Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1620/10.0TBGDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: ARRENDAMENTO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CONTRATO
LICENCIAMENTO
ATIVIDADE COMERCIAL OU INDUSTRIAL
Nº do Documento: RP201205081620/10.0TBGDM-A.P1
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O licenciamento de um imóvel para uma qualquer actividade comercial ou industrial específica (que constitua um condicionamento específico ao exercício dessa actividade) é uma formalidade inerente à actividade comercial ou industrial do arrendatário sendo este responsável pela sua obtenção, nada sendo estipulado em contrário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 1620/10.0 TBGDM-A.P1
Tribunal Judicial de Gondomar – 1.º Juízo Cível
Recorrentes – B… e outra
Recorrido – C…
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Maria do Carmo Domingues
Desemb. Maria Cecília Agante

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que C… intentou no Tribunal Judicial de Gondomar contra D…, Lda, B… e E…, vieram estes últimos executados deduzir oposição à execução pedindo que a mesma fosse, relativamente a si, declarada extinta.
Para tanto, alegam, em síntese, a ocorrência de várias irregularidades no contrato de arrendamento celebrado com a sociedade executada.
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Admitida liminarmente a oposição, foi o exequente notificado para contestar, o que fez, impugnando a pretensão dos executados, opondo-se à sua procedência.
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Proferiu-se despacho saneador e foi dispensada a selecção da matéria de facto.
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Realizou-se o julgamento da matéria de facto com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados, após o que foi proferida a respectiva decisão, sem censura.
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Por fim, foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente, por não provada, a oposição à execução e, em consequência, absolveu o exequente do pedido formulado pelos executados B… e E…, determinando-se o prosseguimento das diligências executivas.
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Inconformados com tal decisão dela recorream, de apelação, os executados/opoentes, pedindo a revogação e substituição por outra que julgue a oposição procedente, com as consequências legais.
Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações onde formulam as seguintes conclusões:
1. A Meritíssima Juíz “a quo” não apreciou todas as questões suscitadas pelos executados/recorrentes, nomeadamente não apreciou em concreto a questão da inexistência de título que fundamente a execução.
2. Deveria ter apreciado a questão suscitada pelos recorrentes e posteriormente confirmada pelo exequente, que afirmou em sede de depoimento de parte que a assinatura que consta do contrato de arrendamento, não é sua.
3. Também não foram apreciadas as consequências da falta de licença de utilização, pelo que estamos perante a nulidade prevista no art.º 668.º n.º1 al. d) do C.P.Civil.
4. Resulta do depoimento de parte do exequente/recorrido e da testemunha Dr. F… que a factualidade supra referida em sede de reapreciação da prova gravada, deve passar de não provada a provada.
5. Por fim, sendo obrigação do senhorio obter a licença de utilização do locado para o fim que consta no contrato de arrendamento e não o tendo feito, assiste à arrendatária o direito a não pagar as respectivas rendas.
6. Assim sendo, também não é exigível dos recorrentes o pagamento de quaisquer rendas referentes ao contrato de arrendamento que fundamenta a execução.
7. A sentença recorrida faz errada interpretação e aplicação do disposto, entre outras normas no art.º 428.º, art.º 795.º, 804.ºn.º 2, al. b) do art.º 1031.º e n.º3 do art.º 1083.º todos do Código Civil.
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O exequente juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. O exequente deu à execução uma notificação judicial avulsa, concretizada em 26/12/2009, acompanhada de um contrato de arrendamento endereçada a todos os executados onde colocava termo ao aludido acordo.
2. O exequente deu de arrendamento e a executada D…, Lda tomou de arrendamento o prédio urbano composto por armazém e logradouro, situado na Rua …, n.º .., em …, Gondomar, mediante a entrega da quantia mensal de 2.500,00 euros, com início em 01/12/2006 e pelo período de 5 anos.
3. Acordaram as partes que o imóvel aguardava a emissão de Licença de Utilização pela Câmara Municipal … e que tal local se destinava à exploração de serralharia civil, comércio, importação e exportação de produtos de serralharia civil e prestação de serviços de montagem.
4. Acordaram, ainda, o exequente e os executados B… e E… que estes “renunciando ao benefício da execução prévia, assumem solidariamente com a segunda outorgante (a sociedade executada) o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e renovações até efectiva restituição do arrendado, livre de pessoas e bens, pelo que declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alterações da renda agora fixada, e mesmo depois de decorrido o prazo de 5 anos a que alude o n.º 2 do art.º 655.º do Código Civil”.
5. Os executados não liquidaram a quantia mensal devida pelos meses de Outubro 2009 a Janeiro de 2010 e as que entretanto se venceram.
6. O prédio urbano objecto do acordo mencionado possui licença de utilização emitida em 22/04/2008, n.º ../08 da qual consta "Utilização a que foi destinado o edifício: Armazém no rés-do-chão, com a área bruta de 640.00m2, com entrada pelo n.º .. da … - …”.

III - Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684.º n.º3, 684.º-B n.º 2 e 685.º-A, todos do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Sendo que ao presente recurso é já aplicável o regime processual estabelecido pelo DL 303/2007, de 24.08, por respeitar a um apenso de execução instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, cfr. n.º 1 do artº 11.º e art.º 12.º do citado DL.
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Ora, visto o teor das alegações dos recorrentes, são questões a decidir no presente recurso:
1.ª – Nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia
2.ª – Impugnação da decisão da matéria de facto.
3.ª – De Direito – excepção do não cumprimento do contrato.
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1.ªquestão – nulidade da sentença.
Dizem os apelantes que a sentença recorrida não apreciou todas as questões suscitadas pelos executados/recorrentes, pelo que estamos perante a nulidade prevista no art.º 668.º n.º1 al. d) do C.P.Civil.
Os recorrentes concretizam que as questões que assim não foram apreciadas consistem em saber se o exequente não dispunha de título executivo fundamentador da execução e em saber se a inexistência de licença de utilização para o fim a que o locado se destinava não afectava a validade do contrato de arrendamento.
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Como se sabe, de harmonia com o disposto no art.º 3.º n.º1 do C.P.Civil, a iniciativa da acção pertence às partes, pelo que o tribunal não pode resolver um conflito sem que elas lhe tenham pedido tal resolução.
Também quanto à decisão, e por força do disposto nos artºs 661.º, 664.º e 264.º, todos do C.P.Civil, o juiz está limitado não só pelas questões que lhe são colocadas pelas partes, (salvo se outras surgirem que sejam de conhecimento oficioso) como pelo complexo fáctico alegado, (salvo o caso da existência de factos que não necessitam de alegação e a que o tribunal possa e deva recorrer, por notórios ou conhecidos por via do exercício das suas funções). Assim cabe às partes delimitar o “quod decidendum”, expondo nos seus articulados as questões que querem ver decididas na acção, expondo os factos fundamentadores da razão por que pedem, invocando o direito em que se estribam e concluindo, logicamente, formulando um pedido.
Por força do disposto no art.º 664.º do C.P.Civil, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Pelo que se em sede de facto, o tribunal está limitado pelas alegações das partes, na indagação do direito aplicável, não está o tribunal vinculado à qualificação jurídica feita pelas partes.
Segundo o disposto no art.º 668.º n.º1 al. d) do C.P.Civil, a sentença é nula se deixa de conhecer na sentença de questões de que devia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Este vício traduz-se no incumprimento ou desrespeito por parte do julgador, do dever prescrito no artº 660.º n.º2 do C.P.Civil, cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág 690 e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pág. 247, segundo o qual deve o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A nulidade da al. d) do n.º1 do art.º 668.º do C.P.Civil, é assim a sanção pela violação do disposto no art.º 660.º n.º 2 do C.P.Civil, o qual impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação mas, por outro lado, de só poder ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo tratando-se de questões do conhecimento oficioso do tribunal (omissão ou excesso de pronúncia).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito. As questões a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do art.º 668.º do C.P.Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções. Ou, como se decidiu nos Acs do STJ de 8.01.2004 e 5.02.2004, in www.dgsi.pt, “essas questões centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa, designadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções”.
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No caso em apreço, vendo a petição inicial da oposição à execução apresentada pelos executados/apelantes, é manifesto concluir que estes em lugar algum colocaram a questão da falta de título executivo, logo e como decorre do que acima deixámos exposto, é evidente que nenhuma nulidade consistente na omissão de pronúncia de tal questão foi cometida na sentença recorrida.
No que respeita à questão da alegada falta de licença de utilização do locado, vendo a decisão que recaiu sobre a matéria de facto, desde logo resulta que não se provou, ou seja, que os executados/recorrentes não lograram fazer prova de que “O exequente jamais exibiu à sociedade executada a licença de utilização apesar de ter sido diversas vezes interpelado nesse sentido, nem apresentou a licença de utilização emitida a favor do locado para o fim previsto no acordo”.
Todavia a sentença recorrida referiu-se a tal questão, pois dela resulta expressamente que “(…) Os executados invocaram o incumprimento contratual e a excepção peremptória de pagamento, pelo que era a si a quem cabia a prova de todos os factos alegados (art.º 342.º, n.º2 do Código Civil).
Porém, não lograram demonstrar tal factualidade, na medida em que, e conforme foi já referido na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto proferida, nenhuma prova foi produzida que demonstrasse que a sociedade executada tenha efectivamente liquidado a quantia ora reclamada pelo exequente e que este tenha incumprido os termos contratuais acordados (…)”.
Assim e sem necessidade de outros considerandos, manifesto é de concluir que não foram cometidas as apontadas nulidades de sentença, improcedendo as respectivas conclusões dos apelantes.
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2.ªquestão – Impugnação da decisão da matéria de facto.
Defendem os apelantes que da reapreciação do depoimento de parte do exequente e do depoimento da testemunha F… dois dos factos julgados não provados pelo tribunal recorrido (pontos 3 e 4 dos factos não provados) deverão ser agora julgados provados.
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No que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 712.º do C.P.Civil, segundo o qual, tendo havido gravação dos depoimentos prestados, se a decisão proferida em 1.ª instância sobre a matéria de facto tiver sido impugnada, nos termos do art.º 685.º-B, “… a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Importa ainda ter em atenção o que preceitua o art.º 685.º-B, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
a) - Especifique obrigatoriamente quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto, e, “sob pena de rejeição imediata do recurso”, tratando-se de depoimentos gravados, que indique ainda com exactidão, sendo possível a identificação, precisa e separada desses depoimentos, as passagens da gravação em que funda a sua impugnação;
c) – Obviamente, devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável, cfr, Acs. do STJ de 25.09.2006, de 10.05.2007 e de 30.10.2007, todos in www.dgsi.pt.
Está assim hoje legalmente consagrada a possibilidade deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, podendo, ainda, por força do disposto no art.º 712.º n.º 2 do C.P.Civil, “oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”, formará a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa (não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção), o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cf. Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1ª Secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 127, resulta de tal preceito que «...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação...», ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, «...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão». Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que o tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657], a propósito do “Princípio da Imediação”, «...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...».
Decorre também do preâmbulo do DL 39/95 de 15/12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que “a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Vendo ainda esse preâmbulo, dele consta também que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 655.º n.º 1 do C.P.Civil, “O tribunal colectivo (ou o juiz singular) aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
No caso em apreço, constatamos que os apelantes cumpriram, ainda que imprecisamente, tais ónus de alegação, porque tratando-se de depoimentos gravados, e, sendo possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, não indicaram, com exactidão, as passagens da gravação em que fundam a sua impugnação, o que por força do n.º2 do art.º 685.º-B do C.P.Civil, acarreta a rejeição imediata do recurso no que tange à impugnação da decisão da matéria de facto.
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Todavia sempre se dirá que, e como se referiu, por via do presente recurso, os apelantes impugnam a decisão proferida em 1.ª instância relativa a dois pontos da matéria de facto julgada não provada nos autos, e que, no seu entender, pelos depoimentos que referem, resultaram provados.
Os factos em questão e que a 1.ª instância decidiu julgar não provados são:
“3 - Em consequência da omissão do exequente, a sociedade executada não conseguiu obter o licenciamento industrial para utilizar o locado, nem lhe é permitido apresentar candidaturas à obtenção de fundos comunitários para apoio à sua atividade.
4 - A sociedade executada no início do acordo referido entregou ao exequente a quantia referente a 2 meses de ocupação”.
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Pode ler-se da motivação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância que a formação da convicção alcançada “(…) assentou na análise crítica e conjugada de todos os documentos juntos aos autos, dos depoimentos prestados pelas várias testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento, mediante o seu confronto, apreciação das suas contradições, hesitações e incertezas sempre atendendo às regras de experiência, bem como às regras de repartição do ónus da prova.
Toda a prova foi apreciada segundo as regras da experiência e à sua livre convicção, não se confundindo esta apreciação com uma apreciação arbitrária, nem com uma simples impressão no espírito do julgador, antes obedecendo a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
(…)
Os fatos não provados resultam da circunstância de sobre os mesmos os executados não terem produzido qualquer meio de prova cabal, na medida em que a testemunha por si trazida a juízo nada sabia em concreto sobre os mesmos, apenas os relatando como fatos que tinha ouvido falar e quanto ao contrato de arrendamento afirmou sempre que trabalhou no armazém com entrada pelo n° .., referindo ainda que a empresa quando encerrou tinha cerca de 10 trabalhadores e que encerrou porque faliu”.
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Ouvida, cuidadosamente, a gravação de todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento que os apelantes chamam à colação, (exequente e F…), intuindo das respostas dadas, dos silêncios, das frases incompletas, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, cremos que não assiste razão aos apelantes, pois que a decisão de facto proferida em 1.ª instância e ora impugnada não enferma de erro na apreciação da prova produzida nos autos.
Mas vejamos.
O exequente C… respondeu que nunca teve qualquer relação pessoal com os executados, o que bem frisou dizendo, por várias vezes, “… eu nunca tratei nada com eles …”. Expressamente questionado se sabia se a executada D…, Ld.ª tinha obtido licenciamento para exercer no locado a actividade dela, respondeu “não sei”. Assim como, respondeu “não sei”, quando lhe foi perguntado se sabia se logo no início do contrato os executados tinham pago dois meses de renda.
Em resumo, o exequente respondeu que nada sabia sobre os factos em apreço, alegados pelos executados em sede de oposição à execução.
Por seu turno, a testemunha F…, advogado, filho do exequente, e procurador do pai desde há vários anos, declarou que foi ele quem celebrou o contrato de arrendamento e, apreço nos autos, em nome do seu pai, esclarecendo a razão da existência de dois contratos (um que está junto com o requerimento executivo e outro junto com a oposição), apesar de em ambos ser o seu pai o locador, um deles foi assinado por si. Mais esclareceu que a executada quando celebrou o contrato sabia que o local estava à espera da emissão de licença de habitabilidade e que esta seria sempre de um armazém de retém, posteriormente competia-lhe solicitar o licenciamento para actividade industrial.
Perguntado à testemunha directamente se a executada no início do contrato pagou dois meses de rendas, respondeu “…não lhe posso dizer, sinceramente não sei … mas se quer que lhe diga, não sei …”.
Pelo que é manifesto que esta testemunha revelou nada saber sobre se a executada conseguiu ou não obter o licenciamento industrial para utilizar o locado, nem sobre eventuais candidaturas para a obtenção de fundos comunitários para apoio à sua atividade, nem ainda sobre se foram pagos no início do contrato dois meses de renda.
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Por tudo o que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto e o teor dos documentos juntos aos autos, não se vislumbra que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em causa neste enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo, por isso, qualquer censura, devendo manter-se inalterada.
Improcedem as respectivas conclusões dos apelantes.
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3.ªquestão – Excepção de não cumprimento do contrato.
Resulta dos autos que o exequente, C…, como locador, celebrou com a executada D…, Ldª, um contrato de arrendamento, mediante o qual cedeu àquela pelo prazo de 5 anos, com início no dia 1.12.2006, renovável por iguais e sucessivos períodos, um prédio urbano composto de armazém e logradouro sito na Rua …, n.º .., em …, Gondomar, mediante o pagamento da renda mensal de €2500,00, a pagar em casa do senhorio no primeiro dia do mês a que respeita.
Acordaram ainda as partes que o imóvel aguardava a emissão de Licença de Utilização pela Câmara Municipal … e que tal local se destinava à exploração de serralharia civil, comércio, importação e exportação de produtos de serralharia civil e prestação de serviços de montagem.
Os executados/opoentes/recorrentes “renunciando ao benefício da execução prévia, assumem solidariamente com a segunda outorgante (a sociedade executada) o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e renovações até efectiva restituição do arrendado, livre de pessoas e bens, pelo que declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alterações da renda agora fixada, e mesmo depois de decorrido o prazo de 5 anos a que alude o n.º 2 do art.º 655.º do Código Civil”, ou seja, obrigaram-se como fiadores da arrendatária.
Está ainda provado nos autos que os executados não liquidaram a quantia mensal devida pelos meses de Outubro 2009 a Janeiro de 2010 e, as que entretanto se venceram. Daí que o exequente tenha dado à execução uma notificação judicial avulsa, concretizada em 26.12.2009, acompanhada de um contrato de arrendamento endereçada a todos os executados onde colocava termo ao aludido acordo.
Do referido contrato constava que o imóvel propriedade do exequente/locador “aguarda a emissão de Licença de Utilização pela Câmara Municipal …”, tendo-se provado ainda nos autos que o imóvel já possui licença de utilização emitida em 22.04.2008, n.º ../08, da qual consta "Utilização a que foi destinado o edifício: Armazém no rés-do-chão, com a área bruta de 640.00m2, com entrada pelo n.º .. da … - …”.
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A locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar a outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, designando-se por arrendamento se versar sobre coisa imóvel, cfr. art.ºs 1022.º e 1023.º do C.Civil.
O arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede a outra o gozo temporário de um prédio, no todo ou em parte, mediante retribuição.
É, por seu turno, arrendamento para comércio ou indústria o que tem por objecto mediato prédios urbanos ou partes destes com vista à prossecução de fins directamente relacionados com alguma actividade comercial ou industrial. Neste tipo de relação locatícia, o locador transfere para o locatário o gozo de um prédio urbano ou rústico ao qual está afectado um fim determinado e específico, qual seja o de nele vir a ser explorada ou desenvolvida uma actividade de índole comercial.
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Defendem os recorrentes que era obrigação do exequente/senhorio a obtenção de licença de utilização do locado para o fim previsto no referido contrato de arrendamento, ou seja, para a exploração de serralharia civil, comércio, importação e exportação de produtos de serralharia civil e prestação de serviços de montagem, e que o exequente não obteve tal licença, logo incumpriu o contrato, o que os legitima a não pagar as rendas devidas pelo uso e fruição do mesmo.
É manifesto que não assiste qualquer razão aos recorrentes.
Senão vejamos.
Como se sabe o instituto da denominada “exceptio non adimpleti contratus” cfr. art.º 428.º do C.Civil tem o seu âmbito de aplicação nas obrigações sinalagmáticas, impondo que se tome em conta o princípio da boa fé e se faça apelo à ideia de abuso de direito, cfr. art.ºs 762.º n.º 2 e 334.º ambos do C.Civil. Dispõe o citado art.º 428.º que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
Mas como refere Almeida Costa, in RLJ Ano 119, pag. 143, o “pressuposto expresso no nº 1 do artigo 428º do Código Civil é o de que não existam prazos diferentes para o cumprimento das prestações. Esta exigência carece de interpretação exacta. Com efeito o seu verdadeiro sentido consiste na imposição de que o excepcionante não se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte. Ou seja, a diversidade de prazos obsta à invocação da “exceptio” pela parte que primeiro tenha de efectuar a sua prestação, mas nada impede a outra de opô-la.
Pires de Lima e Antunes Varela, in obra citada, defende também mesmo que o cumprimento das prestações esteja sujeito a prazos diferentes, a “exceptio” pode ser sempre invocada pelo contraente, cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não sendo admissível por aquele que deveria cumprir primeiro.
A “exceptio non adimpleti contratus” é aplicável aos contratos sinalagmáticos, pretendendo-se com o seu funcionamento não tanto sancionar a contraparte faltosa mas antes conseguir um ponto de equilíbrio entre as prestações coagindo ao cumprimento o sujeito faltoso do sinalagma contratual, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in obra citada, pág. 406. Ela tem sido comumente qualificada de excepção dilatória de direito material ou substantivo. É uma excepção material porque fundada em razões de direito substantivo, e dilatória, por que não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente, cfr. Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, pág.329.
A excepção do não cumprimento (“exceptio non adimpleti contratus”) deve considerar-se admissível, não só nos casos de incumprimento temporário, cumprimento parcial ou defeituoso, como nas situações de incumprimento definitivo, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in obra citada, pág.381.
Por outro lado, como vem sido defendido na Doutrina e na Jurisprudência a oponibilidade da excepção do não cumprimento do contrato supõe, para além dos pressupostos enunciados no n.º1 do art.º 428.º do C.Civil, ou seja, a existência de um contrato bilateral e sinalagmático, a não existência da obrigação de cumprimento prévio por parte do contraente que invoca a excepção e o não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação, a não contrariedade aos ditames da boa fé, e ao princípio do equilíbrio entre as obrigações sinalagmáticas.
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Tal como alega o recorrido, é inequívoca a existência da licença de utilização do locado, ou seja, dúvidas não existem de que o imóvel se encontra licenciado, nos termos constantes do regime geral das edificações urbanas.
Mas será que o exequente/senhorio se obrigou (contratualmente) a obter licença de utilização do locado para o fim específico previsto no contrato de arrendamento que celebrou com os executados?
A resposta é manifestamente negativa e resulta da interpretação da respectiva cláusula contratual.
Na verdade, e como se sabe, no âmbito interpretativo, haverá que ter em conta que a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se ela for conhecida do declaratário, cfr. art.º 236.º n.º 2 do C.Civil.
Mas, como a interpretação da declaração negocial tem por objectivo fixar o seu sentido e alcance juridicamente relevantes, a lei não se basta, contudo, com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste), concedendo primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (sentido objectivo para o declaratário).
Por isso, não sendo conhecida a vontade real do declarante, a declaração negocial valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, cfr. art.º 236.º n.º1 do C.Civil, também denominada “teoria da impressão ou da interpretação do destinatário”, teoria que sofre adaptação objectiva no caso dos negócios formais, em que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se tal sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade, cfr. art.º 238.º n.º s 1 e 2 do C.Civil.
Conforme ensina o Prof. Vaz Serra, in Rev. Leg. Jur., ano 103, pág.287, tal teoria deve ser entendida nos seguintes termos: “que a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, a interpretaria, com o que se procura, num conflito entre o interesse do declarante no sentido que atribuiu a sua declaração e o interesse do declaratário no sentido que podia razoavelmente atribuir-se a esta, dar preferência a este, que se julga merecedor de maior protecção, não só porque era mais fácil ao declarante evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que ao declaratário aperceber-se da vontade real do declarante, mas também porque assim se defendem melhor os interesses gerais do tráfico ou comércio jurídico. Mostra isto que a interpretação das declarações negociais não se dirige (salvo no caso do n.º2 do art.º 236) a fixar a um simples facto o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração, mas a fixar o sentido jurídico, normativo da declaração”.
Sendo certo que, no domínio da interpretação, surgem como elementos essenciais e a que deve recorrer para a fixação do sentido das declarações – “a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos”, cfr. Luís Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil” vol. II, pág. 344. Ou, no dizer de Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, pág 213, “os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de outros meios ou profissões), etc.”. Ou ainda segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 223, “normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se, não só pela capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.
E assim, sendo a interpretação dos negócios jurídicos a actividade orientada a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios, segundo as declarações que os integram, de modo a determinar o conteúdo das declarações de vontade e os efeitos jurídicos que o negócio visa produzir, o resultado interpretativo a alcançar deve estar de acordo com a teoria da interpretação do destinatário, ou seja, salvo o caso do n.º2 do art.º 236.º do C.Civil, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, podia deduzir do comportamento do declarante, à luz dos ditames da boa fé e das circunstâncias atendíveis no caso concreto, só assim não sendo se este último, em termos de razoabilidade, não puder contar com a atribuição de tal sentido à sua declaração. Todavia, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - art.º 238.º n.º1 do C.Civil, esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade - art.º 238.º n.º2 do C.Civil.
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Revertendo estes ensinamentos para o caso dos autos há que interpretar as declarações negociais constantes do teor do documento junto a fls. 11 a 13 dos autos, que formalizou o contrato de arrendamento em apreço. E não havendo elementos para se concluir que, aquando da formalização do contrato, os executados (declaratários) conheciam a vontade real do exequente (declarante) no que respeita a aguardar Licença de Utilização a emitir pela Câmara Municipal …, aí declarado (n.º2 do art.º 236.º do C.Civil), há que lançar mão da supra referido critério da impressão do destinatário, e à luz do mesmo interpretar o sentido e o alcance da declaração do exequente relativamente à referida licença de utilização.
Como é sabido a licença municipal de utilização das edificações, desde 1951, cfr. art.º 8.º do RGEU, DL38382, de 7.08.1951, destina-se, segundo o que preceitua o art.º 62.º n.ºs 1 e 2 do RJUE, a verificar a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado, no caso de realização de obras, e a conformidade do uso previsto com as normas legais e regulamentares e a idoneidade do edifício ou da sua fracção autónoma para o fim pretendido, quando não haja lugar à realização de obras.
O contrato de arrendamento em apreço foi celebrado no âmbito do NRAU – Lei 6/2006, de 27.02.
Dispõe o n.º1 do art.º 1070.º do C.Civil que o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.
Este preceito sucede ao art.º 9.º n.º1 do RAU, segundo o qual, só poderiam ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim visado pelo contrato seja atestado pela licença municipal de utilização.
Ora, dúvidas não restam de que era a esta licença de utilização do imóvel que se refere a cláusula 1.ª do contrato em apreço. Esta, sim, da responsabilidade do proprietário do imóvel. E era isso que um declaratário normal, colocado na posição do real dos executados, podia deduzir do comportamento do declarante (exequente), à luz dos ditames da boa fé e das circunstâncias atendíveis no caso concreto.
O alvará de licença ou de autorização de utilização de um imóvel, ou seja, o seu licenciamento para uma qualquer actividade comercial ou industrial específica, e que constitui um condicionamento administrativo ao exercício dessa actividade e visa garantir as condições mínimas do seu funcionamento, em ordem a salvaguardar os interesses dos particulares, é uma formalidade inerente à actividade comercial ou industrial do arrendatário e, por isso, nada tendo sido estipulado em contrário, é da sua responsabilidade a sua obtenção.
Em conclusão, no caso dos autos, é manifesto que não competia ao exequente/senhorio a obtenção de qualquer licença ou alvará de utilização do locado para o fim previsto no arrendamento.
E finalmente, sempre se dirá que, segundo o que entendemos, se por hipótese o exequente não tivesse conseguido obter licença de utilização do imóvel (o que se não verificou, como resulta do teor do documento junto a fls.43), essa circunstância não legitimava os executados a oporem-lhe a excepção do não cumprimento, não pagando as rendas devidas pela utilização do locado, uma vez que haviam outorgado no contrato de arrendamento com conhecimento dessa falta e, continuavam a usufruir do gozo do locado.
Pelo que improcedem as respectivas conclusões dos apelantes.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 2012.05.08
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas