas 48 horas não é seguramente um prazo confortável para qualquer trabalhador organizar a sua vida. Mas também não surpreendemos aqui a flagrante falta de razoabilidade que não poderíamos deixar de constatar se estivéssemos a falar de uma antecedência de meia dúzia de horas.
Apesar de entendermos não ter aqui aplicação directa o art. 217.º do CT, como supra se referiu, não é de desconsiderar que é imanente ao n.º 2 desse artigo que o mínimo de antecedência que o legislador congemina como admissível – embora prevendo-o, restritivamente, para o caso da microempresa – é de três dias, mas que o legislador fixou como admissível, como se disse, para o caso de “alteração de horário de trabalho” em que, sem contar, um trabalhador pode ver alterada da noite para o dia – e ás vezes ao fim de longos anos a praticar o mesmo «horário fixo» - toda a organização não só do seu tempo de trabalho como, reflexamente, de todo o seu tempo, para o descanso, para o lazer, para o acompanhamento dos seus familiares, etc. etc.
Num caso como o aqui em análise, em que o horário – por escalas – permanece, e o trabalhador, apesar de tudo, já sabe que é ínsito à natureza do horário de trabalho a sucessão de ajustamentos das horas de entrada e das horas de saída ainda como, naturalmente, dos próprios intervalos, certamente que não é tão premente a necessidade de acautelar um tempo prévio mínimo “tão dilatado” para o trabalhador poder, senão mudar de vida, mudar de hábitos.
Muitos juízos de razoabilidade e equidade poderão ser feitos mas, com o devido respeito por diverso entendimento, afigura-se que pelo menos tal limite mínimo de estabilidade não é ultrapassado, e à falta de outros elementos úteis que aqui caiba considerar, é a tal juízo que aderimos.
Assim, afigura-se que a prática em questão, seguida pela ré, cabendo naturalmente nos seus poderes de direcção/gestão, não é ilegal.»
No recurso interposto, a A. defende que deve ter aqui aplicação directa o artigo 217.º, n.º 2 do Código do Trabalho, não sendo admissível a comunicação aos motoristas dos horários a cumprir com 2 dias de antecedência.
E sustenta, também, que esta prática da R. de há décadas (no sentido de não disponibilizar sempre as escalas com os horários a praticar pelos “escalados” com uma antecedência superior a 48 horas – factos 24. a 26.) não é “seguida” pelos motoristas, mas “imposta” aos mesmos.
Quanto a esta segunda vertente da alegação, tendo em consideração o já dito quanto a idêntico facto que se apurou no que concerne à não contabilização dos tempos de deslocação como tempo de trabalho, vg. no que diz respeito ao facto de os trabalhadores seguirem uma determinada prática – o que, no fundo, significa que continuaram a prestar o seu trabalho naquele condicionalismo em concreto e, não, que ao mesmo anuíram –, não tem o referido facto qualquer relevância no sentido de se dever reputar a prática da R. como legal ou ilegal.
Quanto ao mais, cabe ter presente a previsão do preceito que a recorrente considera violado, o artigo 217.º do Código do Trabalho que dispõe:
«Artigo 217.º
Alteração de horário de trabalho
1 - À alteração de horário de trabalho é aplicável o disposto sobre a sua elaboração, com as especificidades constantes dos números seguintes.
2 - A alteração de horário de trabalho deve ser precedida de consulta aos trabalhadores envolvidos e à comissão de trabalhadores ou, na sua falta, à comissão sindical ou intersindical ou aos delegados sindicais, bem como, ainda que vigore o regime de adaptabilidade, ser afixada na empresa com antecedência de sete dias relativamente ao início da sua aplicação, ou três dias em caso de microempresa.
(…)»
Este preceito, como resulta claramente do seu teor, reporta-se às situações em que um trabalhador tem um determinado horário de trabalho que conforma os seus tempos de disponibilidade e o empregador entende alterar esse status quo, modificando os tempos da prestação. O empregador pode nesse contexto alterar unilateralmente o horário de trabalho, salvo se este tiver resultado de acordo expresso, em sede do contrato individual de trabalho, mas em tal alteração deve respeitar os seguintes requisitos: a) consulta prévia dos trabalhadores afectados pela alteração; b) consulta prévia da comissão de trabalhadores ou, na falta desta, da comissão sindical ou intersindical ou dos delegados sindicais; c) elaboração de um novo mapa de horário de trabalho, contendo a alteração efectuada; d) afixação desse novo mapa em todos os locais de trabalho, em lugar bem visível, com a antecedência de sete dias, em relação à sua entrada em vigor (n.º 2 do artigo 217.º).
No caso sub judice, resulta da matéria de facto provada (factos 6., 7., 12. e 18. a 20.) que a R. tem dois tipos de motoristas:
- os “encaixados”, a que os motoristas acedem através e concurso, concorrendo livremente ao serviço que pretendem e que se enquadram:
● nos serviços “normais” que podem ser: i) seguidos, sem interrupção do período de trabalho diário, ou com interrupção do período de trabalho diário que pode ir no máximo até uma hora; e ii) em duas etapas, com interrupção do período de trabalho diário entre 1 e 2 horas;
● nos serviços “fora de regras”, que efectuam serviços realizados em duas etapas, uma de manhã e outra à tarde, visando reforçar a oferta de serviço de transporte por parte da R. nos períodos de ponta, ou seja nos períodos em que há mais procura de transporte público por parte dos seus utentes; o período de trabalho diário dos serviços fora de regras, é interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas.
- os “escalados”.
Resulta ainda da matéria de facto (factos 8., 9. e 22.) que os motoristas “escalados” não estão encaixados em nenhum daqueles serviços e prestam qualquer tipo de serviço que seja necessário assegurar em virtude de ausências dos motoristas “encaixados”. Ou seja, são aqueles que efectuam serviços na Ré, em substituição de outros motoristas “encaixados” em serviços normais, (diurnos, nocturnos ou madrugadas) ou em serviços fora de regras, quando se verifica a ausência destes trabalhadores. Por norma, os motoristas “escalados” são os que têm menor antiguidade na empresa e que não reúnem condições para concorrer aos concursos de encaixes que são lançados normalmente 2 vezes por ano pela C….
Precisados assim os contornos dos vínculos contratuais que os motoristas “escalados”, executam, desde logo se verifica que é da essência da sua actividade a prática de horários de trabalho que podem variar com frequência, como sucede com o trabalho por turnos (cfr. o artigo 220.º do Código do Trabalho[19]).
Ou seja, de cada vez que lhes são dados a conhecer os serviços a efectuar, deparam-se com horários diversos, que podem revestir quaisquer das características previstas para os motoristas “encaixados” nos serviços “normais” ou “fora das regras”. É este o seu status quo em termos de organização do tempo de trabalho, não configurando cada comunicação dos serviços a efectuar (que podem ter contornos de início e termo da prestação, bem como de intervalos de descanso, diversos) uma alteração daquele mesmo status quo, a exigir que o empregador lance mão do complexo procedimento previsto no n.º 2 do artigo 217.º do Código do Trabalho.
Tal não significa que não deva o empregador concretizar a comunicação das escalas de serviço com a maior antecedência possível face às contingências da sua empresa e às ausências com que se depara dos motoristas “encaixados”, pois que a delimitação temporal do tempo de trabalho tem evidentes implicações sobre o modo como o trabalhador organiza a sua vida pessoal, sendo aqui de salientar as características básicas de “previsibilidade, estabilidade e segurança” doutrinariamente associadas ao horário de trabalho[20].
Sendo mesmo possível hipotisar que o empregador, cuja actuação está submetida às regras gerais que regulam o poder de direcção (artigo 97.º), possa incorrer em abuso do direito nos termos do artigo 334.º do Código Civil em situações de comunicação das escalas injustificadamente próximas da sua efectivação. Embora tal caracterização da conduta do empregador só possa ser feita caso a caso, cremos que a factualidade apurada não permite a afirmação, em termos gerais, de uma conduta abusiva da R, pois que se provou – sem impugnação das partes – que as ausências dos motoristas ao trabalho, são, por via de regra, inesperadas e chegam ao conhecimento da Ré com pouca antecedência, daí que a Ré não consiga prever todas as ausências que vão ocorrer e não tenha, no que aos motoristas “escalados” diz respeito, possibilidade de disponibilizar sempre as escalas com os horários a praticar por aqueles com uma antecedência superior a 48 horas, sendo que os restantes motoristas, de entre os quais os “encaixados” em regime de “fora de regras”, têm conhecimento dos serviços que vão realizar, durante a semana, com uma antecedência superior a 7 dias (factos 23. a 25.)
O que não pode é afirmar-se que consubstancia uma prática ilegal por violadora do artigo 217.º, n.º 2 do Código do Trabalho o facto de, por regra, os motoristas “escalados” só terem conhecimento dos horários a realizar com antecedência de dois dias (facto 4.), ao invés do que sucede com os restantes motoristas, que têm conhecimento dos serviços que vão realizar, durante a semana, com uma antecedência superior a 7 dias (facto 25.).
No que diz respeito à também invocada violação do artigo 221.º, n.º 5, do Código do Trabalho – nos termos do qual os turnos no regime de laboração contínua e os de “trabalhadores que asseguram serviços que não podem ser interrompidos, nomeadamente nas situações a que se referem as alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo 207.º, devem ser organizados de modo que os trabalhadores de cada turno gozem, pelo menos, um dia de descanso em cada período de sete dias, sem prejuízo do período excedente de descanso a que tenham direito” – a prova de que a Ré assegura a todos os seus trabalhadores, incluindo os motoristas, um descanso no máximo de sete em sete dias (facto 27.), impede que se afirme tal violação.
Improcede, nesta parte, o recurso da A.
*
5.3.2. Resta, finalmente, a questão de saber se é necessária a concordância escrita dos trabalhadores “escalados” para que tenha duração superior a 2 horas o intervalo de descanso entre as duas etapas diárias de trabalho que lhes caiba realizar.
Invoca a A. recorrente que o tribunal não considerou o consagrado no n.° 3 do art.º 213 do Código do Trabalho e que o n.º 2 do artigo 213.º prevê expressamente, que por Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho o intervalo de descanso previsto no n.º 1 possa ter duração superior, mas é seu entendimento que a entidade patronal está obrigada a comunicar através de requerimento tal situação ao ministério responsável pela área laboral com declaração escrita de concordância do trabalhador.
A sentença recorrida, quanto a esta matéria que contende com a imposição de serviços com mais de duas horas de intervalos entre etapas sem consentimento escrito dos trabalhadores, invocou o disposto na cláusula 26.ª, n.º 5, do AE, nos termos da qual “para os trabalhadores do movimento, a fim de recorrer às necessidades dos períodos de ponta, poderá o período de trabalho diário ser interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas”, não se condicionando aí a atribuição desse horário – em que figura um intervalo compreendido no período mencionado - à obtenção de acordo, muito menos escrito, por parte dos trabalhadores. E, considerando também que não se vislumbra – posto que sequer foi alegado algo de especifico que a tal propósito tenha sido acordado entre os trabalhadores e a ré, v.g. que aquando da contratação tenha sido acordado um determinado horário – que as regras gerais imponham qualquer limitação desse tipo, pois que o art. 213.º, n.º2 do Código do Trabalho prevê, expressamente, que por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho o intervalo de descanso previsto no seu n.º 1 possa ter duração superior, veio a julgar improcedente a pretensão formulada pelo A. de declarar ilegal a actuação da R. na imposição de serviços com mais de 2 horas de intervalo entre etapas sem o consentimento escrito do trabalhador.
Sufragamos este raciocínio.
Com efeito, o artigo 213.º do Código do Trabalho, na redacção em vigor à data da propositura da acção[21] dispunha que:
«Artigo 213.º
Intervalo de descanso
1 - O período de trabalho diário deve ser interrompido por um intervalo de descanso, de duração não inferior a uma hora nem superior a duas, de modo que o trabalhador não preste mais de cinco horas de trabalho consecutivo.
2 - Por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, pode ser permitida a prestação de trabalho até seis horas consecutivas e o intervalo de descanso pode ser reduzido, excluído ou ter duração superior à prevista no número anterior, bem como pode ser determinada a existência de outros intervalos de descanso.
3 - Compete ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral, mediante requerimento do empregador, instruído com declaração escrita de concordância do trabalhador abrangido e informação à comissão de trabalhadores da empresa e ao sindicato representativo do trabalhador em causa, autorizar a redução ou exclusão de intervalo de descanso, quando tal se mostre favorável ao interesse do trabalhador ou se justifique pelas condições particulares de trabalho de certas actividades.
(…)»
Decorre deste preceito (n.º 2) que a regulamentação colectiva tem uma larga margem de actuação no que diz respeito à redução, exclusão ou aumento da duração do intervalo de descanso, nada justificando que, admitida essa possibilidade pelo instrumento de regulamentação colectiva – como sucede com a cláusula 26.ª, n.º 5 do AE que a ora recorrida aplica na sua empresa e que admite para os trabalhadores do movimento, a fim de recorrer às necessidades dos períodos de ponta, que o período de trabalho diário possa “ser interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas”, – se exija, sem previsão expressa, a concordância escrita do trabalhador.
E resulta também com clareza do mesmo artigo 213.º que a observância dos requisitos formais e substanciais enunciados no seu n.º 3 (requerimento do empregador, declaração escrita de concordância do trabalhador, informação à comissão de trabalhadores da empresa e ao sindicato representativo do trabalhador em causa, autorização da ACT, favorabilidade aos interesse do trabalhador ou justificação pelas condições particulares de trabalho da actividade do empregador) apenas é exigida quando o empregador pretenda a redução ou exclusão de intervalo de descanso. A contrario sensu, não deverá exigir-se a verificação daqueles requisitos, em que inclui a concordância escrita do trabalhador, nas situações em que está em causa o aumento do intervalo de descanso, maxime quando tal aumento se mostra expressamente previsto no instrumento de regulamentação colectiva que a empregadora aplica na sua empresa.
Deve dizer-se que, apesar de a recorrente afirmar conclusivamente que é seu entendimento que o empregador está obrigado a comunicar através de requerimento ao ministério responsável pela área laboral que o intervalo de descanso tenha uma duração superior, com declaração escrita de concordância do trabalhador, a mesma não justifica este seu entendimento, o que impede se afira da bondade das razões que o sustentam.
Finalmente, não pode deixar de se ter presente que a recorrente suscita esta questão da necessidade da concordância escrita, pelos seus associados, da prestação de serviços que imponha um intervalo de descanso com uma duração superior a 2 horas entre duas etapas de trabalho diárias relativamente aos trabalhadores “escalados” (artigos 23.º a 31.º da petição inicial). E, como resulta da factualidade apurada, estes motoristas “escalados” são aqueles que efectuam serviços na Ré, em substituição de outros motoristas, ausentes da prestação de serviços, encaixados em serviços “normais” (diurnos, nocturnos ou madrugadas) ou em serviços “fora de regras”, podendo prestar qualquer tipo de serviço que seja necessário assegurar em virtude de ausências dos motoristas “encaixados” (facto 22.), pelo que, naturalmente, deveriam contar com a possibilidade de serem escalados para um serviço em que período de trabalho diário é interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas (facto 6.).
Assim (e sem prejuízo, também aqui, de se poderem hipotisar situações de abuso do direito), cremos que não pode afirmar-se em termos gerais a obrigação da R. recorrida de obter a prévia concordância escrita dos trabalhadores “escalados” para que o intervalo de descanso entre as duas etapas de trabalho tenha duração superior a 2 horas
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5.4. Ambas as partes ficaram vencidas nos recursos que interpuseram, pelo que sobre as mesmas recaem totalmente as custas de cada um dos recursos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013). Atender-se á contudo, quanto à A. recorrente, à isenção de que a mesma beneficia nos termos da alínea f), do n.º 1 do art. 4º do Regulamento de Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.° 34/2008, de 26 de Fevereiro, sem prejuízo do disposto no n.º 7 do mesmo preceito.
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6. Decisão
Em face do exposto, decide-se negar provimento aos recursos interpostos pela R. e pela A. e confirmar integralmente a douta sentença recorrida.
Sem custas o recurso interposto pela A., atenta a isenção de que a mesma beneficia, sem prejuízo, no entanto, do que houver a pagar nos termos dos nº 7 (reembolsos a título de custas de parte) do citado preceito, este na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13.02 (cfr. art. 8º, nº 12, da citada Lei 7/2912).
Custas do recurso interposto pela R. a cargo da mesma.

Porto, 21 de Outubro de 2013
Maria José Costa Pinto
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
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[1] Em face do disposto nos artigos 5.º e 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil, é o mesmo aplicável aos processos pendentes nos actos que se desenrolem a partir de 1 de Setembro de 2013. Temos contudo em vista, nesta análise dos actos que se praticaram à luz do anterior Código de Processo Civil, a redacção constante da republicação em anexo ao DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas: DL 180/96, de 25-9; DL 125/98, de 12-5; L 59/98, de 25-8; DL 269/98, de 1-9; DL 315/98, de 20-10; L 3/99, de 13-1; DL 375-A/99, de 20-9; DL 183/2000, de 10-8; L 30-D/2000, de 20-12; DL 272/2001, de 13-10; DL 323/2001, de 17-12; L 13/2000, de19-2; DL 38/2003, de 8-3; DL 199/2003, de 10-9; DL 324/2003, de 27-12; DL 53/2004, de 18-3; L 6/2006, de 27-2; DL 76-A/2006, de 29-3; L 14/2006, de 26-4; L 53-A/2006, de 29-12; DL 8/2007, de 17-1; DL 303/2007, de 24-8; DL 34/2008, de 26-2; DL 116/2008, de 4-7; L 52/2008, de 28-8; L 61/2008, de 31-10; DL 226/2008, de 20-11; L 29/2009, de 29-6; DL 35/2010, de 15-4; L 43/2010, de 3-9; L 52/2011, de 13-4; L 63/2011, de 14-12; L 31/2012, de 14-8; L 60/2012, de 9/11 e L 23/2013, de 5/3.
[2] Vide Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra, 2010, pp. 158-159. E, também, o Ac. do STJ 2012.02.09 (Processo n.º 1858/06.5TBMFR.L1.S1, in www.dgsi.pt).
[3] Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2002.12.04, Revista n.º 3494/02, e de 2003.12.11, Recurso n.º 632/03 - 4.ª Secção, sumariados in www.stj.pt. Vide ainda Bernardo Lobo Xavier, “A sobrevigência das convenções colectivas de trabalho”, in A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra, 2004, p. 595, ligando os usos laborais à contratação colectiva (artigo 56.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa), que seria base de legitimação constitucional desses mesmos usos, e defendendo que poderá e deverá ser dada eficácia geral a uma convenção colectiva de trabalho quando relativamente a ela se estabelecer uma prática geral, pacífica e uniforme na empresa (ou no sector) de aplicar o clausulado respectivo.
[4] In Código do Trabalho Anotado, sob a coordenação de Pedro Romano Martinez e outros, 8.ª edição, Coimbra, 2009, p. 506.
[5] Entre outros, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2008.02.13, Recurso n.º 4220/07 - 4.ª Secção, e de 2007.09.12, Recurso n.º 1519/07 - 4.ª Secção, ambos sumariados in www.stj.pt.
[6] In Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, p. 307.
[7] Vide sobre os elementos de interpretação da lei, Pires de Lima e Antunes Varela, in Noções Fundamentais de Direito Civil, I Volume, 6.ª edição revista e ampliada, Coimbra, 1973, pp. 158 e ss.
[8] In “Teoria Geral do Direito Civil”, p.33.
[9] Vide Maria do Rosário Palma Ramalho, “Direito do Trabalho, Dogmática Geral”, parte I, Almedina 2005, p. 220.
[10] Vide M. R. Palma Ramalho, ob. cit., p. 221.
[11] Vide Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, 11.ª edição, pp. 108 e ss.
[12] In ob. cit., p. 223. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, II vol, 2.ª edição revista e actualizada, p. 579, em anotação ao art. 1128.º, que atribui relevância aos usos, “Os usos não podem contrariar as disposições imperativas da lei e só se aplicam subsidiariamente na falta de convenção”.
[13] In Novos Estudos de Direito do Trabalho, Coimbra, 2010, p. 79. Vide no sentido de que a partir do momento em que a prática ali em análise se consolidou e passou a constituir um uso laboral relevante como fonte de direito do trabalho, o objecto deste uso passou a incorporar directa e imediatamente os contratos de trabalho dos trabalhadores ao serviço do empregador, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Julho de 2007, Revista n.º 2264/04, 4ª Secção, in www.dgsi.pt.
[14] Vide o já citado Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Julho de 2007.
[15] Vide Júlio Gomes, in “Novos Estudos…”, cit., pp. 31-42.
[16] In ob. cit., p. 48.
[17] Vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2013.07.01, Processo: 1464/11.2TTPRT.P1, in www.dgsi.pt.
[18] Segundo a qual, recorde-se, “[p]ara os trabalhadores do movimento, a fim de acorrer às necessidades dos períodos de ponta, poderá o período de trabalho diário ser interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas; porém, nestes casos, a duração do trabalho corresponderá a uma média mensal máxima de 38 horas.” De acordo com a sentença, o segmento referente à duração do trabalho destes trabalhadores (38 horas) está interligado com o anterior, através da referência a “nestes casos”, os quais respeitam a um intervalo superior a duas horas.
[19] Segundo o n.º 1 deste preceito, “[c]onsidera-se trabalho por turnos qualquer organização do trabalho em equipa em que os trabalhadores ocupam sucessivamente os mesmos postos de trabalho, a um determinado ritmo, incluindo o rotativo, contínuo ou descontínuo, podendo executar o trabalho a horas diferentes num dado período de dias ou semanas”.
[20] Vide António Meneses Cordeiro, in Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, p. 699.
[21] A norma foi alterada pela Lei n.º 23/2012, de 25 de Junho, mas em parte que irreleva para a apreciação do caso sub judice.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, lavra-se o sumário do antecedente acórdão nos seguintes termos:
I – À face do artigo 197.º do Código do Trabalho, é de considerar que o tempo dispendido pelo motorista que, finda a sua primeira etapa diária de trabalho, necessita de se deslocar para empreender o início da segunda etapa de trabalho, se qualifica como tempo de trabalho, ainda que a interrupção do período de trabalho diário possa alcançar as 7 horas.
II - Nesse período de dispêndio necessário de tempo para retomar e realizar o trabalho já nesse dia iniciado, é patente a adstrição que aí se verifica do trabalhador à realização da prestação que interrompeu e que, por ordem do empregador, deve nesse dia retomar num outro local e umas horas mais tarde, necessitando, para o efeito, de para ali se deslocar.
III - Na interpretação das convenções colectivas deve aplicar-se o disposto nos arts. 236.º e ss. do Código Civil quanto à parte obrigacional, e o preceituado no artigo 9.º do Código Civil, no respeitante à parte regulativa, uma vez que os seus comandos jurídicos são gerais e abstractos e produzem efeitos em relação a terceiros.
IV - Os usos não podem afastar normas legais absolutamente imperativas, nem, tão pouco, se podem afastar de normas legais supletivas ou estabelecidas em instrumento de regulamentação colectiva, a não ser que num sentido mais favorável para os trabalhadores.
V – Se os vínculos contratuais que os motoristas denominados “escalados” executam denotam que é da essência da sua actividade a prática de horários de trabalho que podem variar com frequência – pois prestam o serviço que seja necessário assegurar em virtude da ausências dos motoristas denominados “encaixados” em serviços normais ou em serviços “fora de regras”, quando se verifica a ausência destes trabalhadores –, se é este o seu status quo em termos de organização do tempo de trabalho, cada comunicação que lhes é feita dos serviços a efectuar (que podem ter contornos de início e termo da prestação, bem como de intervalos de descanso, diversos) não configura uma alteração daquele mesmo status quo, a exigir que o empregador lance mão do complexo procedimento previsto no n.º 2 do artigo 217.º do Código do Trabalho para a alteração do horário de trabalho.