Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
393/10.1PCMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL ARAÚJO BARROS
Descritores: EXTRAVIO DE CHEQUE
FALSIDADE
CHEQUE ANTE-DATADO
Nº do Documento: RP20110316393/10.1PCMTS.P1
Data do Acordão: 03/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A falsa comunicação ao banco, por escrito, do extravio de um cheque pós-datado preenche o tipo objectivo de um crime de falsificação de documento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª SECÇÃO CRIMINAL – Processo nº 393/10.1PCMTS.P1
Tribunal Judicial de Matosinhos – 3º Juízo Criminal

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto
I
RELATÓRIO
O Ministério Público recorre do despacho de fls 67 a 74 que, por a entender manifestamente infundada, visto não narrar factos susceptíveis de fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena, rejeita a acusação deduzida contra os arguidos, pela prática de um crime de falsificação e de um crime de burla, p e p, respectivamente, pelos artigos 256º e 217º do Código Penal.
Foi admitido o recurso, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Os arguidos não se pronunciaram.
O procurador da república junto deste tribunal apôs o seu visto.
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso - artigos 417º, nº 9, 418º e 419º nºs 1, 2 e 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1. PEÇAS PROCESSUAIS
1.1. Transcreve-se o despacho recorrido
Da acusação manifestamente infundada:
O Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos B… e C…, Lda, imputando-lhes a prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, do CP e de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º, do CP.
Ora, a acusação do Ministério Público ou do assistente tem, conforme resulta dos arts. 283.º, n.º 3, al. b), e 285.º, n.º 2, do CPP, de narrar os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sob pena de nulidade e rejeição da acusação, nos termos do art. 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP.
Aliás, em obediência aos princípios basilares do processo penal, a solução legal referida para a acusação que não contenha factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos típicos de um crime imputáveis ao arguido não pode ser outra, na medida em que a acusação, seja pública, seja particular, fixa o objecto do julgamento, delimitando a actividade de cognição a desenvolver pelo tribunal, de tal forma que, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, é nula a sentença que, entre outros, condene o arguido por factos diversos dos descritos na acusação.
Deste modo, quando os factos relatados na acusação não integram os elementos objectivos e subjectivos de um tipo criminal ou quando não são imputados factos que constituam crime, a prolação de sentença por outros factos que, por si ou conjugados com aqueles, integrassem um crime traduziria uma alteração substancial dos factos, conforme decorre do disposto no art. 1.º, al. f), do CPP, o que, consequentemente, determinaria a nulidade dessa decisão (art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP).
Neste enquadramento, não obstante jurisprudência em sentido contrário, entende o Tribunal que a acusação não relata factos adequados a integrar a prática dos crimes pelos quais acusa o arguido, na perspectiva em que, mesmo provando-se todos os factos alegados, a decisão seria no sentido da absolvição dos arguidos.
Concretizando:
O entendimento conclusivamente afirmado no sentido de os factos da acusação não permitirem, mesmo que provados, a condenação dos arguidos prende-se com a concepção jurídica da punição do concurso de crimes e com a interpretação da lei segundo as regras legais previstas no art. 9.º do Código Civil, mas não propriamente com a virtualidade de os factos da acusação, se apreciados de forma individualista e desligada da globalidade do ordenamento jurídico, preencherem os elementos típicos dos crimes pelos quais os arguidos são acusados.
Para o efeito, constitui um elemento essencial verificar que os crimes de falsificação e de burla imputados aos arguidos respeitam, no essencial, ao alegado facto de o arguido pessoa singular, por si e/ou em representação da arguida pessoa colectiva, ter remetido ao Banco uma declaração de proibição de pagamento de um cheque pós-datado, invocando um falso extravio, com o objectivo de impedir o pagamento do cheque na data nele aposta.
Acontece que, apesar de, em abstracto, os factos em causa poderem traduzir os elementos típicos que os artigos 217.º e 256.º do CP prevêem – o que também não releva aprofundar -, a verdade é que tal não basta para que a conduta imputada seja criminalmente punida, pois que a ordem jurídica pode afastar tal punição, tal como sucede no caso em apreço, como a seguir será explicitado, convocando-se, ainda que apenas como linha de orientação, a teoria do concurso de crimes e o princípio da especialidade.
O concurso de crimes encontra tratamento legal no art. 30.º do CP, onde se dispõe, no que ora releva, que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos.
“O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.” – Ac. STJ de 27.05.2010, proc. 474/09.4PSLSB, em www.dgsi.pt.
No caso, importa convocar a regra da especialidade, na perspectiva da concorrência aparente de leis penais, em que uma, a lei especial, exclui a outra, a lei geral, na vertente em que aquela determina, de forma exclusiva, o conteúdo do injusto de uma acção. Em todo o caso, como vem sendo reconhecido na doutrina e na jurisprudência, o concurso de crimes envolve variantes tais que, na prática, dificilmente as teorias doutrinais sobre a punição do concurso de crimes permitem solucionar todas as situações reais. Daí que, independentemente de as teorias em causa, como é o caso da regra da especialidade, servirem como ponto de partida, importa sempre interpretar a lei, sem se cingir à letra desta, mas reconstituindo o pensamento legislativo, ainda que através do texto da lei, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias que nortearam a sua elaboração (cfr. art. 9.º do CC), de modo a se encontrar a solução jurídica concreta que observe estes ditames.
Neste enquadramento e no que releva para o caso dos autos, entende o tribunal que o regime jurídico da punição penal do cheque sem provisão (DL n.º 454/91, de 28.12), na qualidade de regime especial, exclui a aplicação da lei geral, o que significa que exclui a punição pelos crimes de falsificação e burla previstos no Código Penal, pelo menos na parte concorrente e tutelada por aquele regime.
Ora, dispõem nos seguintes termos os arts. 11.º e 11.º-A do regime jurídico da punição penal do cheque sem provisão, atendendo às alterações posteriores do diploma (DL n.º 316/97, de 19.11, DL n.º 323/2001, de 17.12, e DL n.º 83/2003, de 24.04) e com a redacção da Lei n.º 48/2005, de 29.08:
“Artigo 11.º (crime de emissão de cheque sem provisão)
1. Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a € 150,00 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque;
ou
c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento integral referidas nas alíneas anteriores;
se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazo estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
(...)
3. O disposto no n.º 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.
(...)”.
“Artigo 11.º-A (queixa)
1. O procedimento criminal pelo crime previsto no artigo anterior depende de queixa.
(...)”.
A acção susceptível de preencher o tipo criminal de emissão de cheque sem provisão consistirá, pois, no que ora pode importar, na emissão e entrega de um cheque de valor superior a € 150,00 com a assinatura do sacador, acompanhada do não pagamento do título por falta de provisão ou cujo pagamento seja impedido pelo agente mediante, nomeadamente, comunicação nesse sentido à instituição sacada.
Porém, conforme dispõe o n.º 3, do referido art.11.º do mesmo diploma legal, o regime incriminador previsto supra não será aplicável se o cheque for emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador. Com efeito, em face do preceito legal incriminador em causa, para que a conduta do agente, traduzida na emissão de cheque sem provisão, seja punida criminalmente é necessário que – em consonância com a natureza de meio de pagamento do cheque e não de instrumento de crédito – o cheque se destine a pagamento imediato e, como tal, não haja sido emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador ou sem data. Trata-se, pois, de um elemento negativo ao nível da definição típica da conduta proibida, através do qual expressamente se exclui do âmbito da tutela penal que ao cheque é dispensada os títulos que não sejam emitidos com data correspondente à da sua efectiva entrega ao beneficiário. E este elemento negativo do tipo, não obstante realizar pela negativa a delimitação dos factos punidos, é um elemento necessariamente explícito, no sentido em que, se o contrário não resultar positivamente demonstrado a partir da matéria factual apurada, fica precludida a possibilidade de imputar ao agente qualquer forma de responsabilidade criminal.
Verifica-se, pois, que o legislador definiu um regime próprio para a punição dos crimes associados aos cheques sem provisão, alargando a punição a actos posteriores à própria emissão e entrega do cheque, como é o caso da proibição de pagamento dirigida à instituição sacada, ao mesmo tempo que excluiu da tutela penal as condutas referentes aos cheques pós-datados, por não se destinar ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente, assim disciplinando o regime punitivo em termos exclusivos e, por conseguinte, de forma excludente de outras previsões típicas que respeitem a condutas previstas no art. 11.º, n.º 1, e, na vertente negativa, às condutas previstas no art. 11.º, n.º 3. Ou seja, as condutas que se refiram a cheques sem provisão (incluindo todas as previstas no art. 11.º, n.º 1) apenas podem ser punidas criminalmente no âmbito do regime do cheque sem provisão, sendo essa punição afastada quando aquelas condutas se referiram, nomeadamente, a cheques pós-datados, as quais o legislador entendeu não merecer a tutela penal. Esta intenção do legislador mostra-se, também, expressamente vertida no preâmbulo no DL n.º 316/97, de 19.11, onde se justifica a alteração legislativa para tornar “mais claro que o cheque emitido para garantia de pagamento ou emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador não goza de tutela penal (artigo 1l.º, n.º 3), por, em qualquer dos casos, não constituir meio de pagamento em sentido próprio”, reiterando posteriormente que “deixa de ser tutelado penalmente o cheque que não se destine ao pagamento imediato...” e que foi intenção do legislador “excluir da tutela penal os denominados cheques de garantia, os pós-datados e todos os que se não destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente” – sublinhado nosso. Importa notar que o legislador é particularmente claro na afirmação de que as condutas previstas no n.º 1 do art. 11.º que respeitem a cheques pós-datados não merecem qualquer tutela penal, não se limitando o legislador a aludir à tutela penal específica do regime do cheque sem provisão, para além de que em parte alguma da lei ressalvou a eventual punição por outros tipos de crime preenchidos pela conduta subjacente à emissão de cheque sem provisão, nomeadamente quando este fosse pós-datado. No fundo, independentemente da aplicação das teorias da punição do concurso de crimes, tal como já exposto, o que resulta do espírito do legislador que se extrai da letra da lei, analisada de forma integrada no âmbito do regime jurídico do cheque sem provisão e segundo o pensamento legislativo vertido no preâmbulo do próprio diploma supra aludido, é a clara intenção de tornar penalmente irrelevante (“sem tutela”) as condutas concernentes à emissão de cheque pós-datado sem provisão, seja em que modalidade for (das previstas no n.º 1 do art. 11.º), mesmo que subjacente ao não pagamento do cheque estejam condutas que, se noutra área de actuação, poderiam preencher os elementos típicos de crimes previstos na lei geral, como é o caso dos crimes de burla e de falsificação.
A própria coerência e a lógica na interpretação do regime jurídico punitivo do cheque sem provisão, associado às regras da punição do concurso de crimes, implicam o entendimento preconizado pelo tribunal. É que, se o regime do cheque sem provisão não fosse entendido como totalmente excludente da punição por outros tipos de crime, sempre teria de se defender a punição, em concurso efectivo, dos crimes de emissão de cheque sem provisão – no caso de cheques emitidos na data de entrega - com o crime de falsificação, se estivesse em causa a emissão de uma declaração falsa de proibição de pagamento, pois que, seguindo a teoria dos bens jurídicos, estes são diferentes em cada um dos ilícitos típicos.
Além disso, o legislador previu a natureza semi-pública para o crime de emissão de cheque sem provisão, como resulta do art. 11.º-A, o que, naturalmente, fez por entender que a emissão de cheques sem provisão respeita a uma matéria específica merecedora de um tratamento exclusivo e diferenciado, o que se mostra tanto mais relevante quando se constata que a natureza semi-pública se mantém mesmo no caso de o prejuízo provocado ser de valor elevado ou consideravelmente elevado, ao contrário do que sucede no crime de burla previsto no art. 218.º do CP, em que os bens jurídicos são idênticos.
Acresce que, do ponto de vista prático, entendimento contrário ao do tribunal implicaria, por vezes, punir mais fortemente a emissão de cheques sem provisão pós-datados do que a emissão de cheques como meio de pagamento imediato, apesar de, como se disse, a preocupação do legislador em tutelar penalmente o bem jurídico subjacente se dirija somente a este último tipo de cheques, o que poderia suceder, por exemplo, se se entendesse a conduta como integradora do crime de burla qualificada, atento o valor, nos termos do art. 218.º, n.º 2, al. a), do CP, para além da natureza pública deste crime, ou se se admitisse, como resulta até da acusação dos presentes autos, o concurso de crimes de burla e de falsificação.
Por tudo o exposto, mas vincando-se o espírito do legislador que resulta do texto da lei, conclui-se que, versando os factos da acusação sobre um cheque pós-datado, em que a modalidade de acção “típica” se enquadra no art. 11.º, n.º 1, do regime jurídico do cheque sem provisão, o n.º 3 do art. 11.º deste diploma exclui qualquer tutela penal, tornando os factos imputados aos arguidos como não puníveis criminalmente – neste sentido, entre outros, Ac. RC de 14.10.2009, proc. 228/07.2TAVGS, e Ac. Rc de 25.06.2008, proc. 156/06.9TAACN, disponíveis em Jusnet.pt; em sentido contrário, entre outros, Ac. RP de 14.07.2010, proc. 5562/08.1TAMTS, disponível em www.dgsi.pt.
E, de qualquer modo, a declaração de extravio do cheque, mesmo que falsa, mostra-se inócua do ponto de vista da potencialidade de provar facto juridicamente relevante, porquanto, para além de se tratar de uma mera declaração, a mesma serve apenas como apresentação do pretexto para a ordem de proibição da instituição sacada pagar o cheque, sem que exista relação de causa-efeito necessária entre aquele pretexto e o resultado ordenado, pois que o titular da conta pode proibir o pagamento do cheque por qualquer motivo – não competindo à instituição sacada avaliar da validade do motivo - e até pode simplesmente levantar o dinheiro existente na conta bancária, assim obtendo o mesmo efeito.
Ou seja, mesmo do ponto de vista do preenchimento dos elementos típicos dos crimes de burla e de falsificação, os factos da acusação não são suficientes para os integrar, uma vez que, não só a alegada declaração falsa de extravio não tem a virtualidade de provar facto juridicamente relevante (afasta o preenchimento do crime de falsificação), como também não constitui o erro/engano que determina o alegado prejuízo patrimonial decorrente do não pagamento do cheque (afastando o preenchimento do crime de burla), sendo antes este prejuízo o resultado da ordem de proibição de pagamento, independentemente do motivo invocado para este efeito.
Destarte, a acusação mostra-se desprovida de base factual imprescindível à condenação dos arguidos pela prática dos crimes pelo quais estes vêm acusados, não narrando factos susceptíveis de fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena, infringindo o disposto no já referido arts. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, com a consequente nulidade e rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP.
Decisão.
Nestes termos, atentos os princípios e os preceitos legais expostos, por manifestamente infundada, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 39 e ss. contra os B… e C…, Lda, pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, do CP e de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º, do CP.
1.2. São as seguintes as conclusões da motivação do recurso
1 – O arguido B… não foi acusado pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. pelo artº 11º, nº1, al. b), do Dec.-Lei nº 454/91, de 28/12, na redacção que foi dada a tal normativo pelo Dec.-Lei nº 316/97, de 19/11;
2 – A verificarem-se todos os elementos de tal tipo de crime de emissão de cheque sem provisão, a conduta do mencionado arguido, consubstanciada no facto de emitir uma declaração cujo conteúdo ele sabia perfeitamente não corresponder à verdade, conteúdo este com efeitos juridicamente relevantes, passava a integrar, também ela, a prática daquele crime, por força do disposto no citado artº 11º, nº1, al. b) do Dec.-Lei nº 454/91;
3 – Tal normativo legal não afasta a verificação do tipo de crime de falsificação, podendo, quando muito, justificar apenas a não punição da falsificação, por estarmos perante um concurso aparente de crimes (consumpção);
4 – Quando não se verificam todos os elementos do tipo crime de emissão de cheque sem provisão, a conduta do arguido que se consubstancia no facto de emitir declaração cujo conteúdo sabia não corresponder à verdade, conteúdo este com efeitos juridicamente relevantes, preenche o tipo legal do crime de falsificação, p.p. pelo artº 256º, nº 1, als. a) e e), do C.Penal;
5 – O arguido, ao emitir tal declaração ao banco actuou com dolo, dolo específico que preside a tal incriminação – falsificação – a qual se traduz na “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”;
6 – Além disso, ao emitir e comunicar os factos em referência ao banco, o arguido actuou também com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, tendo determinado outrem à prática de actos que causaram prejuízo patrimonial à pessoa a quem, como se fosse bom como meio de pagamento, entregara o cheque, tendo voluntária e patrimonialmente prejudicado essa pessoa pelo menos no montante aposto no dito cheque;
7 – Não existe violação do princípio “ne bis in idem” dado que o arguido não é punido pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão, sendo-o apenas, pelo menos é o que se lhe imputa, ele e a sociedade dele representada e em concurso real de infracções, pelos crimes de burla e de falsificação de documento;
8 – Tendo o arguido B…, ao actuar da forma descrita na acusação, agido com a intenção de obter para si e para a referida sociedade sua representada, benefício económico a que sabia não terem direito, bem sabendo que o descrito comportamento era adequado a tal fim que visou e, simultaneamente, a causar prejuízo, pelo menos, à referida sociedade denunciante D…, Lda, resultados que previu e quis ou, pelo menos, admitiu como possíveis, com eles se conformando, estando ciente que todo o comportamento descrito era proibido e punido por Lei, cometeu o dito arguido B…, na forma consumada e em concurso real de infracções, um crime de burla, p.p. pelo artº 217º, nº1, do C.Penal e um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artº 256º, nº 1, als. a) e e), com referência ao artº 255º, al. a), ambos do mesmo Diploma, sendo a referida sociedade comercial com a firma C…, Lda, criminalmente responsável nos termos dos arts. 11º, nºs 2, al. a) e 4, 217º, nº1 e 256º, nº 1, als. a) e e), com referência ao artº 255º, al. a), todos do C.Penal;
9 - Como é jurisprudência fixada pelo STJ, o crime de falsificação de documento, mesmo quando meio, tem autonomia em relação ao crime de burla (cfr. Acórdão de 4-5-2000, publicado no DR I Série A, de 23/5);
10 - Não se verifica qualquer motivo para o Mmo Juiz a quo, rejeitar a acusação pública, pelo que, ao decidir da forma como o fez, violou o disposto nos arts. 311º, nº2, al. a) e 312º, do C.P.Penal e nos arts. 11º, nºs 2, al. a) e 4, 217º, nº1 e 256º, nº 1, als. a) e e), com referência ao artº 255º, al. a), todos do C.Penal.
2. DISCUSSÃO
A questão que interessa dirimir reporta-se à punibilidade ou não daquele que emite e entrega ao banco sacado declaração falsa relativa ao extravio de cheque pós-datado que sobre ele sacou, no intuito de impedir o pagamento ao portador do montante pelo mesmo titulado. A qual ganha relevância, na medida em que tal conduta, que poderia eventualmente ser punida como crime de cheque sem cobertura, não o é por se tratar de cheque pós-datado, como decorre do disposto no nº 3 do artigo 11º do Regime Jurídico do Cheque sem Provisão, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, alterado pelos DL n.ºs 316/97, de 19 de Novembro, 323/2001, de 17 de Dezembro, e 83/2003, de 24 de Abril, e Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto.
As duas posições estão bem retratadas nos autos, quer a que defende a não punibilidade da conduta, reportada no despacho recorrido, que consequentemente rejeitou a acusação deduzida contra os arguidos, quer a opinião contrária, sustentada em recurso pelo Ministério Público.
Naquele primeiro sentido, pronunciaram-se os acórdãos da Relação de Coimbra de 25.06.2008 (Esteves Marques) e de 14.10.2009 (Calvário Antunes), bem como o acórdão da Relação do Porto de 20.05.2009 (Francisco Marcolino), todos in dgsi.pt. Já a favor da tese da punibilidade, os acórdãos da Relação do Porto de 12.05.2004 (Manuel Braz), de 4.10.2006 (Élia São Pedro) e de 14.07.2010 (José Piedade), bem como o acórdão da relação de Guimarães de 5.01.2009 (Cruz Bucho), ibidem.
As razões que em um e outro sentido são esgrimidas estão devidamente esplanadas no despacho recorrido e nas alegações de recurso, que supra se transcreveram, pelo que não colhe repeti-las.
Apenas uma breve nota sobre os motivos da nossa adesão à segunda.
Diz-se que a conduta, na qual se verificam os elementos do tipo dos crimes de falsificação e de burla, dos artigos 217º e 256º, nº 1, alínea b), do Código Penal, deixa de ser como tal punida porque uma previsão específica a qualifica como crime de cheque sem cobertura – o artigo 11º, nº 1, alínea b), do DL nº 454/91. Mas, como é evidente, para que tal concurso aparente, por especialidade, se concretizasse, necessário seria que estivéssemos perante factualidade que fosse abrangida pela previsão punitiva deste último preceito. E a verdade é que o não está, por força do referido nº 3, que exclui da mesma os cheques pós-datados.
Se atentarmos bem, o “deixa de ser” introduz na discussão um vício de raciocínio. Na verdade, a entrega de um cheque sem provisão com data posterior de emissão não é crime. Pelo que nunca poderá deixar de o ser. Assim, se a declaração falsa de extravio ou a indução enganosa do sacado a não pagar o cheque pós-datado consubstanciarem conduta que preenche os elementos do tipo dos crimes de falsificação e de burla, não se poderá ver excluída esta sua tipicização em virtude de uma situação de concurso aparente, por especialidade, que nunca chegou a existir.
III
DISPOSITIVO
Termos em que, na procedência do recurso, se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe data para a audiência de julgamento dos arguidos, pelos factos e incriminações constantes da acusação.
Sem custas.
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Notifique.
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Porto, 16 de Março de 2011
José Manuel Ferreira de Araújo Barros
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima