Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0345562
Nº Convencional: JTRP00037690
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
ACTO MÉDICO
Nº do Documento: RP200502160345562
Data do Acordão: 02/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Se o agente, depois de se intitular médico, tendo mesmo colocado uma placa com a palavra "Médico" na porta do seu gabinete, vai ver um doente a casa, a pedido de um familiar deste, lhe mede a tensão arterial e lhe ministra uma medicação que trazia consigo, pratica acto próprio da profissão de médico e, não sendo médico, comete o crime de usurpação de funções do artigo 358, n.1 alínea b) do Código Penal de 1995.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I

1. No processo comum n.º .../01.6TDPRT do 2.º juízo criminal do Porto, após julgamento, perante tribunal singular, por sentença de 3 de Julho de 2003, foi decidido, no que ora releva, condenar o arguido B.........., pela prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º, alínea b), do Código Penal, na pena de 8 meses de prisão, cuja execução foi suspensa, pelo período de 2 anos.
2. Inconformado, o arguido veio interpor recurso da sentença condenatória, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«i) a sentença condenatória recorrida é corolário de um processo de formação da decisão que prescindiu materialmente do contraditório, como evidenciado pela cisão do depoimento de todas as testemunhas indicadas na fundamentação, referenciando as respostas à instância da acusação e omitindo as respostas à instância da defesa;
«ii) o tribunal não explicou este singular processo de formação da convicção cujo viola todas as regras da experiência;
«iii) a decisão recorrida viola o regime do artigo 127.º do CPP.
«iv) A sentença recorrida omite na fundamentação a enumeração dos factos não provados da acusação e da defesa, percebendo-se do texto da decisão que outros factos terão sido considerados pelo tribunal, embora qualificados como “sem relevância” para a decisão;
«v) A deficiência da fundamentação preclude (a) a inteligência dos factos considerados e não considerados pelo Tribunal, (b) a possibilidade de reconstituição do processo de formação da decisão, e, consequentemente, (c) o próprio direito de recurso;
«vi) A deficiência da fundamentação constitui nulidade da sentença, por violação do dever legal de fundamentação, consagrado no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, interpretado com sentido e alcance conformes à Constituição;
«vii) O Tribunal julgou erradamente, pelo menos, os pontos 1, 3, 5 a 7 e 12 da matéria de facto, que deveria ter declarado não provados e ou esclarecido e contextualizado;
«viii) Como inconsiderou a matéria de facto articulada de 5 a 11 da contestação do arguido, orientada toda para o esclarecimento das relações de natureza pessoal e patrimonial estabelecidas entre o arguido e as testemunhas de acusação, incompatíveis com a formação de convicção de qualidade que o arguido não possuía ou com arrogo de qualidade ou identidade que nunca usurpou;
«ix) Impõem alteração da matéria de facto as declarações das testemunhas (a) C.........., registado nas cassetes 3, lado A, contador 005 a 4, lado B, contador 0704, da audiência de 21 de Maio de 2003, (b) D.........., registado na cassete 1, lado A, contador 000 a lado B, contador 1650, da audiência de 27 de Maio de 2003, e (c) E.........., registado nas cassetes 1, lado B, contador 735 a 2, lado B, contador 1650, da audiência de 27 de Maio de 2003, as quais permitem surpreender quer a natureza eminentemente pessoal das relações estabelecidas entre o arguido e a testemunha C.........., quer os desenvolvimentos de natureza patrimonial vividos no quadro desse relacionamento;
«x) As declarações das mesmas testemunhas, complementadas com o teor das prestadas pelo próprio arguido, registado na cassete 1, lado A, contador 005 a lado B, contador 1259, da audiência de 21 de Maio de 2003, e pela testemunha F.........., registado nas cassetes 1, lado B, contador 1260 a 2, lado A, contador 0873, da audiência de 21 de Maio de 2003, permitem esclarecer que onde o Tribunal declarou “usurpação de funções” se verificou apenas um “jogo de sedução” entre B.......... e C.........., com o arguido a ser aceite no ambiente familiar, não por ser médico, mas por ser o primeiro namorado de uma deficiente motora com 37 anos de idade;
«xi) Finalmente, as declarações das testemunhas indicadas na fundamentação, permitem esclarecer que toda a medicação ministrada às vítimas foi obtida mediante receitas médicas passadas por clínicos habilitados, o que, sempre, retiraria a carga de ilicitude (mal) associada à conduta do arguido;
«xii) pelo que deve ser alterada a matéria de facto e julgados inverificados os elementos típicos do crime;
«Sem prescindir,
«xiii) Atentos os factos provados, considerada a qualidade das testemunhas e as circunstâncias em que se movimentaram, não decorre dos autos que o arguido tenha falsificado aparência ou forjado identidade profissional ou que tenha actuado como verdadeiro profissional, por forma susceptível de induzir em erro as testemunhas;
«xiv) Como não decorre que a conduta do arguido tenha possuído idoneidade para violar a integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público, como exigido por lei;
«xv) Pelo que a sentença recorrida viola o regime do artigo 358.º, alínea b), do CP.
«xvi) Impondo-se, por todas e por cada uma das conclusões enunciadas, a revogação da sentença condenatória, como é de JUSTIÇA!»
3. Admitido o recurso e efectuadas as legais notificações, apresentou resposta o Ministério Público no sentido de lhe ser negado provimento.
4. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, aderindo inteiramente àquela resposta e sem nada lhe aditar, foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP], não foi apresentada resposta.
6. A relatora, em vista da amplitude do objecto do recurso, abrangendo a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, determinou a devolução dos autos à 1.ª instância, a fim de serem instruídos com a transcrição integral da prova produzida em audiência, nos termos do artigo 101.º do CPP. Satisfeito, do mesmo foi dado conhecimento aos sujeitos processuais.
7. Efectuado exame preliminar, e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.

II

Cumpre decidir.
1. No caso, não tendo havido renúncia ao recurso em matéria de facto, este tribunal conhece de facto e de direito (artigo 428.º, n. os 1 e 2, do CPP).
São, porém, as conclusões extraídas pelos recorrentes da respectiva motivação que definem e delimitam o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, e 403.º do CPP).
De acordo com a identificação das questões que coloca à apreciação deste tribunal, a que o recorrente B.......... expressamente procedeu, na motivação, e a que as conclusões que formulou conferem conteúdo, as questões que constituem o objecto do recurso consistem em saber:
- se a sentença enferma de nulidade por violação da obrigação de enumeração dos factos não provados;
- se a matéria de facto relativa ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo do tipo de ilícito deve ser alterada;
- se o recorrente deve ser absolvido por a sentença violar o regime do artigo 358.º, alínea b), do Código Penal.
2. Vejamos, antes de mais, o que consta da sentença e releva na perspectiva das questões postas no recurso.
2.1. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos:
«1.- O arguido conheceu C.........., através da Internet, e nos contactos que manteve com ela, por essa via, sempre se intitulou como médico da especialidade de pedopsiquiatria forense.
«2.- O arguido arrogou-se a prestação de serviços no Tribunal e no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto.
«3.- Em fins de Outubro, princípios de Novembro de 2000, o pai da mencionada C.......... sentiu-se mal, tendo esta comentado tal situação com o arguido, o qual se prontificou a ir vê-lo a casa da mesma.
«4.- Na dita residência, o arguido mediu a tensão arterial ao pai da C...........
«5.- Na sequência de tal medição, o arguido ministrou ao pai da C.......... uma medicação que ele próprio trazia, com o objectivo de lhe fazer baixar a tensão arterial, cujos valores eram superiores aos normais.
«6.- Nos dias seguintes, o arguido foi sugerindo outros medicamentos para serem ministrados ao pai da C.........., os quais lhe foram efectivamente ministrados.
«7.- O arguido nunca chegou a passar receitas, alegando que o não podia fazer por trabalhar em regime de exclusividade.
«8.- Em dia não concretamente apurado de Novembro de 2000, o pai da C.......... teve um acidente vascular cerebral, tendo sido transportado para um hospital e, posteriormente, para o Instituto Português de Oncologia.
«9.- O arguido visitou o pai da C.......... no hospital e no IPO, sempre se intitulando nesses locais como médico, nomeadamente perante outros médicos.
«10.- Atenta a situação que envolveu o seu pai, a C.......... começou a andar muito nervosa, tendo-lhe o arguido ministrado um medicamento, “Rivotril”, que aquela começou a tomar por pensar que o arguido era médico.
«11.- Bem sabia o arguido que a actividade supra descrita era própria dos médicos e que, para o seu exercício, a lei exigia determinados requisitos, designadamente a licenciatura em Medicina, que o arguido sabia não possuir.
«12.- A circunstância de o arguido se ter feito passar por médico foi determinante para a C.......... e o pai desta tomarem os medicamentos que aquele lhes ministrou.
«13.- O arguido agiu sempre com livre manifestação de vontade, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente ilícita.
«14.- Nada consta do CRC do arguido.
«15.- O arguido encontra-se preso, preventivamente, no EP de Guimarães.
«16.- O arguido, em liberdade, era empresário em nome individual, trabalhando como fotógrafo.
«17.- O arguido, em liberdade, vivia com os pais.
«18.- O arguido sofre de depressão, encontrando-se medicado; tem mantido comportamento adequado às normas estabelecidas no estabelecimento prisional; onde, aliás, fez alguns trabalhos de encadernação, com sentido de responsabilidade.
«19.- Recebe visitas e dispõe de uma retaguarda familiar de apoio.»
2.2. Consignou-se não se ter provado, «com relevância para a decisão:
«- que o arguido tenha ministrado à C.......... os seguintes medicamentos: “Attarax” e “Lorenin”.»
2.3. O processo de formação da convicção do tribunal mostra-se esclarecido, nos seguintes termos:
«A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, alicerçou-se nos seguintes elementos probatórios:
«- relativamente aos factos objectivos praticados pelo arguido, foram importantes, desde logo, as declarações da testemunha C.........., que esclareceu os mesmos, de forma objectiva, circunstanciada, com espontaneidade, o que conferiu credibilidade ao seu depoimento.
«Tal testemunha explicou o início e a evolução da sua relação com o arguido.
«Esclareceu a forma como o arguido se comportou, na primeira noite em que observou D..........: inquiriu-o sobre a sintomatologia; mandou-o olhar para vários sítios, levantar alternadamente os braços, caminhar, aludindo a “testes de paralelidade”; mediu-lhe as pulsações, tomando-lhe o pulso e, a seguir, medicou-o.
«Além disso, o arguido anotou um quadro, onde fez constar o resultado de medições de tensão arterial, pulsações, “arritmia” e medicação ministrada a D.......... e C...........
«A mesma depoente referiu que toda a conduta do arguido - nomeadamente a utilização de linguagem técnica, as anotações, a familiaridade demonstrada com os medicamentos, os exames efectuados e referidos supra - foi determinante para a sua convicção de que o mesmo era, de facto, médico.
«Tal convicção foi sendo, progressivamente, esboroada, começando a testemunha a sentir dúvidas sobre a verdadeira titularidade, pelo arguido, da qualidade de médico, quando ainda tomava o “Rivotril”, sob a sua orientação.
«O pai e a mãe de C.......... corroboraram a forma como os contactos com o arguido fortaleceram a convicção de que este era mesmo médico, tendo tal facto sido determinante para que aquele primeiro se sujeitasse às suas observações e medicação por ele indicada.
«Na verdade, embora D.......... não se sentisse muito confortável com a sistemática permanência do arguido em sua casa, seguiu as suas indicações terapêuticas, por estar convencido das habilitações e qualidade que o arguido se arrogava.
«De igual forma, a mãe de C.......... confiou em tal qualidade, tendo declarado que não notou muita diferença entre a actuação do arguido e a de outros médicos que conhece.
«O próprio arguido confirmou que se apresentou como pedopsiquiatra forense, através da Internet, tendo - segundo ele e, nessa parte não logrando credibilidade, por ter sido mais coerente o depoimento da própria C.......... - apenas esclarecido C.......... sobre a sua efectiva profissão e sobre a não detenção de qualquer título para o exercício da medicina, alguns dias depois de a ter conhecido pessoalmente, conhecimento que ocorreu quando foi pela primeira vez a casa dela, para ver o pai.
«Confirmou ainda que mediu a tensão arterial do pai da C.........., tendo assumido a autoria dos documentos de fls. 138 a 140, quanto à quase integralidade das anotações, resultantes de medições por si efectuadas, bem como o aconselhamento de medicação - que, porém, e no que concerne ao pai da C.........., negou ter trazido consigo, tendo antes seleccionado de entre os medicamentos já disponíveis na casa.
«De igual forma e em consonância com as declarações prestadas, foi importante a análise dos docs. de fls. 6, 8, 9, 138 a 140, 161 e 168.
«Por último, relevaram as declarações do próprio arguido, quanto à sua situação actual, conjugadas com o doc. de fls. 176.
«Quanto ao facto não provado, a convicção baseou-se na circunstância de não ter sido produzida prova positiva ao mesmo atinente.»
3. Passemos, agora, ao conhecimento das questões postas no recurso.
3.1. O seu tratamento será simplificado por uma prévia, mas necessariamente breve, análise, do tipo legal implicado.
O tradicionalmente chamado exercício ilegal de profissão - usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal -, consiste em o agente se arrogar uma identidade profissional que não possui, relativa a profissão para a qual a lei exige um título profissional, e exercer essa profissão ou praticar acto próprio dessa profissão [Para mais desenvolvimentos, cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, anotação ao artigo 358.º do Código Penal, p. 437 e ss].
Com a Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro [Que alterou o Código Penal], foi alargada a incriminação, de modo a que nela cabem não apenas o exercício de profissão [De uma actividade profissional com carácter de alguma regularidade e continuidade] mas mesmo a prática isolada de um só acto próprio [No sentido de exclusivo, privativo] da profissão titulada que o agente invoca ter.
O legislador não define o que seja acto próprio de uma profissão, cabendo ao intérprete o preenchimento do conceito em cada caso concreto na compreensão do bem jurídico titulado - integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em profissões de especial interesse público.
Concretamente, no que respeita à prática de acto médico, «analisando a evolução do preceito e o seu escopo, parece que o legislador apenas quis dizer que basta o início da actividade, estando consumado o engano. Isto é, para punir alguém que se fez passar por médico e actua em consequência, não se torna necessário que ele arranje clientela, que veja dois doentes ou duas vezes o mesmo. Basta que faça jus à placa “médico” que fez colocar no dintel da porta do seu gabinete, “vendo” alguém em primeira consulta: o crime está consumado. Afinal, o acto que se pratica não tem de ser materialmente mal praticado, nocivo - serve apenas para confirmar que o agente quis não só falsificar a sua aparência, como também actuar do modo a ela correspondente. Frustrando o sistema de provimento em determinadas profissões concebido pelo legislador. Enganando efectivamente alguém que procurava os serviços de um autêntico profissional, de um profissional titulado» [Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., p. 448].
3.2. Depois de invocar a nulidade da sentença e de impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente questiona a decisão, aparentemente no plano estrito da qualificação jurídica dos factos, por violação do disposto no artigo 358.º, alínea b), do Código Penal.
Ou seja, manifesta uma discordância com a qualificação jurídica dos factos que parece prescindir de qualquer alteração da matéria de facto fixada na sentença, quer por eliminação de factos que foram dados por provados quer por adição de factos que, não constando, embora, da decisão, teriam resultado da discussão da causa.
A ser assim, o breve excurso precedente mostra-se suficiente para afirmar a sem razão do recorrente.
De acordo com os factos provados, o recorrente, nos contactos que tivera com C.......... tinha invocado ser médico e, quando esta lhe deu conta que o pai se sentiu mal, prontificou-se a ir vê-lo a casa. Mediu a tensão arterial ao pai de C.......... e ministrou-lhe uma medicação que ele próprio trazia.
No contexto dos factos provados, a ida do recorrente a casa de C.......... surge como uma verdadeira visita de um médico a casa de um paciente, para o observar e prescrever a medicação adequada.
O recorrente, que anteriormente já tinha invocado ser médico, comporta-se, como tal, na observação do paciente (medição da tensão arterial), diagnóstico (tensão arterial elevada) e prescrição do tratamento a seguir (toma de medicação que ele forneceu).
O recorrente, fazendo-se passar por médico, actuou como se fosse autêntico médico. Por isso, os factos dados como provados, que destacámos (aqueles que reputamos essenciais e tornam desnecessária a análise da relevância penal dos restantes), preenchem, inquestionavelmente, os elementos objectivos do tipo de ilícito do artigo 358.º, alínea b), aqueles que, afinal, o recorrente parece querer questionar, sendo que o elemento subjectivo - o dolo, representar e querer todos e cada um dos elementos da factualidade típica -, também se mostra claramente caracterizado, a título de dolo directo, nos factos provados.
3.3. A impugnação da decisão, por violação do dever geral de fundamentação, contido no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, conformando a nulidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, assenta, essencialmente, no facto de a fundamentação de facto da sentença omitir factos alegados pela defesa, na contestação e resultantes da discussão da causa, não os tendo levado nem ao elenco dos factos provados nem os descriminando como não provados.
Analisada a contestação apresentada pelo recorrente, vê-se que a mesma ou passa pela negação da prática de factos constantes da acusação (designadamente, pontos 5 e 7) ou por questionar a relevância típica de condutas que não são, afinal, as exactamente descritas na acusação e conter juízos conclusivos (designadamente, ponto 8 e ponto 11) ou por fornecer uma «explicação» para a queixa que deu origem ao processo (pontos 9 e 10).
A sentença contém a enumeração dos factos provados e a indicação de que não se provou que o arguido tenha ministrado à C.......... determinados medicamentos, para além daquele que se provou.
Esta enunciação, se cotejada com a acusação (a pronúncia limita-se a, para ela, remeter) e com a contestação, revela que foram dados por provados todos os factos da acusação, com excepção da ministração dos medicamentos que se provou não terem sido ministrados e que não foram autonomamente descriminados os factos da contestação.
Todavia, como já se viu, o recorrente, na contestação, ou nega os factos da acusação, ou pretende uma discussão normativa ou remete-se para as razões que levaram à queixa que deu origem ao processo.
No que respeita aos factos da contestação que traduzem a negação pura dos factos da acusação, a enunciação destes como provados dispensa o tribunal de os levar, na forma negativa, ao elenco dos factos não provados. Se os factos aparecem dados como provados, não podem subsistir dúvidas de que foram investigados na audiência, e seria inútil e redundante, consignar como não provados os factos que mais não consubstanciam do que a negação daqueles que se provaram.
No que toca à argumentação normativa contida na contestação, é manifesto que ela, por ultrapassar e prescindir dos factos, só deve interessar à discussão jurídica da questão onde tem a sua sede própria.
Finalmente, no que respeita à alegação contida na contestação que visa denunciar as razões que levaram ao aparecimento da queixa que deu origem ao processo, conformando uma quase censura moral de C.......... e familiares, trata-se de alegação anódina no quadro do objecto do processo, definido pela acusação. As razões que possam ter levado a que fosse apresentada a denúncia que desencadeou o procedimento não interferem na factualidade típica, não tornam os factos criminalmente neutros, nem manifestam o «arrependimento» de uma qualquer anterior renúncia ao direito de queixa (o crime é público, recorde-se).
Por isso, a alegação de que «a separação de arguido e testemunha estará na origem do presente processo de vingança» ou de que «a vingança ... não merece a tutela do direito» (pontos 9 e 10 da contestação) não contém em si mesma a expressão clara de factos que relevem para a decisão da causa ou para a própria graduação da culpa do recorrente.
Em suma, no confronto com a acusação e com a contestação, a fundamentação de facto da sentença, no aspecto da enumeração dos factos provados e não provados, satisfaz a exigência legal contida no artigo 374.º, n.º 2, do CPP.
Questão diferente é a de saber se, na audiência, se provaram factos, ainda que aparentemente instrumentais ou adjuvantes, que, se adequadamente ponderados pelas regras da lógica, da vida, e da experiência comum, levariam a que a convicção do tribunal se formasse em sentido diferente daquele que os factos provados expressam.
A qual se situa fora do quadro da nulidade invocada (a qual, diga-se, perde substancial significado útil quando o tribunal de recurso pode conhecer de facto, como é o caso) e, afinal, nos remete para a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
3.4. Passemos, pois, ao conhecimento do recurso em matéria de facto.
3.4.1. Tem sido repetidamente afirmado que o recurso em matéria de facto perante as relações não se destina a um novo julgamento mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância [Germano Marques da Silva, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum Iustitiae, Maio de 1999, p. 21].
Como não pode deixar de ser. O tribunal de recurso não dispõe da relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão, que só o princípio da imediação, intrinsecamente ligado ao da oralidade, assegura.
Sem dispor da apreciação directa e imediata da prova, ao tribunal de recurso cabe, em face da transcrição da prova produzida em audiência e da análise das provas examinadas em audiência, averiguar se existe um erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por essa transcrição ou essa análise evidenciarem ou que foram valoradas provas proibidas ou que as provas (admissíveis) foram valoradas com violação das regras que regem a apreciação da prova.
3.4.2. Com a produção da prova em julgamento visa-se oferecer ao tribunal as condições necessárias para que este forme a sua convicção sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença [Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, Coimbra Editora, Limitada, 1974, p.199], não valendo em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355.º do CPP).
A apreciação da prova produzida em audiência, susceptível de contribuir para a formação da convicção do tribunal em relação aos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e àqueles que o recorrente entende que deviam ser dados por provados e que não foram considerados pelo tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova acolhido expressamente no artigo 127.º do CPP.
O princípio da livre apreciação da prova significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal [O princípio é válido em todas as fases do processo penal] aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal.
O princípio não compreende, todavia, uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. A apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo. A livre ou a íntima convicção do tribunal não poderá ser uma convicção subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. A convicção do tribunal há-de ser, é certo, uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros, designadamente, ao tribunal de recurso, quando é chamado ao controlo efectivo da apreciação da prova. Uma tal convicção existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na «convicção», de uma mera opção voluntarista pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse [Figueiredo Dias, ob. cit., p. 202 e ss].
3.4.3. A leitura da transcrição da prova revela-nos que a fundamentação de facto da sentença não merece qualquer censura.
Se é exacto que o relacionamento entre o recorrente e a testemunha C.......... se iniciou pela Internet e que entre eles se estabeleceu uma relação pessoal que prescindia das suas qualidades profissionais, não é menos exacto que, nesses contactos, o recorrente invocara a qualidade de médico, afirmando-se pedopsiquiatra e trabalhar no tribunal e no hospital Magalhães de Lemos. Note-se que o facto de o recorrente afirmar como hobby a fotografia não faz presumir a falsidade quanto à identidade profissional que arrogava.
Aliás, quando a testemunha C.......... - que, até então, recusara qualquer contacto pessoal com o recorrente -, aceita que o recorrente venha a sua casa, pela primeira vez, é motivada pelo facto de o pai se estar a sentir mal. É perante o estado de saúde do pai que a testemunha C.......... aceita o oferecimento do recorrente de ir a sua casa para o «ver».
Resulta, pois, da prova produzida que a primeira visita do recorrente a casa da testemunha C.......... decorre da relação pessoal estabelecida entre o recorrente e a testemunha, via Internet, mas é motivada por uma situação de doença que requeria a qualidade profissional que o recorrente invocava ter.
Por isso, o recorrente levava consigo instrumentos de observação de pacientes, enquanto «médico», e, ao mesmo tempo, o Compal, em nome da relação pessoal estabelecida com a testemunha e o conhecimento dos seus gostos.
Nessa primeira visita, o recorrente não só assume a identidade profissional que anteriormente já invocara ter como actua em conformidade com ela. Observa o paciente (mede-lhe a tensão arterial, verifica a pulsação, observa o globo ocular) e efectua diversos «testes de paralelidade». Depois de tudo, o recorrente medica o paciente, administrando ao paciente comprimidos, que trazia consigo, e permanece, toda a noite, à cabeceira do doente, medindo e registando as tensões e a pulsação.
Ou seja, da prova produzida, com especial relevo para os depoimentos das testemunhas C.......... e da mãe desta, E.......... não subsistem dúvidas de que o recorrente, arrogando-se a identidade profissional de médico, assumiu um desempenho próprio de quem tem essa identidade profissional, embora com uma «dedicação» que seria excessiva se não fosse a relação pessoal existente entre ele e a testemunha C...........
Aliás, o próprio recorrente admite que, na primeira visita, não desfez o engano e que só «dias depois» é que esclareceu que não era médico.
Por isso, a questão de saber em que momento é que as testemunhas começaram a desconfiar ou tiveram a confirmação de que o recorrente não era médico não assume particular relevância, na medida em que, no momento em que o recorrente, inquestionavelmente, se comporta como médico (na tal primeira visita), verifica-se o arrogo dessa qualidade.
No contexto dos factos relevantes para a solução jurídica da questão, que atrás já destacámos, também não releva a relação de namoro que se estabeleceu entre a testemunha C.......... e o recorrente, nem os presentes que ela lhe ofereceu, nem os investimentos que fez no estúdio de fotografia.
São factos posteriores e que, por isso, não se repercutem (retroactivamente) nos factos que essencialmente interessam à decisão da causa e que, em nosso entender, são os elencados sob os n. os 1 a 5 e 11, da fundamentação de facto. Como também não assume qualquer relevância o apuramento das razões por que a família da testemunha C.......... decidiu não manter no seio da família o segredo sobre a provada actuação do recorrente.
Em suma, a prova produzida em audiência permite estabelecer positivamente que, pelo menos na primeira visita a casa da testemunha C.......... e seus pais, o recorrente arrogava-se a identidade profissional de médico e praticou actos próprios dessa profissão, ou seja, «o engano chegou até ao fim - até fazer mesmo o que não podia fazer»» [Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., p. 446].
O recorrente quis não só falsificar a sua aparência, como também actuar do modo correspondente a ela. O recorrente enganou efectivamente a testemunha C.......... e seus pais, arrogando-se a qualidade de médico e actuando, como tal, sem desfazer o engano.
Os factos que destacámos e que se encontram correctamente julgados, porque integram os elementos objectivos e subjectivo do tipo de ilícito do artigo 358.º, alínea b), do Código Penal, justificam a condenação do recorrente pela prática desse crime.
Como tal, a inclusão, no elenco dos factos provados, da matéria relativa à caracterização das relações de natureza pessoal e patrimonial que se estabeleceram entre o recorrente e a testemunha C.......... com a tolerância, pelo menos numa primeira fase, das restantes testemunhas de acusação, seria anódina, uma vez que tal relacionamento posterior (à primeira visita) não tem a virtualidade de se repercutir, impondo a sua alteração, nos factos anteriores que se provaram.
3.5. O recorrente não chama este tribunal à apreciação da medida da pena, a qual, diga-se, não merece censura, tal como não a merece, a pena de substituição decretada.
III

Termos em que, na confirmação da decisão recorrida, negamos provimento ao recurso.
Por ter decaído, condena-se o recorrente em 5 UC de taxa de justiça e nas custas (artigos 513.º e 514.º do CPP, 87.º, n.º 1, alínea b), 89.º e 95.º, n.º 3, do CCJ), com honorários à Exmª defensora, nomeada em audiência neste tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à Portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro, e sem prejuízo do disposto no artigo 5º, nº 1, do mesmo.

Porto, 16 de Fevereiro de 2005
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas
Arlindo Manuel Teixeira Pinto