Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4759/09.1TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
DIREITO ESPECIAL À GERÊNCIA
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RP201403274759/09.1TBSTS.P1
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Contendo o pacto social da Ré uma cláusula estatutária na qual consta que é necessária a intervenção conjunta de dois gerentes para obrigar a sociedade, indicando nominativamente duas pessoas (também sócios e gerentes) e impondo que uma delas tem de intervir para obrigar a sociedade, é de interpretar essa cláusula como consagrando um direito especial à gerência de tais pessoas/sócios.
II - Em acção de anulação de deliberação social que destituiu o A da gerência,, invocando o A ser titular de um direito especial à gerência, não se verificam os pressupostos substanciais, previstos no art. 274º n.º 2 al. a) do CPC ( actual art. 266 n.º 2 al. a) para a Ré que se defende sustentando a inexistência desse direito especial, deduzir reconvenção pedindo a destituição do A com justa causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 4759/09.1TBSTS.P1
Relator - Leonel Serôdio ( 330)
Adjuntos - Amaral Ferreira
- Ana Paula Lobo

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B… intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra C…, Lda, pedindo que seja declarada a nulidade da deliberação social tomada na assembleia geral da Ré de 16 de Julho de 2009 que aprovou a sua destituição de gerente, por ser titular de um direito especial à gerência e ser a Ré condenada ao pagamento dos salários que deixou de auferir desde a sua destituição até ao momento da sua efectiva integração.
Alega, em síntese, que é titular de um direito especial à gerência pelo que a sua destituição só poderia ocorrer por via judicial e com fundamento em justa causa e não como aconteceu por deliberação da assembleia geral da Ré.

A Ré contestou, sustentando que o pacto social não confere ao A qualquer direito especial à gerência e alega ter existido justa causa para a destituição deliberada na referida assembleia. Conclui pela improcedência da acção e subsidiariamente, em reconvenção, pede que seja declarado destituído o A da gerência da Ré com justa causa, com fundamento nos comportamentos alegados na contestação, nomeadamente nos constantes da fundamentação da deliberação de 16.07.2009.

O A replicou, defendendo a inadmissibilidade da reconvenção, por não se verificar o requisito previsto na al. a) do art. 274º do CPC e por ao pedido reconvencional corresponder forma de processo especial. Arguiu ainda a excepção da falta de deliberação prévia para ser intentada pela Ré a acção de destituição de gerente e impugnou o alegado na reconvenção.
Conclui pela inadmissibilidade da reconvenção e caso assim não se entenda pela sua improcedência.

A Ré treplicou pugnando pela improcedência das arguidas excepções.

A tramitação do processo atrasou-se, nomeadamente devido ao registo da acção.
Comprovado o registo, foi proferido saneador que não admitiu a reonvenção e conheceu do mérito, julgando procedente acção e “declarou a nulidade da deliberação social tomada na assembleia geral da Ré ocorrida a 16 de Junho de 2009 que aprovou a destituição do gerente titular de um direito especial à gerência, o ora A. B… e condenou a Ré a pagar ao A. todos os salários que este deixou de auferir desde a sua destituição até ao momento da sua efectiva reintegração no corpo gerente.”

A Ré apelou, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:
1 – Incumbia ao Recorrido a alegação e prova dos factos integradores de um direito especial à gerência;
2 – Pelo Recorrido não foram alegados factos suficientes para a consideração do seu direito à gerência como direito especial.
3 – Nem dos factos alegados pelo Recorrido, nem dos documentos por si juntos nomeadamente do texto do pacto social, no momento da constituição e da certidão da matrícula decorre a existência de um direito especial à gerência.
4 – Dos factos considerados assentes e relevantes para a decisão também não resulta qualquer direito especial à gerência a favor do Recorrido.
5 – Os factos considerados assentes e relevantes são insuficientes para qualificar o direito do Recorrido como direito especial.
6 - O direito especial à gerência quando no pacto social não está expresso de forma inequívoca, através do uso de expressões como “direito especial” ou de outras com o mesmo sentido deve resultar também de forma inequívoca do conjunto de disposições desse pacto.
7- Em caso de dúvida quanto ao sentido das disposições do pacto social, deve entender-se que as partes não quiseram afastar o regime supletivo e, em consequência, deve concluir-se pela não verificação da existência do direito especial.
8 - Da formulação adoptada no art. 6º do pacto social da C…, quanto à designação dos gerentes e quanto à forma de obrigar a sociedade, mesmo que conjugada com a distribuição do capital (art. 3º do pacto) e com as restantes disposições daquele (pacto) não resulta a atribuição de qualquer direito especial para os gerentes D… e B… (Recorrido);
9 - O direito à gerência, enquanto direito especial, tem como requisitos/características não poder ser suprimido nem coarctado (art. 24º do CSC);
10 - As referidas características, para lá de terem consagração nas disposições do pacto social devem ter expressão prática, ou seja, quanto ao direito á gerência, para poder ser considerado como direito especial, deve ser modelado no pacto por forma a que, no mínimo o seu titular não dependa de terceiros para o seu exercício.
11- O modo como no pacto social da C… está formulado a designação dos gerentes e a forma de obrigar a sociedade, demonstra que não obedece aos requisitos acima exigidos para o direito especial (não poder ser suprimido ou coarctado).
12 - Tal como o direito à gerência do Recorrido resulta do pacto social ele pode ser, na prática suprimido ou coarctado, para o que basta que qualquer dos restantes dois gerentes não assine conjuntamente consigo.
13 - O direito à gerência invocado pelo A. não configura um direito especial pelo que a acção devia ter sido julgada improcedente.
14 - Não constituindo direito especial o A podia ser destituído como foi, por deliberação maioritária da Assembleia sem necessidade de confirmação em acção judicial.
15 - O apelo à justa causa na deliberação de destituição não decorreu do reconhecimento de qualquer direito especial à gerência, antes visou evitar os efeitos patrimoniais decorrentes do facto de o mandato do Recorrido, enquanto gerente não ter prazo fixado (n.º 7 do art.275º do CSC).
16 - Para a interpretação do sentido do pacto social quanto à existência de um direito especial à gerência são válidos os princípios gerais da interpretação dos negócios jurídico (arts. 236º a 238º do Código Civil), pelo que é licito o recurso à vontade das partes.
17 - A Recorrente alegou, em 17 da contestação, que a formulação do § único do art. 6º do pacto social quanto ao modo de obrigar a sociedade apenas teve em vista evitar que dois sócios-gerentes, com quotas de reduzido valor representando em conjunto 25% do capital pudessem em conjunto obrigar a sociedade.
18 - Tal facto não foi tido em conta e é relevante.
19 -Pelo que sempre e em qualquer caso se imporia a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto.
20 - Sem prejuízo da conclusão anterior, mesmo para quem entendesse que o Recorrido tinha um direito especial à gerência, a Reconvenção deveria ter sido admitida.
21- O pedido reconvencional foi deduzido prevenindo a hipótese de o direito do A ser entendido como um direito especial.
22 - Tal pedido e a matéria alegada que lhe subjaz reúnem os requisitos de forma e substância legalmente exigidos, nomeadamente a conexão com a acção.
23 - A procedência da acção não é incompatível com a procedência da Reconvenção, devendo esta ser admitida.
24 - Da procedência da acção e da reconvenção apenas resultaria que o Recorrido teria direito aos vencimentos até à decisão judicial.
25 – Foi violado o disposto no art.º 24 e 257º do CSC, 236ºe 238º do C Civil e 264º, 274º e 511º do CPC.

A final pede que se julgue a acção improcedente e subsidiariamente se ordene o prosseguimento do processo para se apurar a vontade das partes quando formularam o pacto social e nomeadamente os poderes de gerência, bem como para a apreciação do pedido reconvencional que deve ser admitido.

O A contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
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Factos julgados provados na 1ª instância:

1. A Ré é uma sociedade comercial cujo objecto social consiste na indústria metalomecânica de fabrico e comércio de equipamentos de manutenção e transporte e respectivos componentes com acessórios de borracha para a agricultura e outros fins industriais, conforme teor de fls. 19 a 23.
2. O capital social no montante de €24.939,89 é constituído da seguinte forma:
a) uma quota no valor nominal de €9.337,40 (nove mil, trezentos e trinta e sete euros e quarenta cêntimos), pertencente ao Autor, B…;
b) uma quota no valor nominal de €9.337,40 (nove mil, trezentos e trinta e sete euros e quarenta cêntimos), pertencente a D…;
c) uma quota no valor nominal de €3.740,98 (três mil, setecentos e quarenta euros e noventa e oito cêntimos), pertencente a D…;
d) uma quota no valor nominal de €2.444,11 (dois mil, quatrocentos e quarenta e quatro euros e onze cêntimos), pertencente a E…, conforme teor de fls. 19 a 23.
3. A quota pertencente a D… foi transmitida a F….
4. No dia 16 de Julho de 2009 reuniu a Assembleia Geral da Sociedade Ré, sob a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto um) aprovação do relatório das contas relativas ao ano de 2008;
Ponto dois) destituição do gerente Sr. B….
5. A sócia E…, no uso da palavra fez consignar na acta da referida Assembleia, o seguinte: “Apesar da deliberação da destituição poder ser tomada por maioria e sem qualquer fundamentação, entendo que o Sr. B… deve ser destituído da gerência com fundamento nos factos acima referidos, isto é, com justa causa, sendo isso, exactamente o que proponho.”
6. A referida proposta foi aprovada com os votos favoráveis do sócio D… e da sócia E…, não tendo o sócio B… votado por a deliberação lhe dizer respeito, conforme teor de fls. 24 a 27.
7. No artigo 6.º do pacto social da Ré estipula-se que “A gerência social, dispensada de caução, que poderá não ser remunerada, é atribuída aos sócios D… e B…, que desde já ficam nomeados, digo atribuída a todos os sócios que desde já ficam nomeados gerentes”, conforme teor de fls. 29 a 34.
8. Quanto à forma de obrigar a sociedade, o mesmo artigo, no seu parágrafo único dispõe o seguinte: “Para obrigar a sociedade em todos os seus actos e contratos é necessária a intervenção conjunta de dois gerentes, devendo sempre intervir ou o gerente, D… ou o gerente B…, com qualquer outro”, conforme teor de fls. 29 a 34.
9. Pelo exercício das funções de gerente, o sócio B…, auferia a quantia ilíquida de €1.929 (mil, novecentos e vinte e nove euros).
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Questões a decidir:

A questão essencial é a de saber se no pacto social da Ré está ou não consagrado um direito especial à gerência do sócio ora A B…;
Se tem interesse para a interpretação do art. 6º § único desse pacto o alegado no art. 17º da contestação.
Se a reconvenção é admissível e se podia ser deduzida sem prévia deliberação social.
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I - Se o A tem ou não um direito especial à gerência.

O art. 24º n.º 1 do Código das Sociedades Comercias expressamente admite a criação de direitos especiais dos sócios, estipulando que “só por estipulação no contrato de sociedade podem ser criados direitos especiais de algum sócio.”
Por outro lado, o n.º 5 do citado art. estipula: “Os direitos especiais não podem ser suprimidos ou coarctados sem o consentimento do respectivo titular, salvo regra legal ou estipulação contratual expressa em contrário.”

Os direitos especiais são posições associativas que traduzem vantagens ou privilégios não consignados na lei geral (cf. Menezes Cordeiro, CSC Anotado, 2ª edição, pág. 151).
Um dos exemplos de direitos especiais é, justamente, o direito especial à gerência, estipulando o n.º 3 do art. 257º do CSC que: “a cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.”
Note-se que, nos termos do nº 1 do art. 257º, os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes (sem direito especial).
Esta norma (n.º 3 do art. 257º) acolhe a posição do assento de 26.05.1961, onde se decidiu: “Para alteração dos direitos especiais de um sócio, concedido no pacto de uma sociedade por quotas, não basta a maioria referida no art. 41º da Lei de 11 de Abril de 1901,sendo ainda indispensável o consentimento do respectivo sócio.” e no posterior assento de 09.11.1997, que fixou o seguinte: “ O gerente de uma sociedade por quotas nomeado no pacto social pode ser destituído por maioria simples dos votos correspondentes ao capital social, desde que a nomeação não importe concessão de um direito especial.”
Como era entendimento pacífico antes da entrada em vigor do CSC e se mantém, o simples facto da designação de um gerente no pacto social de uma sociedade por quotas não implica a concessão a este de um direito especial.
Contudo para se julgue consagrado no pacto esse direito especial à gerência, não é imprescindível que exista uma cláusula que expressamente o estabeleça, com recurso à fórmula legal ou equivalente como seja uma cláusula que estabeleça que o sócio tem direito de ser gerente enquanto for sócio ou enquanto durar a sociedade, ou que só poderá ser destituído da gerência havendo justa causa (cf. Raul Ventura, Direito Especiais dos Sócios, na Revista o “Direito”, ano 121, tomo I, pág. 218), sendo suficiente que a posição de vantagem ou privilégio de um ou vários sócios decorra sem ambiguidade de alguma ou algumas das cláusulas do pacto social.
Importa, pois, analisar e interpretar as cláusulas do pacto social da Ré donde pode decorrer o alegado direito especial.

Na escritura de constituição da sociedade Ré “C…” outorgada em 12.03.1987 e junta a fls. 29 a 34, consta do artigo 6.º:
“A gerência social, dispensada de caução, que poderá não ser remunerada, é atribuída aos sócios D… e B…, que desde já ficam nomeados, digo atribuída a todos os sócios que desde já ficam nomeados gerentes”.
De seguida no seu parágrafo único dispõe:
“Para obrigar a sociedade em todos os seus actos e contratos é necessária a intervenção conjunta de dois gerentes, devendo sempre intervir ou o gerente, D… ou o gerente B…, com qualquer outro.”.

Como se constata do corpo do citado artigo, apesar de inicialmente apontar para a atribuição da gerência apenas aos dois sócios maioritários D… e B… (cada um com uma quota de um milhão e oitocentos e oitenta mil escudos), de seguida corrige essa atribuição exclusiva a esses dois e atribuí a gerência a todos os sócios, ou seja, também aos outros dois (F… e G…, o primeiro com uma quota de setecentos e cinquenta mil escudos e o segundo com quatrocentos e noventa mil escudos).
Esta nomeação em si não tem relevo, é habitual nas sociedades por quotas em lugar de se nomearem depois os gerentes referir-se logo no pacto social que todos os sócios detinham essa qualidade.
Porém o citado artigo no seu parágrafo único acrescenta que para obrigar a sociedade é necessária a intervenção conjunta de dois gerentes, “devendo sempre intervir ou o gerente, D… ou o gerente B…, com qualquer outro” (sublinhado nosso).
Numa interpretação objectivista desta cláusula de nomeação de gerente, afigura-se-nos que ao A e ao D… foi atribuído um direito especial, uma vez que é imprescindível a intervenção de, pelo menos, um deles para obrigar a sociedade e consequentemente assegurar o seu funcionamento.
Esta foi a interpretação decidida perante cláusula com teor semelhante no acórdão desta Relação de 11.06.1992, na CJ, 1992, tomo III, pág. 308, relatada pelo então Des. Pinto Furtado, com vários livros publicados sobre direito das sociedades comercias, ombreando com os nossos mais reputados académicos na jurisdição comercial.

Esta posição foi também acolhida pelo acórdão do STJ de 12 Jun. 1996, CJ, STI, Tomo II/1996, pág. 130 a 132 com o seguinte sumário:
“I - A mera nomeação, nos estatutos, de sócios como gerentes não basta para que se possa falar em direitos especiais à gerência. II - Também a cláusula estatutária de que conste ser necessária a intervenção conjunta de dois gerentes para obrigar a sociedade, não contém um direito especial à gerência; ainda que, nesses mesmos estatutos, noutra cláusula se nomeiem sócios como gerentes. III - Diferentemente será quando o clausulado indica nominativamente as pessoas (também sócios e gerentes) que obrigam a sociedade, hipótese em que se tem entendido que há direito especial à gerência de tais pessoas/sócios.”
Ora, no caso, a referida cláusula ao indicar nominativamente os dois sócios que obrigam a sociedade está a atribuir a ambos um direito especial à gerência.
A circunstância invocada pela Apelante de haver a hipótese de os outros gerentes impedirem o A de exercer na prática a gerência, recusando assinar conjuntamente com ele, não retira que se considere que o pacto lhe conferiu a ele e ao outro sócio D… uma posição de privilégio, apesar desse privilégio não ter a amplitude de cada um deles por si só vincular a sociedade.
Note-se, como se escreve no acórdão desta Relação e secção, relatado pelo então Des. Pinto de Almeida, proferido em 25.10.2007 no processo n.º 0734156, publicado no site do ITIJ, seguido de perto pela sentença recorrida, “pacífico é também, actualmente, o entendimento de que o direito especial pode ser atribuído a todos os sócios da mesma sociedade.
Esclarece Pinto Furtado que o carácter de especialidade não resulta da sua atribuição a um número restrito de sócios, mas da sua própria natureza de privilégio inderrogável. Ou seja, nas palavras de Menezes Cordeiro, os direitos especiais são-no não por pertencerem apenas a alguém, mas por pressuporem, em si, um regime especial, isto é, diferente do comum”.
Nada obsta, pois, que a cláusula em apreço (art. 6º § único) consagre um direito especial à gerência aos dois sócios maioritários que indica nominalmente, impondo sempre a assinatura de algum deles para obrigar a sociedade.
Se os outros sócios/gerentes mancomunados impedirem na prática o exercício da gerência pelo sócio com esse direito, esse facto é ilícito e pode implicar a sua destituição judicial, salvo se provarem que o fazem em beneficio da sociedade, mas essa possibilidade não retira ao sócio nominalmente nomeado gerente no pacto esse privilégio.
De resto este direito especial não é absoluto, pois o sócio com o direito à gerência pode ser suspenso e destituído em acção judicial, desde que viole gravemente os seus deveres de gerente.
Concorda-se, pois, com a sentença recorrida que interpretou a citada cláusula, como consagrando “o propósito de estabelecer uma norma estatutária em que a gerência da sociedade teria necessariamente de ser exercida por dois sócios gerentes, sendo que um deles teria necessariamente de ser o sócio gerente D… ou o sócio gerente Autor, conferindo, assim, a estes dois sócios (D… e Autor) o direito especial de integrarem aquele cargo”.
II – Saber se o alegado no art.17º da contestação é imprescindível para a interpretação do citado art. 6º.

Esta questão prende-se com a de saber como deve ser interpretado o contrato de sociedade.
António Caeiro desenvolveu a questão, em Temas de Direito de Sociedade, no estudo “Destituição de gerente designado no pacto social”, pág. 387 e segs., escrevendo “que se desenvolveu uma orientação que pretendeu eliminar dos materiais utilizáveis na actividade interpretativa dos estatutos das sociedades por acções todos e quaisquer elementos estranhos aos próprios estatutos. O sentido de quaisquer cláusulas estatutárias só poderia ser determinado com recurso à própria escritura social e, eventualmente aos restantes documentos arquivados.”
No entendimento dele, os estatutos da sociedade por quotas devem ser interpretados segundo as regras gerais prescritas para a interpretação dos negócios jurídicos, com os limites fixados no art. 238º do Código Civil, no tocante aos negócios formais. Sendo, por isso, lícito recorrer a quaisquer elementos interpretativos, contemporâneos do negócio, anteriores ou mesmo posteriores à sua conclusão, para se determinar o sentido e alcance da cláusula.
Este entendimento veio a ser perfilhado por Vaz Serra na RLJ 112-22 e ss, abandonando a anterior posição (cf. sobre as várias posições na doutrina sobre esta questão o citado acórdão desta Relação de 25.10.2007 no processo n.º 0734156, publicado no site do ITIJ).
Também o STJ acolheu esta posição, como é exemplo o acórdão de 17.04.2008, na CJ (STJ) 2008, tomo II, pág. 33, onde se decidiu: I - O problema da interpretação das cláusulas dos pactos sociais resume-se à descoberta do sentido objectivo da declaração negocial, não se podendo ter em conta a vontade real das partes, nem elementos estranhos ao contrato social, porque estão em jogo interesses de terceiros, daqueles que hajam contratado com a sociedade. II - Porém, quanto às sociedades por quotas, se a interpretação objectiva é de exigir no tocante às cláusulas que visam a protecção dos credores sociais, já essa exigência se não impõe quanto às cláusulas sobre relações corporativas internas e às de natureza jurídica individual, vigorando, nesta matéria, os princípios gerais de interpretação dos negócios jurídicos formais, admitindo-se o recurso a quaisquer elementos interpretativos contemporâneos do negócio, ou anteriores ou posteriores à sua conclusão. III - A estipulação estatutária pela qual são nomeados os gerentes inclui-se naquelas cuja interpretação se deve fazer com recurso a todos os elementos interpretativos.”
Aceita-se que as cláusulas do pacto duma sociedade por quotas se deve fazer segundo as regras prescritas para os negócios jurídicos (arts. 236º a 238º do CC), não estando o tribunal limitado a analisar e a perscrutar o sentido das suas cláusulas, apenas com o que consta do pacto social. Contudo para o Tribunal efectuar uma interpretação mais profunda e abrangente para determinar a vontade dos contraentes é necessário que as partes aleguem esses elementos interpretativos, contemporâneos do pacto, anteriores ou mesmo posteriores à sua conclusão.
Ora, no caso, o A invocou o que consta do pacto acima transcrito e a Ré no artigo 17º da sua contestação limita-se a alegar que com o estipulado no citado § do art. 6º do pacto “o que se pretendeu foi evitar que a sociedade se obrigasse apenas com a intervenção de dois sócios-gerentes cujas quotas representam pequenas parcelas do capital global.”
Contudo ainda que se provasse que essa tinha sido intenção dos contraentes, esta realidade não afasta o que consta do texto da referida cláusula, ou seja, que a sociedade para se obrigar tinha necessariamente de ter a intervenção de um dos dois sócios nominalmente indicados e consequentemente a sua interpretação segundo a denominada teoria da impressão do destinatário acolhida pelo art. 236º n.º 1 do CC, em nada é afectada na conclusão que os referidos dois sócios (o A e o D…) tinham um direito especial à gerência.
Concorda-se com o Apelado que a própria alegação do art. 17º da contestação apenas corrobora que foi intenção dos contraentes do pacto criar uma situação especial para os sócios-gerentes D… e B…, estabelecendo que apesar da sociedade ter quatro sócios e serem todos gerentes, era necessária a sua intervenção para a sociedade se obrigar.
Se essa situação de privilégio destes dois sócios relativamente aos outros dois, foi causada porque as quotas deles eram de muito maior valor do que as quotas dos outros dois não é relevante, o determinante é que quanto à gerência da sociedade ficaram privilegiados relativamente aos outros dois.
Assim sendo, mesmo que se provasse o alegado no art. 17º esse facto não afastava que o citado art. 6º § 1 consagrava ao A um direito especial à gerência.
Improcede, pois, a pretensão da Ré de se anular a sentença para se efectuar o julgamento para prova do alegado no art. 17º da contestação.
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É, pois, de concluir, que o pacto social da Ré confere ao A um direito especial à gerência, e apenas podia ser destituído por decisão judicial com fundamento em justa causa (cf. citado art. 257 nºs 3 a 5 do CSC) e consequentemente a deliberação que o destitui da gerência é nula, nos termos do disposto nos artigos 24.º n.º 5 e 56.º, n.º 1, alínea d) do CSC.

III –
Questão da Admissibilidade da Reconvenção

A reconvenção deve ser configurada como um cruzamento de acções, como uma espécie de contra-acção. (cf. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág. 171)
Para evitar o retardamento da concessão da tutela judiciária invocada pelo autor, o legislador impede que o réu formule incondicionadamente pedidos contra o autor.
Assim, a lei sujeita a reconvenção a requisitos ou pressupostos, substanciais e processuais, previstos no art. 274º do CPC, em vigor quando foi proferida a decisão recorrida (actual art. 266º).

O saneador recorrido não admitiu a reconvenção por não se verificar o requisito substancial, único possível no caso em apreço, previsto na al. a) do n.º2 do art.274º do CPC, tendo adiantado a seguinte fundamentação (em síntese):
“Assim, para que a reconvenção seja admissível ao abrigo desta alínea, é necessário que o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da acção – ou parte dela - ou emerja do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, embora desse acto ou facto jurídico se pretenda, neste caso, obter um efeito diferente (neste sentido Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, volume II, 3.ª edição, pág. 32).”
A causa de pedir desta acção é constituída pelos factos concretos que, na perspectiva do autor, consubstancia a anulabilidade da deliberação social tomada na assembleia geral da Ré, ocorrida em 16.07.2009, que aprovou a destituição do gerente titular de um direito especial à gerência, o ora Autor e o consequente pagamento dos salários que o Autor deixou de auferir desde a sua destituição até ao momento da sua reintegração no corpo gerente.
Por sua vez, a Ré baseia o seu pedido reconvencional na existência de justa causa para a destituição do Autor, pedindo, em sede reconvencional, a destituição judicial do mesmo.
Ora, o pedido reconvencional, mesmo procedente, não extingue nem modifica o pedido formulado pelo Autor, sendo completamente autónomo e sem qualquer conexão substantiva com a acção principal.”
A Ré na sua alegação de recurso defende a admissibilidade da reconvenção por esta se fundar no próprio pedido do A e que a deduziu para ver extinto o direito do A caso viesse a ser decidido que beneficiava de um direito especial.
Contudo a conexão que a al. a) do art. 274º impõe é entre a causa de pedir que serve de fundamento à acção e a causa de pedir da reconvenção, ou seja, a Ré não pode basear a sua pretensão apenas na eventual procedência do pedido do autor sem que a causa de pedir invocada seja a mesma que serve de fundamento ao pedido principal ou aos factos alegados na contestação para impedir, modificar ou extinguir o invocado direito do A.
No caso, o A. pedia a declaração de nulidade da deliberação social tomada na Assembleia da Ré por violar o art. 257º n.º 3 do CSC, no pressuposto que é titular de um direito especial à gerência.
A defesa da Ré quanto a esta pretensão é não ter o A esse direito especial e por conseguinte podia destituí-lo. Contudo como é indiscutível, ainda que se provasse a existência de justa causa para destituição do A, tendo este direito especial à gerência, a Ré não podia destituí-lo, por isso, a decisão recorrida está correcta quando refere que os factos alegados na contestação e que fundamentam a reconvenção a provarem-se não extinguiam o direito invocado pelo A. e, por isso, não é admissível por não se verificar o pressuposto exigido pela al. a) do n.º 2 do art. 274ºdo CPC.
Por outro lado, ao pedido reconvencional corresponde o processo especial, de jurisdição voluntária, previsto no art. 1484º-A do CPC e apesar do art. 274º n.º 3 do CPC, depois da reforma de 95/96 permitir ao juiz autorizar a reconvenção apesar das diferentes formas de processo, no caso, não há em concreto vantagem, nem sequer é viável a apreciação conjunta do pedido principal e do reconvencional.
Como se constatou, a questão colocada na acção era essencialmente de direito, dado que os factos relevantes estavam documentalmente provados e, por outro lado, a reconvenção dependia de prova a produzir e, consequentemente, estava excluída a possibilidade de apreciação conjunta da acção e reconvenção.
Não há, pois, também fundamento para se revogar a decisão recorrida na parte em que não admitiu a reconvenção.

Importa, ainda referir, que ainda que a reconvenção fosse admissível, o art. 257º n.º 3 do CSC confere à sociedade legitimidade para intentar acção de suspensão e destituição de sócio/ gerente, com direito especial à gerência, com fundamento em justa causa, mas impõe que a acção seja precedida de deliberação dos sócios.
Ora, ao contrário do que parece sustentar a Ré na tréplica, a deliberação social impugnada de 16.07.2009 que destituiu o A da gerência não consubstancia a deliberação dos sócios a conceder poderes à Ré para intentar acção de suspensão e destituição do A.
O direito das sociedades comercias não prescinde de formalismos legais, para a tomada de deliberações pelos sócios, desde logo a convocatória da assembleia geral, que obedece a determinados requisitos, nomeadamente a ordem do dia (cf. art. 377 nº5 al. e) ex vi art. 248ºn.º 1 do CSC) que deve mencionar claramente os assuntos, por isso, não há fundamento legal para considerar que a referida deliberação que destituiu o A da gerência, ainda que invocando justa causa, substitui ou tornar desnecessária a deliberação dos sócios a conceder poderes à Ré para intentar acção de suspensão e destituição do A da gerência.
Por isso, também por falta do pressuposto exigido pelo citado art. 257º n.º 3 do CSC reconvenção não podia prosseguir.

Decisão

Julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida
Custas pela Ré

Porto, 27.03.2014
Leonel Serôdio
Amaral Ferreira
Ana Paula Lobo
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Sumário:
I – Contendo o pacto social da Ré uma cláusula estatutária na qual consta que é necessária a intervenção conjunta de dois gerentes para obrigar a sociedade, indicando nominativamente duas pessoas (também sócios e gerentes) e impondo que uma delas tem de intervir para obrigar a sociedade, é de interpretar essa cláusula como consagrando um direito especial à gerência de tais pessoas/sócios.
II - Em acção de anulação de deliberação social que destituiu o A da gerência,, invocando o A ser titular de um direito especial à gerência, não se verificam os pressupostos substanciais, previstos no art. 274º n.º 2 al. a) do CPC ( actual art. 266 n.º 2 al. a) para a Ré que se defende sustentando a inexistência desse direito especial, deduzir reconvenção pedindo a destituição do A com justa causa.

Leonel Serôdio