Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2163/10.8TAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: DIFAMAÇÃO
DIREITO DE CRÍTICA
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP201403262163/10.8TAPVZ.P1
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos [art. 37.º, n.º 1, da CRP].
II – Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmo­nização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.
III - Se é legítimo o direito de crítica do arguido à atuação do assistente na instau­ração de um processo disciplinar e na imposição da respetiva pena (que foi anulada em recurso), já a imputação desonrosa não o é, e o arguido usou-a sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
IV - Para viabilizar a causa de justificação prevista na alínea a) do n.° 2 do artigo 180.° ou a causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 31° n° 2 al. b), ambos do Cód. Penal, é necessário haver proporcionalidade e necessidade do meio utilizado em função dos interesses a salvaguardar: "a necessidade só existe quando a forma utilizada para a divulgação da notícia se mostra indispensável para a realização dos interesses protegidos" [José de Faria Costa, Comentário Conimbricense… p. 620].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2163/10.8TAPVZ.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim com o nº 2163/10.8TAPVZ, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 07.01.2013, que condenou o arguido, pela prática de cada um de dois crimes de difamação agravada p. e p. nos artºs. 180º nº 1, 14º nº 1, 182º e 184º, por referência ao artº 132º al. l), todos do Cód. Penal, na pena de 130 dias de multa à taxa diária de € 9,00. Efetuado o cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 9,00 (nove euros).
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Não deviam ter sido dados como provados os pontos 10, 11 e 18 da matéria de facto assente;
2. Impõem decisão de facto de sentido inverso as declarações do arguido, concretamente as passagens supra identificadas e que aqui se dão por reproduzidas;
3. Os textos foram redigidos e enviados pelo arguido ao abrigo do direito de crítica, que tanto conduz à atipicidade da conduta, como à justificação por via do exercício de um direito – a liberdade de expressão;
4. À luz da crítica objetiva, o tribunal a quo não podia ter considerado as expressões proferidas como desadequadas aos dados de facto que constam dos autos, nem ter valorizado como o fez a utilização do diminutivo «despotazinho»;
5. A sentença recorrida não deu a devida importância ao facto de o Assistente ser Diretor da Escola …, cargo público para o qual foi nomeado, e cujo exercício deve estar sujeito ao escrutínio público, muito em particular por parte dos professores da escola, como é o caso do arguido;
6. A liberdade de expressão é um direito fundamental consagrado no artº 37º da Constituição e no artº 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e deve ser entendida como a liberdade de proferir afirmações tanto agradáveis como incómodas;
7. A sentença recorrida qualificou incorretamente determinadas expressões como «imputação de factos», retirando-as do âmbito da crítica objetiva e exigindo a respetiva prova da verdade, quando essas expressões correspondem ainda a juízos de valor;
8. Em todo o caso não faria sentido que sobre elas se invocasse a exceptio veritatis, nem o tribunal tinha competência para decidir da conformidade das normas internas da escola face à lei, nem o tribunal realizou qualquer esforço para o apuramento da verdade material quanto a essas circunstâncias, para além de ouvir as testemunhas que afirmaram nada saber;
9. Não se pode concluir que «os juízos de valor efetuados extravasam a apreciação e valoração crítica da atuação do Diretor». Se por um lado o ataque ao diretor da escola é veemente, violento, usa palavras que provocam melindre no visado, por outro não se pode ignorar que as expressões com que o arguido classifica o assistente nunca se afastam da atuação deste na qualidade de diretor, em especial na atuação deste perante o próprio arguido;
10. O tribunal recorrido interpretou erradamente os artºs. 31º nº 1 e nº 2, al. b) e 180º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal, por não considerar que a conduta se ateve à apreciação crítica do assistente enquanto diretor da escola, e que é portanto atípica ou se encontra justificada (algumas expressões são atípicas, outras típicas mas proferidas no exercício do direito de expressão);
11. A sentença recorrida violou ainda o artº 37º da Constituição e o artº 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
12. Como também violou os artºs. 70º, 483º, 484º do Código Civil ao arbitrar uma indemnização sem que estivessem verificados os requisitos da responsabilidade civil, desde logo a ilicitude.
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O assistente C… e a Srª Procuradora-Adjunta na 1ª instância responderam às motivações de recurso, concluindo ambos pela respetiva improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer concordante com aquelas respostas.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. O ofendido C… é professor e era Diretor da Escola …, nesta cidade.
2. Por sua vez, o arguido, também é professor e pertenceu ao Quadro da Escola …, sendo que à data dos factos, estava destacado na Escola …, de Vila do Conde.
3. Devido a questões de natureza laboral, no dia 24 de Setembro de 2010, o arguido enviou um e-mail a diversas pessoas, designadamente professores e funcionários das Escolas da Póvoa de Varzim e Vila do Conde.
4 - Para além destas pessoas, o arguido enviou os e-mails, designadamente o segundo, também para a DREN, Associação de Pais e Encarregados de Educação, Associação Nacional de Diretores Escolares, Associação de Estudantes da Escola … e IGE.
5 – Nos referidos e-mails – cujo teor se dá por integralmente reproduzido - o arguido, fazendo referência a uma pena de Repreensão Escrita que lhe foi aplicada pelo ofendido C… fez constar, entre outras, as seguintes expressões dirigidas ao ofendido:
“(…) Inconformado com a decisão, reveladora do carácter despótico de C… apresentei recurso hierárquico para o Ex.mo Diretor Regional, que através do Ex.mo Diretor Regional Adjunto, por delegação de competências anulou a pena; (…) diatribe risível de um Diretor incompetente e desqualificado para as funções que exerce, como não se tratasse de uma grave violação do dever de obediência e de lealdade funcional para com o Ex.mo Sr. Diretor Regional (…) trata-se de mais uma das suas retorcidas ações irregulares que se integra nos padrões de incompetência estrutural que o caracteriza e que só tem uma solução: a sua demissão; (…) entende o lugar como uma catapulta arrivista de progressão pessoal (social, profissional, etc.); (…) regulamento interno com normas ilegais; critérios de avaliação de Escola tecnicamente errados, complacência com a atuação da rede de docentes/explicadores (dos quadros da escola) aos alunos da escola, violando a lei, como é do seu conhecimento; ausência total e absoluta de regras de segurança e controlo na entrada e saída de alunos; irregularidade na distribuição de serviço docente (componente letiva e não letiva) (…)”.
6 – Este e-mail não foi diretamente enviado ao assistente pelo arguido, tendo o primeiro tido conhecimento do mesmo através de reencaminhamentos feitos por colegas seus.
7 - No dia 23 de Dezembro de 2010, o arguido, devido às mesmas questões profissionais, enviou um e-mail (cujo teor se dá por integralmente reproduzido) à Escola …, onde fez constar, entre outras, as seguintes expressões dirigidas ao ofendido C…:
“(…) Diretor incompetente e desqualificado (…) pena aplicada por delito de opinião, com o intuito de calar as sugestões que fizemos (…) C… utiliza o poder que lhe foi conferido (…) para provocar temor e tremor entre os docentes da escola (…) trata-se de um déspota que pretendia o silenciamento e achincalhamento da minha pessoa (…) acresce o facto de não ser esclarecido (…) uma vez que não conhece legislação básica que qualquer diretor deveria conhecer, violando direitos básicos de defesa que qualquer arguido deverá ter (…) apropriação do sentir de C… por essa colega se deva à sua consciência pesada pelos imensos pecadilhos e ilegalidades que vem cometendo desde 2005 (…)”.
8 - Acrescentando, ainda “para terminar, convém realçar que C… não possui a craveira inteletual e cultural de Catarina II nem, perdoem-me a imodéstia, a do autor deste e-mail, pelo que talvez fosse mais adequado – concedo isso! – intitular este e-mail com a designação: o despotazinho não esclarecido.”
9 – Este e-mail, para além de dirigido às pessoas e entidades acima mencionadas foi também diretamente dirigido ao assistente.
10 - O arguido sabia que as expressões referidas não correspondiam à verdade, eram objetivamente difamatórias e que ofendiam a dignidade e o bom nome devido ao ofendido não só como cidadão como pelas funções que exercia de Diretor da Escola ….
11 - O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta violava preceitos legais.
12 – O arguido enviou livre e conscientemente os e-mails cujo conteúdo consta da pronúncia.
13 - Ao fazê-lo deu conta da sua opinião pessoal sobre a competência do assistente.
14 – O arguido requereu ao assistente a afixação da documentação relacionada com o processo disciplinar, em locais públicos da escola, o que foi recusado – fls 146 e 146 verso.
15 - Foi no contexto de tal recusa que o arguido decidiu enviar os e-mails e respetivos anexos.
16 – O arguido é professor desde 1988, leccionando a disciplina de Física e Química.
17 - Lecionou tal disciplina na Escola … no período compreendido entre Setembro de 2009 e Agosto de 2010.
18 - Os e-mails acima referidos aconteceram como represália a um processo disciplinar intentado contra o arguido pelo ofendido C….
19 - Tal processo disciplinar teve por fundamento a circunstância de o arguido não ter facultado no dia 31 de Maio de 2010 as fichas formativas da turma do 10.º F, conforme regulamentado pelo Plano Anual de Ocupação Plena dos Tempos Escolares, que determina que “cada professor deverá manter disponível no dossier da respetiva turma, em armário próprio existente na portaria, um conjunto das fichas atrás referidas e verificar após a falta dada à turma, se o mesmo foi ou não utilizado, caso tenha sido utilizado, deve providenciar a reposição de novo conjunto de fichas”. (fls.15 e seguintes e 141).
20 - O ofendido aplicou ao arguido a pena disciplinar de repreensão escrita, suspensa na sua execução pelo período de 6 (seis) meses – fls. 145.
21 - O arguido interpôs recurso hierárquico de tal decisão, tendo o mesmo sido procedente e, em consequência, sido revogada pelo IGE a pena disciplinar aplicada fl. 141.
22 - Anteriormente, o arguido nunca tinha sido objeto de qualquer processo disciplinar.
23 - Devido ao envio dos e-mails o arguido foi objeto de processo disciplinar, tendo recorrido para o secretário de Estado.
24 – O processo de aplicação de uma pena disciplinar ao arguido provocou aumento considerável nos seus níveis de ansiedade e promoveu síndrome depressivo;
25 - Está atualmente de baixa psiquiátrica, recebendo cerca de € 1.400,00 por mês (mil e quatrocentos euros por mês).
26 – Vive com os pais que auferem pensão de reforma, cujo valor concreto não soube precisar.
27 - Não tem despesas fixas.
28 - O arguido revela personalidade rígida e minuciosa, sofrendo de perturbação ansiosa de longa duração.
29 - Revela características de uma personalidade obsessiva e compulsiva, tendendo a agir de forma impulsiva.
30 - Os factos em apreço nos autos agravaram a sua perturbação ansiosa, apresentando síndrome depressivo persistente.
31 - O arguido não tem antecedentes criminais registados no seu CRC.
32 - O assistente exerce funções como diretor da Escola … e ainda funções de membro do Conselho das Escolas, Presidente da Assembleia Geral da Associação Nacional de Diretores Escolares, gozando de boa reputação.
33 – Exerce o cargo de Diretor da Escola desde 1994.
34 – A Escola … goza de autonomia pedagógica.
35 – Tem cerca de 1220 alunos, 99 professores e 46 funcionários.
36 – O assistente é pessoa de elevada cultura, boa educação e é respeitado entre os pares.
37 - Sentiu-se ofendido e humilhado com as ofensas caluniosas de que foi vítima, visto que as mesmas procuraram diminuir-lhe a competência profissional enquanto Diretor da Escola.
38 - Sentiu-se injustiçado e frustrado.
39 - Foi sempre reconhecido no seu meio profissional.
40 - Com a sua conduta difamatória, o demandado enxovalhou o bom nome e reputação do demandante, perante os professores e funcionários que dirige;
41 - Face à forma e meios utilizados, o demandante sentiu-se impotente para se defender, face à difusão propagada através dos e-mails enviados.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
i) O arguido tenha imputado factos verdadeiros ao assistente;
i) Com tal atuação, o arguido visasse proteger e reparar o seu bom nome profissional, violentado após uma injustificada aplicação de uma pena disciplinar;
i) O arguido ao confrontar os colegas com o sucedido tenha tomado consciência de que se tratou de uma pena desproporcionada e não aplicada a outros colegas nas mesmas condições.
ii) Muitos colegas tenham sabido que lhe tinha sido aplicada pena disciplinar, mas não o contexto em que tinha sido aplicada;
iii) Os e-mails remetidos ao assistente pelo arguido tivessem uma função meramente profilática.
i) O regulamento interno da Escola … contivesse normas ilegais;
i) Os critérios de avaliação da Escola fossem tecnicamente errados;
i) O assistente demonstrasse complacência com a atuação da rede de docentes/explicadores (dos quadros da escola) aos alunos da escola, violando a lei, e que tal fosse do seu conhecimento;
i) A Escola … tivesse ausência total e absoluta de regras de segurança e controlo na entrada e saída de alunos;
i) O assistente praticasse irregularidades na distribuição de serviço docente (componente letiva e não letiva) (…)”.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, analisada com recurso a juízos de experiência comum.
O arguido B… prestou declarações, reconhecendo em termos genéricos os factos imputados na pronúncia. Admitiu, assim, que redigiu os dois e-mails e que os endereçou ao próprio assistente (com exceção do primeiro), a vários professores quer da Escola …, quer da Escola …, à DREN, à Associação de Pais e Encarregados de Educação, à Associação Nacional de Diretores Escolares, à Associação de Estudantes da Escola …, à IGE.
Confrontado com o teor dos referidos e-mails, confirmou-o integralmente.
Já quanto à consciência do carácter ofensivo dos mesmos, o arguido evidenciou algumas hesitações, tanto alegando considerar que as afirmações constantes dos ditos e-mails não são ofensivas, como reconhecendo que sim, ainda que retratando imputações verdadeiras. O arguido foi impressivo na contextualização dos factos, demonstrando ressentimento e hostilidade para com o assistente, alegando que a pena disciplinar aplicada pelo arguido foi um capricho pessoal, que o mesmo o induziu propositadamente em erro para prejudicar a sua defesa.
Justificou o envio dos e-mails por considerar que a revogação da pena não foi suficiente para anular os efeitos nefastos que o processo provocou na sua honra profissional, tanto mais que o assistente se recusou a publicitar o processo. Também enfatizou que a Escola … tem normas ilegais no Regulamento Interno (por exemplo, marcar faltas de presença aos alunos) – e que fez participação à Direção Geral de Educação do Norte, não tendo obtido resposta. Referiu também discordar dos critérios de avaliação da escola. Acrescentou que o assistente colocou na Escola uma rede clandestina de observação de aulas (designando o professor que assiste como “assessor”).
O seu discurso revela uma personalidade obsessiva e compulsiva (note-se que verbalizou expressamente que o ofendido o escolheu como alvo de perseguição), mas quando confrontado para melhor justificar as suas afirmações, o seu discurso tornou-se genérico, evasivo e até incoerente. Na verdade, o arguido acabou por reconhecer que o Regulamento não é da responsabilidade exclusiva do Diretor, mas do Conselho Geral da Escola, que comunicou as supostas irregularidades à DREN, mas não obteve qualquer resposta dessa entidade. Finalmente, os critérios de avaliação também não são exclusivamente criados pelo ofendido, mas antes pelos Conselhos Pedagógicos.
Referiu também que os e-mails foram propositadamente redigidos com alguma “ironia literária”.
As suas declarações apontam para um discurso marcado pela hostilidade e desconfiança, revelando alguma incoerência e rigidez.
Por sua vez, o assistente C… também prestou declarações, adotando um discurso que apesar de evidenciar também algum ressentimento, se revelou mais objetivo e ponderado, descrevendo o encadeamento fáctico em causa nos autos de forma coerente e cadenciada. Relatou o impacto que a situação lhe provocou, quer em termos pessoais, quer em termos profissionais, o que fez de forma pormenorizada, explicando quais as palavras que considerou mais ofensivas. Também esclareceu o contexto em que interpôs o processo disciplinar ao arguido e a perceção que teve de que o mesmo foi incapaz de assimilar e de lidar com tal problema.
Explicou que a interposição do processo disciplinar teve por fundamento a circunstância de ter sido detetado que o arguido, pela segunda vez, não tinha disponíveis as fichas formativas, sublinhando que não tratou o arguido de forma diferente dos demais colegas.
Rebateu ponto por ponto as irregularidades apontadas nos referidos e-mails, sendo que as suas afirmações foram em termos genéricos e homogéneos corroboradas pelos demais depoimentos testemunhais, o que lhes conferiu recíproca credibilidade.
Apesar do seu interesse no desfecho do processo, o Tribunal julgou as suas declarações como sérias e sinceras.
Foram inquiridos como testemunhas:
D… (professora de matemática da Escola …) que confirmou ter reencaminhado o primeiro e-mail recebido (datado de Setembro de 2010) para o assistente; foi confrontada com o teor de fls. 5 e 6 e 13 e 14, enfatizando considerar o conteúdo dos e-mails como ofensivo e contrário ao carácter do assistente; só tomou conhecimento do processo disciplinar pela leitura dos e-mails; relativamente às irregularidades apontadas, desmentiu-as; confirmou dar explicações aos alunos da Escola, tendo autorização expressa para esse efeito.
- E… (professora de Biologia na Escola … há cerca de 25 anos) – fez menção a um episódio, numa reunião, em que o arguido terá solicitado umas explicações a propósito de umas regras do Regulamento Interno, nada mais recordando de relevante. Confrontada com o teor de fls. 5 e 6 e 13 e 14, admitiu apenas ter recebido o e-mail datado de Setembro de 2010. Ficou surpreendida com o seu teor, que considerou ofensivo, tendo até escrito um e-mail, manifestando o seu apoio ao assistente. Antes do envio do e-mail desconhecia a pendência do processo disciplinar contra o arguido.
- F… (professor de Educação Tecnológica na Escola … há cerca de 25 anos) sustentou que nunca se apercebeu de qualquer descontentamento ou discordância do arguido quanto a normas ou questões relacionadas com a Escola. Recebeu um e-mail em Setembro de 2010, tendo aí tomado conhecimento da pendência do processo disciplinar. Ficou surpreendido com as expressões utilizadas pelo arguido, em particular com as expressões “déspota” e “incompetente”. Não considera tais expressões adequadas ao comportamento do assistente, visto que o reconhece como um bom profissional.
- G… (professora de Biologia e Geologia há 21 anos na Escola …) esclareceu que apenas manteve conversas de natureza trivial com o arguido, não se recordando que o mesmo alguma vez tivesse abordado questões relacionadas com eventuais irregularidades da Escola; apenas tomou conhecimento da pendência do processo disciplinar após ter recebido o primeiro e-mail; considerou que o arguido se dirigiu de forma desrespeitosa ao assistente, tanto mais que existe um clima de respeito mútuo entre colegas e diretor. Rebateu alguns dos aspetos focados no e-mail, designadamente a segurança dos alunos e os critérios de avaliação, que julga adequados.
- H… (professora de Biologia na Escola … há cerca de 20 anos) alegou não se recordar de o arguido ter suscitado qualquer questão relacionada com eventuais irregularidades na Escola, razão pela qual ficou surpreendida com o teor do e-mail recebido, tanto mais que considera que o assistente não é pessoa autoritária. Afirmou desconhecer a pendência de outros processos disciplinares (contra outros docentes) e de que docentes da Escola dêem explicações no exterior;
- I… (professora de Biologia na Escola … há cerca de 27 anos) confirmou o recebimento do primeiro e-mail, em Setembro de 2010, que considerou insultuoso relativamente ao diretor da Escola, recordando expressões como “incompetente” e “déspota”; considera o assistente como pessoa cumpridora e responsável; quanto ao arguido apenas recorda que o mesmo numa reunião colocou em causa a ordem de trabalhos, mas não se recorda que tivesse abordado qualquer questão relacionada com eventuais irregularidades; só tomou conhecimento da pena disciplinar aplicada ao arguido depois do recebimento do e-mail. Qualificou as expressões usadas como despropositadas e não verdadeiras;
- J… (funcionário da Escola … há 12 anos) – confirmou o recebimento dos dois e-mails, cujo conteúdo considerou lesivo quer da Escola, quer do diretor, nunca antes tendo tomado conhecimento de qualquer situação em que o arguido manifestasse discordância face às normas da Escola;
- K… (professora de Física e Química na Escola … há cerca de 25 anos) – confirmou ter tido reuniões de Departamento com o arguido, não se recordando de qualquer descontentamento ou discordância por parte do mesmo; lembra-se que uma vez ou outra suscitava questões, mas nada de relevante; recebeu os dois e-mails, cujo conteúdo considerou ofensivo da honra e consideração do assistente, da Escola e até dos demais professores, por darem uma imagem de apatia coletiva, que não corresponde à realidade. Afirmou que o assistente é assertivo, mas está sempre aberto a novas sugestões e daí a sua perplexidade pelo uso da palavra “déspota”; desconhecia a pendência do processo disciplinar até ao recebimento dos e-mails; quanto às irregularidades em concreto apontadas, designadamente a questão das explicações e a segurança dos alunos, rebateu-as com os mesmos argumentos.
- L… (professora de matemática da Escola …) – afirmou ter recebido o e-mail de Setembro de 2010, que considerou muito ofensivo da honra do Diretor, tanto mais que do mesmo constavam referências a irregularidades que não correspondem à verdade. Depôs de forma objetiva e fundamentada, refutando tais irregularidades de forma pormenorizada, o que credibilizou o seu depoimento;
- M… (professor da Escola …) – confirmou ter recebido o primeiro e-mail, que reencaminhou para o assistente. Nunca se apercebera de qualquer conflito entre os dois e desconhecia a pendência do processo disciplinar. Afirmou ter o diretor como pessoa íntegra. Depôs de forma isenta e séria.
- N… (professora na Escola …) afirmou que o arguido é uma pessoa crítica do funcionamento das coisas; tinha conhecimento da existência do processo disciplinar porque isso lhe fora transmitido pelo arguido; tomou conhecimento do teor dos e-mails, porque o arguido lhos remeteu diretamente; os e-mails contêm juízos de valor acerca do assistente dos quais discorda, sendo que a Escola … é vista como uma escola organizada, com um funcionamento rigoroso e resultados escolares bons; o seu testemunho afigurou-se coeso e fidedigno.
- O… (professora de matemática na Escola … há cerca de 30 anos) – confirmou que o arguido tinha por hábito participar ativamente nas reuniões, dando a sua opinião, recordando-se que o mesmo discordava dos critérios de avaliação; quanto às demais irregularidades apontadas, contestou-as, não tendo designadamente conhecimento que algum professor da Escola dê explicações a alunos da mesma sem expressa autorização para o efeito. Reconheceu ao assistente competências de liderança, sendo inevitável que adote posições nem sempre inteiramente consensuais;
- P… (foi professora na Escola …) – depôs à matéria da notificação do arguido para os concursos, tendo igualmente deposto quanto à personalidade do assistente; afirmou não ter recebido nenhum e-mail do arguido, mas veio a tomar conhecimento do teor dos mesmos, através de telefonemas de colegas; afirmou não rever o assistente naquelas palavras, que considera insultuosas; também depôs a respeito das irregularidades invocadas, contrariando-as; na qualidade de sub-diretora da Escola teve conhecimento da instauração de um processo disciplinar ao arguido B….
- Q… (professor na Escola …) afirmou ter tomado conhecimento da instauração de um processo disciplinar, através do que lhe foi referido pelo arguido, tendo constatado que o mesmo se encontrava muito revoltado. Conversou várias vezes com o mesmo, tendo ficado com a ideia de que o arguido se sentia injustiçado; não conhece pessoalmente o assistente, mas enquanto figura pública, sabe que o mesmo é reputado como competente;
- S… (professor da Escola …) – afirmou ter tomado conhecimento da existência de um processo disciplinar através do próprio arguido, que lhe confidenciou tal facto; reconheceu que a si já lhe aconteceu o mesmo, mas depois de advertido não voltou a repetir o comportamento; nunca se sentiu prejudicado pelo Diretor; sentiu que o arguido usou as suas palavras com uma determinada intenção, tendo ficado incomodado com isso. Considera o arguido uma pessoa conflituosa; depôs de forma que se afigurou crível e sincera.
- T…, caixa fixo no U…, reportou-se vagamente a um episódio relacionado com explicações, que terá sido aflorado pela sua filha, aluna da Escola …, mas que se revelou incapaz de concretizar, razão pela qual o seu depoimento não mereceu a valoração do Tribunal;
- V… (professora da Escola …) – afirmou ter tido conhecimento, através do próprio arguido, da existência de um processo disciplinar que foi interposto contra o mesmo;
- W… (professor da Escola …) – afirmou ter tido conhecimento, através do próprio arguido, da existência de um processo disciplinar que foi interposto contra o mesmo, tendo ficado surpreendido e incomodado com a situação; no entanto, asseverou de forma que se afigurou sincera que o assistente é uma pessoa reta, que não faz uso de dualidade de critérios.
- X… – professor – afirmou não ter conhecimento de qualquer incompatibilidade entre arguido e assistente previamente ao envio dos emails;
Uma análise transversal destes depoimentos permite concluir que de forma homogénea todos os inquiridos reconheceram o mérito pessoal e profissional do assistente, e aqueles que tinham uma relação mais próxima com o arguido reportaram-se ao temperamento conflituoso, rígido e algo inflexível do mesmo.
Nenhuma das testemunhas reviu o carácter do assistente nas palavras constantes dos e-mails.
Note-se que muitas destas testemunhas foram indicadas pela defesa, mas o seu discurso foi muito semelhante, nenhuma delas tendo referido que o assistente tomasse atitudes reveladoras de um temperamento despótico ou sequer autoritário.
É certo que algumas admitiram que o mesmo, enquanto líder de uma escola toma posições nem sempre inteiramente consensuais, mas tal situação é inerente à natureza das funções por si exercidas.
Isso mesmo foi referido pelo professor Y…, atualmente reformado, e que terá sido alvo de um processo disciplinar há cerca de 15 anos. Esta testemunha, que depôs de forma isenta e distanciada, não conhecendo sequer o arguido, admitiu que teria sido possível ao assistente, na sua situação especifica, ter agido de forma menos rigorosa, mas a sua atitude, de interpor contra si um processo disciplinar – reconheceu-o sem hesitações – foi também perfeitamente plausível e conforme aos termos legais.
Por outro lado, também não merece acolhimento o argumento de que as testemunhas se sentiriam pressionadas pela presença do assistente, já que o discurso se manteve homogéneo mesmo relativamente a professores que já não lecionavam ou nunca lecionaram na Escola ….
Ora, a defesa procurou demonstrar que o arguido atuou para realizar interesses legítimos, sendo as imputações verdadeiras.
No entanto, a prova testemunhal produzida não foi suficiente para demonstrar em juízo a veracidade das referidas imputações, e nem sequer que o arguido – que é professor e, portanto, possui uma formação académica superior, o que necessariamente torna mais exigente a sua capacidade de apreciação do que o rodeia – tivesse fundamentos legítimos para crer tais reputações como verdadeiras.
Efetivamente, as afirmações por si efetuadas a tal respeito foram desmentidas pelas testemunhas acima indicadas quanto aos seus aspetos essenciais.
Alegou o arguido que atuou para repor a sua honra profissional, mas a maioria das testemunhas inquiridas revelou que só tomou conhecimento da existência do processo disciplinar através dos e-mails e outras, diretamente através do próprio arguido.
Alegou, ainda, o mesmo:
- que os critérios de avaliação eram tecnicamente errados (mas reconheceu que a competência para os definir não competia exclusivamente ao assistente e o mesmo foi corroborado por algumas das testemunhas inquiridas);
- que o Regulamento Interno continha normas ilegais (tendo o assistente admitido, em termos similares aos reconhecidos pelo arguido que tal documento é aprovado pelo Conselho Geral da Escola)
- que o sistema de controlo de entrada e saída dos alunos era obsoleto (mas as testemunhas confirmaram a existência de um porteiro na entrada da escola para efetuar tal tipo de controlo, entre as 07H00 e as 19H00);
- que havia professores da Escola a darem explicações no exterior a alunos da mesma Escola (apenas a testemunha D… o admitiu, mas explicou ter autorização expressa para tal efeito).
- que existiam outras irregularidades (que também não chegaram a ser concretizadas);
Sendo assim, o arguido não logrou demonstrar a veracidade das imputações efetuadas, o que explica a tomada de posição do Tribunal a esse respeito quanto aos pontos dos Factos Não Provados.
Ora, as expressões constantes dos e-mails estão objetivamente provadas pela análise dos mesmos, constando tais documentos de fls.5 e seguintes, sendo que, de forma coerente e geral, o seu conteúdo, foi admitido pelo próprio arguido, pelo assistente (que na qualidade de visado pelas mesmas e como é compreensível revelou uma memória impressiva e clara do seu teor) e pela generalidade das testemunhas inquiridas que, direta ou indiretamente, vieram a ler o conteúdo dos mesmos.
Ainda assim, e tendo por referência o objeto do processo – no que concretamente respeita às expressões proferidas pelo arguido – importa ter presente que o mesmo as admitiu em termos genéricos, e estão plasmadas nas cópias dos e-mails juntos aos autos (documentos de fls.5 e seguintes e 23 e seguintes).
Foram também valorados os documentos dos autos, designadamente, a certidão e fls.12 e seguintes, 141 e seguintes e fls. 212 e seguintes.
Foram inquiridas como testemunhas abonatórias:
- Z… (empresário) que relatou que o arguido foi seu professor, considerando-o como um dos mais competentes que teve;
- AB… (comerciante) – que retratou o arguido como pessoa culta, com ampla capacidade de compreensão, considerando também que o mesmo tem uma personalidade conciliadora e não conflituosa.
- AC… (Presidente da Câmara …) – que afirmou ter uma opinião positiva do arguido, embora lhe tenha reconhecido alguma impulsividade;
Quanto à personalidade do arguido revelou-se crucial o depoimento prestado por AD…, médico psiquiatra que acompanha o arguido há vários anos e que explicou de forma coerente, distanciada e objetiva as características da sua personalidade, tendo igualmente esclarecido o Tribunal que pese embora tais características, o arguido tem perfeita consciência da ilicitude dos factos, conseguindo distinguir o bem e o mal, não sofrendo, por isso, de imputabilidade diminuída.
Em relação à ausência de antecedentes criminais do arguido, teve-se em conta o Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
No que concerne às suas condições sociais e económicas, o Tribunal valorou as declarações prestada pelo arguido, que foi convincente nesta parte.
Quanto ao PIC, particularmente no impacto que a situação provocou na estabilidade emocional do assistente, foi essencialmente valorado o depoimento das testemunhas AE… (que enfatizou a consternação vivenciada pelo demandante, potenciada pela circunstância de o assunto ter sido amplamente debatido na Escola e escolas limítrofes), AF…, que sublinhou o profissionalismo do assistente e referiu a perturbação que constatou no demandado, AG… (que descreveu o estado anímico do demandado, sublinhando que o mesmo ficou combalido, perturbado e sentiu-se injustiçado).
A demais factualidade dada como não provada resultou da circunstância de não ter sido produzida prova sobre a mesma ou de a prova se ter revelado insuficiente.
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III – O DIREITO
Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, face às conclusões do recurso, extrai-se que as questões que o recorrente pretende ver reapreciadas respeitam a:
- impugnação da matéria de facto provada nos pontos 10., 11. e 18., que o recorrente entende terem sido incorretamente julgados;
- prática de atos no exercício do direito de crítica;
- ausência de dolo, em situação de erro sobre as circunstâncias de facto e de direito sobre o tipo de crime e sobre as causas de justificação.
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A) Da impugnação da matéria de facto:
Sustenta o recorrente que a prova produzida em sede de audiência não permite se dêem como assentes os factos constantes dos pontos 10, 11 e 18 da MFP[3].
Como fundamento da impugnação de tais factos socorre-se das declarações que prestou em audiência de julgamento, em que, de forma “segura e frontal, disse que não avaliou a sua conduta como sendo violadora da honra e consideração do visado, em termos de se ultrapassar a barreira da dignidade penal” e “não viu o seu comportamento como errado no plano axiológico”.
Ora, quanto ao elemento subjetivo plasmado nos referidos pontos 10, 11 e 18, o tribunal recorrido, que teve aqueles factos como assentes, limitou-se a retirar da prova produzida todas as ilações por ela consentidas,
Aliás, a este respeito, importa acentuar que vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artº. 127.º do Código de Processo Penal, e dos seus termos resulta que “salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade»[4].
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”[5].
A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova – que assumem especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no artº. 355.º do Código de Processo Penal – se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções, segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no Ac. Rel. Coimbra, de 6 de Março de 2002[6], “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
No caso em apreciação, começamos por realçar que, se por um lado, o próprio recorrente alega que não avalia a sua conduta como violadora da honra e consideração do visado e que não vê o seu próprio comportamento como errado no plano axiológico, por outro lado, como se refere a fls. 10 da sentença recorrida (e que o recorrente não impugna), “reconhece que as afirmações constantes dos e-mails são ofensivas, ainda que retratando imputações verdadeiras”.
Por outro lado, dos depoimentos da generalidade das testemunhas inquiridas resulta que o conteúdo dos e-mails enviados pelo arguido foi considerado “ofensivo e contrário ao carácter do assistente”. Veja-se, a título exemplificativo, o depoimento das testemunhas D…, E…, F…, H…, I…, J…, K…, L… e P…, sendo certo que nenhuma das testemunhas inquiridas “reviu o carácter do assistente nas palavras constantes dos e-mail’s”, “nenhuma delas tendo referido que o assistente tomasse atitudes reveladoras de um temperamento despótico ou sequer autoritário”.
Verifica-se assim que a convicção a que o Tribunal a quo chegou, face ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, mostra-se objeto de procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbra assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O recorrente entende que não agiu com intenção de ofender a honra e consideração do assistente, pelo que o tribunal recorrido não poderia dar como provados os factos constantes dos pontos 10., 11. e 18 da MFP.
Ora, como vimos, a matéria apurada baseia-se na prova testemunhal e documental produzida em julgamento. Tendo a factualidade apurada apoio na prova produzida e encontrando-se devidamente fundamentada, nada há a alterar.
Como refere Damião da Cunha[7] “os princípios do processo penal, a imediação e a oralidade, implicam que deve ser dada prevalência às decisões da 1ª instância”.
O elemento subjetivo de um ilícito penal não é susceptível de apreensão direta por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só pode ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e das regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infração.
Portanto, a partir de determinados factos e à luz das regras da experiência podemos concluir pela intencionalidade pela forma como agiu o arguido. Portanto, a intenção com que o recorrente agiu retira-se, extrai-se, da matéria de facto. É através da realidade factual que lhe está subjacente que o Tribunal, recorrendo às regras da experiência, tem de concluir pela intencionalidade ou não do agente.
É óbvio que alguém que atua, na forma e nas circunstâncias em que o arguido o fez, mesmo que não tivesse instrução (o que não é naturalmente o caso, antes pelo contrário), tem consciência das palavras que está a escrever, sabendo o seu significado e sabendo que, com as mesmas, vai atingir o visado. Ao escrever as expressões em causa, sabendo portanto, o seu significado, o arguido tem que representar como possível que irá ofender o visado na sua honra e consideração.
Como se sabe, o elemento subjetivo neste tipo de ilícito, vem a traduzir-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei.
A este título, o tipo legal exige o dolo em qualquer das suas modalidades: dolo direto, necessário e eventual, mas não o chamado dolo específico, consistente na intenção específica de ofender (animus diffamandi vel injuriandi), como sinónimo de o fim ou motivo do agente ser um elemento requerido pelo tipo subjetivo, a ponto de tal intenção ser excluída quando o fim ou motivo visados fossem de outra natureza: o fim de narrar, ensinar, corrigir, brincar, segundo a teoria dos diversos animi: animus narrandi, docendi, corigendi, jocandi. Essa teoria está hoje completamente ultrapassada, defendendo-se doutrinária e jurisprudencialmente que o elemento subjetivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem. Não é necessário que tais expressões atinjam efetivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a suscetibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano[8].
A questão do dolo nos crimes contra a honra, foi pois suficientemente tratada na doutrina e jurisprudência, para se chegar à conclusão de que se mostra suficiente, para preenchimento do tipo, a ocorrência de um dolo genérico.
Parece-nos evidente que os e-mail’s escritos e enviados pelo arguido, contendo juízos de valor negativos, sobre o carácter do assitente, é suscetível de ofender a honra e consideração do mesmo.
E também nos parece que o arguido não podia deixar de ter consciência dos efeitos atentatórios, para aqueles valores pessoais, que as suas considerações provocariam.
Porém, a questão a seguir relevante é a de se apurar se, não obstante haver consciência por parte do arguido da potencialidade ofensiva das afirmações por si produzidas, e portanto, ainda que ao nível do mero dolo eventual, haver a conformação do agente com um resultado, que seria o da lesão da honra e consideração do assistente, o que iremos apurar mais adiante é se, mesmo assim, o facto não estará justificado.
No que respeita à “utilização dos e-mail’s como represália ao processo disciplinar intentado contra o arguido”, pretende o recorrente que mais correto seria dizer-se que os e-mail’s foram motivados pelo processo disciplinar, já que a sua intenção era a de denunciar, divulgar, criticar, e não propriamente a de desforrar do assistente.
Contudo, não é essa a intenção que resulta da redação dos e-mail’s em causa. As expressões utilizadas não se limitam a denúncia, divulgação ou crítica. Vão muito para além disso, como veremos ao apreciarmos a próxima questão suscitada pelo recorrente.
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B) Do exercício do direito de crítica:
Alega o recorrente que, com a sanção disciplinar por parte do assistente, se sentiu ofendido na sua reputação pessoal e profissional e que, com os e-mail’s que escreveu e enviou, pretendeu denunciar a perseguição de que dizia ser alvo. Reconhece que utilizou palavras violentas, mas enquadráveis no âmbito da crítica objetiva.
Antes de mais importa ter em conta o teor do artº180.º do CP, que estabelece, no seu nº 1, que: «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com a pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
E diz o n.º 2:
A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 31º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4. […]»
A honra ou consideração, a que alude este tipo penal, consiste num bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
Se a norma diz claramente que difamar mais não é que imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do art. 180.º do Código Penal. A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais.
Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos.
É o que decorre do art. 37.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa, quando preceitua que «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações.».
O direito à liberdade de expressão e crítica tem limites, como decorre do próprio n.º 3 do mesmo art. 37.º da C.R.P, quando estabelece que «as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal...».
Nos termos do art. 31.º n.º 2 al. b) do Código Penal, incluído na Parte Geral, não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
Há, assim, que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à crítica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.
Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.
Até onde vai o exercício do direito e quando passa ele a ser ilegítimo? O art. 334.º do Código Civil ao estatui que «é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Uma definição idêntica não se encontra no Código Penal. Acompanhando o acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Abril de 1998[9] diremos que «Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros [...]. Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte as que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o direito penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências».
Tal interpretação está de acordo com o princípio da mínima intervenção do aparelho sancionatório do Estado, que subjaz ao direito penal.
E deste princípio não podemos esquecer-nos na determinação dos elementos objetivos previstos no art. 180.º n.º1 do Código Penal.
Para a correta determinação dos elementos objetivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da “honra ou consideração” são produzidos[10]. Nas sociedades democráticas e abertas, como aquela em que vivemos, o direito à critica é um dos mais importantes desdobramentos da liberdade de expressão.
A respeito da liberdade de imprensa, sustenta o Prof. Costa Andrade no seu estudo “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal” que, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objetiva, caem fora da tipicidade de incriminações como a difamação, “os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc. ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo”, e bem assim sobre os atos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho político dos órgão de soberania. Por “crítica objetiva” deve entender-se a valoração e censura crítica, enquanto “se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores”, que não serão atingidos na sua honra pessoal [enquanto cientistas, artistas, desportistas, etc.] ou cuja honra e consideração não é atingida “com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.” Acrescenta este autor que a atipicidade da crítica objetiva não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações subscritas, e que “o direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas”.
Desenvolvendo o seu pensamento, o Prof. Costa Andrade vai ao ponto de considerar que “são ainda de levar à conta da atipicidade, os juízos que, como reflexo necessário da crítica objetiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou da prestação em exame. Agora, porém, pressuposto que a valoração crítica seja ainda adequada aos pertinentes dados de facto, sc. à prestação objetiva sob escrutínio … Nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como «persecutória» ou «iníqua» pode igualmente assumir que o seu agente, normalmente um magistrado do Ministério Público teve, naquele processo, uma conduta «persecutória» e «iníqua» ou que ele foi, em concreto «persecutório» ou «iníquo». … Nestas constelações típicas está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, vale dizer uma ofensa à honra. Trata-se, em qualquer caso, de sacrifícios ainda cobertos pela liberdade de crítica objetiva, não devendo ser levados à conta de lesões típicas”.
Defende que, porém, já atingem a honra e consideração pessoal, os juízos que, percam todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que legitimaria a crítica objetiva. E, citando o Tribunal Federal Alemão, numa decisão que considera certeira, refere: “o interesse legítimo da imprensa em participar no livre debate de ideias e confronto de opiniões já não dá cobertura à formulação de um juízo negativo sobre o ofendido que não tem nenhuma conexão com a matéria em discussão, ou apenas oferece a oportunidade exterior para o referido juízo”.
Como se escreve no Ac. desta Relação do Porto de 20.06.2012[11] “ninguém está a salvo da crítica. Esta no entanto só é criminosa se postular ofensa, se manifestar enxovalho. A fronteira do permitido só é ultrapassada quando a valoração negativa deixa de se dirigir contra a específica pretensão de mérito – a imagem, construída de forma mais ou menos planificada - e passa a atingir diretamente a substância pessoal, passa a denegar aquele respeito de que toda a pessoa é credora por força da sua dignidade humana”.
Na ponderação dos interesses em conflito – direito à liberdade de expressão do arguido e direito ao bom nome e consideração social do assistente – importa, pois, apurar se as expressões e afirmações contidas nos referidos e-mail’s representam um meio razoavelmente proporcionado à prossecução da finalidade visada tendo em conta o interesse do arguido em assegurar a liberdade de expressão.
O exercício do direito de crítica, inserido no mais amplo direito de liberdade de expressão - pode valer como causa justificativa, em termos penais, de quaisquer ofensas à honra que o exercício daqueles direitos seja, porventura, portador, tendo em consideração o dito princípio da ponderação de interesses, estando por isso excluída a ilicitude da conduta do arguido, ao abrigo do disposto no artigo 31º/2 alínea b) do Código Penal ou na consideração do Prof. Costa Andrade, de exclusão da tipicidade.
Reconhecendo-se, embora, ao arguido o direito de crítica da atuação do assistente enquanto Diretor da Escola …, a cujo quadro o arguido pertencia, não há dúvida que os textos escritos e divulgados pelo arguido contêm expressões ofensivas da honra e consideração pessoais do assistente, a par de outras que se podem considerar abrangidas pela crítica objetiva.
Convém, a este respeito, referir que «materialmente a difamação pode definir-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerre em si, uma reprovação ético-social».
E, como escrevia Beleza dos Santos[12], «não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrém, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais».
Dentro desta orientação decidiu-se no Ac. da R. Évora de 02.07.1996[13] “que um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração”.
Ora, se a qualificação do assistente como “incompetente e desqualificado”, pese embora a sua carga depreciativa e respetiva violência verbal, podem configurar-se apenas como apreciações subjetivas do arguido sobre as capacidades profissionais do assistente, já as expressões “entende o lugar como uma catapulta arrivista de progressão pessoal”, “pena aplicada com o intuito de calar as sugestões que fizemos”, “utiliza o poder que lhe foi conferido para provocar temor e tremor entre os docentes da escola”, “a sua consciência pesada pelos imensos pecadilhos e ilegalidades que vem cometendo desde 2005”, põem em causa o carácter do assistente, insinuando que o mesmo se “serve” das funções que exerce em proveito próprio, para “progressão pessoal”, para calar as vozes que não satisfaçam os seus interesses pessoais, para além de imputar ao assistente a prática de atos ilegais, sem os concretizar, o que, face às exigências e visibilidade do cargo que o assistente ocupa, o tornam eticamente reprovável, pelo menos, aos olhos da comunidade escolar.
Se é legítimo o direito de crítica do arguido à atuação do assistente na instauração do processo disciplinar e na imposição da respetiva pena (que foi anulada em recurso), já a imputação desonrosa não o é, e o arguido usou-a sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
Ora, para viabilizar a causa de justificação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º ou a causa de exclusão da ilicitude prevista no artº 31º nº 2 al. b), ambos do Código Penal, é necessário haver proporcionalidade e necessidade do meio utilizado em função dos interesses a salvaguardar (cfr. José de Faria Costa, ob. cit., pág. 620: “a necessidade só existe quando a forma utilizada para a divulgação da notícia se mostra indispensável para a realização dos interesses protegidos”).
A densidade dos direitos em questão não permite afirmar uma manifesta supremacia do direito do arguido, de crítica à atuação do assistente, sacrificando o direito ao bom-nome e reputação deste, tanto mais que as circunstâncias concretas do caso não exigiam o sacrifício do último daqueles direitos para funcionamento do direito do arguido, que é como quem diz, este último não carecia em absoluto da formulação do juízo ofensivo para fazer valer o seu ponto de vista, razão pela qual não poderá prevalecer-se da causa de justificação.
Trata-se de expressões nitidamente ofensivas da honra e consideração do assistente e que extravasam manifestamente o interesse que o arguido poderia pretender salvaguardar, já que os juízos de valor formulados pelo arguido perderam todo e qualquer ponto de conexão com o exercício do direito de crítica que constitucionalmente lhe é atribuído.
Da factualidade provada não resulta que o arguido tenha seguido um caminho de adequação e proporcionalidade de modo a preservar até onde fosse possível o direito à honra e consideração que era e é atributo do assistente.
Do exposto se conclui que não pode o arguido beneficiar da causa de exclusão da ilicitude a que alude o n.º2 do art. 180.º do Código Penal, nem vemos motivos para excluir a ilicitude da sua conduta em face das regras gerais constantes do art. 31.º do Código Penal, designadamente, do seu n.º2, alínea b), em que se prevê que não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
*
C) Finalmente, quanto à falta de consciência da ilicitude:
Alega o recorrente que “a compatibilização em concreto do direito de crítica e da liberdade de expressão são matérias controvertidas nos tribunais e a solução dada pelo arguido corresponde a um ponto de vista juridicamente relevante ou, pelo menos, o produto de um esforço de corresponder às exigências do direito”. Conclui, por isso, que agiu em situação de erro sobre as circunstâncias dos factos do tipo de crime e das respetivas causas de justificação ou, caso assim se não entenda, em erro sobre a ilicitude desculpante”.
Dispõe o art. 16º do C Penal, que:
“1. O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.
2. O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
3. Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais”.
Por outro lado, estabelece o artº 17º do mesmo diploma que:
1. “Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável;
2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.
Ora, a matéria de facto provada (que se manteve inalterada, não obstante a impugnação por parte do recorrente) não consente a inclusão da atuação do arguido em qualquer das previsões legais acima transcritas, na medida em que não se provou que o reocrrente tenha agido em situação de erro sobre os elementos do tipo de crime ou sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa.
Refira-se, além do mais, que o conhecimento por parte do recorrente das notícias sobre decisões dos tribunais nacionais ou do TEDH sobre casos de absolvição por crimes de difamação, ainda mais adensam o carácter doloso e a intensidade da ilicitude da conduta do arguido, na medida em que permite extrair a ilação de que este sempre pensou poder furtar-se à punição devido às invocadas divergências jurisprudenciais.
Improcede, por isso, mais este fundamento do recurso.
*
Entendemos, consequentemente, que a decisão recorrida ao considerar que a conduta do arguido é típica, ilícita e culposa, não viola qualquer das normas legais, designadamente as apontadas pelo recorrente nas conclusões da motivação, pelo que se impõe manter a decisão recorrida.
*
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando consequentemente a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s – artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
*
Porto, 26 de Março de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
____________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Leia-se “Matéria de Facto Provada”.
[4] Cfr. Prof. Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300.
[5] Cfr.“Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, págs. 203 a 205.
[6] In C.J., ano XXVII, 2º, página 44.
[7] In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 8º, 2º, pág. 259.
[8] Assim o entende uma parte muito significativa da doutrina (entre nós, Faria e Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal e Beleza dos Santos, no estudo «Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92, n.º 3152).
[9] In C.J., Ano XXIII, Tomo 2, pág. 64 e ss.
[10] Escreve Cuello Calon, que para apreciar se os factos, palavras e escritos são injuriosos será de ter em conta os antecedentes do facto, o lugar, ocasião, qualidade, cultura e relações entre ofendido e agente, de modo que factos, palavras e escritos que em determinados casos ou circunstâncias se reputam gravemente injuriosos, podem noutros não se considerar ofensivos ou tão somente constitutivos de injúria leve.- Cfr. “Derecho Penal, Parte Especial, pág. 651.
Também o Prof. José Faria Costa alerta para que «o cerne da determinação dos elementos objetivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objetivos do tipo». - Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 612.
No mesmo sentido, ainda, entre outros, o Ac. Rel. de Coimbra, de 05.06.2002, Proc. n.º 1480/02, in www.dgsi.pt.
[11] Proferido pelo Des. Ernesto Nascimento e disponível em www.dgsi.pt.
[12] Estudo atrás citado, pág. 168.
[13] In CJ, 1996, Tomo IV, pág. 295.