Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3321/07.8TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: ARRENDAMENTO COMERCIAL
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201106203321/07.8TBVCD.P1
Data do Acordão: 06/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Há que distinguir entre licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica (habitação, comércio, profissão liberal, etc.) e a licença de utilização para o exerci cio de qualquer espécie daquele género (farmácia, restaurante, etc).
II - Só a primeira é obrigação do senhorio, já as licenças, com o respectivo alvará, para o exercício de certo ramo (que podem impor a realização de obras para o efeito), cumprem ao arrendatário que pretende exercer a actividade específica.
III - Não tendo os senhorios cumprido aquela primeira obrigação, assiste à arrendatária o direito a não pagar as respectivas rendas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3321/07.8TBVCD.P1 (1112/10) - APELAÇÃO

Relator: Caimoto Jácome(1167)
Adjuntos: Macedo Domingues()
António Eleutério()

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1- RELATÓRIO

B… e C…, com os sinais dos autos, intentaram a presente acção declarativa de condenação (despejo), com processo sumário, contra D…, Lda, pedindo:
- se decrete a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 11-01-73 e alterado em 29-06-93;
- se condene a ré a entregar o locado livre e devoluto;
- se condene a ré no pagamento da quantia de € 3.427,73, acrescida dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento;
- se condene a ré no pagamento das rendas vincendas até efectiva desocupação do arrendado;
- se condene a ré no pagamento duma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na desocupação do arrendado, logo que decretada, num valor nunca inferior a € 150 por dia.
Alegaram, em síntese, os factos atinentes, na sua perspectiva, à procedência do pedido de resolução do contrato de arrendamento comercial em causa.
Citada, a ré, contestou, impugnando. Alegando, em síntese, que encerrou o estabelecimento, com todo o equipamento que o recheia a deteriorar-se, porque os autores afirmaram que não faziam a propriedade horizontal e, sem isso, a Câmara Municipal não licencia o rés-do-chão para restauração, sendo certo que para obter o licenciamento do prédio fez despesas no montante de € 5.743,92. Com base nessa factualidade, deduziu reconvenção na qual pede a condenação dos autores a fazer as obras necessárias para a obtenção do licenciamento do rés-do-chão para Restaurante, nomeadamente a propriedade horizontal, a pagar-lhe a quantia de € 5.743,92, com os respectivos juros, e os prejuízos, em quantia a liquidar ulteriormente, decorrentes do encerramento do estabelecimento desde Julho de 2007.
Houve resposta dos demandantes.
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Saneado e instruído o processo, após julgamento, foi proferida sentença, decidindo-se (dispositivo):
“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e a reconvenção improcedente e, em consequência:
- declaro a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 11.01.73 e alterado em 29.06.93;
- condeno a ré a entregar aos autores o locado livre e devoluto de pessoas e bens;
- condeno a ré a pagar aos autores a quantia de € 2.721,84, a título de rendas vencidas até à data da propositura da acção, correspondentes aos meses de Agosto,
Setembro, Outubro e Novembro de 2007, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4%, contados desde a data do vencimento de cada uma dessas rendas (primeiro dia útil anterior àquele a que respeitam) até efectivo e integral pagamento;
- condeno a ré a pagar aos autores as rendas vencidas e vincendas, no montante de € 680,46 cada, desde Dezembro de 2007, inclusive, até efectiva desocupação do arrendado;
- absolvo a ré do demais peticionado pelos autores;
- absolvo os autores/reconvindos do pedido reconvencional.
Custas da acção pelos autores e pela ré, na proporção do decaimento.
Custas da reconvenção pela ré/reconvinte.”.
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Inconformada, a ré apelou da sentença, tendo, nas suas alegações, concluído:
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Na resposta às alegações os apelados defendem o decidido.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

2.1- OS FACTOS

Nas conclusões, a recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, de fls. 208-213.
Questiona o decidido no referente ao vertido nos quesitos 5º, 6º, 8º, 9º, 11º, 12º, 13º e 14º, da base instrutória (B.I.).
Na sua perspectiva, tal matéria deve ser considerada provada, sem restrições ou explicações, conjugado com os documentos que constam dos autos, nomeadamente de fls. 129 a 130 e com especial relevância para os documentos de fls. 40, 123, 124, 109 e os da Câmara Municipal, de fls. 159 e 160.
Saliente-se que a apelante indica o documento de fls. 40 por lapso, pois que, tudo indica, pretende referir-se ao documento de fls. 47, cujo original se mostra junto a fls. 78 (doc. nº 6 junto com a petição) – carta da ré, de 22/07/2007, dirigida a H….
Pede, assim, a reapreciação da prova testemunhal (E…, F… e H…) e documental.
Na 1ª instância respondeu-se positivamente, com restrição, ao perguntado nos quesitos 8º, 9º, 11º e 12º, e negativamente à matéria dos quesitos nºs 5, 6, 13 e 14.
Vejamos.
Fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas, consagrada no artº 655º, nº 1, do CPC, em princípio essa matéria é inalterável.
A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nas situações previstas no artº 712º, do CPC.
Estas constituem as excepções à regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância.
No caso em apreço, entendemos não ser aplicável a previsão da alínea c), do nº 1, do artº 712º, do CPC, pois que não foi apresentado documento novo superveniente.
Tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, "a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido..." - nº 2, do artº 712º, do CPC.
A recorrente cumpriu o ónus imposto nos nºs 1, e 2, parte final, do artº 690º-A, do CPC.
Importa ter presente que a finalidade do citado artº 712º, do CPC, é garantir a correcção do apuramento da matéria de facto, mas tal possibilidade tem de ser feita no respeito pelas normas jurídicas e processuais adequadas.
Mesmo que o recorrente observe totalmente o que prescrevem os citados art°s 690º-A e 712°, nos 1 e 2, do CPC, a alteração da matéria de facto pela Relação só ocorrerá quando dos meios de prova indicados pelo recorrente, valorizados no conjunto global da prova produzida, se verificar que, em concreto, se revelam inequívocos no sentido por si pretendido.
O controlo da Relação sobre a convicção que se formou no tribunal a quo deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, reconhecidamente, mais falível que qualquer outra, e quanto à avaliação da respectiva credibilidade também o tribunal recorrido está em melhor posição para a fazer.
Quer dizer, a admissibilidade da respectiva alteração por parte do tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará, assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Deve aceitar-se que a convicção do julgador da 1ª instância resulta da experiência, prudência e saber daquele, sendo certo que é no contacto pessoal e directo com as provas, designadamente com a testemunhal e no depoimento de parte, que aquelas qualidades de julgador mais são necessárias, pois é com base nelas que determinado depoimento pode ou não convencer quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recai, constituindo uma das manifestações dos princípios da oralidade e da imediação, por via das quais o julgador tem a oportunidade de se aperceber da frontalidade, tibieza, lucidez, rigor e firmeza com que os depoimentos são produzidos, mesmo do confronto imediato entre os vários depoimentos, do contraditório formado pelos intervenientes, advogados e juízes, do interrogatório do advogado que a apresenta, do contraditório do outro mandatário e das dúvidas do próprio tribunal, melhor ajuizando e aquilatando desta forma da sua validade.
Importa distinguir os casos em que os meios de prova, designadamente determinados documentos juntos aos autos, têm força probatória plena e aqueles em que a não têm. Neste último caso, ou seja, de meios de prova a apreciar livremente pelo julgador (v.g. documental, testemunhal), a Relação só pode valorar esses meios, e daí partir para uma alteração das respostas ao questionário/base instrutória, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da 1ª instância. É que só nesse caso a Relação se encontra numa posição igual à da 1ª instância para fazer uma apreciação livre (artº 655º, do CPC), o que pressupõe a possibilidade de considerar em simultâneo todas as provas produzidas.
A sindicância à convicção do julgador da 1ª instância, a realizar por este tribunal de recurso, apenas se mostra adequada quando a mesma se apresenta manifestamente contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Feitas estas considerações genéricas, vejamos a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Na motivação (fls. 209-213), o Sr. Juiz da 1ª instância afirma:
“1- Respostas positivas e restritivas.
1.1. Na resposta aos números 3, 7, 8, 9, 10 e 11 considerou-se os documentos de fls. 110 a 124, 129, 159/160 e 167 a 171, conjugado, quanto aos números 7 e 9 - 10 parte (liquidação de taxas), com o documento de fls. 130 e com o depoimento da testemunha H…, sobrinho e procurador do autor e ex-marido da autora, bem como, quanto ao número 9 - 2° parte (realização de diligências exigidas pela Câmara Municipal), com os documentos de fls. 125 a 129 e com o depoimento das testemunhas E…, engenheiro, que, a pedido dos representantes da ré, tratou do projecto de obras com vista ao licenciamento da fracção em causa.
A resposta restritiva ao número 9 impôs-se porque não se fez prova consistente de que a ré tenha feito "todas" - como é perguntado - as diligências exigidas pela Câmara Municipal.
1.2. Na resposta ao número 12 atendeu-se aos documentos de fls. 123 e 124.
Cumpre esclarecer que a matéria vertida na segunda parte do número 12 é conclusiva.
Por isso, a resposta ficou circunscrita ao que objectivamente resulta da leitura dos documentos de fls. 123 e 124, certo que se considerou, ainda, os esclarecimentos relevantes e avalizados prestados sobre a matéria pela testemunha E….
1.3. A resposta ao número 15 assentou na análise dos documentos de fls. 125 a 130.
*
II - Respostas negativas.
(…)
2.4. Número 5.
No número 5 são questionados dois factos, a saber:
- se os autores se recusam a obter para o prédio a propriedade horizontal;
- se sem a constituição da propriedade horizontal a Câmara Municipal não licencia o rés-do-chão para restauração.
Pois bem, quanto à primeira questão, não se fez prova de que em momento anterior ao da missiva de fls. 78, onde a ré faz alusão ao facto de a Câmara Municipal … exigir a propriedade horizontal para passar o alvará de utilização, os autores tenham sido informados dessa alegado exigência da Câmara Municipal, importando, aqui, referir que não há nenhum documento dirigido pela Câmara Municipal aos autores a dar-lhes conhecimento dessa exigência, sendo que a testemunha H… esclareceu que todo o processo estava a ser tratado pelos representantes da ré (o que é confirmado pela ré com a alegação do facto vertido no número 8 da base instrutória).
Acresce, ainda, que a testemunha H… afirmou que, depois de ter recebido a aludida carta da ré, apesar do representante legal desta o ter informado que já não estava interessado no estabelecimento, que se encontrava encerrado, dirigiu-se à Câmara Municipal para se inteirar do processo e começou a tratar da constituição da propriedade horizontal.
Relativamente ao segundo facto, a prova apontou em sentido contrário.
De facto, a testemunha H… declarou que a Câmara Municipal não exigia a constituição da propriedade horizontal para a concessão da licença, esclarecendo que foi ele quem sugeriu essa constituição porque nisso havia interesse em termos de vistoria, pois se no momento da vistoria não existisse propriedade horizontal seria vistoriado todo o prédio e se ela existisse só seria vistoriada a fracção correspondente ao estabelecimento.
2.5. Número 6.
As testemunhas I… e J…, anteriores sócios da ré, que negociaram com o actual sócio e gerente da mesma a cessão de quotas, negaram o facto vazado no número 6, afirmando que em momento anterior ao da celebração do negócio deram conhecimento àquele da falta de licença, sendo que o mesmo, ainda antes da concretização do negócio, colaborou com eles no sentido da obtenção dessa licença.
Fica, assim, esclarecido a resposta negativa ao número 6, certo que nenhuma prova se produziu no sentido de infirmar o declarado pelas supra referidas testemunhas.
2.6. Número 13.
Quanto às razões que determinaram a resposta negativa ao número 13, reiteramos, aqui, porque válidos, os argumentos supra expendidos na resposta negativa ao primeiro facto contido no número 5, repetindo-se que, datando o ofício da Câmara Municipal de 08.06.07 e a carta da ré a comunicar que ia encerrar o estabelecimento de 12.07.07, não se fez prova que nesse intervalo a ré tenha comunicado aos autores qualquer exigência da Câmara Municipal ou lhes tenha solicitado qualquer diligência no sentido de viabilizarem a obtenção da licença em falta.
2.7. Número 14.
A decisão relativa ao facto vertido no número 14 ficou a dever-se à circunstância de a prova produzida, criticamente apreciada, com recurso à regras da experiência e da normalidade, não permitir a formação de uma convicção positiva sobre a verificação desse facto.
Na verdade, para além do tudo o que já se expendeu na fundamentação da resposta negativa aos números 5, 6 e 13, convém salientar que, não obstante a falta de licença, o estabelecimento laborou como restaurante desde 29-06-93, data em que o arrendado passou a destinar-se ao exercício da actividade de Restaurante, Snack-bar e Afins, sendo certo que as testemunhas K…, I… e J… - anteriores sócios da ré - referiram que aquela falta nunca constituiu impedimento ao regular funcionamento do estabelecimento, tendo a segunda e a terceira, bem como a testemunha H…, apontado como causa do encerramento a perda de clientela ocorrida depois da cessão de quotas para o actual sócio da ré.”.
Como se constata, o julgador a quo expõe a razão de ciência das testemunhas, mencionando a credibilidade dos respectivos depoimentos e descreve o essencial dos depoimentos.
A prova testemunhal e documental indicada pelo julgador da 1ª instância na aludida motivação, suporta, lógica e consistentemente, o decidido no tribunal recorrido, no tocante à matéria dos quesitos nºs 5, 6, 8, 9, 11 e 12.
Com efeito, ouvidos os depoimentos das testemunhas, designadamente de E…, F… e H… e ponderada documentação junta pelas partes, afigura-se-nos não existir fundamento para alterar o decidido na 1ª instância, no que concerne à matéria vertida naqueles quesitos.
Porém, no referente ao constante dos quesitos nºs 13 e 14, afigura-se-nos que as respostas negativas dadas na 1ª instância não devem manter-se.
Com efeito, da aludida prova testemunhal e documental resulta, concretamente, no essencial, que:
- A ré, através do seu actual gerente G…, entregou, em 2006 e 2007, na Câmara Municipal …, em nome de B…, documentação com vista à obtenção da licença de utilização do estabelecimento de restauração existente no arrendado, originando o processo (camarário) nº 1078/96;
- Todos os ofícios inerentes à obtenção da licença eram dirigidos ao 1º autor, que reside junto ao locado;
- Em 15/05/07, o autor é notificado, pela Câmara Municipal de …, que foi emitido o alvará de licença de construção …/07, no âmbito do processo nº …./96, para remodelação e ampliação do prédio de habitação e comércio, sito em …, …., da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º;
- Em 08/06/2007, a ré foi notificada, pela Câmara Municipal …, para requerer a autorização de utilização ao prédio, sendo que o processo camarário nº …./96 não podia ser averbado em nome da ré para o espaço correspondente ao rés-do-chão do prédio porque, sendo arrendatária desse rés-do-chão e existindo uma habitação no 1º andar, não existia constituição de propriedade horizontal;
- Em Julho/Agosto de 2007, a ré encerrou o estabelecimento (restaurante) existente no arrendado;
- Em momento anterior ao da carta de fls. 78 (12/07/2007), os autores tenham sido informados da alegada exigência da Câmara Municipal da constituição da propriedade horizontal do prédio para emitir o alvará da licença de utilização, não havendo nenhum documento dirigido pela Câmara Municipal aos autores a dar-lhes conhecimento dessa exigência;
- A testemunha H…, ex-marido da autora e alegado procurador do autor B…, depois de ter recebido a aludida carta da ré, respondeu por carta de 27/07/2007 (fls. 109), na qual negou a necessidade de licença de utilização pelo facto de o contrato ser de 1973;
- Posteriormente, o referido H… dirigiu-se à Câmara Municipal … para se inteirar do processo e começou a tratar da constituição da propriedade horizontal;
- A Câmara Municipal de … não exigia a constituição da propriedade horizontal para a concessão da licença, tendo sido a testemunha E… quem sugeriu essa constituição porque nisso havia interesse em termos de vistoria, pois se no momento da vistoria não existisse propriedade horizontal seria vistoriado todo o prédio e se ela existisse só seria vistoriada a fracção correspondente ao estabelecimento;
- As testemunhas I… e J…, anteriores sócios da ré, que negociaram com o actual sócio e gerente da mesma a cessão de quotas, afirmaram que, em momento anterior ao da celebração do negócio, deram conhecimento àquele da falta de licença (alvará) para a actividade de restauração, sendo que o mesmo, ainda antes da concretização do negócio, colaborou com eles no sentido da obtenção dessa licença;
- O encerramento do restaurante, em Julho/Agosto de 2007, ficou a dever-se ao facto de a ré não possuir licença (alvará) de utilização do locado para a actividade da restauração, tendo-lhe sido instaurado, pela Câmara Municipal, um processo de contra-ordenação na sequência do auto de notícia nº 28/2006, de 06/03/2006;
- Em 30/01/2009, o autor B… foi notificado, no âmbito do aludido processo nº …./96, pela Câmara Municipal …, para requerer a licença ou autorização de utilização do prédio urbano, sito em …, …., da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º (docs. de fls. 169-170).
Aceita-se, pois, a convicção (positiva/restritiva e negativa) do julgador da 1ª instância, a que aderimos, que serviu de base à decisão sobre a matéria de facto, sendo esta consonante com as regras da experiência e da lógica, no tocante à matéria dos quesitos nºs 5, 6, 8, 9, 11 e 12.
Porém, a mencionada prova testemunhal e documental impõem decisão diversa da proferida na 1ª instância quanto ao questionado nos nºs 13 e 14, da base instrutória.
Por isso, neste particular, altera-se o decidido pelo julgador a quo, respondendo-se a tal matéria do seguinte modo:
Quesito 13º: Provado que os autores não requereram, à Câmara Municipal de …, a licença de utilização do seu prédio urbano sito em …, …., da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º.
Quesito 14º: Provado que o encerramento do estabelecimento (restaurante) ficou a dever-se ao facto de a ré não possuir licença (alvará) de utilização do locado para a actividade da restauração, com o esclarecimento que tal encerramento ocorreu em Julho/Agosto de 2007.
Temos, pois, como assente a seguinte a matéria de facto:
a) Por escritura pública de 11-01-1973, L… deu de arrendamento a M… o rés-do-chão do prédio urbano correspondente a uma habitação de dois andares com a área de 83 m2 e dependência e pátio com 100 m2, sito na …, nº …., …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº 00821 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 376 (alínea A) dos factos assentes);
b) O citado contrato tinha por escopo o exercício da actividade de casa de pasto e comércio de vinhos (alínea B) dos factos assentes);
c) No acordo referido em a) consta, a título de cláusula c), que: “A renda anual, a pagar na residência do senhorio, é de trinta mil escudos pagável em prestações mensais de dois mil e quinhentos escudos cada uma, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito” (alínea N) dos factos assentes e documento de fls. 56 a 61);
d) Por escritura pública de 29-06-93, M… e N… trespassaram à ré o estabelecimento comercial situado no rés-do-chão do aludido imóvel com a transmissão de todos os elementos que então o compunham, designadamente o direito ao arrendamento, alvarás e licenças (alínea C) dos factos assentes e documento de fls. 65 a 68);
e) Na referida escritura, O… e a ré acordaram alterar o contrato de arrendamento anteriormente celebrado pela forma seguinte: “a) O rés-do-chão arrendado destina-se ao exercício da actividade de Restaurante, Snack Bar e Afins; b) A renda mensal é de sessenta mil escudos até ao mês de Dezembro do ano em curso e de setenta mil escudos a partir de Janeiro de mil novecentos e noventa e quatro (…)” (alínea D) dos factos assentes e documento de fls. 65 a 68);
f) Por título particular, datado de 26.01.94, cujas assinaturas foram notarialmente reconhecidas, entre as partes foi acordada a realização de obras de ampliação do locado (alínea E) dos factos assentes);
g) L… faleceu em 25-12-2001, tendo deixado testamento, nele legando o direito de usufruto, em comum, do prédio urbano identificado em a) aos autores (alíneas G), H) e I) dos factos assentes e documento de fls. 74 a 77);
h) Nos termos do contrato de arrendamento recai sobre a sociedade ré a obrigação de pagar uma renda anual que, por força das sucessivas actualizações legais entretanto efectuadas, ascende ao montante de € 8.165,52, a liquidar em duodécimos de € 680,46, no primeiro dia útil do mês anterior a que diz respeito na residência dos senhorios (alínea J) dos factos assentes);
i) A sociedade ré não procedeu ao pagamento das rendas referentes aos meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro do corrente ano (alínea L) dos factos assentes);
j) O estabelecimento em causa encontra-se encerrado (alínea M) dos factos assentes);
l) Para o exercício da actividade descrita em e) é necessária licença camarária (licença de utilização) (resposta ao número 3 da base instrutória);
m) Todos os ofícios inerentes à obtenção da licença eram dirigidos ao 1º autor (resposta ao número 7 a base instrutória);
n) Em 27.12.2006, a ré, através do seu actual gerente G…, entregou na Câmara Municipal …, em nome de B..., dirigido ao processo nº …./96, memória descritiva, projecto de redes de água e saneamento, planta à escala 1/500 ou 1/1000 ou 1/2000, projecto de instalações electromecânicas, pormenor de fossa séptica e poço sumidoro e requerimento (resposta ao número 8 da base instrutória);
o) A ré liquidou taxas e fez diligências exigidas pela Câmara Municipal (resposta ao número 9 da base instrutória);
p) Em 15.05.07, o autor é notificado que foi emitido o alvará de licença de construção 138/07 (resposta ao número 10 da base instrutória);
q) A ré foi notificada que o processo nº 1078/96 não podia ser averbado em seu nome porque, sendo arrendatária do rés-do-chão do prédio, existindo uma habitação no 1º andar, não existia constituição de propriedade horizontal (resposta ao número 11 da base instrutória);
r) Em 08.06.2007 a ré foi notificada pela Câmara Municipal … que tinha de requerer a autorização de utilização ao prédio, sendo que, conforme consta da alínea q), o processo nº …./96 não podia ser averbado em nome da ré para o espaço correspondente ao rés-do-chão do prédio porque, sendo arrendatária desse rés-do-chão e existindo uma habitação no 1º andar, não existia constituição de propriedade horizontal (resposta ao número 12 da base instrutória);
s) A ré suportou as seguintes despesas:
- análise da água no P…, no montante de € 73,81.
- sistema de desnitrificação de água à Q…, no montante de € 2.722,50.
- pagamento à CCDRN para emitir parecer de retenção de Efluente, no montante de € 158,00.
- taxas suportadas em nome do autor na Câmara Municipal …, no montante de € 2.789,61 (resposta ao número 15 da base instrutória).
t) Os autores não requereram, à Câmara Municipal …, a licença de utilização do seu prédio urbano sito em …, …., da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º (resposta ao quesito 13º);.
u) O encerramento do estabelecimento (restaurante) ficou a dever-se ao facto de a ré não possuir licença (alvará) de utilização do locado para a actividade da restauração, ocorrendo tal encerramento em Julho/Agosto de 2007 (resposta ao quesito 14º).

2.2- O DIREITO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1 e 3, do C.P.Civil.
Assente a matéria de facto, analisemos o direito aplicável, no quadro da causa de pedir e pedidos (acção e reconvenção) formulados.
O contrato de arrendamento em causa, de natureza comercial, foi celebrado em 1973, alterado, parcialmente, em 1993 e 1994 (arts. 1022º, 1023º e 1029º, al. b), do Código Civil(CC), e 110º, do RAU, aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15/10, que reproduz o, então, revogado artº 1112º, do CC;
Como bem ajuizado na decisão recorrida, na apreciação do fundamento de resolução contratual aplica-se o estatuído no Novo Regime do Arrendamento Urbano(NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (ver arts. 1038º, al. a), e 1083º, do CC).
Nos termos do disposto no artº 428º, CC, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo;
Assim, a possibilidade de invocar a exceptio non adimpleti contractus depende da verificação cumulativa de três requisitos, a saber: a existência de um contrato bilateral ou sinalagmático, ou seja, em que se prevejam obrigações correlativas ou interdependentes; a não fixação de prazos diferentes para as prestações dos contratantes e que a contraparte não tenha cumprido a sua prestação, ou que não se tenha oferecido para o seu cumprimento.
Porém, mesmo “estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro”;
A exceptio non adimpleti contractus constitui uma excepção peremptória de direito material, cujo objectivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo tipicamente no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento defeituoso, pela qual uma das partes, não negando, nem limitando o direito do outro ao cumprimento, recusa a sua prestação enquanto não for realizada ou oferecida simultaneamente a contraprestação.
A excepção de não cumprimento não é senão a recusa temporária do devedor – credor de uma prestação não cumprida no âmbito de um contrato sinalagmático – que, assim retarda, legitimamente, o cumprimento da sua prestação enquanto o credor não cumprir a prestação que lhe incumbe.
A invocação da excepção de não cumprimento pressupõe que uma das partes possa recusar a sua prestação à outra enquanto esta não cumprir, o que naturalmente requer que o cumprimento seja ainda possível.
Tem sido considerado, em suma, que, ”para que a exceptio não seja julgada contrária à boa fé, deverá haver uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra” (José João Abrantes A Excepção de Não cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, 1986, Almedina, pág. 124). Isto postula que a noção de boa fé não pode deixar de ser concretizada caso a caso e é em função dos elementos probatórios concretos que o Tribunal decidirá se efectivamente se verificam tais condições justificativas da excepção.
No caso em apreço, dúvidas não há de que nos encontramos na presença de um contrato sinalagmático (arrendamento urbano comercial), que impõe a ambos os contraentes obrigações correspectivas, a saber, o senhorio tem a obrigação de assegurar o gozo da coisa ao locatário estando este obrigado ao pagamento da renda, como contrapartida (arts. 1031º e 1038º, al. a), do CC).
O artº 9º, do RAU, aprovado pelo do DL nº 321-B, de 15/10, (actualmente também o artº 1070º, do CC, redacção dada pelo artº 3º, da Lei nº 6/2006, de 27/02), estatui que o senhorio só pode outorgar o contrato de arrendamento urbano se detiver uma licença de utilização para o fim pretendido com o arrendamento, com base em vistoria realizada há menos de oito anos. Essa vistoria poderá ser global (aquando da abertura do edifício) ou parcelar, para cada espaço a arrendar (Pinto Furtado, “Manual do Arrendamento Urbano”, 2.ª ed, p. 338/9).
O citado normativo (artº 9º do RAU) tem a sua origem no artº 8º, do RGEU (Decreto-Lei n.º 38382 de 7 de Agosto de 1951) e ainda no artº 1º, do DL nº 329/81, de 4/12, aplicando-se aos arrendamentos celebrados após 1 de Janeiro de 1992 (ver ainda o artº 26º do DL nº 445/91, de 20/11, e 62º, do DL nº 555/99, de 16/12, que estabelece o RJUE).
Também no artº 5º, do DL nº 160/2006, de 08/08, se impõe que apenas podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios, construídos depois de 1951, ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização.
A licença é o acto administrativo que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos, sendo relativa a proibição quando a lei admite que a actividade proibida seja exercida, nos casos ou pelas pessoas a quem a administração o permita.
O alvará é a forma solene do acto administrativo, o título dos direitos conferidos aos particulares, por deliberação dos órgãos autárquicos ou decisão dos seus titulares (artº 94º, do DL nº 169/99, de 18/09). É, pois, um simples título de licenciamento, um documento firmado pela autoridade competente, pela qual esta faz saber a quem dele tome conhecimento a existência de certo direito constituído, em proveito de determinada pessoa.
A exigência da licença de utilização baseia-se na necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer de segurança, salubridade ou estética.
Há que distinguir entre licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica (v.g., habitação, comércio, profissão liberal, etc.) e a licença de utilização para o exercício de qualquer espécie daquele género (farmácia, consultório médico, restaurante, etc.), sendo diversos os titulares de direitos que podem requerer o licenciamento.
Só a primeira é obrigação do senhorio, por se tratar de licenciamento do edifício para necessidades comuns a certo tipo de utilização e conciliá-lo com os direitos dos restantes condóminos e com a própria estrutura e configuração do edifício e suas acessibilidades.
Já as licenças, com o respectivo alvará, para o exercício de certo ramo (que podem implicar a realização de obras internas, instalações de água e electricidade próprias e definição de áreas de compartimentos) cumprem ao arrendatário que pretende exercer a actividade específica.
O licenciamento dos estabelecimentos comerciais visa assegurar a higiene, a salubridade, a segurança, a comodidade e as condições técnico-funcionais na instalação e laboração dos mesmos.
Ajuizou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/12/2007 (proc.nº 07A2766) que “o senhorio tem a obrigação de assegurar o gozo da coisa ao locatário estando este obrigado ao pagamento da renda, como contrapartida, não cumprindo ao locador a obtenção de qualquer licença ou alvará. Se nada tiver sido convencionado em contrário, tratando-se de arrendamento para exercício de restauração, é ao arrendatário que compete proceder às obras de adaptação, gestão de áreas, instalação de equipamentos e decoração para instalar o seu estabelecimento.” (citado no Ac. do STJ, de 19/02/2008, proc. nº 08A194, ambos consultáveis em www.dgsi.pt).
Prova-se, no caso em apreço, e resulta da lei, que para o exercício da actividade de restauração é necessária licença camarária (alvará de utilização) – ver artº 11º e segs, do DL nº 168/97, de 4 de Julho, que regulamentava o processo de licenciamento da utilização de estabelecimentos de restauração e bebidas, com a redacção introduzida pelo DL nº 57/2002, de 11 de Março, entretanto revogado pelo DL nº 234/2007, de 19/06 (ver artº 10º).
Conclui a apelante que se o prédio foi arrendado sem licença de ocupação em 1993, essa situação é ilegal e obriga o senhorio a fazer as obras necessárias para a sua obtenção se for interpelado para tal pelo arrendatário.
Apurou-se que o contrato de arrendamento é de 1973, mas foi alterado em 09/06/1993 e 26/01/1994, na escritura de trespasse e alteração de arrendamento e no acordo escrito.
Essa alteração, de 1993, respeita ao fim do arrendamento e ao valor da renda, a saber, (“a) O rés-do-chão arrendado destina-se ao exercício da actividade de Restaurante, Snack Bar e Afins; b) A renda mensal é de sessenta mil escudos até ao mês de Dezembro do ano em curso e de setenta mil escudos a partir de Janeiro de mil novecentos e noventa e quatro (…)”. O acordo escrito, de 1994, respeita a obras de ampliação do locado e utilização do logradouro.
A nosso ver, deverá aplicar-se ao contrato de arrendamento (alteração) o estatuído no nº 1, do artº 9º, do RAU (actualmente o disposto no artº 1070º, introduzido pelo artº 3º, do DL nº 6/2006, de 27/02), ou seja, a exigência de licença de utilização do prédio, onde se insere o rés-do-chão locado, para além de passar a ser necessário a competente licença camarária (alvará de utilização), para o exercício da actividade de restauração, no rés-do-chão.
Como vimos, a obtenção da licença ou autorização de utilização (genérica) para o prédio é obrigação do senhorio, cabendo ao inquilino conseguir a licença de utilização (específica), e o consequente alvará, para o estabelecimento funcionar regularmente.
Prova-se, além do mais, que:
- Em 27.12.2006, a ré, através do seu actual gerente G…, entregou na Câmara Municipal …, em nome de B…, dirigido ao processo nº …./96, memória descritiva, projecto de redes de água e saneamento, planta à escala 1/500 ou 1/1000 ou 1/2000, projecto de instalações electromecânicas, pormenor de fossa séptica e poço sumidoro e requerimento;
- A ré liquidou taxas e fez diligências exigidas pela Câmara Municipal;
- Todos os ofícios inerentes à obtenção da licença eram dirigidos ao 1º autor;
- Em 15.05.07, o autor é notificado que foi emitido o alvará de licença de construção …/07, no âmbito do processo nº …/96, para remodelação e ampliação do prédio de habitação e comércio, sito em …, …, da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º;
- Os autores não requereram, à Câmara Municipal …, a licença de utilização do seu prédio urbano sito em …, …., da freguesia de ………., Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º, pelo menos até 30/01/2009 (docs. fls 169-170).
Assim, salvo melhor opinião, não corresponde à realidade apurada nos autos a afirmação efectuada na decisão recorrida no sentido de que “decorre dos factos provados que foi requerida a licença de utilização do prédio – onde se insere o rés-do-chão arrendado (…)”.
O que o autor B… requereu, e obteve, foi uma licença de construção, no âmbito do processo nº …./96, para remodelação e ampliação do prédio de habitação e comércio, sito em …, …., da freguesia de ………. Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º.
Após as obras de remodelação e ampliação, que não sabemos se foram realizadas no prazo (um ano) referido no documento de fls. 129, e a subsequente vistoria, é que seria, eventualmente, concedida a licença ou autorização de utilização do prédio, onde se integra o rés-do-chão arrendada à demandada.
Conclui a recorrente que estando o senhorio em mora, pode o locatário recusar o pagamento da renda, se não consegue licenciar o estabelecimento por recusa do senhorio em fazer a propriedade horizontal do prédio, condição imposta pela Câmara para licenciar o estabelecimento ao arrendatário.
Invoca, pois, a excepção de não cumprimento prevista no artº 428º, do CC, cuja noção e pressupostos se deixaram enunciados.
Importa, assim, analisar se os autores senhorios estão em mora, ou seja, se não cumprem a obrigação de assegurar o gozo da coisa à locatária.
Na sentença da 1ª instância entendeu-se que a excepção não opera no caso.
Ponderou-se, para tanto, na decisão recorrida:
”(…) Além disso, decorre dos factos provados que foi requerida a licença de utilização do prédio – onde se insere o rés-do-chão arrendado - e que ela ainda não existe, sendo certo que a ré não provou que a falta dessa licença se deve ao facto de os autores se recusarem a obter para o prédio a propriedade horizontal.
Ademais, os factos provados revelam que a ré conhecia desde 1993 (o efeito jurídico que a ré pretende retirar da alegação da aquisição das quotas em 2006 pelo seu actual sócio gerente não procede, pois, por um lado, não se provou que o último só na referida data tenha tido conhecimento da falta de licença e, por outro lado, não há que confundir a sociedade com a pessoa dos seus sócios) a falta de licença camarária e que esse facto não a impediu de utilizar e explorar o estabelecimento comercial – ou seja, de utilizar o rés-do-chão arrendado para o exercício da actividade de Restaurante, Snack Bar e Afins.
Na verdade, a factualidade provada não atesta que a ré ficasse, devido à falta de licença, impossibilitada de exercer a sua actividade ou mesmo que tivesse alguma dificuldade nesse exercício, por tal motivo. Ao invés, essa factualidade evidencia que a utilização do arrendado para o exercício da actividade prevista no contrato não foi inviabilizada por aquela circunstância e que essa utilização vem sendo feita desde 1993 em termos totais.
É, pois, inquestionável que a ré passou a gozar o locado, pelo que, entregando o locado à ré, a locadora proporcionou-lhe o gozo da coisa locada, a que ficou adstrita pelo contrato.
E, embora seja certo que essa entrega ocorreu antes da obtenção da aludida licença, também é exacto que a ré aceitou essa falta.
Como a locadora entregou o locado à ré no quadro da mencionada aceitação da falta de licença e os factos não revelam que a última tenha sido ou esteja a ser impedida de usufruir do locado nos termos convencionados por virtude da falta daquela licença, não ocorre o pressuposto da excepção de não cumprimento a que se reporta o artigo 428º, nº 1, do Código Civil.”.
Vejamos.
Constata-se que apesar de os autores não terem obtido a licença ou autorização de utilização do seu prédio urbano, a partir de 1993, tal incumprimento não obstou a que a ré prosseguisse a sua actividade sem qualquer problema, durante vários anos, não reclamando junto dos senhorios quaisquer dificuldades derivadas daquela omissão.
Porém, o facto de a ré ter explorado o estabelecimento sem licença (alvará) de utilização de estabelecimentos de restauração e bebidas, sem obstáculo da autoridade administrativa, até 06/03/2006 (data do auto de notícia nº 28/2006), não significa que a locatária aceitasse ou se conformasse com a falta de licença ou autorização de utilização do prédio.
Nem, logicamente, se podia conformar, pois que a situação era ilegal e sancionável, como decorre do aludido auto de notícia, ao ponto da autoridade administrativa ordenar o encerramento do estabelecimento (ver artº 39º, nº 1, al. c), do DL nº 168/97, e artº 10º, do DL nº 234/2007).
Repare-se que na motivação da decisão da matéria de facto, o julgador da 1ª instância refere que as testemunhas I… e J…, anteriores sócios da ré, que negociaram com o actual sócio e gerente da mesma (G…) a cessão de quotas (alegadamente escriturada em 09/05/2006), afirmaram que, em momento anterior ao da celebração do negócio, deram conhecimento àquele da falta de licença (alvará) para a actividade de restauração, sendo que o mesmo, ainda antes da concretização do negócio, colaborou com eles no sentido da obtenção dessa licença.
Daí as diligências, iniciadas pelo legal representante da ré, em 2006, em nome do autor, com vista ao licenciamento do prédio e da actividade de restauração.
Sustenta a apelante que não consegue licenciar o estabelecimento por recusa do senhorio em fazer a propriedade horizontal do prédio, condição imposta pela Câmara para licenciar o estabelecimento ao arrendatário.
Não está, porém, demonstrado que a Câmara Municipal condicione o licenciamento do estabelecimento da ré à constituição da propriedade horizontal do prédio. Como se referiu, na apreciação da fundamentação da matéria de facto, resultou da prova testemunhal que a Câmara Municipal … não exigia a constituição da propriedade horizontal para a concessão da licença, tendo sido a testemunha E… quem sugeriu essa constituição porque nisso havia interesse em termos de vistoria, pois se no momento da vistoria não existisse propriedade horizontal seria vistoriado todo o prédio e se ela existisse só seria vistoriada a fracção correspondente ao estabelecimento.
O que se apurou é que o processo nº 1078/96 não podia ser averbado em nome da ré para o espaço correspondente ao rés-do-chão do prédio porque, sendo arrendatária desse rés-do-chão e existindo uma habitação no 1º andar, não existia constituição de propriedade horizontal.
O que importa saber é se a ré consegue licenciar o seu estabelecimento sem a existência de licença ou autorização de utilização (genérica) do prédio.
Pensamos que não.
Como vimos, a obtenção da licença ou autorização de utilização (genérica) para o prédio ou edifício, regulada no DL 555/99, de 16/12 (ver arts 4º, nº 2, al. e), 62º e 109º, nº 1), é obrigação do senhorio, cabendo ao inquilino conseguir a licença de utilização (específica), e o consequente alvará – título que legitima a utilização do imóvel - para o estabelecimento funcionar. No caso em apreço, tratando-se da actividade de restauração, atender-se-á ao estatuído no DL 168/97, de 04/07, e DL nº 234/2007, de 19/06.
De notar que a independência entre a licença de utilização do edifício e a licença de funcionamento do estabelecimento de restauração estava expressamente consagrada no artigo 37º, nº 3, do DL nº 328/86, de 30/12, ao prescrever que o alvará de autorização de abertura dos estabelecimentos, a emitir pelo governo civil do distrito, é independente e não substitui a licença municipal de utilização dos edifícios onde se encontra instalado o estabelecimento.
Acresce que, no caso, os locadores estavam vinculados ao preceituado no artº 9º, do RAU, e artº 5º, do DL nº 160/2006, de 08/08.
O certo é que a ré não podia continuar a exercer a sua actividade de restauração no locado sob pena de ser continuamente sancionada pela entidade autárquica que tutela a legalidade, incluindo a hipótese de encerramento (ver artº 39º, nº 1, al. c), do DL nº 168/97, artº 22º, do DL nº 234/2007, e artº 109º, do DL nº 555/99, de 16/12.
Essa impossibilidade deve ser imputada aos autores senhorios na medida em que lhes cabe providenciar pela obtenção da licença de utilização (genérica) do prédio, sem a qual a arrendatária não pode obter a licença de utilização (específica) para a actividade de restauração.
Significa isto, a nosso ver, que os senhorios não proporcionam à inquilina a possibilidade de gozo do locado, ou seja, não lhe asseguram “o gozo desta para os fins a que a coisa se destina.” (al. b), do artº 1031º, do CC).
Ora, como predito, a excepção material dilatória de não cumprimento do contrato tem por escopo levar a outra parte ao cumprimento das suas obrigações, constituindo um meio de defesa estritamente temporário.
Por isso, no caso, existe fundamento para a ré obter o reconhecimento do direito a um não pagamento da renda, ou seja, de excepcionar o não cumprimento do contrato.
A omissão da mencionada obrigação dos senhorios legitima a ré a sustar o cumprimento das suas obrigações, já que o sinalagma, neste contrato, se estabelece entre a obrigação principal de pagamento da renda, pela arrendatária, e a obrigação principal dos autores, de lhe propiciar a ocupação do rés-do-chão, sem qualquer limitação ou constrangimento.
Por outro lado, considera-se que, face ao incumprimento de obrigação sinalagmática por parte dos autores locadores, aquela arrendatária ficou impossibilitada ou prejudicada no exercício da sua actividade comercial (ver artº 795º, do CC).
Decorre do exposto que o fundamento de resolução contratual invocado pelos locadores demandantes não opera na justa medida em que inexiste mora por parte da locatária, que pode suspender o pagamento da renda até que aqueles obtenham a licença ou autorização de utilização do prédio (arts 428º, 804º, nº 2, e 1083º, nº 3, do CC).
Por isso, a acção improcede.
Vejamos, agora, a reconvenção, sem prejuízo do expendido adiante.
A ré pede a condenação dos autores a fazerem as obras necessárias para a obtenção do licenciamento do rés-do-chão para restaurante, nomeadamente a propriedade horizontal, a pagar-lhe a quantia de € 5.743,92, com os respectivos juros, e os prejuízos, em quantia a liquidar ulteriormente, decorrentes do encerramento do estabelecimento desde Julho de 2007.
Prova-se que o autor B… requereu, e obteve, em 15/05/2007, uma licença de construção, no âmbito do processo nº …/96, para remodelação e ampliação do prédio de habitação e comércio, sito em …, …., da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º.
Não sabemos se as obras licenciadas foram realizadas no prazo (um ano) referido no documento de fls. 129.
Sabemos, porém, que os autores não requereram, à Câmara Municipal …, a licença de utilização do seu prédio urbano sito em …, …., da freguesia de …, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 32º, pelo menos até 30/01/2009 (docs. fls 169-170).
Não está demonstrado, a nosso ver, que a Câmara Municipal … exigia a constituição da propriedade horizontal para a concessão da licença de utilização do prédio.
Na verdade, o que ficou provado foi que o processo camarário nº …./96 não podia ser averbado em nome da ré para o espaço correspondente ao rés-do-chão do prédio porque, sendo arrendatária desse rés-do-chão e existindo uma habitação no 1º andar, não existia constituição de propriedade horizontal.
Conforme referido pelo julgador da 1ª instância, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, a ideia da constituição da propriedade horizontal para a concessão da licença, no âmbito do processo camarário nº …./96, foi sugerida pela testemunha Eng. E… porque nisso havia interesse em termos de vistoria, pois se no momento da vistoria não existisse propriedade horizontal seria vistoriado todo o prédio e se ela existisse só seria vistoriada a fracção correspondente ao estabelecimento.
Em suma, a Câmara não exigia, ou exige, a constituição da propriedade horizontal para a concessão da licença de utilização do prédio em questão. Os autores e a ré é que, por informação daquele técnico, resolveram seguir o procedimento sugerido pelo Eng. E….
Significa isto que os autores podem, salvo melhor opinião, requerer a licença de utilização (genérica) de todo o prédio, sem necessidade de constituição da propriedade horizontal.
Como vimos, a obtenção da licença ou autorização de utilização (genérica) para o prédio ou edifício, regulada no DL 555/99, de 16/12 (ver arts 4º, nº 2, al. e), 62º e 109º, nº 1), é obrigação do senhorio, cabendo ao inquilino conseguir a licença de utilização (específica), e o consequente alvará – título que legitima a utilização do imóvel - para o estabelecimento funcionar.
Ora, no caso, não sabemos se os autores senhorios, para obterem a licença de utilização (genérica), necessitam de efectuar obras no prédio.
O que sabemos é que, tratando-se de arrendamento para exercício de restauração, é ao arrendatário que compete proceder às obras de adaptação, gestão de áreas, instalação de equipamentos e decoração para instalar o seu estabelecimento.
Deste modo, em termos de pedido reconvencional, a única condenação possível seria a de obrigar os autores a requererem a licença ou autorização de utilização (genérica) do prédio.
Dizemos “seria” pois que na alegação do recurso e, como se exige, nas respectivas conclusões, a apelante não questiona o decidido na sentença recorrida no tocante ao pedido reconvencional, com excepção das despesas que suportou, descritas em s), da fundamentação de facto.
Com efeito, a apelante termina as conclusões do seguinte modo:
“Termos em que, ao abrigo do disposto no artº 712 nº 1 al. a) e b) do C.P.C. devem ser alteradas as respostas aos quesitos 5º,6º, 8º, 9º, 11º,12º, 13º e 14º para provado, com base nos documentos e depoimento das testemunhas e a Sentença ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a acção, por erro de interpretação e aplicação do disposto nos artigos 9º do R.A.U., 1086 nº 1 e 1112 do C.C. com a redacção em vigor na data da escritura de arrendamento – artº 1038 al. a), 1042 e 1083 nºs 2 e 3 do C.C., 428 nº 1 do C.C.”.
De todo o modo, no referente às despesas suportadas pela ré (€ 5.743,92), não se pode concluir, com segurança, que as mesmas se integrem no processo de licenciamento autorização de utilização (genérica) do prédio ou apenas respeitem a obras e/ou actividades necessárias ao exercício de restauração, a custear pela reconvinte.
Entende-se que não estão demonstrados, pela ré, os factos integradores de todos os requisitos (cumulativos) do invocado enriquecimento sem causa (artº 473º, do CC), a saber: a existência de um enriquecimento; que o enriquecimento seja obtido à custa de outrem; o nexo causal entre enriquecimento e empobrecimento e que não exista causa justificativa para essa deslocação patrimonial (ver A. Varela, “Das Obrigações em geral”, 9ª ed., I, 495, Menezes Leitão, em “O enriquecimento sem causa no Código Civil de 1966”, acerca das “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, e, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 16/09/2008, Proc. nº 08B1644, e de 20/09/2007, proc. nº 07B2156).
Na verdade, para além da natureza subsidiária do instituto (artº 474º, do CC), não se prova que os autores tenham enriquecido, sem causa justificativa, à custa da ré, a quem caberia suportar as referidas despesas.
Por fim, embora não questionado na alegação/conclusões do recurso, não deixaremos de abordar, sinteticamente, a questão da indemnização pelos alegados prejuízos decorrentes do encerramento do restaurante.
A responsabilidade civil contratual, geradora da obrigação de indemnização, pressupõe o facto (danoso) objectivo do não cumprimento por parte do demandado, a ilicitude (desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado), o prejuízo sofrido pelo credor/lesado e o nexo de causalidade entre aquele facto e o prejuízo - arts. 406º, n.º 1, 762º, n.º 1, 798º e 799º, do CC, e A. Varela, Das Obrigações em geral, 7ª ed., vol. II, pág. 94, M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 483 e segs., e I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 331 e segs.).
Ora, a reconvinte não provou que o encerramento do restaurante lhe provocasse prejuízos e estes, a nosso ver, não se podem presumir.
Assim, falta um dos pressupostos (o dano) da responsabilidade civil contratual, geradora da obrigação de indemnização.
O pedido reconvencional não procederia neste particular.
Assim, procede, na medida do exposto, o concluído na alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida na parte em que julgou parcialmente procedente a acção e, consequentemente, julga-se totalmente improcedente a acção, absolvendo-se a ré do(s) pedido(s).
Mantém-se o decidido na 1ª instância no tocante ao pedido reconvencional.
Custas da Apelação pela Apelante e Apelados, na proporção de 1/10 e 9/10, respectivamente.
Custas da acção pelos autores e da reconvenção pela reconvinte.

Porto, 20/06/2011
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
António Eleutério Brandão Valente de Almeida