Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1091/11.4PJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: ARMA
ARMA BRANCA
ROUBO
Nº do Documento: RP201306051091/11.4PJPRT.P1
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – Um objeto cortante, tipo canivete, suscetível de ser usado como meio de agressão integra o conceito de arma constante do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março,
II – O comprimento da lâmina só releva para efeitos de classificação como arma branca – art. 2.º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
III – Comete um crime de Roubo (agravado) do art. 210.º, n.º 2, al.b), ex vi do art. 204.º, n.º 2, al. f), ambos do Código Penal, o agente que encosta um objeto cortante, tipo canivete, ao pescoço da ofendida e exerce pressão enquanto lhe arranca os brincos, uma volta e uma medalha, provocando-lhe o receio de ser atingida na sua integridade física ou até na sua vida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 1091/11.4 PJPRT.P1

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum colectivo supra identificados, oriundos da 2ª Vara Criminal do Porto, mediante acusação do MP, foram julgados os arguidos:
- B...., solteiro, sem profissão, natural de Aldoar, Porto, nascido a 27/08/1984, filho de C….. e de D….., residente na Rua …., …, …., Porto;
- E...., solteiro, ajudante de cozinha, natural de Massarelos, Porto, nascido a 02/01/1982, filho de F…. e de G….., actualmente a cumprir pena de prisão no E. P. do Porto.
Era-lhes imputada a prática de factos susceptíveis de integrarem, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nºs 1 e 2, al. b), ambos com referência ao artigo 204º, nº 2, al. f), do Código Penal.

Efectuado o julgamento foi lavrado acórdão que, na parte que para o presente recurso interessa, assim decidiu:
1. Absolveu o arguido B.... da acusação que sobre ele impendia;
2. Na parcial procedência da acusação, condenou o arguido E.... como autor material de dois crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, por cada um deles; em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 2 (dois) anos de prisão efectiva.

Não conformado, o Ex.mo Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, apresentando as seguintes conclusões:
1. Resulta dos factos provados que o arguido E…. utilizou como meio de agressão para praticar ambos os roubos um instrumento cortante apto a ferir ou matar (objecto cortante, tipo canivete).
2. E resulta também dos factos provados que o uso desse instrumento (na perspectiva do agressor, que para tanto o usou deliberadamente) infundiu medo acrescido nas vítimas, tornou-as mais vulneráveis à intenção do arguido e foi, por isso, facilitador da consumação dos crimes.
3. A idoneidade do instrumento empregue enquanto arma letal corresponde ao conceito de arma relevante para efeito do Código Penal (art.º 4º do DL 48/95, de 15/3).
4. Há lugar à qualificação de cada um dos roubos em causa, nos termos do art.º 210º, nº 1 e nº 2, al. B), com referência ao art.º 204º, nº 2, al. F) do mesmo CP.
5. Mostra-se, em nosso entender, violado o disposto no art.º 4º do DL 48/95, de 15/3 e o disposto no nº 2, al. B) do referido art.º 210º, com remissão para o art.º 204º, nº 2, al. F) do mesmo CP, uma vez que estas normas deviam ter sido aplicadas (e não foram) nos termos acima defendidos.
6. O Tribunal recorrido, a nosso ver, interpretou as normas do Código Penal referidas (das quais resulta a agravação dos roubos) no sentido de que se tornava necessário recorrer à Lei nº 5/2006, de 23/2, para averiguar se o instrumento cortante utilizado tinha a virtualidade de ser considerado como arma, quando tais normas deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de que para efeito do disposto no Código Penal – conforme preceitua aquele art.º 4º do DL 48/95 –, se considera arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim.
7. Assim, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que condene o arguido E…. pela prática de dois crimes de roubo, cada um deles previsto e punido nos termos do art.º 210º, nº 1 e nº 2, al. B), com referência ao art.º 204º, nº 2, al. F) do mesmo CP.
8. Entendemos que a pena não deverá ser inferior a três anos e seis meses por cada um dos roubos, e, em cúmulo jurídico, a pena única deverá situar-se entre os quatro anos e seis meses e os cinco anos de prisão efectiva.

Respondeu o arguido, concluindo:
1. Para a vertente objetiva da qualificativa do artigo 204º n.º 2 alínea f) do Código Penal e o artigo 4° do Decreto-lei n.º 48/95, de 15/03 é necessária a prova meio eficaz de agressão e a funcionalidade efectiva do instrumento como meio da agressão, o que não se logrou provar;
2. O instrumento com características cortantes apenas integra a ameaça de perigo do artigo 210º, n.º 1 e não a qualificativa do artigo 204º n.º 1 alínea f) do Código Penal;
3. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” não deverá merecer qualquer censura, devendo assim se manter a condenação do arguido E...., na prática, em concurso efectivo, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de roubo, previstos e punidos no artigo 210º n.º 1 do Código Penal, na pena única, em cúmulo jurídico, de 2 anos de prisão efectiva.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA subscreve o recurso do MP em 1ª Instância.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade, que se tem por definitivamente assente:
1. No dia 20 de Junho de 2011, cerca das 12 horas e 35 minutos, no interior da Residencial “H…..”, sita na Rua da …, nº …, nesta comarca, o arguido E.... dirigiu-se à ofendida I...., agarrou-a pelos cabelos, desferiu-lhe dois murros na zona da cabeça e encostou-lhe um objecto cortante, tipo canivete, junto ao pescoço, exercendo pressão, arrancando-lhe os brincos, a volta e a medalha, que trazia nas orelhas e ao pescoço.
2. A ofendida I…., com receio de ser atingida pelo arguido na sua integridade física de uma forma ainda mais grave ou até na sua vida e com medo de continuar a ser agredida fisicamente, entregou o telemóvel que possuía ao arguido E.....
3. Os brincos, a volta e a medalha eram em ouro e tinham o valor de, pelo menos, 300 € (trezentos euros). O telemóvel, de marca e modelo não apurados, tinha valor comercial, não concretamente apurado.
4. De seguida, o arguido E.... chamou a ofendida J...., a quem disse para entregar tudo o que tinha, mantendo sempre o objecto cortante encostado ao pescoço da ofendida Cidália.
5. A ofendida J...., com receio de ser atingida na sua integridade física e que a outra ofendida também o fosse, entregou ao arguido E.... pelo menos 150 € (cento e cinquenta euros) em dinheiro, de sua pertença e respeitante ao apuro da residencial, um telemóvel de marca e modelo desconhecidos e as chaves de casa, objectos com valor comercial não concretamente apurado.
6. Já na posse dos referidos objectos e dinheiro, o arguido E.... fechou as ofendidas num quarto daquela residencial, mas não à chave, dizendo-lhes que se chamassem a polícia voltaria lá para as matar ou mandaria alguém fazê-lo.
7. Logo de seguida, o arguido E.... saiu do local, levando consigo e fazendo seus os objectos e dinheiro que retirou às ofendidas.
8. Por via da conduta do arguido E...., a ofendida I....foi fisicamente atingida, apresentando, como consequência directa, adequada e necessária, um edema e equimose periorbitários à esquerda, com oclusão palpebral parcial, uma lesão linear horizontal com 8 cm na hemiface esquerda com profundidade variável (mais superficial na metade anterior onde se torna mais rarefeita; mais profunda na porção posterior onde se encontra com sinais inflamatórios), uma escoriação linear na hemiface esquerda com 2 cm, horizontal e localizada sobre a metade medial da lesão anterior, um eritema dos lobos dos pavilhões auriculares, e uma escoriação linear com 2 cm e crosta hemorrágica na face interna do terço inferior do antebraço esquerdo.
9. Tais lesões determinaram oito dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho.
10. À ofendida I....foram prestados os primeiros socorros no local pelo INEM, não tendo recebido tratamento hospitalar.
11. O arguido E.... agiu deliberadamente, com intenção de fazer seus e de integrar no respectivo património os objectos e dinheiro que levou consigo.
12. Sabia que os objectos e dinheiro não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade das respectivas donas.
13. Bem sabia que só lograva alcançar os seus intentos de fazer seus o dinheiro e os objectos pertencentes às ofendidas, mediante a violência com que actuou, nomeadamente o uso do objecto cortante encostado ao pescoço de uma das ofendidas, as agressões físicas perpetradas numa delas e o receio que lhes provocou de serem molestadas fisicamente.
14. Sabia que o uso daquele objecto cortante provocava medo nas ofendidas, atento o seu potencial efeito agressor da vida ou da integridade física, o que facilitava a sua actividade, como aconteceu.
15. Agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
16. O objecto cortante usado pelo arguido E.... tinha um comprimento total não superior a 10 centímetros.
17. O processo de desenvolvimento psicossocial do arguido E.... decorreu em núcleo familiar numeroso (pais e 4 filhos), desfavorecido aos níveis sócio-económica e cultural, e com registo de alcoolismo das figuras parentais.
18. Este quadro familiar reflectiu-se negativamente na sua adaptação ao meio escolar, onde revelou elevado absentismo, desinteresse e inerentes dificuldades de aprendizagem, acabando por abandonar o sistema de ensino após terminar o 5º ano, na …., sem concluir a escolaridade obrigatória.
19. A sua autonomia do grupo familiar de origem, com o consentimento dos pais, reporta-se aos 14 anos, idade em que se fixou na Trofa para trabalhar como aprendiz/operário fabril, onde permaneceu sensivelmente até aos 17/18 anos. O envolvimento no consumo de estupefacientes, que rapidamente evoluiu para um quadro de toxicodependência, condicionou negativamente, desde o início da idade adulta, o seu percurso de vida.
20. Reporta-se ao ano 2000 o envolvimento de E.... em práticas criminais, num quotidiano marcado pela inactividade e recurso a expedientes para sobreviver. Estabeleceu relação com o arguido B….., também toxicodependente, passando a depender dos rendimentos que, segundo o arguido, o companheiro auferia de práticas associadas á prostituição.
21. Os tratamentos a que se submeteu em associações de cariz evangélico, não se revelaram bem sucedidas, acabando por reincidir no consumo de estupefacientes e a regressar à companhia de B…..
22. Por determinação judicial da 4ª Vara Criminal, no âmbito do Processo 729/00.3 PRPRT, E.... viu a pena de prisão suspensa na sua execução com obrigação de se sujeitar a tratamento e adquirir competências sociais com vista a um modo de vida mais integrado e inserido socialmente. Da análise do dossier individual resulta que o arguido registou grande mobilidade residencial, sendo desconhecido o seu paradeiro por longos períodos de tempo, registou faltas a entrevistas e ao plano de tratamento delineado e um quotidiano marcado pela ociosidade e dependência de terceiros (companheiro e estruturas da rede social).
23. No período a que se reportam os autos, E.... mantinha um quotidiano transgressivo, marcado pela toxicodependência. Registava grande mobilidade residencial chegando a fixar-se em Lisboa, sendo desconhecido com exactidão o seu modo de vida.
24. Revela grande ambiguidade no seu relacionamento com o companheiro B….. (a quem apelida de B1…), reconhecendo uma forte dependência relacional e económica mas a quem também imputa responsabilidade pelo seu envolvimento em contextos de exclusão e marginalidade.
25. A irmã K… constitui-se no momento actual como única familiar disposta a acolher o arguido quando se perspectivar o seu regresso a meio livre, apoio condicionado a um quadro de abstinência e afastamento do estilo de vida/contextos desviantes que têm marcado a trajectória de vida do arguido.
26. E.... deu entrada no Estabelecimento Prisional do Porto, em 24.10.2012, à ordem do Processo 1664/10.2 PRPRT da 4ª Vara Criminal do Porto, para cumprimento de um ano e dez meses de pena efectiva de prisão, pela prática de crime de roubo em 05.09.2010.
27. E.... apresenta uma atitude evasiva quando confrontado com o teor da acusação, não emitindo qualquer juízo de valor sobre condutas daquela natureza, que contrasta com a desculpabilização que emite quando confrontado com os seus antecedentes criminais, vendo-os como inevitáveis face à sua condição de toxicodependente. Não consegue descentrar-se e valorar os danos causados às vítimas/sociedade.
28. Identifica a toxicodependência como factor de risco, reconhece a falência de anteriores tentativas de tratamento, mas desvaloriza a necessidade de sujeição a tratamento clínico especializado, numa lógica de prevenção da recidiva, considerando a título exemplificativo que, como acedeu a um estado abstémio, em meio prisional, do consumo de cocaína, prescinde de acompanhamento futuro continuado. Considera que a interiorização de valores de cariz evangélico, do qual é seguidor, são suficientes para uma melhoria da sua condição pessoal.
29. Tem revelado capacidade de adaptação às regras em ambiente prisional, já solicitou ocupação laboral mas ainda não viu contemplada a sua pretensão. Integra uma formação ministrada pelos serviços prisionais designada “programa de desenvolvimento moral e ético”, dirigido à população reclusa.
30. Da análise do trajecto de vida do arguido, verificamos existirem fragilidades pessoais e sociais acentuadas, relacionadas com a baixa escolaridade, ausência de hábitos de trabalho, toxicodependência, ligação a contextos marginais e dependência de terceiros. Denota reduzida interiorização de valores.
31. E.... deverá reflectir de forma mais ajustada sobre a sua trajectória de vida, os factores criminógenos já identificados, a necessidade de respeitar o quadro normativo e os direitos de terceiros, e em simultâneo adquirir competências pessoais e sociais que lhe permitam orientar o seu quotidiano por um rumo diferente, sob pena de regressar a um estilo de vida marcado pela exclusão social e marginalidade.
32. O CRC do arguido E.... regista uma condenação em 3 anos de prisão, suspensa por 5 anos, pela prática em 26/04/2001, de um crime de tráfico de estupefacientes, já declarada extinta; uma condenação em 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa por 3 anos com sujeição a deveres, pela prática em 24/07/2000, de 2 crimes de roubo, já declarada extinta; cumpre actualmente pena de prisão por crime de roubo.
33. Em razão da actuação do arguido E...., as ofendidas sofreram bastante medo e a I....sofreu dores.

E considerou que não se provaram quaisquer outros factos, para além ou em contrário dos constantes do ponto anterior e, designadamente:
- que o arguido B…. tenha agido em execução de plano delineado com o arguido E.... e em comunhão de esforços e intentos com este;
- que o arguido E.... tenha desferido murros no tronco da ofendida I....e que lhe tenha dito para entregar os brincos, a volta e a medalha;
- que os brincos, a medalha e a volta da ofendida I…., bem como o telemóvel, o dinheiro e as chaves da ofendida J...., tenham sido entregues ao arguido B…. e que este os tenha guardado;
- que a ofendida J.... estivesse rodeada por ambos os arguidos;
- que os arguidos tenham agido em execução de plano delineado por ambos e em comunhão de esforços e de intentos;
- que o arguido B…. estivesse presente no local onde os factos foram cometidos;
- o comprimento da lâmina do objecto cortante usado pelo arguido E.... e que este tivesse natureza letal.

A única questão do presente recurso é a de apurar se o objecto cortante, tipo canivete, que o arguido usou, integra o conceito de arma para efeitos da qualificativa referida no n.º 2 do art.º 204º do C. Penal.
Concluindo-se pela positiva, deverão as penas ser agravadas porque o arguido cometeu o crime de roubo agravado por que vinha acusado.

DECIDINDO
Começaremos por convocar as disposições legais que o Ilustre Recorrente considera violadas.
Dispõe o art.º 210º do C. Penal, sob a epígrafe “roubo”:
1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - A pena é a de prisão de três a quinze anos se:
a) Qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa à integridade física grave; ou
b) Se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 204.º, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do mesmo artigo.
3 - Se do facto resultar a morte de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.
Art.º 204º do C. Penal:
1 – (…)
2 - Quem furtar coisa móvel alheia:
(…)
f) Trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta;
(…)
Art.º 4º do DL 48/95, 15/03:
“Para efeito do disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim”.

Já o Código Penal de 1886, no seu art.º 426º, 1º, considerava o furto como sendo qualificado desde que o criminoso ou algum dos criminosos trouxesse, no momento do crime, “armas aparentes ou ocultas”.
Assim acontece também hoje pois que a alínea f) do n.º 2 do art.º 204º reproduz, na essência, o que constava do C. Penal de 1886.
O espírito da lei, a sua teleologia, como bem refere o STJ[1], é “o de considerar como factor demonstrativo de uma maior antisocialidade do dito agente, e, como tal, de uma maior culpa deste, a circunstância de o mesmo, trazer consigo qualquer objecto que sirva ou possa servir como arma (proibida ou não), mesmo que, na sua actuação concreta, a não utilize, e que, ou que, ela se encontre escondida.
E arma, para os fins dos referidos artigos, é todo o objecto que tenha a virtualidade de provocar nas pessoas ofendidas ou nos circunstantes, um justo receio de virem a ser lesadas, através da respectiva utilização, na sua integridade física, mesmo que, de facto, e sem que elas o saibam, não possa cumprir cabalmente tal função, designadamente por falta de partes componentes que, nas armas de fogo ou suas imitações, sejam susceptíveis de provocar o disparo”.
É este também o entendimento de Faria da Costa[2] quando escreve: “O potencial de superioridade de ataque que uma arma traz ao delinquente é, ninguém o desconhece, uma realidade indesmentível e indiscutível, o que tem como contrapartida uma clara diminuição da defesa que a vítima pode encetar. De sorte que a razão de ser desta proposição normativa justifica-se quase que em uma evidência”.
Por isso, sem qualquer dúvida, adere ao citado entendimento do STJ afirmando que a noção de arma tem de ser encontrada “na capacidade de provocar nas pessoas ofendidas ou nos circunstantes medo ou justo receio de poderem vir a ser lesadas no corpo ou na vida através do seu emprego”.
Na sequência, considera arma todo o “objecto que é tido, pelo comum e normal dos cidadãos, como um instrumento capaz de ferir ou matar”.
Parece ser este também o entendimento de Leal Henriques e Simas Santos[3]: “Esta alínea abrange tudo o que possa ser usado como instrumento eficaz de agres­são, portanto quaisquer armas, quer as próprias (as destinadas normalmente ao ataque ou defesa e apropriadas a causar ofensas físicas), quer as impróprias (todas as que tem aptidão ofensiva, se bem que não sejam normalmente usadas com fim ofensivos ou defensivos)”.

Está apurado nos autos que o arguido encostou um objecto cortante, tipo canivete, junto ao pescoço, exercendo pressão, à ofendida, arrancando-lhe os brincos, a volta e a medalha, que trazia nas orelhas e ao pescoço.
Mais está apurado que a ofendida I…., com receio de ser atingida pelo arguido na sua integridade física de uma forma ainda mais grave ou até na sua vida e com medo de continuar a ser agredida fisicamente, entregou o telemóvel que possuía ao arguido E.....
Ainda está apurado que o arguido E.... chamou a ofendida J...., a quem disse para entregar tudo o que tinha, mantendo sempre o objecto cortante encostado ao pescoço da ofendida I….. Esta, com receio de ser atingida na sua integridade física e que a outra ofendida também o fosse, entregou ao arguido E.... pelo menos 150 € (cento e cinquenta euros) em dinheiro, de sua pertença e respeitante ao apuro da residencial, um telemóvel de marca e modelo desconhecidos e as chaves de casa, objectos com valor comercial não concretamente apurado.
Da factualidade apurada resulta:
1. O objecto usado pelo arguido era um objecto cortante, tipo canivete;
2. Esse objecto provocou nas ofendidas o receio de, através da sua utilização, virem a ser lesadas na sua integridade física, ou até na sua vida.
Consequentemente, considera-se arma para efeitos da agravação referida.
De resto, o objecto cortante, tipo canivete, cai no conceito de arma constante do art.º 4º do DL 48/95, 15/03, na medida em que é um instrumento que pode ser usado como meio de agressão, como é notório.
Tanto basta para que o recurso seja provido.

Em todo o caso, adiante-se que a fundamentação do Tribunal Colectivo, e com o devido respeito, em nada convence, limitando-se a afirmar:
“A acusação faz a imputação dos ilícitos sob a forma agravada, por ter sido usado, no momento do crime, arma aparente ou oculta (a navalha ou canivete usado pelo arguido E....) – nº 2, al. f) do artº 204º, «ex vi» artº 210º, nº 2, al. b), ambos do Cód. Penal.
Cumpre, portanto, averiguar se tal objecto tem a virtualidade de ser considerado como arma.
O Código Penal não fornece qualquer critério orientador nesta matéria. Nestes termos, torna-se necessário recorrer às definições legais constantes da Lei nº 5/2006, de 23/02, que estabelece o “regime jurídico das armas e munições”.
O artigo 2º, nº 1, al. m), desta lei, define «Arma branca» como “todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões».
Tal como resulta dos factos provados, o arguido E.... empunhava um instrumento com características cortantes (que as ofendidas designam como navalha ou canivete), de reduzidas dimensões (ainda segundo a descrição gestual em audiência, feita pelas ofendidas, não teria comprimento total superior a 10 centímetros), não sendo possível apurar o comprimento da respectiva lâmina, mas que sempre seria, segundo as regras da experiência, de metade do comprimento total e, portanto, de aproximadamente 5 centímetros.
Assim sendo e de acordo com a definição legal supra referida, tal objecto não possui as características adequadas à sua classificação como arma e, como tal, não pode servir como qualificativa do crime, que, assim, soçobra.
Em conclusão, o arguido E.... cometeu os dois crimes de roubo imputados, mas na forma não agravada”.
O acórdão recorrido parece que confunde os conceitos de “arma” e de “arma branca”, entendendo que se trata de uma só realidade; e confunde os conceitos de “arma” para efeitos do C. Penal com o de “arma branca” para efeitos do regime jurídico das armas e suas munições constante da Lei 5/2006, de 23/2.

No sentido do texto, já o STJ[4] se pronunciou, de forma que não deixa qualquer dúvida, afirmando:
- Por um lado, que “Este preceito (art.º 4º do DL 48/95, 15/03) mantém actualidade, não obstante a entrada em vigor em 22 de Agosto de 2006 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que visa a regulamentação do regime jurídico das armas, definindo o que deve entender-se sobre os 45 tipos de armas que enumera e a regulamentação da aquisição, detenção, uso e porte das mesmas, mas que não revogou aquela disposição”;
- Por outro que, “A propósito desta qualificativa – porte de arma aparente ou oculta - têm-se desenhado na jurisprudência duas correntes.
Uma, actualmente e desde há cerca de uma década, apresentando-se como dominante, que considera que a arma como agravativa dos crimes de furto e de roubo tem que revestir-se de efectiva perigosidade (…).
Para outra corrente considera-se verificar-se a agravante qualificativa da alínea f) do nº 2 do artigo 204º do Código Penal, bastando que a arma tenha a virtualidade de o homem médio ou comum pensar justamente que o agente da infracção está na posse de uma verdadeira arma, causando-lhe um justo receio de poder vir a ser atingido e lesado corporalmente.
A qualificativa nesta concepção é de ordem subjectiva e enraíza-se na maior intimidação da vítima, porque o temor resultante da ameaça exercida com arma, verdadeira ou não, é tal que anula a capacidade de resistência da vítima”.
Adira-se a uma ou a outra das correntes, está verificada nos autos a circunstância qualificativa atendendo a que se trata de um instrumento cortante, tipo canivete, que o arguido colocou junto ao pescoço de uma das ofendidas, exercendo pressão.
Por isso, a conduta revestiu-se de efectiva perigosidade.
Mas é igualmente certo que as vítimas ficaram com receio da sua própria vida (como ficaria o homem comum, colocado naquelas circunstâncias).

Importa, por isso, encontrar as penas que sejam justas e adequadas.

Por força da qualificativa as condutas do arguido são subsumíveis à alínea b) do n.º 2 do art.º 210º do C. Penal.
Pelo que cada uma delas é punida com pena de prisão de 3 a 15 anos.
“A medida concreta da pena é um puro derivado da concepção que o ordenamento jurídico adopta em matéria de sentido, limites e finalidades da aplicação das penas”[5].
Porque assim é, na sua aplicação tem de se ter em conta, para além de todo o referido no art.º 71º do c. Penal, o bem jurídico protegido pelo tipo legal violado e ainda os fins preventivos das penas – art.º 40º do C. Penal.
Jamais esquecendo que a medida da culpa limita a medida da pena – n.º 2 do art.º 40º do C. Penal.
Segundo Figueiredo Dias[6], “o modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração), entendida esta como a protecção de bens jurídicos alcançada mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada[7], a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos dentro do que é consentido pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (o revelar perante a comunidade a solidez do sistema jurídico-penal, traduzido na «necessidade de tutela da confiança (...) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (...) no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime»[8]); e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente”.
“Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que, dentro da moldura legal, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social”[9].

Transpondo a doutrina para os autos:
- O arguido agiu com dolo directo, a modalidade mais grave de culpa;
- É elevada a ilicitude da conduta e bem assim o juízo de censurabilidade face às circunstâncias em que os crimes foram perpetrados;
- O modo de actuação do arguido revela personalidade agressiva e insensibilidade para com terceiros;
- O tipo legal tutela bens jurídicos patrimoniais (o direito de propriedade e detenção) e bens jurídicos pessoais (a liberdade de decisão e de acção, a integridade física e até a vida);
- Este tipo de crime é daquelas que a Comunidade mais repudia atendendo ao sentimento de insegurança que para ela se transpõe;
- Os antecedentes criminais do arguido evidenciam personalidade propensa a este tipo de crimes (tem no “curriculum” penas de prisão, embora suspensas na execução, por crimes de roubo e de tráfico de estupefacientes, cometidos em 2000 e 2001 e já extintas; e encontra-se actualmente a cumprir pena de prisão por roubo);
- Não tem modo de vida definido. Como diz o Tribunal a quo, está “desprovido de inserção social e familiar, sem hábitos de trabalho e com ausência de sentido crítico face aos actos cometidos”.
- Não é muito elevado o valor dos bens de que se apoderou o arguido (cerca de 450€). Mas nada foi recuperado.
Tudo visto e ponderado, entende-se que a pena justa e adequada por cada um dos crimes é a de 3 anos e 9 meses de prisão.

Manda o n.º 1 do art.º 77º do C. Penal que o arguido seja condenado em pena única pois que praticou vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles.
Na medida da pena, reza o mesmo preceito legal, são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Acrescenta o n.º 2:
“A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
A pena conjunta deve formar resultar de uma valoração completa da personalidade do autor e das diversas penas parcelares.
Para Jescheck, na aplicação da pena global deverá levar-se em linha de conta a pessoa do agente e os delitos individuais.
“Como refere Lobo Moutinho, não é a personalidade do agente, em si e por si, ou na sua plenitude, que é materialmente co-fundamento da punição, mas tão-somente a personalidade do arguido considerada naquele momento singular e limitado da respectiva dinâmica que foi precisamente o facto criminoso; não o que o agente, de uma forma geral, «é ou tem sido», mas o que o agente «foi» naquele facto e naquele momento. Não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no(s) facto(s), tendo em vista a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluri-ocasionalidade que não radica na personalidade”[10].
Segundo a Relação de Coimbra[11], “Perante o concurso de penas há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos ao arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, vistos na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado, e considerar o fio condutor presente na repetição criminosa”.
Por isso, afiança o Supremo Tribunal de Justiça[12], “Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, ou seja, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia; a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa”.
Mais acrescenta que[13] “Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. Na consideração da personalidade deve ser ponderado o modo como esta se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, o julgador deve aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente”.
Destarte, afirma-se neste último aresto, “O modelo de fixação da pena no concurso de crimes rejeita uma visão atomística dos vários crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse pedaço de vida criminosa com a personalidade do seu agente”.

Revertendo aos autos.
Como se referiu, a imagem global dos factos é altamente negativa. Os factos são graves e altamente censuráveis. A personalidade do arguido é propensa à prática deste tipo de crimes. Os crimes foram cometidos na mesma ocasião.
Assim, condena-se o arguido na pena única de cinco (5) anos de prisão.

DECISÃO:
Termos em que, na procedência do recurso, se revoga o douto acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido E...., nas penas parcelares de 18 meses de prisão e na pena conjunta de 2 anos de prisão, que substituem por acórdão que o condena por cada um dos crimes previstos e punidos pela alínea b) do n.º 2 do art.º 210º do C. Penal, na pena de três (3) anos e nove (9) meses de prisão; e em cúmulo jurídico na pena única de cinco (5) anos de prisão.
No mais, mantém-se o acórdão recorrido.
Sem tributação.

Porto,05.06.2013
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro
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[1] Ac do STJ de 27/6/1996, CJ, Acs do STJ, Ano IV, tomo II, p. 202
[2] Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pg. 79 e segs
[3] Código Penal Anotado, 3ª edição, II vol., pg 655
[4] Ac do STJ de 13/12/2007, processo 07P3210, in www.dgsi.pt
[5] Ac do STJ de 4-05-2011, processo 1702/09.1JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt
[6] Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro de 1993, p. 186 e segs.
[7] Segundo Roxin, a aplicação da pena pelo juiz, serve, em primeiro lugar, de complemento à função de prevenção geral própria da cominação legal pela confirmação da seriedade da ameaça abstracta expressa pela lei, nunca ultrapassando a culpa do autor pois de contrário este seria utilizado como meio para os demais (a função da pena no momento legislativo é a de protecção de bens jurídicos e prestações públicas imprescindíveis mediante a ameaça de uma sanção, que tem de constar do tipo atendendo ao princípio da legalidade); e, num segundo momento, serve a prevenção especial fazendo sentir ao delinquente a necessidade de não voltar a violar bens jurídicos fundamentais pela afirmação contrafáctica da validade da norma.
[8] Assim, também, Figueiredo Dias in Temas Básicos de Direito Penal, p. 105
[9] Ac. do STJ de 17.03.99, citado pelo Ac. do mesmo Tribunal, de 14.03.01 in CJ, Acs. do STJ, IX, 1, 249.
[10] Ac do STJ de 25/03/2009, CJ, Acs do STJ, XVII, I, 233
[11] Ac da RC de 20-01-2010, processo 561/08.6GBAGD.C1, in www.dgsi.pt
[12] Ac do STJ de 28/4/2010, processo 4/06.0GACCH.E1.S1, in www.dgsi.pt
[13] Ac do STJ de 16/12/2010, processo 893/05.5GASXL.L1.S1, in www.dgsi.pt