Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2293/11.9TAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: COELHO VIEIRA
Descritores: PECULATO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP201306262293/11.9TAVCD.P1
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – O crime de peculato p. no n.º 1 do art.º 375º do C. Penal tutela, por um lado, bens jurídicos patrimoniais; e, por outro, e predominantemente, a probidade e fidelidade dos funcionários para garantir o bom andamento, a legalidade e a imparcialidade da administração.
II – Trata-se de um crime específico impróprio, um crime em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar, uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional o pode cometer.
III – Agente do crime tem de ser um funcionário, tal como ele é definido no art.º 386º do CP, que tem a posse do bem objecto do crime por força das suas funções.
IV – O conceito de posse deve ser entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções.
V – A conduta típica traduz-se na apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, de uma coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções.
VI - O agente tem de ter actuado com uma ilegítima intenção de apropriação, sabendo que a coisa pertence a outrem, tendo consciência de que não a detém por qualquer direito ou título e, não obstante, actua com intenção de a vir integrar no seu património, ainda que sem qualquer propósito lucrativo.
VII – E tem de actuar com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito objectivo (tipo-de-ilícito subjectivo), e com o propósito directo ou indirecto de o realizar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2293/11.9TAVCD.P1
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

No T. J. de Vila da Conde ( 1º Juízo Criminal) foi pronunciado para julgamento por tribunal singular em processo comum o arguido:

B….., divorciado, agente da P.S.P., filho de C…. e de D…., nascido em 1/10/1961, em Vila Chã, Vila do Conde, residente na …, n.º …, …, Vila do Conde, titular do cartão de cidadão n.º 073651672ZZ9,
sob a imputação da prática, como autor material, de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375.º, n.º 1, do Código Penal.
*
Foi designada data para a realização da audiência de julgamento.
O arguido contestou, oferecendo o merecimento dos autos, e requereu a audição de testemunhas.
Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais.
*
Mantêm-se válidos e regulares os pressupostos da instância, inexistindo nulidades ou quaisquer questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
*
Na sequência da audiência de discussão e julgamento foi exarada sentença, dela constando o seguinte DISPOSITIVO:-
(…)
1. Condeno o arguido B….pela prática, como autor material, de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375.º, n.º 1, do Código Penal, a uma pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, nos termos do art.º 50.º do Código Penal.
2. Custas criminais: vai o arguido condenado a 2 UC´s de taxa de justiça e nos encargos do processo.
Notifique e deposite.
Após trânsito, comunique à Direcção-Nacional da PSP para os fins tidos por convenientes.
Boletins à DSIC.
*
Vila do Conde, 12 de Dezembro de 2012
(Certifico que o presente documento foi por mim elaborado e integralmente revisto, nos termos do art. 94.º, n.º 3, do Código de Processo Penal)

O Juiz de Direito, Joel Agante da Silva
(…)
XXX

Inconformado com o decidido o arguido veio interpor recurso, motivando-o e aduzindo as seguintes:-

CONCLUSÕES:

1ª O teor da matéria provada e constante do ponto (§) 3 deverá ser alterado para o seguinte teor: “Passados poucos minutos, após averiguar a quem pertencia a carteira e a morada onde residia a sua proprietária, o arguido dirigiu-se à residência da mesma, sita na Rua …, nº … – …., em Vila do Conde, e fez-lhe a entrega da carteira, que a proprietária reconheceu como sendo sua, sem que esta tivesse verificado o seu conteúdo nesse acto e na presença do arguido.”
2ª Tal factualidade com o teor aqui proposto resulta não só do depoimento do arguido mas também das declarações de E….., tendo aquele referido que, no contacto havido com a dona da carteira, após lhe ter perguntado pelo seu nome e se a carteira lhe pertencia, a mesma se identificou e referiu ser sua aquela carteira, o que foi igualmente confirmado pela referida E…..
3ª Quanto ao diálogo havido nessa altura entre o arguido e a dona da carteira, as versões de ambos são totalmente divergentes e, dado ter sido uma conversa havida apenas entre ambos, dos seus depoimentos nenhuma segurança probatória resulta acerca de mais qualquer facto, designadamente, de o arguido lhe ter perguntado se a carteira tinha dinheiro e de a mesma responder que sim, ao que aquele retorquiu que, se tinha já não tem.
4ª Por outro lado, quanto aos fundamentos probatórios de se considerar o montante de € 140,00 como estando guardado no interior da carteira no momento em que foi perdida, das declarações da sua dona, a referida E…., resulta clara a incerteza quanto ao montante que a mesma alegou existir no interior da carteira no momento em que a perdeu, conforme excerto do mesmo que supra se transcreveu.
5ª E da prova produzida resulta apenas que esse valor de € 140,00 só surge no dia seguinte, em conversa havida com o arguido, sendo dito a este que a carteira tinha € 140,00 no seu interior, muito embora do depoimento da dona da carteira resulte que ela mesma não tinha a certeza de qual o montante de dinheiro que a carteira conteria. Sabia que tinha ido levantar € 100,00 e que teria mais algum dinheiro na carteira, mas não especificou nem justificou o exacto montante, num depoimento cheio de incerteza e insegurança, nomeadamente quanto a esta questão.
6ª Também do depoimento da testemunha F…., pessoa que encontrou a carteira caída na rua, resulta ter sido a mesma clara em afirmar o desconhecimento de qual o valor exacto de dinheiro que a carteira conteria, afirmando ter aberto a carteira quando a apanhou do chão e ter visto “um molhinho em notas de 20 e de 10”, mas logo dizendo não ter contado o dinheiro.
7ª Esta declaração, para além de ter sido negada pelo arguido, que referiu também não ter sido feita qualquer inspecção ao conteúdo da carteira para além da verificação da existência da carta de condução que permitiu a identificação da dona da mesma, visível logo que foi aberta a tampa da carteira, tem um sentido curioso, no qual importa atentar: é que, segundo o seu depoimento, a primeira coisa que essa testemunha disse ao arguido foi referir-se ao dinheiro que a carteira continha, dizer que estava ali todo mas que não o tinha contado.
8ª Afirmação esta que é duplamente incoerente em si mesma, pois que, por um lado, a ter existido na realidade essa conversa, em momento algum do seu depoimento a testemunha F…. manifestou a menor estranheza pelo facto de, tendo dito ao arguido, enquanto agente de autoridade policial, que a carteira tinha dinheiro, não ter sido feita por este a verificação e contagem do mesmo na sua presença, pensamento este que seria minimamente exigível e óbvio que fosse expressado em Juízo, ainda por cima quando a mesma bem sabia que a razão de estar a prestar depoimento era exactamente a de se procurar apurar se a carteira continha ou não dinheiro no momento em que foi entregue ao arguido;
9ª E por outro lado, a testemunha realça no seu depoimento o teor da conversa com o arguido nesse pormenor do dinheiro, mas não tem qualquer certeza nem sequer ideia quanto à identificação de quaisquer documentos que a carteira continha, quando a tal propósito é questionada, nem sequer sabia dizer se o documento que o arguido viu para tentar identificar a dona da carteira era o cartão de cidadão ou carta de condução, antes dizendo que não tinha a certeza, que “parece que era da social”.
10ª A testemunha F.... tinha encontrado a carteira e verificado que a mesma tinha dinheiro na presença de sua filha e de uma amiga desta, conforme afirmou ao Mmº Sr. Juiz, o que constituía um entrave a qualquer tentação de não ir entregar a carteira à Esquadra da PSP, tanto mais que tinha dito à sua filha que a ia entregar à Esquadra e a amiga da filha também tinha presenciado esta conversa.
11ª Mas, durante o trajecto feito pela mesma testemunha, desde que deixou a filha e amiga à porta de casa de uma sua irmã até àquela esquadra, a mesma foi sozinha, sendo então legítimo colocar-se a hipótese de que o facto de ir sozinha lhe possibilitou concretizar a tentação de retirar o dinheiro da carteira, apossar-se dele e ir entregar a carteira à Esquadra, como o fez, mas já sem o dinheiro que ela continha.
12ª Para facilitar uma versão dos factos de intocável seriedade, ainda mais fácil se tornou a mesma pela circunstância de, quando foi atendida na Esquadra pelo arguido, a conversa havida com este não ter sido presenciada por mais ninguém. Depois seria só manter a versão perante a dona da carteira e sua filha de que entregou a carteira ao arguido na Esquadra com o dinheiro que a mesma continha (que até nem sabia quanto era mas que era em notas de 10 e de 20), para ser fácil apontar o dedo ao arguido e levá-lo a julgamento. Mas com algum constrangimento, como perpassou do seu depoimento em Juízo.
13ª Só que, a terem-se passado assim os factos, isto é, a ter sido a testemunha F.... quem se apossou do dinheiro que a carteira continha, então a sua versão não se mostrou nada coerente em audiência de julgamento, de que é exemplo a passagem do diálogo havido com a Exma. Sra. Procuradora, em que é perguntado àquela testemunha o porquê de não pretender ser testemunha.
14ª Mas mais estranho ainda é o facto de a mesma testemunha, a instâncias ainda da Exma. Sra. Procuradora, ter dito claramente que tinha pena do arguido, afirmação que não se justificava nem teria cabimento se tivesse sido este mesmo quem tivesse ficado com o dinheiro.
15ª Para tão estranha resposta só é viável uma resposta: é que a testemunha teve pena de incriminar quem nada tinha feito para merecer ser julgado, apesar de ter tentado esquivar-se a ser testemunha – como referiu a testemunha G…. (chefe da Esquadra) no seu depoimento -, mas quando se viu confrontada com essa inevitabilidade de ter que ser testemunha, só tinha que manter a versão que tinha contado à dona da carteira, apontando o dedo ao arguido.
16ª É que só se tem pena de um arguido quando se faz um depoimento falso contra ele, pois de contrário, o sentimento não é de pena mas de satisfação por se fazer justiça.
17ª Da gravação do seu depoimento resulta a incoerência e estranheza do depoimento desta testemunha F...., até pelas questões colocadas e diálogo com a mesma por parte da Exma. Sra. Procuradora, que supra se transcreveram parcialmente.
18ª Da audição do depoimento gravado desta testemunha resulta clara uma fundada dúvida sobre a veracidade da sua versão dos factos, sendo todo ele eivado de grandes incoerências que não ficaram de modo algum explicadas pela testemunha, não podendo do mesmo retirar-se a menor credibilidade para sustentar, com a mínima segurança que o Direito Penal impõe, a factualidade dada por provada de o arguido ter ficado com a quantia de € 140,00 em seu poder, fazendo-a sua.
19ª De modo idêntico, também o depoimento da dona da carteira, E...., se mostra visivelmente inconsistente e estranho, até mesmo anormal perante as circunstâncias concretas e os factos em apreciação na audiência de julgamento.
20ª Também este depoimento da dona da carteira é bastante estranho, pois que, pelo que relatou, não teve a menor preocupação de questionar o arguido sobre o dinheiro que a carteira conteria ou, ao menos, de tentar apurar se a mesma tinha dinheiro ou não no momento em que foi entregue na Esquadra da PSP, limitando-se a dizer que o arguido lhe teria dito que se a carteira teria dinheiro já não o tinha, sem que da sua parte tivesse havido qualquer reacção ou resposta.
21ª O que não é nada normal de quem vem a saber ter ficado sem dinheiro e não ter aproveitado a oportunidade de averiguar algo mais sobre o assunto ao agente da PSP que lhe estava a entregar a carteira em sua casa, não tendo mostrado o menor cuidado em ter procurado averiguar em que mãos teria ficado o dinheiro que a carteira conteria.
22ª Da prova produzida pelas duas referidas testemunhas resulta existirem fundamentos bastantes para que não se possa atribuir qualquer credibilidade aos depoimentos de E.... e de F.... para dos mesmos se poder considerar provado com a mínima segurança e certeza, não só a exacta quantia de dinheiro que a carteira conteria quando foi perdida, como, principalmente, que teria sido o arguido quem ficou com o dinheiro em seu poder, fazendo-o seu, devendo, por via disso, ser dada por não provada essa concreta factualidade constante do referido § 3 da matéria de facto.
23ª Atendendo a tudo quanto supra se alegou e ainda ao depoimento do arguido, de onde resulta, conforme plasmado pelo Mmº Juiz a quo na fundamentação da matéria de facto, ter procedido à entrega da quantia de € 140,00 à referida E....da Nova por ter assumido a falha que teve ao omitir a elaboração do necessário processualismo, devolvendo a carteira sem se inteirar do seu conteúdo, deverá ser acrescentado um novo parágrafo à matéria de facto tida por provada, do seguinte teor: “O arguido entregou a quantia de € 140,00 a E.... por ter assumido a falha de não ter elaborado o auto de expediente da entrega da carteira na Esquadra da PSP e ter devolvido a carteira sem se ter inteirado do seu conteúdo.”
24ª Alternativamente à criação desse novo parágrafo, deverá ser alterado o teor do § 4 da matéria de facto provada, passando o mesmo a ter o seguinte teor: “No dia 22 de Setembro de 2011, já depois de a E.... e a F.... terem confrontado o arguido sobre a falta da quantia em causa, e já depois de a primeira, como essa quantia não lhe fosse restituída, ter participado o sucedido junto da Esquadra de Vila do Conde da Polícia de Segurança Pública, o arguido entregou a quantia de € 140,00 a E.... por ter assumido a falha de não ter elaborado o auto de expediente da entrega da carteira na Esquadra da PSP e ter devolvido a carteira sem se ter inteirado do seu conteúdo.”
25ª Em resultado dos argumentos expendidos no sentido da propugnada alteração dos parágrafos 3 e 4 da matéria de facto provada, deverá ser havida como não provada a matéria vertida nos parágrafos 5 e 6 da mesma.
26ª É notório do depoimento da testemunha F.... o estado de nervosismo em que a mesma se encontrava e a insegurança e incoerência lógica de todas as suas afirmações, levando a colocar seriamente em dúvida a segurança e certeza dos factos tal como por si foram relatados e a tornar pertinente a dúvida sobre se a carteira continha ou não algum dinheiro no momento em que foi entregue ao arguido.
27ª Ponderada e admitida que seja a alteração da matéria de facto provada no sentido supra apontado, impor-se-á a absolvição do arguido do crime de peculato por que foi condenado, por não verificação dos factos essenciais para o preenchimento desse tipo legal de crime.

TERMOS EM QUE deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra que absolva o arguido recorrente do crime em que foi condenado, por ser de inteira

JUSTIÇA!
XXX

O Ministério Público veio nos termos do disposto no art. 413º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, apresentar a sua resposta ao recurso interposto nos autos à margem referenciados.
Conclui pela total improcedência do recurso.
*
Idêntica atitude processual assumiu o Ilustre Procurador-Geral Adjunto, por via do douto Parecer que emitiu.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2, do CPP, sendo certo que não foi deduzida resposta.
XXX

COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS CUMPRE DECIDIR:-

Na sentença recorrida consta a seguinte:-
(…)
FUNDAMENTAÇÃO
Após instrução e julgamento da causa, julgam-se provados os seguintes factos:
§1. No dia 12 de Setembro de 2011, cerca das 21 horas, F.... dirigiu-se à 8.ª Esquadra de Investigação Criminal da Polícia de Segurança Pública, sita na Avenida …., em Vila do Conde, a fim de entregar uma carteira que tinha achado minutos antes próximo do estabelecimento de café «H….», contendo tal carteira documentos pessoais e a quantia de €140,00 em notas do B.C.E., pertencente a E.....
§2. Atendida pelo arguido, que naquela esquadra se encontrava no exercício das suas funções e na qualidade de elemento daquela força policial, o mesmo recebeu tal carteira e o seu conteúdo sem que tivesse elaborado qualquer termo de entrega ou qualquer auto de ocorrência.
§3. Passados poucos minutos, após averiguar a quem pertencia a carteira e a morada onde residia a sua proprietária, o arguido dirigiu-se até á residência da mesma, sita na Rua …, n.º … – …, em Vila do Conde, e fez-lhe a entrega da carteira e dos documentos pessoais, e disse-lhe que a mesma já não tinha qualquer dinheiro, tendo o arguido ficado com a quantia de €140,00 em seu poder, fazendo-a sua.
§4. No dia 22 de Setembro de 2011, já depois de a E.... e a F.... terem confrontado o arguido sobre a falta da quantia em causa, e já depois de a primeira, como essa quantia não lhe fosse restituída, ter participado o sucedido junto da Esquadra de Vila do Conde da Polícia de Segurança Pública, o arguido devolveu a quantia em causa.
§5. O arguido actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que se apropriava ilegitimamente de quantia em dinheiro que lhe tinha sido entregue no exercício das suas funções públicas.
§6. Para além do mais, o arguido sabia, também, que tal conduta era proibida por lei.
(da situação pessoal do arguido)
§7. O arguido é pessoa estimada e bem considerada no seu meio social e profissional.
§8. É agente principal da Polícia de Segurança Pública há 27 anos e aufere cerca de €1.200,00 da sua profissão.
§9. Tem três filhos, de 23, 20 e 11 anos, entregando à sua filha menor a quantia de €200,00 a título de alimentos.
§10. Vive em casa de sua mãe, a quem entrega €50,00 para ajudar nas despesas, tomando, contudo, as suas refeições em casa de uma irmã.
§11. Estudou até ao 8.º ano.
§12. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
*
XXX
O RECURSO

O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. art. 428º, do CPP.
É consabido que as conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respectivo objecto – cfr. arts. 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº 2, do art. 410º, do CPP, mas tão-só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum ( cfr. Ac. do STJ nº 7/95 – in DR I s., de 28/12/1995, em interpretação obrigatória, ainda hoje actual); ainda das nulidades principais, como tal “taxadas” por lei.

Das conclusões extraídas da motivação do recurso – aquelas consabidamente delimitadoras do respectivo objecto – cfr. arts. 402º, 403º e 412º, todos do CPP – alcança-se que o Recorrente sindica a decisão recorrida, tão-só, em sede da matéria de facto “qua tale” ( art. 412º ns. 3 e 4, do CPP) ; e a proceder o recurso nesta matéria, o Tribunal de recurso não poderá deixar de daí retirar as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, designadamente em sede da matéria de Direito ( cfr. nº 3 do art. 403º, do CPP).

A sentença recorrida não enferma de qualquer dos vícios acima referenciados; aliás, das conclusões e com apelo à motivação do recurso, verifica-se que o Recorrente não as invoca.

Com efeito, embora de forma que não se considera modelar, o Recorrente sindica o decidido na matéria de facto na vertente do art. 412º, do CPP; também com apelo à motivação descortina-se o peticionado pelo Recorrente quanto aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, isto é, a sua versão e proposta do que deve constar da sentença em sede de facto e as provas que a seu ver “impõem” decisão diversa da recorrida, por via da sua interpretação pessoal de provas de livre apreciação.

Vejamos:-

Em termos genéricos:-

Como se sabe, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
• no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
• ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência (cfr. Ac. do STJ de 05/06/08, proc. 06P3649; Ac. do STJ de 14/05/09, proc. 1182/06.3PAALM.S1,www.dgsi.pt).
Relativamente aos vícios previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, importa considerar que o vício previsto na alínea c) se verifica quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar (cfr. Ac. STJ de 2/10/96, proc. 045267, www.dgsi.pt). Trata-se, pois, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
Na impugnação ampla impõe-se ao recorrente o dever de especificar os «concretos» pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados e em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa e em que sentido devia ter sido a decisão.
Este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, ou seja, não pressupõe uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados (cfr. Ac. do STJ de 29/10/08, proc. 07P1016 e Ac. do STJ de 20/11/08, proc. 08P3269, www.dgsi.pt).
Neste contexto, as indicações exigidas no artigo 412.º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto (cfr. Ac. STJ de 19/05/2010, proc.696/05.7TAVCD.S1, www.dgsi.pt).
De harmonia com a jurisprudência fixada pelo STJ no Acórdão 8 de Março de 2012 (proc. 147/06.0GASJO.P1-A.S1, www.dgsi.pt), «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Acresce ainda referir que o convite ao aperfeiçoamento das conclusões previsto no n.º 3 do artigo 417.º do Código Processo Penal pressupõe que não se esteja perante uma deficiência substancial da própria motivação, que necessariamente se reflectirá em deficiência substancial das conclusões. Na verdade, não se tratando de deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas antes deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada a oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto. Em conformidade, aliás, com o estabelecido no n.º 4 do citado preceito (art. 417.º do CPP), onde se prevê que o aperfeiçoamento das conclusões, na sequência do convite, não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (cfr. citado Ac. STJ de 19/05/2010).

Ora como acima se disse inexiste, no caso, recurso da matéria de facto naquele “âmbito restrito”, mas em sede de “impugnação ampla”.

Acresce que:-

De acordo com o art. 412º nº 3 e 4, do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
3:- a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas
4:- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Temos dito, reiteradamente que o recurso da matéria de facto não se destina a um novo julgamento e à aquisição de nova convicção de facto, mas sim a aquilatar da razoabilidade da convicção de facto adquirida pela 1ª instância, face às provas produzidas, sempre sem esquecer que a 1ª instância se encontra enriquecida pelo princípio da imediação, a qual naturalmente pressupõe o contacto “ao vivo” com os participantes processuais e, designadamente, com as provas prestadas oralmente em audiência, no caso, de livre apreciação e tendo em mente o disposto no art. 127º, do CPP.

A Jurisprudência do STJ que a seguir se cita e segue ( para além de diversas decisões desta Relação – cfr. entre várias outras, o Ac. de 21/01/09 – Proc. Nº 2545/08; de 1/04/09, Proc. Nº 7212/08, m- relator ) tem-se debruçado sobre esta mesma vertente).

Assim:-

A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma.
III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma.
IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo».
V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
VI - O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.
VII - Constitui entendimento pacífico há muito estabelecido que não há erro na apreciação da prova quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância sua quanto ao enquadramento da matéria de facto provada.( cfr. Ac. do STJ, de 12/06/08 – www.dgsi.pt. - ).

Já mais recentemente, mas, a nosso ver, em plena consonância com os arestos anteriores, conforme se decidiu no douto Ac. do STJ de 19/05/2010 – in www.dgsi.pt(...)
A motivação de recurso compreende dois ónus: o de alegar e o de concluir. O recorrente deve começar por expor todas as razões da impugnação da decisão de que recorre (enunciar especificamente os fundamentos do recurso) e, depois, indicar de forma sintética, essas mesmas razões (formular conclusões em que resume as razões do pedido).
São as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, são as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior.
Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP: as indicações aqui exigidas são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.
A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância.
O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.

Ainda mais recentemente mas em total sintonia jurisprudencial com o que vem de ser expendido, cfr. Ac. desta RP, de 16/01/2013 in dgsi.pt. diz-se o seguinte:-
(…)
A circunstância de o tribunal, perante duas versões distintas, dar crédito a uma em detrimento da outra, tem a ver com o exercício do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal, segundo o qual o julgador deve proceder à avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro pré-definido de valoração das provas, sujeito apenas às regras da experiência comum e ao dever de dar explicação concisa das razões da relevância atribuída à cada prova e do percurso racional que levou à decisão tomada.

Se assim é, se o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, estamos perante uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível).

De resto, a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pode vir a transformar o julgamento na 2ª instância, num jogo de palavras vazio do pulsar da vida, da percepção dos sentidos e sentimentos.
Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo, aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de 1ª instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação.

Apreciemos então, o que afinal se reconduz, a uma diversa valoração do sentido da prova pessoal produzida.
A este propósito convém, então, referir que, nos termos do artigo 127º C P Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A maior parte das vezes, os recursos, quanto a esta concreta questão, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, juridicamente ilegítimo, por irrelevante, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, exercício este que, para ser legítimo, logo juridicamente relevante, por imposição do artigo 127º C P Penal, somente ao tribunal, entidade competente, notoriamente, incumbe.
Não pode é, a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
À pergunta sobre o que significa, negativa e positivamente, a livre apreciação da prova, ou, o que é o mesmo, valoração discricionária ou valoração da prova segundo a livre convicção do julgador, responde o Prof. Figueiredo Dias, “(…) significa, negativamente, ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova; mas qual o seu significado positivo? Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma motivação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida; se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionaridade (como já dissemos que a tem toda a discricionaridade jurídica) os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, possa embora a lei renunciar à motivação e o controlo efectivos”.
“Livre apreciação da prova não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável; já se vê, assim, que sendo a dúvida que legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo, obviamente, a que obsta à convicção do juiz, tal dúvida não pode ser puramente subjectiva, antes tem de, igualmente, revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável”. [3]
“Embora os meios de prova produzidos não estejam sujeitos a qualquer regime de prova legal, mas antes à livre apreciação do tribunal, artigo 127º C P Penal, a verdade é que livre apreciação não significa pura convicção subjectiva, mas sim “convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. E uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável; não se tratará, pois, de uma mera opção voluntarista pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos à posteriori tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
A conclusão – pela qual o arguido pugna - de que, pelo facto de nenhuma prova directa se ter produzido – não pode ser tido como o autor do factos, não é permitida, não é consentida, salvo atentado grosseiro à normalidade das coisas da vida e à inteligência do ser humano.
De resto, a propósito da inexistência de prova testemunhal a afirmar, directamente, ter tido o arguido, participação directa e pessoal na prática dos factos, convém dizer o seguinte:
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso, II, 82, citado no Ac. RC de 9.2.2000, in CJ, I, 51, que doravante seguiremos de perto, “é clássica a distinção entre prova directa e indiciária.
Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto que a prova indirecta ou indiciária, se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
Assim, se o facto probatório (meio de prova) se refere imediatamente ao facto probando, fala-se de prova directa e se o mesmo se refere a outro do qual se infere o facto probando, fala-se em prova indirecta ou indiciária.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos e, por isso o seu valor probatório é extremamente variável. Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do juiz. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto-indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
A associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas, leva alguns autores a afirmara sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova directa e testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho, (Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal).
Como refere André Marieta, in La Prueba em Processo Penal, 59, são 2 os elementos da prova indiciária:
- o indício será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado, que pode ser definido como todo o resto, vestígio, circunstância e em geral todo o facto conhecido ou melhor devidamente comprovado, susceptível de levar, por via da inferência ao conhecimento de outro facto desconhecido.
O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa…
O que não se pode admitir é que a demonstração do facto-indício que é a base da inferência seja também ele, feito através de prova indiciária, atenta a insegurança que tal acarretaria.
- em segundo lugar, é necessária a existência da presunção que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência; na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício premissa menor, permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.
A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e probabilidade.
A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de 3 operações: em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador, uma regra da experiência ou da ciência, que permite num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
A lógica tratará de explicar o correcto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova da capacidade de convicção.
A nossa lei processual não faz qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária.
O funcionamento e creditação desta está dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Conforme refere Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal, os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervém elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervém as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência.
(…)

Ainda quanto ao art. 127º, do CPP:-

O art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova.
De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Por seu turno, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e estribando-se nos ensinamentos dos Prof. Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que “esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso «está apta para o consenso». A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça”.
Ora, o princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas (excepto aquelas cuja natureza não o permite) sejam apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo, diz respeito à proximidade que o julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa.
Com este princípio entronca o invocado princípio “in dúbio pro reo”: havendo facto incertos tal incerteza deve sempre favorecer o arguido.

Tecidas estas considerações mais genéricas e com apoio Jurisprudencial e Doutrinário, vejamos, então, o caso CONCRETO dos autos:-

No caso “sub-judice” o Recorrente pretende que se altere a redacção da matéria de facto constante dos parágrafos 3 e 4 da matéria de facto provada e que sejam dados como não provados os parágrafos 5 e 6 dessa mesma matéria.
Em suma, o Recorrente pretende ver dada como não provada a matéria que integra o elemento típico objectivo do crime objecto de condenação, qual seja a da “apropriação ilegítima de dinheiro que lhe tenha sido entregue…em razão das suas funções” e do elemento subjectivo desse mesmo crime.
Para o efeito, o arguido convoca suas próprias declarações que transcreve parcelarmente, ainda transcrevendo mui parcelarmente os depoimentos das testemunhas E…. e F...., para alcançar aquele desiderato.

Na sentença recorrida expendeu-se a seguinte MOTIVAÇÃO:-
(…)
O Tribunal fundou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida deste modo:
• No que aos factos presentes na pronúncia e na acusação que a precedeu, o arguido admitiu o descrito em §1, §2, §3, com excepção do acto de ter retirado os €140,00 existentes na carteira e ficado com eles, e o narrado em §4
Explicou que abriu a carteira e viu uma carta de condução, presumivelmente da proprietária da carteira, com uma morada próxima do local onde se encontrava, e dada a simplicidade do caso, não lavrou qualquer registo ou expediente, pretendendo, como o fez, devolver sem mais formalismos a carteira, como já havia feito no passado, visando rapidamente resolver a questão. E, segundo o arguido, se havia qualquer dinheiro na carteira não viu, entregando-a como ela se encontrava.
Mais tarde, quando lhe exigiram o valor descrito em §4, procedeu à referida entrega pois assumiu a falha que teve ao omitir a elaboração do necessário processualismo, devolvendo a carteira sem se inteirar do seu conteúdo, para assim evitar “chatices”.
• São vários os factores que levaram o tribunal a crer na ocorrência da factualidade vertida na pronúncia, no que concerne à conduta apropriativa do arguido.
Em primeiro lugar, o relato que proveio de E...., a dona da carteira, que afirmou a ter perdido depois de ter levantado dinheiro numa caixa multibanco para pagar uma dívida a um colega, tendo os ditos €140,00, constituídos por notas de €10,00 e €20,00, guardados na carteira.
Quando o arguido lhe foi devolver a carteira, perguntou-lhe se a carteira tinha dinheiro, replicando o arguido à resposta afirmativa da testemunha que “se tinha, já não tem!”
E de facto residia a 5 minutos da esquadra, perdendo a carteira à porta de sua casa.
• Depois, a testemunha F.... foi quem encontrou a carteira e a entregou ao arguido, na esquadra da PSP onde aquele se encontrava em exercício de funções, tendo verificado previamente a existência de dinheiro no seu interior, num “molhinho” de notas, “de 20 e de 10”, lembrando-se de abrir a carteira à frente do arguido, sendo possível ver as notas. Aliás, a descrição que esta testemunha fez das notas, “certinhas, todas juntas”, cabe na disposição típica das notas que se levantam nas caixas multibanco.
• Estas duas testemunhas não se conheciam antes. Todavia, a filha desta testemunha era amiga da filha do dono de um café que fica no local, e tendo aí ficado e contado o sucedido à amiga, indicando a identidade da proprietária da carteira, avisaram-na de que a carteira se encontrava na esquadra.
Quando o arguido declarou à testemunha E....que não havia dinheiro na carteira, esta testemunha contactou F...., tendo sido informada por esta que no momento da entrega da carteira ela continha dinheiro. Num passo seguinte, as duas confrontaram o arguido, operando-se a devolução do dinheiro.
• O tribunal encarou assim este acto de devolução como uma admissão do erro pelo arguido, erro em se apossar do dinheiro.
• Note-se que foi ouvido o Chefe da PSP G….., superior hierárquico do arguido, que asseverou que a natureza das funções que o arguido desempenhava na ocasião, atendendo o público na esquadra, não só o compeliam a lavrar expediente numa situação como a dos autos, como o impediam de se ausentar do edifício da esquadra sem permissão superior, como o arguido acabou por fazer.
• Desta forma, a conduta do arguido revelou a sua fisionomia tal qual esta vem caracterizada na pronúncia trazida a juízo: a omissão de qualquer expediente, a ausência “irregular” da esquadra, a pronta negação da existência de dinheiro da carteira à sua proprietária, e a sua devolução posterior, resultado do confronto com as duas testemunhas (e com as evidências que estas manifestaram), aliada aos testemunhos atrás descritos, aferidos como críveis, impelem à evidência dessa conclusão.
• Poder-se-ia cogitar ter sido F.... quem se assenhoreou da maquia. Contudo, confrontada com esta hipótese, não só a testemunha se mostrou genuinamente indignada, questionando então por que motivo iria então entregar a carteira à esquadra, como as demais circunstâncias apontam para a actuação aquisitiva ilegítima do arguido.
• Desta actuação, extraiu o tribunal, de acordo com as regras da experiência, o mencionado em §5 e §6.
• O tribunal ouviu ainda I…., amigo do arguido, e J…., agente da PSP reformado e anterior superior hierárquico do arguido durante 12 anos, que atestaram, credivelmente, o descrito em §7.
• O tribunal deu crédito à descrição que o arguido fez da sua situação pessoal, reflectida em §8 a §10.
• Considerou o tribunal ainda o CRC junto aos autos a fls. 168.
(…)
Quanto à impugnação dos pontos 3, 4, 5 e 6 da fundamentação de facto:-

Desde logo estamos perante provas de livre apreciação.
Ora o Recorrente pretende contrapor a sua visão subjectiva e parcelar de tais provas em contraponto com a visão global, objectiva e crítica expendida na sentença, devidamente fundamentada e com apelo aos princípios da imediação e da oralidade.

Com efeito, resulta da globalidade do manancial probatório que a testemunha F.... foi a pessoa que achou a carteira nas imediações da café “H….” e verificou a existência do dinheiro no interior de tal carteira “num molhinho de notas de 20 e 10…certinhas, todas juntas” o que é compatível com a disposição típica das notas levantadas nas caixas multibanco.
A seguir a testemunha E....referiu que tinha perdido a carteira … depois de ter levantado dinheiro numa caixa multibanco para pagar uma dívida e um colega, tendo os ditos 140 euro sido constituídos por notas de 10 e 20 ali guardados e contendo a carteira, “pelo menos” os tais 140 euro...
Existe pois perfeita compatibilidade entre os dois depoimentos.
O Recorrente parece “olvidar” o seu comprovado comportamento funcional que incumpriu, pois não elaborou o necessário registo ou participação da ocorrência, identificando a pessoa que encontrou a carteira e com verificação junto desta do conteúdo da carteira.
Acresce que ainda que a testemunha F.... referiu ter encontrado a carteira e a entregou na esquadra da PSP e verificou perante o arguido que a mesma continha um “molhinho de notas de 10 e 20”.

Mau grado a negação do arguido quanto ao dinheiro contido no interior da carteira, a conjugação do depoimentos e as regras da experiência comum conduzem à perfeita razoabilidade da convicção alcançada pelo Tribunal “a quo”.
Com efeito, não faria qualquer sentido que tal testemunha ( F....) se tivesse apropriado do dinheiro contido na carteira, como parece pretender o arguido e desde logo, se tivesse prontificado a entrega-la, já sem o numerário na esquadra da PSP.
Ainda acresce que face àqueles elementares regras, a testemunha não podia saber que em tal esquadra da PSP não iria ser feito qualquer auto de entrega; e ainda, porque retirando previamente o numerário e indo entregar subsequentemente a carteira na PSP, a testemunha não poderia deixar de ignorar que o seu comportamento seria naturalmente encarado com suspeição e ulterior investigação; e ainda que não teria qualquer lógica que tal testemunha tivesse ficado com o dinheiro e, de seguida fosse dizer à ofendida que tinha encontrado a carteira, esta ainda com dinheiro no seu interior.
Daqui se conclui pela perfeita razoabilidade da convicção do Julgador alicerçada nas provas em que se fundamentou e com o necessário apelo a elementares regras da experiência comum.

O recurso da matéria de facto, roçando a manifesta improcedência é, sem dúvida, totalmente improcedente.
Não há, assim que extrair assim quaisquer ilações, face ao supra referido art. 403º nº 3 do CPP.
XXX

Sem embargo, apenas cumpre dizer mais o seguinte:-

Prevê o art.º 375º n.º 1 do CP que “- O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Através da incriminação da descrita conduta procurou o legislador tutelar, por um lado, bens jurídicos patrimoniais (um direito patrimonial do Estado, ainda que a propriedade não seja do Estado) e, por outro lado, e predominantemente, a probidade e a fidelidade dos funcionários, para garantir o bom andamento, a legalidade e a imparcialidade da administração (neste sentido, Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, pág. 688 a 691).
Conforme decorre claramente da leitura do normativo transcrito, o crime de peculato é um crime específico impróprio, ou seja, na definição de Figueiredo Dias, um crime em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar, uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional o pode cometer (vide Parte Geral do Direito Penal, Almedina).
Efectivamente, o agente do crime terá de ser um funcionário, tal como ele é definido no art.º 386º do CP, funcionário esse que, por força das suas funções, tem a posse do bem objecto do crime.
E é essa qualidade de funcionário que distingue o crime de peculato do crime de furto ou do crime de abuso de confiança e é ela que torna a ilicitude da conduta do agente mais grave.
No que à conduta típica concerne, o crime de peculato consiste na apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, de uma coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções.
Como bem nota Conceição Ferreira, na anotação a este artigo, o conceito de posse deve ser “entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções”.
A acessibilidade ao bem deve contudo derivar das funções do agente, pelo que deverá existir uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação.
Assim, o agente deve ter a posse ou detenção do objecto “em razão das suas funções”.
Acompanhamos, pois, à análise de C. Cunha no sentido da interpretação restrita desta expressão constante do tipo: é necessário, para que uma determinada conduta seja subsumida ao tipo legal em análise, que a posse esteja na dependência funcional do exercício da função, pois a razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do funcionário-agente, da confiança funcional que nele foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem, entendendo-se esta posse, como já supra se referiu, por detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador dos bens, não se desviando dos fins legais. O funcionário é punido desta forma agravada porque abusou das suas funções ou foi infiel às suas funções, traindo a confiança que lhe foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem.

Para que a conduta em causa possa ser reconduzida à previsão típica da norma incriminadora é necessário, por último, que o agente tenha actuado com uma ilegítima intenção de apropriação. O agente sabe que a coisa pertence a outrem, tem consciência de que não detém qualquer direito ou título para a possuir e, não obstante, actua com intenção de a vir integrar no seu património, ainda que sem qualquer propósito lucrativo.
Da construção do tipo legal e da conjugação com o art.º 13º do CP conclui-se, por outro lado, ser este um crime cuja realização passa pela existência de dolo da parte do agente.
Assim, para que a conduta em causa seja subsumível à previsão típica da norma em análise é necessário que o agente tenha actuado com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito objectivo (tipo-de-ilícito subjectivo), ou seja, de um lado com conhecimento e representação dos elementos que integram o crime (elemento intelectual do dolo) - incluindo nesses elementos, claro está, as circunstâncias modificativas agravantes- indispensáveis para que a sua consciência ética se colocasse e resolvesse correctamente o problema da ilicitude e, de outro, com o propósito directo ou indirecto de o realizar (elemento volitivo do dolo - cfr. art.º 14º do Cód. Penal).
E o preenchimento do elemento subjectivo do tipo do supra referido normativo exige ainda uma particular direcção de vontade do agente, isto é, que à sua actuação tenha presidido um fim determinado: uma ilegítima intenção de apropriação (que se “manifesta, precisamente, no animus sibi habendi sobre a coisa efectivamente apropriada”- Faria Costa, op. cit., loc. cit.).

Da matéria de facto provada é patente que estão preenchidos os elementos essenciais típicos do ilícito criminal ao nível objectivo e subjectivo; a tal vem suficientemente explicitado na decisão recorrida.
Acresce que (quanto ao conceito de funcionário”):-

Na medida em que o conceito era um conceito chave na ordem corporativista, subsistindo o termo, tem que ser entendido, necessariamente, de acordo com a unidade do novo sistema jurídico – o que é (e era ao tempo dos projectos) um dos critérios de fixação do sentido e alcance da lei, a par com a respectiva letra, nos termos do artº 9º/1, do CC). Tanto mais que este normativo, inserido no C. Penal de 1982, tem por fonte directa o direito alemão, que em 1974 consagrou, expressamente, um conceito amplo de funcionário, sendo que as alterações que sofreu (pelo DL nº 48/95, de 15/03, pela Lei nº 108/2001, de 28/11 e Lei 32/2020, de 02/09) foram no sentido do reforço dessa amplitude. Não se confunde com o artº 327º/CP de 1886, que definia “empregado público” para o efeito da integração das previsões normativas contidas no capítulo relativo aos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções (na vigência do qual, no entanto, já se configurava uma corrente que incluía na noção aqueles a quem eram acometidas funções em serviços públicos, sem permanência bastante para que, em direito administrativo, fossem considerados funcionários públicos). Esta ruptura de conceitos foi intencional, como resulta da justificação dada pelo autor do Anteprojecto do CP/1982, que vincou a necessidade de criar um conceito de funcionário distinto do conceito administrativo, evitando assim lacunas na punibilidade.
O próprio normativo distancia o conceito do de direito administrativo, ao dizer que a noção é «para efeito da lei penal». A manifesta intenção do legislador de integrar na noção todas as hipóteses de actuação administrativa, no sentido de persecutória do interesse público, foi reiterada, ao longo do tempo, com o alargamento sucessivo verificado com as alterações da norma e sobretudo, com a equiparação feita pelo artº 4º/2, do DL 371/83, de 06/10 (que foi acolhida na versão dada pela revisão de 95), em cujo preambulo se manifesta a intenção de alargar a noção para abranger funções similares, do ponto de vista de política criminal, considerando demasiado “estrita” a norma penal.
Em apoio do vindo de referir - cfr. v. g. Acs. da RP, de 15/12/2010; da RLx, de 28/02/2012 – in www.dgsi.pt..
Para além do supradito quanto à matéria é indubitável que a qualidade do arguido ( agente da PSP)preenche tal conceito – neste sentido, também, cfr. v. g., quadro legal do DL nº 299/09, de 14/10 e seu art. 5º.
Quanto à dosimetria penal concreta, designadamente, a opção por pena de prisão suspensa na sua execução, tal não vem sequer sindicado pelo Recorrente que se limita a peticionar a sua absolvição; estas questões vêm devidamente conhecidas e decididas na 1ª instância.
Em suma, o recurso é totalmente improcedente e a sentença não merece qualquer censura.
XXX

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando totalmente a decisão recorrida.
O Recorrente pagará 5 Ucs de taxa de justiça.

PORTO, 26/06/2013
José João Teixeira Coelho Vieira
José Carlos Borges Martins