Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1131/09.7PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE DANO
LEGITIMIDADE PARA APRESENTAR QUEIXA
Nº do Documento: RP201309251131/09.7PBMTS.P1
Data do Acordão: 09/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o titular de qualquer direito real de gozo sobre a coisa e, ainda, todo aquele que tenha um interesse juridicamente reconhecido na fruição das utilidades da coisa.
II – Quem utiliza, de forma contínua e permanente, para proveito próprio, um automóvel, tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1131/09.7PBMTS.P1
2º Juízo de Competência Criminal do T. J. da Maia

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No 2º Juízo de Competência Criminal do T.J. de Maia, processo supra referido, em que é arguido B…, após ter sido proferida acusação pela prática do crime de dano, recebido o processo para Julgamento, foi proferido Despacho com o seguinte teor:
“Uma vez deduzida acusação, sendo o processo remetido a Tribunal, cumpre ao juiz pronunciar-se, desde logo, sobre nulidades ou quaisquer outras questões prévias ou incidentais que consubstanciem um obstáculo à apreciação do mérito da causa. O primeiro acto judicial prende-se, por isso, com o saneamento do processo, como de resto espelha a epígrafe do art. 311º do Código de Processo Penal (CPP), o primeiro a abrir o Livro VII daquele diploma relativo à fase de Julgamento.
Sanear significa precisamente “limpar”, retirar ao processo todos os “escolhos” e “impurezas” para que possa então seguir para julgamento.
É pois o momento para aferir de questões relativas aos pressupostos processuais, designadamente as que se prendem com a competência do Tribunal, a legitimidade do Ministério Público e outros sujeitos processuais e com o objecto do processo.
Isto posto,
O Tribunal é competente.
Vejamos agora a questão relativa à legitimidade do Ministério Público.
Vem o Ministério Público deduzir acusação por factos que indiciam suficientemente a prática pelo arguido B… de um crime de dano nos termos do disposto no art. 212º nº 1 do Código Penal (CP).
Entre o mais, descreve a acusação os seguintes factos:
“No dia 12.07.2009, cerca das 20h00, na Maia, a ofendida C… conduzia o veículo automóvel de matrícula ..-CD-.. que tinha na sua posse e que habitualmente conduzia, nele seguindo como passageiro D… e próximo destes circulavam num outro veículo automóvel os amigos daqueles E… e F….
Quando a ofendida C… e os seus amigos pretendiam estacionar numa das ruas paralelas à Rua …, na Maia, cruzaram-se com o veículo de matrícula ..-..-TH conduzido pelo arguido B…, tendo aí ocorrido entre eles uma troca de palavras relacionadas com a ocupação de um lugar de estacionamento ali existente.
(…) ainda na referida Rua … a ofendida C… teve que imobilizar o veículo automóvel que conduzia de matrícula ..-CD-.. junto aos semáforos ali existentes, em virtude do sinal vermelho exibido, altura em que o arguido B… e os seus acompanhantes os lograram alcançar, tendo estes de imediato se abeirado do referido veículo automóvel e tentado abrir o mesmo, após o que lhe desferiram vários pontapés e murros provocando-lhe várias amolgadelas na porta traseira do lado direito, mala e guarda lamas frontal lado direito.
Com tal comportamento o arguido B… e os seus acompanhantes estragaram o referido veículo automóvel de matrícula ..-CD-.., provocando assim prejuízo no património da ofendida C… no valor de 799,20 €.
O arguido B… agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito de estragar o que estragou, ciente de que o veículo automóvel de matrícula ..-CD-.. não lhe pertencia e que a sua conduta era proibida e punida por lei. (…)”.
O inquérito teve início na sequência de apresentação de auto de denúncia, constando como denunciante C… (fls. 3), a qual foi em 13.07.2009 notificada igualmente nos termos e para efeitos do disposto no art. 75º a 77º CPP (dedução de pedido de indemnização civil).
A C… foram igualmente tomadas declarações em 26.02.2010 (fls. 20 a 24), declarando a mesma “(...) desejar procedimento criminal contra os autores do ilícito, tendo sido precedentemente notificada da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos dos arts. 75º e seguintes, do Código de Processo Penal”.
Compulsados os autos constata-se que o veículo de marca Volkswagen, modelo …, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-CD-.., alegadamente conduzido por C… no dia 12.07.2009, se encontra registado a favor de “G..., S.A.” (fls. 120 e 137), sendo o mesmo objecto de um acordo designado por “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor nº……….....”, no qual figura como locatário “H…”, titular do BI/NFC/NPC: ……… (fls. 138 a 143), o qual figura igualmente como promitente comprador do mesmo veículo no acordo designado por “Contrato Promessa de Compra e Venda de Veículo Automóvel nº ……….....” (fls. 144).
De resto, é igualmente em nome de H… que se entra emitido o orçamento para reparação da viatura em causa – cfr. fls. 104.
Vale por dizer que em nenhum dos elementos probatórios constantes dos autos se estabelece qualquer relação do veículo com C…, limitando-se a mesma a alegar (sem junção de qualquer documento probatório bastante) que “(…) é filha do locatário, e é quem o usa diariamente e quem paga a sua manutenção, daí neste processo ter a qualidade de ofendida. Visto que a reparação dos danos causados no veículo é da sua responsabilidade” (cfr. fls. 136).
Ora,
O crime de dano, tal como previsto na norma apontada, configura-se como crime semi-público, na medida em que o procedimento criminal depende de queixa – cfr. nº 3 do art. 212º CP.
Nos termos do disposto no art. 113º nº 1 do CP “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especificamente quis proteger com a incriminação”.
Trata-se de uma limitação à legitimidade processual do Ministério Público, como decorre dos arts. 48º a 52º do CPP.
De facto, o legislador consagrou no art. 48º CPP o chamado princípio da oficialidade, nos termos do qual o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal. Não será assim, porém, quando, para o que nos importa, o procedimento criminal depender de queixa. Nestes casos, é necessário que os titulares do direito de queixa dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo – cfr. art. 49º nº 1 do CPP.
A questão acerca da legitimidade para o exercício do direito de queixa estando em causa o crime de dano mostrou-se assaz controvertida na doutrina e na jurisprudência, defendendo uns de forma mais abrangente, por um lado que, “(…) o caso em que a coisa venha a ser intencionalmente destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada por outrem, (…) a par do proprietário, quem aproveita validamente as utilidades da coisa tem também legitimidade para apresentar a respectiva queixa, abrindo o procedimento criminal contra o autor da destruição ou danificação (acórdão recorrido)” (cfr. Ac. STJ de 30-09-1999, Proc. n.º 99P140); defendendo uma posição mais restritiva que “(…) a legitimidade deverá ser reconhecida única e exclusivamente ao proprietário da coisa, podendo, se for o caso, o titular dos direitos de gozo, de uso e de fruição usar dos meios cíveis disponíveis para obter a reparação dos prejuízos causados pela conduta delituosa (acórdão fundamento)” (cfr. Ac. de 29-04-1999, Proc. n.º 99P164).
Na sequência da divergência assinalada foi proferido em 27.04.2011 Acórdão de Fixação de Jurisprudência nos termos do qual foi fixada a seguinte jurisprudência «No crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição».
Estatuía o art. 2º CC que “Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral”.
Os assentos tinham por escopo garantir a certeza, a segurança da ordem jurídica, criando princípios normativos vinculativos dos tribunais, das autoridades públicas e dos cidadãos, no sentido de que as normas que foram objecto de discussão interpretativa passassem a ser interpretadas de determinada maneira.
Revogado o art. 2º do Código Civil (CC) pelo art. 4.º n.º 2 do DL. 359-A/95 de 12/12, criou-se um sistema de formação de acórdãos uniformizadores de jurisprudência, aos quais foram equiparados os assentos existentes.
Deste novo regime resultou que o juiz, em princípio, está vinculado à doutrina dos acórdãos uniformizadores, em nome da unidade jurisprudencial, potenciadora da certeza, da segurança da ordem jurídica e da sua unidade. O juiz pode, porém, recusar a jurisprudência do acórdão uniformizador, em casos excepcionais, em que surjam circunstâncias supervenientes, capazes de imporem uma nova interpretação, justificando a sua revisibilidade – cfr. Ac. TRG de 06.03.2008, P. 2706/07-2, in www.dgsi.pt.
Pode dizer-se que se verificam situações de excepção, se:
“- o Tribunal Judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de valor, não ponderado no Acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;
- se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,
- a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos Juízes das Secções Criminais deixaram de perfilhar fundadamente da posição fixada” – cfr. Ac. do STJ de 03.04.2008, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt.
Por nossa parte, não temos quaisquer razões para discordar da jurisprudência fixada no que respeita à legitimidade para o exercício do direito de queixa exigido pelo nº 3 do art. 212º CP.
Face ao que vai dito e não resultando dos autos o exercício do direito de queixa por parte do proprietário do veículo em causa, nem tão pouco por qualquer pessoa que esteja por título legítimo no gozo da coisa, não sendo bastante a mera alegação por parte de C… no sentido de que “(…) é filha do locatário, e é quem o usa diariamente e quem paga a sua manutenção, daí neste processo ter a qualidade de ofendida. Visto que a reparação dos danos causados no veículo é da sua responsabilidade”, verifica-se em concreto a ausência de uma condição de procedibilidade, falhando assim um dos pressupostos processuais para que a acusação do Ministério Público possa ser recebida, qual seja, precisamente a sua legitimidade, visto vir o arguido acusado de um crime de dano simples, p.p. art. 212º do CP – crime semi-público, cujo nº 3 exige queixa para que haja lugar ao procedimento criminal.
A ausência da condição de procedibilidade importa, consequentemente, a extinção do procedimento criminal e o seu arquivamento.
Considerando o supra exposto, decide-se:
Não receber a acusação do Ministério Público, por falta de legitimidade.
Sem custas criminais – cfr. art. 522º CPP.
Do pedido de indemnização civil:
Veio ainda C…, alegando a qualidade de ofendida e entretanto admitida a intervir nos autos como assistente (cfr. fls. 237), deduzir pedido de indemnização civil, dando por reproduzidos os factos vertidos na acusação pública, alegando ainda que no dia dos factos temeu pela sua integridade física, pretendendo a condenação do demandado no pagamento da quantia € 1.049,20.
Estatui o disposto no art. 71º sob a epígrafe “Princípio da adesão” que “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
Atento o arquivamento dos autos determinado supra, somos do entendimento de que o pedido de indemnização cível deduzido nos presentes autos se extingue por impossibilidade superveniente da lide – cfr. art. 287º al. e) CPC ex vi art. 4º CPP.
Com efeito, na senda do decidido no Ac. STJ de 08.02.2001, P.00P4110, in www.dgsi.pt no qual se refere que “Resulta da natureza acessória da acção cível enxertada, que ela só se mantém, seja em recurso seja noutra qualquer vertente de prosseguimento, enquanto sobreviver a instância penal (…)”, entendemos que não pode a instância cível permanecer, por impossibilidade superveniente.
Neste sentido se pronunciou igualmente o Ac. STJ de 31.05.2000, P. 211/2000; SASTJ, nº 41, 71 in Maia Gonçalves – Código de Processo penal anotado e comentado, 13ª ed. 2002, Almedina: “Como resulta do art. 71º CPP, o pedido de indemnização que adere ao processo penal é apenas o que tem como causa um crime. Se este vem a desaparecer, designadamente por desistência da queixa, e o procedimento criminal é, em consequência declarado extinto, então o pedido de indemnização formulado morre também, a não ser que uma lei especial preveja a continuação da acção de indemnização”.
Como exemplo de algumas das leis especiais apontadas refira-se o caso de leis da amnistia que em alguns casos mencionaram tal especialidade, v. g. Lei 29/99 de 12/5, seu art.º 11º.
Em sintonia com o este entendimento rege o disposto no art.º 72.º CPP que:
“1- O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: (...) b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento; (...)”.
Uma última nota apenas para referir que a posição ora adoptada não se mostra avessa à jurisprudência obrigatória estabelecida pelo Acórdão do STJ n.º 3/2002 de 17/1/02, in DR Iª série, n.º 54, de 5/3/2002, uma vez que tal acórdão se refere unicamente à extinção da instância crime por prescrição, persistindo, pois, a pessoa física responsável criminal e civilmente.
Face ao exposto, decide-se:
Declarar extinto, por impossibilidade superveniente da lide, o pedido de indemnização cível deduzido.
Sem custas cíveis – cfr. art. 4º nº 1 al. n) RCP.
Notifique.
Oportunamente, arquive os autos.”
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Deste Despacho recorreu o MºPº, formulando as seguintes conclusões:
“I – A fls. 3 foi apresentada queixa por parte C… manifestando desejo de procedimento criminal pelos danos provocados no veículo de matrícula ..-CD-...
II – Com base na mesma foi realizado inquérito tendo vindo a ser proferida acusação pública pela prática de um crime de dano p. e p., pelo art.º 212, n.º 1 do C. Penal.
III – A M.ª Juiz “a quo” rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público por considerar não poder a mesma exercer a acção penal relativamente ao ilícito criminal em causa – que reveste natureza semi-pública – dado a queixa não ter sido apresentada pelo seu proprietário, titular inscrito no registo como proprietário do veículo automóvel matrícula ..-CD-.. ou por pessoa que esteja por titulo legítimo no gozo da coisa.
IV – Não considerou a M.ª Juiz “a quo” C… como ofendida e como tal com legitimidade para apresentar queixa e dessa forma legitimar o Ministério Público para o exercício da acção penal.
V – Esta quanto a nós deve ser considerada como ofendida relativamente ao tipo legal em causa.
VI – Como resulta das declarações prestadas por parte de C… conjugado com o requerimento que a mesma aduziu aos autos a fls. 136 a 145, a viatura em questão encontra-se registada em nome de um banco, cujo locatário é o seu pai, mas que é quem de forma legitima a usa diariamente, quem paga a sua manutenção, sendo responsável pelos danos que na mesma sejam provocados, sendo assim a sua usufrutuária.
VII – Muito embora não seja a titular inscrita no registo ou mesmo a sua locatária, é esta quem tem o gozo e disposição daquele veículo automóvel, que o utiliza no dia a dia retirando do mesmo as suas funcionalidades, o que faz de forma legitima, reiterada e contínua e que por via disso mediante os danos indiciados nos autos vê a sua capacidade de gozo e disposição escamoteada por aqueles danos ilícitos merecedores de protecção penal, daí que deva ser considerada como titular dos interesses que a norma penal visa proteger e por isso como ofendida e detentora do direito de queixa.
VII – Em face dos danos provocados e indiciados é ela quem deixa de ou vê limitado o poder de a utilizar no dia a dia. É ela quem em função dos mesmos tem de alterar o seu modus vivendi e achar outra ou outras alternativas para solucionar a falta daquele quando em reparação, é ela que suporta os custos com a sua manutenção e responsável pelos danos no mesmo provocados.
IX – No fundo é ela quem tem a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa materializada numa relação estável com a mesma – utilização no dia a dia e não uma utilização única ou esporádica – que assume representação jurídica.
X – Este nosso entendimento tem de igual forma acolhimento ao nível da nossa doutrina assim como nas decisões dos Tribunais superiores e bem assim Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Processo n.º 456708.3 GAMMV, in Internet www.dgsi.pt
XI – A M. Juiz “a quo” interpretou, no caso concreto, o conceito de titular dos interesses protegido no crime de furto como sendo apenas o proprietário da coisa móvel e que a queixa não foi apresentada por quem tinha titulo legitimo no gozo da coisa, não sendo bastante a mera alegação por parte de C… de que é filha do locatário e que é quem o utiliza habitualmente, o que se nos afigura ser incorrecto dado que, por um lado para efeito do tipo legal em causa também deve ser entendido como titular daquele interesse aquele que detém a coisa, o gozo e disposição da mesma, que retira as suas utilidades com base numa relação estável com aquela e não fortuita, assumindo assim um mínimo de representação jurídica e por outro não exige a lei qualquer prova documental que suporte a aludida posse e utilização habitual, pelo que a prova testemunhal de tal factualidade – no caso as declarações da denunciante C…, são, a nosso ver, bastantes para o efeito, inexistindo nos autos nenhum elemento de prova ou fundamento legal que permita a conclusão a que chegou o Tribunal “ a quo” de que não basta a mera alegação por parte da denunciante de que é a sua habitual utilizadora ou sequer para por em crise que a mesma detinha o veículo em causa de forma legítima.
XII – Ao considerar que C… não tem legitimidade para a apresentação de queixa e como tal o Ministério Público não tem legitimidade para o exercício da acção penal rejeitando a acusação em causa a M. Juiz “a quo” violou, mediante errónea interpretação, as normas constantes dos artigos 48, 49, n.º 1 e 3 e 311, n.º 1 do Código de Processo Penal e arts.º 113 n.º 1 e 212º, n.º 1 e 3 do Código Penal e não acatou a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Processo n.º 456708.3 GAMMV, in Internet www.dgsi.pt.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto se dignarão suprir, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro que nos termos do art.º 311 do C.P.P. receba a acusação pública e que designe dia para a realização da audiência de discussão e julgamento, far-se-á a já costumada justiça.”
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“(…) o que está em causa é precisamente saber se a Queixosa, no caso sub judice, pode ser considerada ofendida nos termos do disposto no art. 113º n° 1 do CP.
Não temos dúvidas de que, mais ou menos pacificamente, o pai da dita queixosa, enquanto locatário do veículo danificado, é ofendido à luz da norma citada, reconhecendo-se-lhe legitimidade para o exercício do direito de queixa, já que tem o exigido “título legítimo de gozo da coisa” – cfr. o Ac. de Fixação de Jurisprudência citado – mas a Queixosa, pese embora conduzir o carro habitualmente, aceitando-se mesmo que o frua como se seu fosse, detém-no por deferência paterna e, assim, a título precário, não se podendo dizer, no rigor dos termos, que é detentora de “título legítimo de gozo da coisa”.
Termos em que somos de parecer que o recurso não deve proceder.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente MºPº pretende suscitar a seguinte questão:
- Legitimidade para apresentação da queixa pela prática de crime de dano.
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Em síntese, nos autos regista-se o seguinte:
- O procedimento criminal iniciou-se com uma queixa da C…, pela prática de factos integrantes do crime de dano.
- Encerrado o Inquérito, pelo MºPº foi deduzida acusação contra B…, imputando-lhe a prática de um crime de dano p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do CP.
Nessa acusação é, em síntese, descrito que a queixosa e o referido B… se cruzaram, quando seguiam cada um no seu automóvel (a queixosa acompanhada do D… e o arguido também acompanhado de outros indivíduos).
Após “uma troca de palavras relacionadas com a ocupação de um lugar de estacionamento”, o B… e os indivíduos que o acompanhavam, alcançaram o automóvel da C…, depois de esta ter parado no semáforo, abeiraram-se do mesmo, tentaram abri-lo, “após o que lhe desferiram vários pontapés e murros provocando-lhe várias amolgadelas na porta traseira do lado direito, mala e guarda-lamas frontal lado direito”.
- Enviado o processo para Julgamento, no momento processual previsto no art. 311º do CPP, a acusação não foi recebida pelo Despacho que agora se reexamina, por via do recurso interposto.
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Primeiro as noções elementares (aceites em ambas as posições a avaliar):
Está em causa o crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do CP, que reveste natureza semi-pública (cfr. seu nº 3), dependendo o respectivo procedimento de queixa.
Daí deriva que a legitimidade do MºPº promover o processo (e consequentemente deduzir acusação) depende dessa queixa – cfr. art. 49º do CPP.
O direito de queixa pertence ao ofendido, considerando-se ofendido o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (cfr. arts. 113º, nº 1, do CP e 68.º, n.º 1, alínea a) do CPP).
Por existirem divergências na interpretação desta norma, quando estava em causa o crime de dano, pelo STJ, no Acórdão nº 7/2011 (DR I de 31/05/2011), foi fixada Jurisprudência no sentido de que, no crime de dano p. e p. pelo 212º, nº 1, do CP, tem legitimidade para apresentar queixa “o proprietário da coisa (…) e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição”.
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Partindo-se, em ambas as posições em confronto, destas premissas, a divergência situa-se na forma como a elas é subsumida a situação da queixosa C….
Assim, afirma-se no Despacho sob reexame que não resulta dos autos “o exercício do direito de queixa por parte do proprietário do veículo em causa, nem tão pouco por qualquer pessoa que esteja por título legítimo no gozo da coisa”, “não sendo bastante a mera alegação por parte de C… no sentido de que «(…) é filha do locatário, e é quem o usa diariamente e quem paga a sua manutenção»”.
Diverge o recorrente, defendendo que é a C… quem “tem o gozo e disposição daquele veículo automóvel, que o utiliza no dia a dia retirando do mesmo as suas funcionalidades (…)”, sendo, pois, esta quem “vê a sua capacidade de gozo e disposição escamoteada por aqueles danos ilícitos merecedores de protecção penal” e que isso se alcança “das suas declarações, conjugadas com o requerimento de fls. 136 a 145”.
Completa referindo que “não exige a lei qualquer prova documental que suporte a aludida posse e utilização habitual, pelo que a prova testemunhal de tal factualidade – no caso as declarações da denunciante C…, são, a nosso ver, bastantes para o efeito”.
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Tem razão o recorrente.
Resulta da queixa efectuada, das declarações da C… (onde surge identificada), conjugadas com a prova documental junta aos autos, que esta é filha do locatário e, concomitantemente, promitente comprador H…, sendo ela quem utilizava o automóvel, quem tinha a sua posse, uso e fruição – situação essa consonante com os factos descritos na acusação.
Remetendo a Lei, na definição do conceito de ofendido, para o interesse protegido com a incriminação do comportamento que o viola, a titularidade desse interesse tem de ser aferida tendo-se em conta o momento da comissão do crime (repare-se que é utilizado o termo “interesse” e não o termo “direito”).
Assim, e tal como já se concluía no Acórdão deste Tribunal de 12/03/2008 (publicado no sítio www.dgsi.pt), “o titular desse interesse tanto pode ser o proprietário como quem, não sendo aquele, se encontre legitimado – no momento da comissão do crime, acrescentamos nós – a deter, usar e fruir a coisa” (no mesmo sentido o recente Acórdão deste Tribunal de 11/09/2013, também publicado em www.dgsi.pt: “tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano, o proprietário (…) o usufrutuário, o possuidor, o titular de qualquer direito real de gozo sobre a coisa e, ainda, todo aquele que tenha um interesse juridicamente reconhecido na fruição das utilidades da coisa”).
Ora, no caso, era a queixosa quem utilizava – de forma contínua e permanente – para proveito próprio o automóvel, quem legitimamente (visto que tinha o consentimento do seu pai) o detinha, usava e fruía. Consequentemente, era esta quem tinha o interesse directo e imediato na sua preservação e conservação em bom estado e na plena fruição das suas funcionalidades (não se nos afigurando relevante a conclusão expressa pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto – defendendo a improcedência do recurso –, de que se tratava apenas de uma posse “por deferência paterna”, “a título precário”, sem “título legítimo de gozo da coisa”).
Em suma, foi ela quem, estando legitimamente na detenção, uso e fruição do automóvel, se viu lesada pela acção do aqui arguido, sendo, pois, dela o interesse protegido com a incriminação.
Concluindo, é ofendida, tinha legitimidade para apresentar a queixa (o que, efectivamente, fez), daí derivando a legitimidade do MºPº para deduzir acusação pela prática do crime semi-público em causa, nos termos do já citado art. 49º do CPP.
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Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se o Despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que receba a acusação e designe data para a Audiência de Discussão e Julgamento, nos termos do art. 312º do CPP.
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Sem custas.
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Porto, 25/09/2013
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho