Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1354/12.1TAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: OFENSA A ORGANISMO
SERVIÇO OU PESSOA COLETIVA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS OBJECTIVOS DO TIPO
DIREITO DE CRÍTICA
Nº do Documento: RP201304031354/12.1TAMTS.P1
Data do Acordão: 04/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - O núcleo do bem jurídico protegido no crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva previsto no art. 187º do CP é, como diz Faria Costa, “a ideia de bom nome”, do sujeito passivo (que, desde a reforma de 2007, é o organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação), a qual se assume “como uma realidade dual”.
II - O tipo objectivo do ilícito previsto no art. 187º do CP exige o preenchimento dos seguintes pressupostos:
a) sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos;
b) que esses facto inverídicos (que foram afirmados ou propalados pelo sujeito activo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros) são capazes (aptos) de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo.
III – A credibilidade, o prestígio e a confiança do sujeito passivo aferem-se em função da sua actuação e modo como é visto pela comunidade (a partir do juízo feito pelo homem médio). A credibilidade exige cumprimento da lei, com seriedade, isenção e eficiência, o prestígio tem a ver com as qualidades do sujeito passivo, com o seu mérito designadamente quando comparado com outras entidades que desempenham idêntica actividade e a confiança com o reconhecimento do seu valor, atenta a forma correcta como actua.
IV - “Afirmar ou propalar” factos inverídicos pressupõe que a ofensa seja feita verbalmente, tanto mais que, o nº 2 do art. 187º do CP não remete para o disposto no art. 182º do CP, o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aqui (art. 187º do CP) aplicável. Mesmo em relação aos crimes previstos nos arts. 180º e 181º do CP, caso não existisse a equiparação consagrada no art. 182º do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, por escrito também não eram punidas.
V - No crime previsto no art. 187º do CP, considerando a qualidade do sujeito passivo (“entidade abstracta”, com determinadas características que a distinguem da pessoa singular) a “ofensa” terá que assumir relevo bastante para se poder concluir que tem aptidão para afectar o bem jurídico protegido, o que igualmente significa que terá de existir maior tolerância perante a crítica feita a uma entidade abstracta.
VI - Assim, um escrito dirigida a um concreto processo poderá, consoante o seu teor, ofender a honra e consideração, por exemplo, dos magistrados que decidiram o caso, mas não tem idoneidade bastante para afectar o bom nome do tribunal (“entidade abstracta”).
VII - Também não integra o tipo objectivo de ilícito previsto no art. 187º do CP afirmar ou propalar “juízos ” inverídicos (mesmo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros), ainda que esses juízos sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo (que não se confunde com a pessoa singular).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 1354/12.1TAMTS.P1)
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Decisão sumária
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I. Relatório
No 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, nos autos de instrução nº 1354/12.1.TAMTS, foi proferida, em 20.11.2012, a seguinte decisão instrutória (fls. 68 e 69):
Não há nulidades ou quaisquer outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito e que ora cumpre conhecer.
Como é sabido, nos termos do artº 286º, e 308º do C.P.P., a instrução destina-se à comprovação judicial da acusação e da suficiência dos indícios que a devem suportar, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
Ponderando toda a prova produzida com destaque para a prova documental e para as sucessivas declarações do arguido no presente processo, temos como suficientemente indiciados os factos alegados no requerimento de abertura de instrução.
A liberdade de expressão é um valor que recebe consagração constitucional, e em nosso entender, a actuação do arguido não tem um desvalor ou resultado danoso que mereça a drasticidade da acção penal. O arguido reagiu a uma notificação de uma conta, de um processo judicial que perdeu, atitude que pode ser considerada de mau perdedor, mas que não se reveste de dignidade penal.
Não imputa factos ofensivos ao Tribunal limitando-se a formular juízos e opiniões sobre o ocorrido naquele processo concreto.
Refere-se abstractamente aos senhores numa carta que iniciou de uma forma respeitosa: "Estimados Senhores, ", o que denota que o arguido não terá tido a intenção de ofender ou lesar a credibilidade, o prestígio ou a confiança que o Tribunal deve merecer.
Á laia da conclusão diremos que os tribunais, como as pessoas, não são perfeitos.
Ao cidadão deve ser reconhecida a liberdade de criticar aquilo que, no seu entender, não correu bem.
Só através do livre exercício da crítica é que é possível melhorar as instituições do Estado e da administração da justiça, no tão almejado intuito de reforma do estado.
Pelo exposto e decidindo, nos termos do artº 307º, nº 1 e 308º do C.P.P., não pronuncio o arguido B......, determinando o arquivamento dos autos.
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Inconformado com essa decisão, o Ministério Público interpôs recurso (fls.70 a 83), apresentando as seguintes conclusões:
1. A nossa discordância com o douto despacho recorrido é total e frontalmente oposta em todas as vertentes nele focadas, desde logo quanto ao mencionado direito à liberdade de expressão, o qual, dizemos nós, não pode sobrepor-se ao direito ao bom nome e reputação igualmente constitucionalmente consagrado no seu art.26º da CRP;
2. O bem protegido neste artigo 187º do CP (imputado ao arguido), situação esta que foi alargada no âmbito da Lei nº59/2007, ao bom nome do organismo e serviço, dotado, ou não, de autoridade publica, às pessoas coletivas e ao próprio Estado de Direito e aos seus órgãos de soberania, como sejam os tribunais, a quem a carta/missiva se dirigia;
3. A qual contem expressões, considerando, os quais, quer do ponto de vista objetivo, como subjetivo, são difamatórios dessa instituição e das pessoas que nele administram justiça, a quem imputa factos e contra quem utiliza expressões atentatórias e lesivas do bom nome deste órgão de soberania e dos seus servidores, visando feri-la na sua honra, honestidade e caracter, denegrindo, dessa forma, a pessoa abstracta do Estado de Direito;
4. Expressões atentatória do “arácter” dos representantes titulares deste órgão de soberania, quando, por exemplo, se referem “- só pode ser uma piada de mau gosto, de muito pior gosto do que todas as anteriores, anedótico episodio”,
De “Honradez”, quando por forma direta e ate mesmo arrogante utilizando e dirigindo-se aos representantes deste órgão em maiúsculas afirma e passamos a citar “, inadmissível a forma leviana e irresponsável com que os Senhores alegadamente “fazem e praticam justiça”,“ os Senhores dão razão a aldrabões e andam a brincar e a prejudicar de uma forma cega e prepotente com as pessoas serias,
de falta de“ Honestidade”, quando refere que e passamos a citar “…A requerente avançou com um pedido de insolvência baseada numa divida que não existe, nem nunca existiu, baseada em facturas fictícias que nunca por nós foram recepcionadas e tendo por conta um serviço nunca prestado.
E mesmo assim o Tribunal deu razão à requerente…”;
5. Acrescente-se que este tipo legal de crime tem como características essenciais a afirmação ou propalação de factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestigio ou a confiança da pessoa coletiva, três componentes estas que serão tanto maiores quanto maior for também a crença que a comunidade circundante tenha no valor intrínseco da própria instituição;
6. Credível quando, pela atuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, prestigio, sempre que pelo comportamento dos seus órgãos ou membros ela se impõe no domínio especifico da sua atualidade, perante instituições congéneres e digna de confiança quando pela sua génese e atuações posteriores se apresenta, como entidade depositaria daquele mínimo de solidez moral, daí que discordemos do Mº Juiz quando refere que o arguido não imputa factos ofensivos, mas limita-se a formular juízos e opiniões sobre o ocorrido num concreto processo;
7. Pela nossa parte diremos que a liberdade de expressão não pode ser usada como arma de arremesso ou de desculpa para se escreverem ou propalarem inverdades, altamente ofensivas da dignidade dos órgãos de soberania, não devendo tal liberdade ser um autentico vale tudo para desresponsabilizar os seus agentes;
8. E se os cidadãos têm direito a manifestarem a sua indignação, entendendo-se as criticas para delas melhorar o atendimento publico, isso não significa poder dizer tudo o que vem à cabeça, para tal existem meios próprios na administração publica, como sejam as reclamações e/ou exposições, de forma a não proferir indignidades, visando apenas denegrir a imagem das instituições e das pessoas que nelas trabalham;
9. Os factos lançados sobre o Tribunal, são efetivamente inverídicos e altamente ofensivos da sua honra, honestidade e arácter dos agentes que representam tal instituição publica, como são inverídicos e altamente ofensivos e lesivos, afetando-a gravemente a credibilidade, prestigio e confiança deste órgão de soberania;
10. Também ocorreu a comprovação do requisito subjetivo que se preenche através do comportamento doloso, mesmo ocorrido a titulo de dolo eventual, melhor resultando do seu comportamento já no próprio processo cível, face à falta de colaboração com o tribunal, que manteve durante o processo crime, ate à prolação da acusação publica, ao afirmar quando ouvido em interrogatório que confirmava o seu teor e que não retirava uma virgula, endossando a sua responsabilidade para os advogados;
11. O arguido que disse já ter tido contatos com o sistema judicial, ate revela conhecimentos técnicos, ao fazer, agora aquando do seu interrogatório judicial, referencias a dolo eventual, é pessoa instruída e ponderou o conteúdo do escrito;
12. Assim e se mantiver este comportamento de súbito arrependimento nos autos, poderá em sede de julgamento, beneficiar de dispensa de pena;
13. Devendo, assim, considerarem-se como verificados fortes indícios do arguido B…., aqui requerente da abertura da instrução, ter cometido o crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço, da previsão do art.187º nº1, do Código Penal, pelo qual vinha acusado pelo MºPº, pronunciando-o;
14. Sob pena de frontal violação do disposto nos artigos 187º nº1, do Código Penal, 308º, 286º, 283º, todos do C.P.P. e 26º, da CRP;
15. Solicitando-se a revogação deste douto despacho de arquivamento, substituindo-se por outro, que pronuncie o arguido pela autoria do crime por cuja prática vinha acusado.
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O arguido não respondeu ao recurso.
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (fls. 94 a 96), concluindo pela não pronúncia do arguido e, assim, pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP.
Feito o exame preliminar, justifica-se proferir a presente decisão sumária, ao abrigo do disposto nos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a), do CPP, por ser caso de rejeitar o recurso, por manifesta improcedência[1].
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso apresentado pelo Ministério Público é demarcado pelo teor das suas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP).
O recorrente invoca a existência de indícios suficientes para pronunciar o arguido pelo crime p. e p. no artigo 187º, nº 1, do CP de que fora acusado, pedindo, nessa conformidade, a alteração da decisão impugnada.
Vejamos.
A instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286 nº1 CPP).
Enquanto fase jurisdicional[2], a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Não sendo a fase de instrução um complemento da investigação feita em inquérito[3], o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção no sentido de que há uma possibilidade razoável de o arguido ter cometido o crime objecto da acusação.
Portanto, pronuncia o arguido quando “tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (art. 308º, nº 1, do CPP).
A apreciação dos indícios nos termos do art. 308º, nº 1 e 283º, nº 2, do CPP é feita de acordo com os elementos probatórios apurados, constantes do inquérito e da instrução, exigindo um juízo de prognose do qual resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança”.
Como diz Germano Marques da Silva[4], «não se basta a lei com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação».
Feitas estas breves considerações para se perceber o âmbito e finalidades da fase de instrução, importa agora verificar quais são os pressupostos do crime p. e p. no art. 187º, nº 1, do CP que o Ministério Público imputou ao arguido na acusação pública que deduziu.
Dispões o citado artigo 187º (ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva) do CP[5]:
1- Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
2- É correspondentemente aplicável o disposto:
a) No artigo 183º; e
b) Nos nºs 1 e 2 do artigo 186º.
O núcleo do bem jurídico que se quer proteger nesta incriminação é, como diz Faria Costa[6], “a ideia de bom nome” do sujeito passivo (que, desde a reforma de 2007, é o organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação), bom nome que se assume “como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético-socialmente relevante”.
Acrescenta o mesmo Autor, no seu comentário (tendo então em atenção a versão original desta incriminação), ter como «ponto de referência, para a compreensão e determinação do bem jurídico em estudo a ideia de exterioridade. O que conta, neste contexto, é a imagem real que os “outros” têm da pessoa colectiva. O seu prestígio, credibilidade e confiança dependem muito da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva ou instituição», acabando por concluir que é a “valoração que a comunidade faz da actuação” do sujeito passivo “que constitui a pedra angular para uma correcta e ajustada compreensão do bem jurídico em análise.”
Sujeito activo do crime previsto no art. 187º, nº 1, do CP é qualquer pessoa (trata-se, nessa perspectiva, de crime comum) e sujeito passivo é claramente, desde a reforma de 2007, “organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação”.
Para que se verifique o tipo objectivo de ilícito é necessário o preenchimento dos seguintes pressupostos:
a) sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos;
b) que esses facto inverídicos (que foram afirmados ou propalados pelo sujeito activo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros) são capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo.
Resumidamente diremos que a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao sujeito passivo aferem-se em função da sua actuação e modo como é visto pela comunidade (considerando o juízo que é feito pelo homem médio). A credibilidade exige cumprimento da lei, com seriedade, isenção e eficiência, o prestígio tem a ver com as qualidades do sujeito passivo, com o seu mérito designadamente quando comparado com outras entidades que desempenham idêntica actividade e a confiança com o reconhecimento do seu valor, atenta a forma correcta como actua[7].
Trata-se de crime de mera actividade (o que significa que, a sua consumação, não depende da verificação de um dano), assumindo igualmente a categoria de crime abstracto-concreto (na medida em que basta que a conduta/acção seja apta ou idónea a criar perigo para o bem jurídico protegido)[8].
Do exposto resulta, no que interessa ao caso em análise, que nesta incriminação (art. 187º, nº 1, do CP) pune-se quem afirmar ou propalar (“sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros”) “factos inverídicos” que são aptos ou idóneos (“capazes”) de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo.
Tal como o tipo está construído, diremos que “afirmar ou propalar” (factos inverídicos) pressupõe que a ofensa ao sujeito passivo seja feita de forma oral ou verbal, tanto mais que, o nº 2 do art. 187º do CP não remete para o disposto no art. 182º do CP (na qual se estabelece que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”), o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aplicável à incriminação ora em análise (art. 187º do CP).
O que também é reforçado pelo facto de, mesmo em relação aos crimes de difamação e de injúria (arts. 180º e 181º do CP), caso não existisse a equiparação consagrada no art. 182º do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, por escrito (que é o que nos interessa aqui), também não eram punidas (por isso o legislador teve a necessidade de, em relação àquelas incriminações, fazer a referida equiparação).
Compreende-se que assim seja atenta a natureza destas incriminações, do bem jurídico protegido e modo como em geral são executadas.
No caso particular do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (art. 187º do CP), até considerando a qualidade do sujeito passivo (que é uma “entidade abstracta”[9], com determinadas características que a distinguem da pessoa singular) a acção da “ofensa” terá que assumir relevo bastante para se poder concluir que tem aptidão para afectar o bem jurídico protegido.
Dir-se-á que, para o legislador, a conduta de afirmar ou propalar factos inverídicos só assume ressonância e tem idoneidade para afectar o bom nome do sujeito passivo (que aqui não é a pessoa individual, mas antes o organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação), sendo então merecedora de tutela penal, quando é feita verbalmente (independentemente de tal suceder na presença ou na ausência do sujeito passivo).
Nessa perspectiva, um escrito (v.g. carta) dirigida a um concreto processo (que sendo junta aos autos passa a ser conhecida por um circulo mais ou menos restrito de pessoas) poderá, consoante o seu teor, ofender a honra e consideração, por exemplo, dos magistrados que decidiram o caso (que administram a justiça), mas não tem idoneidade bastante para afectar o bom nome do tribunal (“entidade abstracta”), «a imagem real que os “outros” têm» dele.
Nas sociedades democráticas, a crítica que é feita, por exemplo, aos tribunais, v.g. quanto à forma como exercem e administram a justiça, matéria de interesse público, tem limites mais amplos (do que a de um particular), na medida em que os seus actos estão sujeitos a um controlo atento das pessoas que compõem a comunidade.
O que igualmente significa que terá de existir uma maior tolerância perante a crítica feita a uma entidade abstracta e daí também a necessidade de compatibilizar os direitos constitucionais em conflito.
Claro que o facto de qualquer pessoa ser titular da liberdade de expressão e, nessa medida, ser livre de criticar matérias de interesse colectivo, exige que «a expressão da crítica não ultrapasse determinados limites»[10].
De qualquer modo, não se pode confundir a instituição com quem a representa ou nela exerce determinadas funções.
Importa, por isso, distinguir quando se está perante um crime de injúria ou difamação, eventualmente agravado ou quando se está perante o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (art. 187º do CP).
No tipo previsto no artigo 187º do CP o que se protege é a entidade colectiva (organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação), sendo que quem a representa, caso seja afectada na sua honra e consideração, é protegido pelos crimes de difamação e injúria, eventualmente (caso se verifiquem os respectivos pressupostos) agravados.
Aliás, como diz Paulo Pinto de Albuquerque[11], “A norma remissiva do artigo 187º, nº 2, não inclui o artigo 182º, pelo que a ofensa da entidade abstracta cometida por escrito, gesto ou imagem não está penalmente protegida. Outra interpretação violaria o princípio da legalidade.”
Também não integra o tipo objectivo de ilícito afirmar ou propalar “juízos[12]” inverídicos (mesmo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros), ainda que esses juízos sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo que, neste caso, é uma entidade abstracta (e não uma pessoa singular).
A nível do tipo subjectivo exige-se o dolo genérico em qualquer das suas modalidades.
A finalizar diremos, ainda, que na interpretação do tipo legal não se pode esquecer o princípio da dignidade penal e que a intervenção penal ocorre como ultima ratio.
Passando à análise do caso concreto, não há dúvidas que o tribunal, enquanto órgão (entidade abstracta) que administra a justiça, pode ser sujeito passivo do crime previsto no art. 187º do CP, integrando-se, assim, no conceito de organismo que exerce a autoridade pública.
A questão está em saber se a conduta do arguido, descrita na acusação pública[13], preenche o crime que aí lhe foi imputado e, em caso afirmativo, se foram recolhidos indícios suficientes nesse sentido, tendo em atenção o âmbito e finalidades do inquérito definidos pelo art. 262º[14] do CPP.
Começar-se-á por dizer que foi a partir do recebimento da certidão de fls. 2 a 24, extraída dos autos de Insolvência pessoa singular, instaurado em 10.3.2011 pela sociedade C…., Lda contra B......, com o nº 1676/11.9TBMTS (distribuída ao 3º juízo cível do Tribunal Judicial de Matosinhos), no valor processual de € 7.000,00, que foi aberto o inquérito.
Compulsada essa certidão, verifica-se que por decisão de 6.5.2011, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerido B...... (o qual não apresentou contestação ou qualquer oposição, apesar de ter sido citado para o efeito), sendo nomeado administrador da insolvência D…., indicado pela sociedade requerente, nos termos do art. 32º, nº 1, do C.I.R.E..
Na fundamentação dessa decisão, consignou-se, além do mais, que “mostrando-se verificadas as situações previstas nas alíneas b) e e) do artigo 20º do C.I.R.E., julga-se verificada a existência dos pressupostos para declarar a insolvência dos requeridos e, em consequência, ordena-se o prosseguimento da acção. Uma vez que o requerido não tem bens, presume-se a insuficiência do seu património para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 39º, nº 1, do C.I.R.E., devendo declarar-se aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter limitado.”
Posteriormente, elaborada a conta do processo, foi o requerido (aqui arguido) notificado da mesma pelo tribunal, nos termos que constam de fls. 23 (notificação essa cujo ofício se mostra datado de 20.2.2012 e não de 15.2.2012, como se alega na acusação, sendo esta última referida data a da elaboração da conta), nomeadamente, para pagar as custas da sua responsabilidade no valor de € 792,80.
Recebida essa notificação o requerido, aqui arguido, fez o escrito que consta de fls. 22, datado de 6.3.2012, cujo teor aqui se dá por reproduzido, endereçado ao dito processo de insolvência e com a referência ao nº atribuído à notificação da conta que lhe fora enviado.
Como não foi averiguado em inquérito desconhece-se, v.g. se esse escrito foi entregue em mão ou se foi enviado pelo correio, em que data deu entrada no tribunal (estando o carimbo aposto na fotocópia de fls. 22 ilegível quanto à data), pressupondo-se que tenha sido junto ao referido processo de insolvência (esta pressuposição assenta no teor da certidão de fls. 2, quando se diz “que as fotocópias (…) estão conforme os originais constantes dos autos”, pese embora no âmbito da investigação em inquérito nem sequer se tenha apurado qual o despacho proferido - se é que houve despacho - após a entrada daquele escrito datado de 6.3.2012, de quem foi a iniciativa para extrair a certidão e, qual o seu concreto destino, uma vez que nela apenas se diz destinar-se “a fins judiciais”).
De qualquer modo, podemos desde já avançar que, como resulta do acima exposto, tratando-se de um “escrito” é forçoso concluir que não tinha aptidão para integrar o crime previsto no art. 187º, nº 1, do CP, objecto da investigação em inquérito e, como tal, para esse efeito (para investigação do crime previsto no art. 187º, nº 1, do CP, que não abrange, na sua área de tutela típica, o “escrito” pelas razões já acima expostas quando nos pronunciamos sobre os pressupostos desta específica incriminação) nem sequer devia ter sido aberto inquérito. Diferente seria se fosse aberto inquérito para investigar eventual crime de injúria ou difamação cometido pelo subscritor do escrito contra pessoas singulares, particularmente, os que administraram a justiça naquele concreto processo de insolvência.
Logo, por aí (por não se verificarem os pressupostos do crime imputado ao arguido) se impunha a conclusão de que a acusação pública não podia ser confirmada pelo Sr. Juiz de Instrução (JI), quando interveio na fase de instrução requerida pelo arguido.
Em face do supra exposto, nos termos dos arts. 417º, nº 6, al. b) e 420º, nº 1, al. a), do CPP incumbe rejeitar o recurso, por manifesta improcedência.
Mas, ainda que assim não fosse (admitindo-se, sem conceder, que o crime previsto no art. 187º do CPP podia ser cometido através de escrito, sem ofensa do princípio da legalidade), também entendemos que se impunha rejeitar o recurso, por manifesta improcedência.
Caso fosse defensável, que o crime previsto no artigo 187º do CP podia ser cometido por escrito, importava então atender ao seu conteúdo e contexto em que foi elaborado e remetido ao referido processo de insolvência.
Ora, lendo o teor desse escrito[15] datado de 6.3.2012, verifica-se que o seu subscritor, que logo se identificou (no cabeçalho à esquerda), dirigindo-se ao dito processo de insolvência (indicando igualmente a referência da notificação que lhe fora feita), e a “Estimados Senhores” mostra revolta (mesmo que sem razão, olhando para o teor da certidão que deu origem à abertura do inquérito) com o que se passou naquele processo em que era requerido, começando por referir-se à “vossa Notificação de Conta”, usando de sarcasmo, ironia e sendo até pelo menos grosseiro[16], escrevendo, como é destacado na acusação pública:
«Só posso entender a vossa “Notificação de Conta” (que junto devolvo), como mais uma piada de mau gosto – esta de muito pior gosto do que todas as outras anteriores, neste anedótico episódio que é a minha declaração de insolvência.
(…)
É inadmissível a forma leviana e irresponsável com que os Senhores alegadamente “fazem e praticam a justiça”.
(…)
Os Senhores dão razão a aldrabões e andam a brincar e a prejudicar de uma forma cega e prepotente com as pessoas sérias.»
Interpretando esse texto logo se percebe que o respectivo autor dirige-se sempre aos Senhores que «alegadamente “fazem e praticam a justiça”».
Das 3 referências a Senhores (constantes desse texto escrito), verifica-se que logo na primeira são tratados como “Estimados”, na segunda são já identificados como sendo os “Senhores” que alegadamente “fazem e praticam a justiça” e, na terceira, esses mesmos “Senhores” afinal “dão razão a aldrabões e andam a brincar e a prejudicar de uma forma cega e prepotente com as pessoas sérias.”
Deduz-se do mesmo texto que o seu autor se considera pessoa séria e vítima no mínimo de crime de falsificação de documento cometido pela requerente do processo de insolvência e, bem assim, de erro processual cometido por quem, nas palavras que escreveu, faz e pratica a justiça.
A única referência que faz a “Tribunal” é para escrever que este “deu razão à requerente”, notando-se de todo o texto que, afinal, o dito “Tribunal” é, para o respectivo subscritor daquele texto, não a “entidade abstracta” mas antes os Senhores que alegadamente “fazem e praticam a justiça.”
Portanto, o autor daquele escrito visou atingir pessoas individuais (apesar de não as ter identificado em concreto, v.g. pelo nome), a saber o magistrado que proferiu a decisão que o declarou insolvente.
Ou seja, através do teor daquele escrito verifica-se que o respectivo autor se dirigia ao respectivo magistrado judicial que declarou a sua insolvência e não ao Tribunal, enquanto órgão de soberania e “entidade abstracta”.
Logo por aqui também se mostra afastado o preenchimento do tipo previsto no art. 187º do CP, uma vez que, quando muito, o que importava apurar em sede de inquérito, era se havia sido cometido o crime de injúria ou difamação em que aquele magistrado (que proferiu a sentença a declarar o requerido, aqui arguido, insolvente) seria o visado e ofendido (claro que, como não sabemos a forma como o dito escrito chegou ao processo, nada mais podemos deduzir, tanto mais que desconhecemos, por exemplo, se foi enviado pelo correio e, nesse caso, a quem foi dirigido, uma vez que não há qualquer referência à existência de envelope, o que não foi averiguado em sede de inquérito).
O próprio recorrente/Ministério Público, apesar de fazer ainda apelo a parágrafo contido no dito escrito que não foi destacado na acusação pública, acaba por indirectamente reconhecer isso mesmo (ou seja, que o visado foi o magistrado que proferiu a sentença que declarou o arguido insolvente e, portanto, pessoa individual e não a entidade abstracta que é o tribunal), quando procura argumentar no sentido das expressões contidas naquele texto serem atentatórias do “carácter” dos representantes titulares do órgão de soberania e da sua “honradez”, v.g. quando foi dado a entender que havia falta de “honestidade”.
E, consistindo as diligências investigatórias feitas no inquérito que foi aberto com base na certidão de fls. 2 a 24, na requisição do CRC, no interrogatório do arguido, realizado por um funcionário e por certidão da sentença cível proferida no referenciado processo de insolvência (que aliás já se encontrava junta ao inquérito), também não se pode deduzir que, ao escrever aquele texto, o arguido tivesse visado (como defende igualmente o recorrente) atingir o tribunal, enquanto entidade abstracta.
O que reforça a conclusão, já acima adiantada, de que o texto em questão visou apenas atingir o magistrado que proferiu a sentença que declarou o arguido insolvente, o que significa que na instrução nunca podia ser comprovada judicialmente a acusação pública (uma vez que foi imputado ao arguido o crime do art. 187º, nº 1, do CP, e neste o ofendido não é a pessoa individual, v.g. magistrado judicial que representa o tribunal, mas antes este último órgão, enquanto entidade abstracta).
Para além disso, lendo as declarações que o arguido prestou em sede de inquérito (fls. 30 e 31) em 14.6.2012, fica-se sem perceber se, não obstante o que escreveu no texto em questão, afinal (o arguido) agiu ou não com dolo ou se actuou de forma impensada e altamente perturbada, própria de quem perdeu a razão.
Perante o teor dessas declarações prestadas pelo arguido em fase de inquérito, logo se percebe que o mesmo, ainda em 14.6.2012, passado pouco mais de 3 meses de ter escrito o texto em questão, cuja data de entrada em tribunal se desconhece (como já se referiu, da fotocópia de fls. 22 não se percebe a data do carimbo de entrada daquele escrito dirigido ao processo nº 1676/11.9TBMTS, que o declarou insolvente, por não ter bens, de acordo com a decisão de 6.5.2011 que consta de fls. 12 a 15 destes autos de inquérito), ainda estava altamente perturbado com o que se havia passado no processo cível que declarou a sua insolvência.
Com efeito, nessas declarações prestadas em 14.6.2012, o arguido reconheceu ter escrito aquele texto, confirmando e reproduzindo o seu teor, não lhe retirando uma vírgula sequer, dizendo que usou de brandura, que estava convicto dos seus fundamentos e, simultaneamente, referindo que aquando da sua redacção “não quis ofender, antes quis chamar à atenção por se julgar estar a ser trucidado”, pedindo que ficasse registado “Este cidadão quer ser ouvido. Quer expor as suas provas, quer expor os seus factos e a verdade.”
Perante o teor do interrogatório do arguido (realizado por técnico de justiça auxiliar, por competência delegada) e pelo que foi respondendo, impunha-se no mínimo que tivesse sido interrogado ao menos pelo Magistrado titular do inquérito, para se perceber qual era a sua postura e quem pretendia atingir (caso se entendesse que era equívoco o seu texto), tanto mais que as declarações que prestou eram contraditórias (o que é uma evidência, conferindo o teor do escrito em questão e as declarações que prestou verbalmente em inquérito, quando simultaneamente afirmou que “não quis ofender, antes quis chamar à atenção por se julgar estar a ser trucidado”, que queria ser ouvido etc.).
Se aceitarmos que o crime que lhe foi imputado apenas podia ser cometido verbalmente então também se colocava a questão de saber em que momento e local teria sido praticado (se no momento em que escreveu aquele texto aludido na acusação ou antes no momento em que prestou declarações em inquérito, uma vez que aí o manteve na integra), impondo-se averiguar melhor o que pretendia com aquela sua conduta (e isto porque, como já se disse, do teor do texto resulta que o visado é o magistrado que proferiu a sentença que o declarou insolvente e não o tribunal, enquanto entidade abstracta).
Das declarações lacónicas prestadas pelo arguido, em fase de inquérito, também não se pode deduzir, como o faz o recorrente, que até ser deduzida acusação o arguido não tomou “qualquer outra atitude que não fosse de mero desafio para com esta instituição judicial”.
Daí que, perante os indícios recolhidos em fase de inquérito era manifesto que não se podia concluir que o arguido, com a sua conduta [ao escrever aquele texto aludido na acusação (caso se admitisse que o crime em questão podia ser cometido na forma escrita, sem ofender o princípio da legalidade) ou ao verbalizar em 14.6.2012 (quando foi interrogado em inquérito) e dar como reproduzido o seu teor], visava ofender o bom nome do tribunal, enquanto órgão de soberania, o que mostrava que não estavam preenchidos todos os pressupostos do crime p. e p. no art. 187º do CP.
Convém também esclarecer que a acção penal ou a dedução da acusação não serve para censurar o arguido, na sua qualidade de requerido no processo cível, v.g. quanto à postura que na acção de insolvência adoptou, classificada pelo recorrente como de não colaboração com o tribunal e com o administrador da insolvência.
Acresce que, na fase de instrução, em 20.11.2012, quando foi interrogado pelo Sr. JI (fls. 63 a 65), o arguido explicou, de forma mais compreensível, a sua conduta (o que não se havia passado aquando do seu interrogatório no inquérito), esclarecendo, v.g. que escreveu o texto aludido na acusação em momento de grande tensão emocional, pedindo desculpa a quem tiver que pedir, se for preciso por escrito, que houve ineficácia de advogados que consultou e que o deviam ter assistido, que nunca teve intenção de praticar qualquer crime contra o tribunal, “tendo agido por ignorância e ingenuidade. Não previu sequer a possibilidade que a tal carta fosse considerada crime ou pudesse preencher uma incriminação legal”.
Das declarações prestadas pelo arguido, na fase de instrução, apenas se poderá concluir que desde que a (à instrução) requereu passou a estar melhor assistido por Advogado do que anteriormente, mas não se deduz (como argumenta o recorrente) que tenha conhecimentos jurídicos ou que os tivesse já quando escreveu o texto referido na acusação pública (aliás, se tivesse esses conhecimentos jurídicos, designadamente por ter o 3º ano de Relações Internacionais, o que era natural - e seria de esperar de qualquer pessoa avisada, com conhecimentos nesta área - é que não escrevesse aquela carta e tomasse atitude diferente quando foi interrogado no inquérito).
Porém, o arguido também não foi acusado da atitude que tomou quando foi interrogado como arguido na fase de inquérito, razão pela qual essa argumentação do recorrente é irrelevante neste caso.
Ora, articulando as declarações prestadas pelo arguido, quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução, não se vê que o mesmo tivesse querido ofender o tribunal enquanto entidade abstracta e também não se afigura que existam indícios suficientes de que tivesse agido com dolo, mesmo eventual.
Também não se pode esquecer que a actuação de qualquer tribunal deve estar sujeita “ao escrutínio do direito de crítica” de qualquer utente, o que implica aceitar e permitir a “discussão e crítica aberta e desinibida”, sem medo de sanções, ainda que se consubstancie em expressões carregadas de uma certa dose de exagero e de alguma agressividade[17].
E, assim como o direito ao bom nome está consagrado constitucionalmente (art. 26º da CRP), também a liberdade de expressão, nela incluindo “o exercício do direito de crítica”, tem protecção constitucional (art. 37º da CRP).
Tais direitos fundamentais (por um lado o direito ao bom nome e, por outro, o direito de expressão, incluindo direito de crítica), que têm peso igual na hierarquia dos valores protegidos constitucionalmente[18], estando sujeitos a determinadas restrições (no caso da liberdade de expressão, estando as limitações também previstas no art. 37º, nº 3, da CRP), não podem ser considerados como direitos absolutos[19] e, por isso, em caso de conflito, a sua compatibilização passa pela ponderação dos respectivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (art. 18º, nº 2, da CRP), salvaguardando o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo (o que significa que pode ser necessário introduzir limites a esses dois direitos fundamentais, de forma a preservar o núcleo essencial de cada um deles, com o fim de alcançar a necessária composição, “«harmonização» ou «concordância prática» dos bens em colisão, a optimização” dos interesses em conflito).
Por isso, não se duvida que a liberdade de expressão e o direito de crítica tem limites; mas daí não se pode deduzir que a conduta do arguido integre a prática do crime pelo qual foi acusado.
De resto, parte do que consta do texto aludido na acusação, concretamente aquela que ali foi destacada (a considerar-se que o crime em questão podia ser cometido por escrito), contém juízos de valor, como é o caso dos parágrafos “É inadmissível a forma leviana e irresponsável com que os Senhores alegadamente fazem e praticam a justiça. (…) Os Senhores dão razão a aldrabões e andam a brincar e a prejudicar de uma forma cega e prepotente com as pessoas sérias.” - (e não factos como é o caso do parágrafo em que faz considerações irrelevantes quanto à notificação da conta) - o que também afasta o preenchimento do tipo previsto no art. 187º do CP.
De todo o modo, como já acima foi dito, conferindo a forma como a acusação pública foi configurada e estruturada, sempre teria de concluir-se pela não pronúncia do arguido, considerando que o crime que lhe foi imputado não pode ser executado por meio de escrito sob pena de ofensa ao princípio da legalidade e, ainda que assim não fosse, visado naquele escrito era o magistrado que proferiu a sentença que o (ao arguido) declarou insolvente e não o tribunal, enquanto entidade abstracta.
Por isso, aquela conduta do arguido nunca podia integrar o crime que lhe foi imputado na acusação pública, razão pela qual, o Sr. JI apenas podia concluir pela não pronúncia.
Ou seja, independentemente do juízo que se possa fazer sobre a prova indiciária, é manifesto que não é possível criar a convicção da probabilidade ou possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena e, portanto, não deve a causa ser submetida a julgamento.
Por isso, sem necessidade de mais dilatadas considerações, conclui-se pela rejeição do recurso (não tendo sido violadas as disposições legais invocadas pelo recorrente), confirmando-se o despacho de não pronúncia, embora em parte por fundamento diverso.
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III- DECISÃO
Nesta conformidade, embora pela primeira razão apontada, decide-se, nos termos dos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a), todos do CPP, rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público, por manifesta improcedência.
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Sem custas e sem a sanção aludida no art. 420º, nº 3, do CPP, por delas estar isento o recorrente/Ministério Público.
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Notifique.
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(Processado em computador e revisto pela signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
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Porto, 3.4.2013
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (relatora)
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[1] Entende-se que é manifestamente improcedente o recurso quando “é clara a sua inviabilidade”, nomeadamente, quando se pode concluir, no exame a que se procede no visto preliminar, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso, que não pode obter provimento, como é o caso destes autos.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 128, citando Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 16, refere: “A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por sua vez, Carlos Adérito Teixeira, «”Indícios suficientes”: parâmetro de racionalidade e “instância” de legitimação concreta do poder-dever de acusar», in Revista do CEJ (2004) nº 1, p. 160, entende que «apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo».
[3] Assim, entre outros, Ac. do TC nº 459/2000, DR II de 11/12/2000.
[4] Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 183.
[5] Este crime foi introduzido no Código Penal pelo DL nº 48/95, de 15.3, tendo sido alterada a redacção do seu nº 1 pela Lei nº 59/2007, de 4.9.
[6] Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, dirigido por Jorge Figueiredo Dias, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 677 e 678.
[7] Esclarece Faria Costa, ob. cit., p. 481, que “Uma instituição é credível quando, pela actuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, actua em tempo e de forma diligente e, sobretudo, quando a sua prática corrente se mostra séria e imparcial. Esta qualificação de imparcialidade é particularmente importante já que, como se sabe (…) o universo das instituições que estão aqui em causa tem que se inserir no exercício da autoridade pública.
Uma instituição tem prestígio, sempre que, pelos comportamentos dos seus órgãos ou membros, ela se impõe, no domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve.
Uma instituição é digna de confiança quando pela sua génese e actuações posteriores se apresente, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar. Esta será talvez a qualificação que mais depende do juízo externo. Quer isto significar, de forma clara e indubitável, que a confiança é um valor que se pode construir mas está dependente, de maneira quase lábil e tantas vezes incontrolável, de representação externa que façam das instituições em apreço.”
[8] Ver Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 508.
[9] Expressão usada por Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 509.
[10] Neste sentido, entre outros, Acs. do TEDH de 20/4/2004, no caso Amihalachioaie c. Moldova e de 16/11/2004, no caso Karhuvaara e Iltalehti c. Finlândia.
[11] Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 509.
[12] O crime de difamação (art. 180º, nº 1, do CP) pune quem dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ofensivo da sua honra ou consideração, mas também a formulação sobre ela de um juízo ofensivo da sua honra ou consideração (ou, ainda, reproduzir uma tal imputação ou juízo).
[13] O MºPº deduziu acusação, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, contra o arguido, porquanto (cf. fls. 41):
A sociedade “C…., Ldª” intentou acção de insolvência contra o arguido B......, a qual correu termos sob o nº 1676/11.9TBMTS do 3º Juízo Cível deste Tribunal de Matosinhos.
No âmbito desses autos, a 15/02/2012, o Tribunal enviou ao arguido a conta de custas cuja cópia consta de fls. 21, no valor de 792,80 euros.
Como resposta, o arguido, a 06/03/2012, escreveu e assinou a carta de fls. 22, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais, na qual afirma designadamente, que “só posso entender a vossa “Notificação de Conta” (que junto devolvo), como mais uma piada de mau gosto - esta de muito pior gosto do que todas as outras anteriores, neste anedótico episódio que é a minha declaração de insolvência. (…) É inadmissível a forma leviana e irresponsável com que os Senhores alegadamente fazem e praticam a justiça. (…) Os Senhores dão razão a aldrabões e andam a brincar e a prejudicar de uma forma cega e prepotente com as pessoas sérias.
O arguido agiu de vontade livre, consciente e deliberada, com o propósito concretizado de propalar factos falsos e insultuosos, que ofendem a credibilidade, o prestígio e a confiança que o Tribunal merece, enquanto órgão de soberania, que exerce a Justiça em nome do Povo.
Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
[14] Artigo 262º (Finalidade e âmbito do inquérito) do CPP
1 - O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
2 - Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.
[15] Para além do acima destacado é o seguinte o teor do referido escrito (sendo os negritos do próprio autor):
Estimados Senhores,
Só posso entender a vossa “Notificação de Conta” (que junto devolvo), como mais uma piada de mau gosto - esta de muito pior gosto do que todas as outras anteriores, neste anedótico episódio que é a minha declaração de insolvência.
A Requerente avançou com um pedido de insolvência baseado em dívida que não existe, nem nunca existiu, baseada em facturas fictícias que nunca por nós foram recepcionadas e tendo por conta um serviço nunca prestado.
E mesmo assim o Tribunal deu razão à requerente.
É inadmissível a forma leviana e irresponsável com que os Senhores alegadamente “fazem e praticam a justiça”.
Nem por cima do meu cadáver, sairá mais 1 cêntimo que seja do meu bolso, para custear qualquer tipo de despesa que seja relacionado com esta situação.
Nem 1 segundo mais da minha preciosa vida irei despender com esta situação.
Tenho a consciência serena e tranquila.
Os Senhores dão razão a aldrabões e andam a brincar e a prejudicar de uma forma cega e prepotente com as pessoas sérias.
Os meus cordiais cumprimentos,
(…)
[16] Não podemos concluir, como o faz o recorrente, que o arguido foi “arrogante” naquele escrito porque das diligências feitas em inquérito (que praticamente consistiram apenas no interrogatório do arguido, feito por funcionário, uma vez que a prova documental requisitada - ressalvado o CRC do arguido - já estava junta aos autos, com resulta da certidão de fls. 2 a 24, deduzindo-se – até porque os autos foram à conta – que a respectiva sentença havia transitado em julgado, sendo indiferente ao caso a data do seu trânsito) não se chega a perceber v.g. o tipo de personalidade do arguido, respectiva formação, posicionamento enquanto cidadão, situação então vivenciada relacionada com aquele processo cível.
[17] Hoje em dia também a actuação das instâncias públicas (inclusive tribunais) estão sujeitas ao “escrutínio do direito de crítica” de qualquer cidadão (assim, Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma Perspectiva Jurídico-criminal, Coimbra Editora, 1996, pp. 237 e 238).
[18] Sobre a igual valência normativa do direito à honra e do direito de informação ver José Francisco Faria Costa, Direito Penal da Comunicação, alguns escritos, Coimbra Editora, 1998, p. 55.
[19] José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., Almedina, 2004, pp. 222-224, depois de enunciar situações de normas ordenadoras “que se limitam a introduzir e acomodar os direitos na vida jurídica”, entre outras, aquelas que, embora condicionando o exercício de direitos, não podem ser consideradas como leis restritivas, chama à atenção (ob. cit., pp. 231 e 232) para a distinção (“relevante para efeitos do grau ou do tipo de vinculação legislativa aos preceitos constitucionais”) entre “a lei restritiva propriamente dita” [que “pressupõe a prefiguração constitucional da necessidade de sacrificar o conteúdo protegido de um direito, seja por se considerar esse direito (muitas vezes, a liberdade ou uma liberdade), como potencialmente «agressivo» relativamente a outro direito, potencialmente «vítima» (pois que seria prejudicado pelo exercício não limitado daquele), seja para assegurar um valor comunitário, cuja realização efectiva exige «forçosamente» aquela limitação”] e as “leis harmonizadoras” [que solucionando “problemas de colisão têm um objectivo diferente, já que visam resolver um conflito não prefigurado ao nível constitucional (mas que se revela inevitável ou para o qual o legislador considera conveniente uma solução geral e abstracta), através de critérios de harmonização, dirigidos à limitação de ambos os direitos ou de um direito e de um valor comunitário, na proporção do respectivo peso normativo nas situações legislativamente hipotizadas”].