Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
39/10.8TBAMM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: SERVIDÃO DE ÁGUA
DOAÇÃO COM CLÁUSULA MODAL
ÁGUAS SOBEJAS
Nº do Documento: RP2012060539/10.8TBAMM.P1
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A constituição da servidão pressupõe a existência de vantagem para o prédio dominante à custa do serviente.
II - O direito de servidão de águas confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.
III - A cláusula da escritura de doação das águas que estabelece que as sobras do abastecimento público pertenceriam na totalidade aos donatários, que poderiam fazer delas o que bem entendessem não é idónea para constituir uma servidão.
IV - O direito que adveio aos donatários — direito à sobras do abastecimento público — não estava vinculado a qualquer fim, nem revestia carácter real, mas apenas obrigacional, atento o princípio do numerus clausus dos direitos reais (cfr. artigo 1306.°, n,° l, CC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 39/10.8TBAMM.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

B… e C… intentaram acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra D… e E…, pedindo a sua condenação a reconstruir a situação que existia antes da prática do acto doloso, bem como assim ao pagamento de € 10.000,00 correspondente ao lucro cessante e às despesas da presente lide, ou caso tal não seja possível, a sua condenação a pagar aos AA. € 16.000,00 a título de indemnização em substituição da reconstituição natural e, ainda, serem os RR. condenados a pagar-lhes um valor mínimo de € 16.000,00, correspondente ao valor do lucro cessante, dos danos futuros e das despesas que tiveram que suportar com vista ao reconhecimento do seu direito, bem como assim aos danos não patrimoniais e ainda as despesas e demais encargos da presente lide.
Alegaram para tanto, e em síntese, que são donos e legítimos proprietários do prédio inscrito na matriz sob o artigo 315.º, e que, por escritura pública datada de 21 de Maio de 1983 lavrada na Câmara Municipal …, foi constituída uma servidão em benefício do seu prédio.
Desde essa data e até Setembro de 2009, as sobras da água da nascente, sita no terreno propriedade dos RR., foram encaminhadas até aos terrenos dos AA. que a usavam em benefício próprio para regadio do seu prédio, sendo tal água a única forma de tornar aquele prédio produtivo e rentável. Acontece que a partir de Setembro de 2009, sem autorização ou comunicação aos RR., os AA. destruíram a nascente de onde brotava a água. O comportamento dos RR. trouxe prejuízos para os AA., pois não podem cultivar o prédio, pelo que deixaram de obter cerca de € 9.000,00 de lucro.
Contestaram os RR., alegando que nunca os AA. ou os antepossuidores do prédio em causa utilizaram as águas sobrantes da nascente, pois que esta estava praticamente seca. Por outro lado, os AA. não regam o seu prédio com as sobras das águas existentes, pois abriram um poço artesiano no seu prédio para o efeito. Por outro lado, se é verdade que as águas da nascente serviram a povoação de …, porém, como o caudal da nascente foi diminuindo, a própria Câmara e Junta de Freguesia procederam à abertura de um furo artesiano para abastecer a população. Assim, tal servidão encontra-se extinta, nos termos do artigo 1569.º alínea b) e e) do CC. Por outro lado, os AA. não tiveram qualquer prejuízo no seu pomar.
Responderam os AA., concluindo nos mesmos termos que na acção.
Foi proferido despacho saneador e fixada matéria de facto relevante.
Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a acção improcedente.
Inconformados, recorreram os AA., apresentando as seguintes conclusões:
«1- Ficou provado que foi celebrado contrato de doação válida, da qual é parte integrante um ónus, que recai sobre “as sobras da água”.
2- Portanto, o direito que os AA. se arrogam, baseia-se em documento autêntico, prova plena, exarado por notário assim como em factos credíveis.
3- O Tribunal na sentença ora em “crise” pronunciou-se sobre questões que não lhe foram pedidas e não se pronunciou sobre os pedidos formulados – omissão de pronúncia - Nulidade.
4- Como também dessa forma existe violação do princípio do dispositivo.
5- O Juiz fez uma errada interpretação dos factos levados a juízo, nomeadamente por uma errada interpretação dos depoimentos prestados.
6- A testemunha F… foi premente em confirmar que os Recorrentes usufruíam das sobras e, que a elas tinham direito por ter comprado o prédio, ao qual elas pertencem propriedade de águas.
7- A resposta à matéria de facto deve ser alterada e os artigos nº 2, 5, 6, 7, 8, 9 e 11 da base instrutória dados como “ provados”.
8- Alterando a resposta à matéria de facto, a acção tem que ser totalmente procedente por provada, e os RR/Recorridos, condenados nos pedidos formulados;
9- Os depoimentos das testemunhas arroladas pela AA., são bastante elucidativos e credíveis, quanto a questão de direito às sobras da água dos AA./ Recorrentes.
10- Provado está que os R/Recorridos, violaram um direito dos AA/Recorrentes através de acto ilícito e ilegal.
11- Existe nexo de causalidade entre a acção dos RR./Recorridos e o prejuízo sofridos pelos AA./Recorrentes.
12- Em face do que supra vem de se expor, a sentença recorrida viola, por errada interpretação ou aplicação, o disposto nos artigos legais supra identificados, pelo que, deu origem a uma sentença errada, injusta e ilegal que cumpre revogar.
Termos em que, e nos demais de direito aplicáveis, deverão Vas. Excelências, data vénia:
a) Receber e dar provimento ao presente recurso;
b) Alterar a resposta à matéria de facto;
c) Revogar a decisão recorrida e, consequentemente, substitui-la por nova decisão que julgue totalmente procedente por provados os pedidos dos AA/Recorrentes, com todos os legais efeitos daí decorrentes;
Assim se decidindo, se fará inteira, sã e prudente
JUSTIÇA».
Não houve contra-alegações.
Foi proferido despacho de sustentação.
2. Fundamentos de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
2.1. O prédio rústico sito em …, composto de pomar de macieiras, com área de 12750 m², confronta a norte com caminho, sul com G…, nascente com caminho e H… e poente com I…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Armamar, sob o n.º 560/19990319, da freguesia de … e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 315.º encontra-se registado a favor dos AA., pela AP 04 de 2003/10/23, por aquisição (alínea A) dos factos assentes).
2. Por escritura pública de doação, outorgada em 21 de Maio de 1983, J… e sua mulher, K…, declararam fazer uma doação à Câmara Municipal …, de uma nascente de água situada num prédio de mata, sito nos …, limite da freguesia de …, a confrontar de nascente com L…, sul com baldio, poente com M… e norte com N…, com área de 99443m², inscrito na matriz predial rústica da freguesia de …, sob o artigo 385 e na Conservatória do Registo Predial de Armamar sob o n.º 33630, do livro B-82, fls. 19 (alínea B) dos factos assentes).
2.3. De acordo com a escritura pública referida em 2), tal doação “era feita para unicamente abastecer a povoação de …. Que as sobras da água resultantes daquele abastecimento lhe pertenceriam na totalidade, podendo delas fazer o que bem entender e iriam cair num tanque com capacidade de trinta e três mil litros, a mandar construir pela Câmara de …, num outro seu prédio, também conhecido por … ou … e onde seria construído o depósito donde sairia a tubagem para abastecimento da povoação. Que permitiam também no local da nascente a exploração de mais água e a realização de todos os trabalhos que para isso venham a ser necessários, bem como aceitavam a delimitação de uma zona de protecção à nascente agora neste acto doada.” (alínea C) dos factos assentes).
2.4. O prédio rústico sito em …, composto de mata e pastagem, com área de 32.000 m², confronta norte com O…, sul com junta de freguesia nascente com P… e poente com estrada, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 581/19990721, da freguesia de … e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 292.º encontra-se inscrito a favor dos RR. pela AP 75 de 2009/08/03, por aquisição (alínea D) dos factos assentes).
2.5. Por escritura pública outorgada no dia 30 de Julho de 2009 o Presidente da Câmara Municipal de … declarou vender e a Ré D… declarou comprar o prédio rústico composto por pinhal, mato e pastagem, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Armamar, sob o n.º 581/19990721, da freguesia de … e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 292.º, pelo preço de € 20.100,00 (alínea E) dos factos assentes).
2.6. A Câmara Municipal …, em 1983, constituiu no prédio dos AA. um depósito para onde eram conduzidas as águas da nascente existente no prédio dos RR. (alínea F) dos factos assentes).
2.7. Os AA., logo que compraram o prédio identificado em 1), abriram no mesmo um furo artesiano (alínea G) dos factos assentes).
2.8. Desde 21 de Maio de 1983 até Setembro de 2009 as sobras da água da nascente sita no prédio referido em 4) foram encaminhadas até ao prédio identificado em 1) (artigo 1.º da base instrutória).
2.9. No mês de Setembro de 2009 os RR. com uma retroescavadora destruíram a nascente de onde brotava a água que se situa no seu prédio e cujas sobras eram encaminhadas para o prédio dos AA. (artigo 3.º da base instrutória).
2.10. Com a conduta dos RR. referida em 9) os AA. deixaram de ter acesso à água (artigo 4.º da base instrutória).
2.11. A construção de um furo artesiano com a profundidade de 120m, 90 cm de tubo PVC 180mm, 1 electrobomba submersível, 1 quadro electrónico poço depósito e cabos eléctricos, tubos polietileno e acessórios diversos pode custar cerca de € 7.959,52, acrescido de IVA (artigo 10.º da base instrutória).
2.12. A nascente existente no prédio dos RR., sobretudo nos períodos de Verão, ficava seca (artigo 12.º da base instrutória).
2.13. Pelo que a Câmara Municipal …, em parceria com a Junta de Freguesia, mandou proceder à abertura de um furo artesiano, cujo caudal canalizou para o depósito existente no prédio dos AA. (artigo 13.º da base instrutória).
2.14. E assim procedia ao abastecimento da povoação de … (artigo 14.º da base instrutória).
2.15. Actualmente o abastecimento da povoação de … é feito pela empresa “Q…” que capta água na barragem situada no fundo de … (artigo 15.º da base instrutória).
2.16. O furo artesiano referido em 7) permite a rega do pomar existente no prédio dos AA. (artigo 16.º da base instrutória).
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684.º, n.º 3, e 685.º A, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 660.º, n.º 2, in fine, e 684.º, n.º 4, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:

— impugnação da matéria de facto;

— nulidade da sentença por omissão e excesso de pronúncia;

— direito dos apelantes às águas sobrantes.

3.1. Da impugnação da matéria de facto

Insurgem-se os apelantes contra as respostas aos artigos 2.º, 5.º a 9.º e 11.º da base instrutória, todos respondidos negativamente, pretendendo resposta afirmativa a todos.

Tendo sido dado cumprimento aos ónus previstos no artigo 685.º B CPC, nada obsta ao conhecimento da matéria de facto.

É o seguinte o teor dos artigos impugnados:
2.º
Tal água [sobras da água nascente sita no terreno referida em D] era a única forma de tornar o prédio identificado em A) agricolamente produtivo e rentável?
(…)
5.º
… Não podendo cultivar produtos agrícolas e frutícolas como nos anos anteriores?
6.º
Num ano de produção razoável, o prédio identificado em A) produz, em média, 60 toneladas de maçã, cujo preço médio de mercado é de 0,30€/kg?
7.º
… Em consequência, o prédio identificado em A) rendia € 18.000,OO?
8.º
Sem a água que era encaminhada da nascente existente no prédio dos RR., o prédio identificado em A) produz maçã de qualidade inferior, cujo preço de mercado é de 0,15 €/Kg
9.º
Com a presente lide, os AA. despenderam € 1.000,00 ?
(…)
11.º
Nunca os AA. e os antepossuidores do prédio identificado em A), nos últimos 20 anos, utilizaram as sobras de águas que brotam do prédio dos RR.?

Propõem-se os apelantes obter a alteração das respostas com o depoimento das testemunhas F… e S….
Relativamente ao artigo 2.º da base instrutória nenhuma testemunha, nem mesmo as supra referidas pelos apelantes, depuseram no sentido de as águas sobrantes da nascente sita nos terrenos dos apelados fosse a única forma de tornar o prédio dos apelantes produtivo e rentável.
Resultou provado por acordo que os apelantes logo que compraram o prédio abriram no mesmo um furo artesiano (ponto 2.7. da matéria de facto), que a nascente, sobretudo no período de verão, ficava seca (ponto 2.12. da matéria de facto), e que o referido furo permite a rega do pomar existente no prédio dos apelantes (ponto 2.16. da matéria de facto).
Daqui resulta que o prédio era produtivo independentemente das águas sobrantes.
Acerca da rentabilidade nada foi apurado. Admitindo-se que o utilização da água do furo artesiano possa envolver custos, designadamente com electricidade, ninguém se referiu aos mesmos.
O que justifica a resposta negativa ao artigo 2.º da base instrutória.
Destino idêntico cabe aos artigos 5.º e 8.º da mesma peça, não só porque o furo artesiano fornece água suficiente para a rega do pomar, como porque se desconhece como se processou o cultivo nos anos anteriores, pois ninguém se referiu a essa questão.
À matéria do artigo 6.º da base instrutória apenas a testemunha S…, agricultor, se pronunciou em termos genéricos, dizendo que o pomar dos apelantes tem mais de 1 ha, e que a produção obtida em 1 ha é de cerca de 30 toneladas. O preço da maçã de primeira será de € 0,25, 0,28 ou 0,30, e a maçã para concentra (sumos) andará à volta de € 0,03 ou 0,04, sendo que num pomar existem frutos de calibres, e portanto, preços diversos.
Não resultou claro do depoimento desta testemunha que se estivesse a pronunciar sobre o pomar dos apelantes, sendo certo que não sabe a quem foi vendida a produção dos dois últimos anos.
Ora, para que se pudesse responder afirmativamente seria necessário que a testemunha se pronunciasse acerca da produção deste concreto pomar tendo por referência a produção de anos anteriores, e não a produção média dos pomares em geral.
Desconhecendo-se a média da produção anual do pomar dos apelantes, a resposta ao artigo 6.º da base instrutória tinha necessariamente de ser negativa.
Em consequência, a resposta ao artigo 7.º fica prejudicada (em bom rigor, o artigo não deveria ter sido formulado, pois mais não é que o produto da quantidade de maçã pelo preço por quilo referidas no artigo anterior — 18.000 = 60.000 x 0,30).
Nenhuma prova foi apresentada à matéria do artigo 9º da base instrutória, sendo igualmente questionável a sua formulação, pois os custos com a lide devem ser consideradas em sede de custas de parte (artigo 447.º-D, n.º 2, CPC).
Igualmente não foi feita prova à matéria do artigo 11.º da base instrutória, pois nenhuma testemunha depôs a este propósito.
A pretensão dos apelantes relativamente à resposta afirmativa aos artigos 2.º, 5.º a 9.º e 11.º da base instrutória não pode ser acolhida.
3.2. Da nulidade da sentença por omissão e excesso de pronúncia
Sustentam os apelantes que a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia e excesso de pronúncia por, em vez de apreciar a ilicitude da actuação dos apelados, ter incidido sobre a figura jurídica da doação e seus efeitos e sobre a figura da servidão de águas, que não padecem de qualquer dúvida, por estarem comprovadas por documento autêntico (escritura de doação).
A nulidade por omissão de pronúncia, prevista na alínea d) do nº 1, do artigo 668º CPC, ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questão que devesse conhecer, ao passo que a nulidade por excesso de pronúncia existe quando o juiz conheça de questões de que não possa tomar conhecimento.
Este normativo tem de ser equacionado com o disposto no artigo 660º, nº 2, 1ª parte, CPC, que impõe que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham posto à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Por «questões» entende-se «os pedidos deduzidos, toda as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cumpre [ao juiz] conhecer (art.660-2)» (Lebre de Freitas, Montalvão Machado, e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 2ª edição, pg. 704).
Não assiste razão aos apelantes.
A sentença recorrida analisou o instituto da doação por ter sido através de uma escritura pública de doação que se estabeleceu o direito às águas sobrantes do abastecimento público. Não poderia analisar o direito de que os apelantes se arrogam titulares sem apreciar os termos da doação.
Teve igualmente o tribunal recorrido de equacionar a problemática da servidão, pois os apelantes se arrogaram titulares de uma servidão que teria sido impedida pelos apelados.
E não deixou de apreciar o pedido formulado pelos apelantes: considerou-o improcedente por terem invocado uma servidão de águas e se ter concluído que não existia servidão.
A sentença recorrida não enferma das alegadas nulidades.
3.3. Do direito dos apelantes às águas sobejas
A acção foi julgada improcedente porque, tendo os apelantes invocado um direito de servidão, não lograram provar a sua existência.
Vejamos então se os factos provados permitem concluir pela existência de uma servidão por destinação do pai de família conforme invocado pelos apelantes.
Os apelantes fazem radicar o direito de que se arrogam numa escritura pública de doação, outorgada em 21 de Maio de 1983, através da qual J… e sua mulher K… doaram à Câmara Municipal …, uma nascente de água situada num prédio que posteriormente foi adquirido pelos apelados (ponto 2.2, 2.4 e 2.5 da matéria de facto).
A doação foi feita para unicamente abastecer a povoação de …, pertencendo aos doadores na totalidade as sobras da água resultantes daquele abastecimento, podendo delas fazer o que bem entender, indo tais águas cair num tanque com capacidade de trinta e três mil litros, a mandar construir pela Câmara …, num outro seu prédio, o qual viria a ser adquirido pelos apelantes (ponto 2.3 e 2.1. da matéria de facto).
Tratou-se de uma doação com cláusula modal (cfr. artigo 963.º CC), i.e., de uma doação onerada com um encargo, e vinculada a uma finalidade determinada.
Por outras palavras, o donatário não podia dar à água doada o destino que entendesse, devendo destiná-la necessariamente ao abastecimento da povoação de …. E as sobras do abastecimento público reverteria a favor dos doadores.
Enquadremos legalmente esta realidade.
Nos termos do artigo 1389.º CC, o dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água, pode servir-se dela e dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo.
E, de acordo com o artigo 1390.º, n.º 1, do mesmo diploma, considera-se justo título de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.
Nas palavras de Tavarela Lobo, Manual de Direito de Águas, Coimbra Editora, vol. II, 2.ª edição, pg. 10,
«Os poderes de disposição do dono da fonte ou nascente podem revestir as formas de alienação da propriedade, constituição de servidões de água ou de um mero uso pessoal.
Representando a fonte ou nascente situada num prédio uma parte componente dele — pars fundi — é de per si susceptível de alienação autónoma.
Com esta característica de propriedade independente do prédio onde nascem, essas águas tanto podem ser alienadas conjunta como separadamente do mesmo. Assim vem sendo sustentado pelos autores e julgado na jurisprudência nacional, embora porventura nem sempre de harmonia com os princípios que enformam a matéria do registo predial, da divisão de prédios e e mesma da destinação do pai de família.»
Arrogam-se os apelantes titulares de um direito de servidão das águas sobejas.
O conceito de servidão predial consta do artigo 1543.º CC.: servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, sendo que, diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
O direito de servidão predial é um direito real de gozo limitado, constituindo uma limitação ao direito de propriedade do prédio onerado (serviente).
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. III, 2.ª edição, pg. 615,
«Ao contrário do modus, também usualmente designado por encargo, que consiste as mais das vezes numa prestação (de carácter pessoal) imposta ao donatário, herdeiro ou legatário (cfr. Antunes Varela, Ensaio sobre conceito do modo, passim), a servidão traduz-se num poder directo e mediato sobre o prédio onerado, como é próprio de todo o direito real».
Ao sublinhar que a servidão é um encargo imposto a um prédio (serviente) em benefício de outro prédio (dominante), não pretende a lei negar a óbvia realidade de que a servidão cria um vínculo intersubjectivo entre os titulares dos prédios envolvidos, mas, como referem os autores citados, pg. 615,
«Quer apenas pôr no devido relevo, tanto a inerência da servidão aos prédios a que activa ou passivamente ela respeita, como a circunstância de não ser lícita (pelo menos com o carácter real, próprio da servidão) a imposição de quaisquer encargos que não se relacionem com as necessidades próprias de outro prédio (Cfr. acórdão do S. T. J., de 3 de Março (anot. na Rev. de Leg. e de Jur., ano 100.°, págs. 323 e segs;).
A constituição da servidão pressupõe a existência de vantagem para o prédio dominante à custa do serviente.
Com efeito, nos termos do artigo 1544.º CC podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.
Por outro lado, e como refere Antunes Varela, RLJ 115.º/220, o «direito de servidão confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante».
Do exposto importa concluir, com a 1.ª instância, que os apelantes não são titulares de uma servidão de águas sobrantes.
Basta atentar que, por força da escritura de doação, as sobras do abastecimento público pertenceriam na totalidade aos donatários, que poderiam fazer delas o que bem entendessem.
Significa isto que os donatários poderiam usar as águas sobejas no prédio onde se encontrava o tanque, ou em qualquer outro, próprio ou alheio, ou mesmo não fazer qualquer uso da água.
Dissentimos, assim, da sentença recorrida quando afirma que estamos perante um direito de uso, previsto no artigo 1484.º CC, pois, nos termos do n.º 1 deste artigo o direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.
O direito que adveio aos donatários — direito à sobras do abastecimento público —não estava vinculado a qualquer fim, nem revestia carácter real, mas apenas obrigacional, atento o princípio do numerus clausus dos direitos reais (cfr. artigo 1306.º, n,º 1, CC).
Não se tratando de uma servidão, como sustentaram os apelantes, tal direito não lhes foi transmitido com a compra do prédio, nem consta que o tenha sido por qualquer outro meio.
Não tendo os apelantes demonstrado ser titulares de qualquer direito sobre águas provenientes da nascente situada no prédio dos apelados, a apelação tem necessariamente de improceder.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma- se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 5 de Junho de 2012
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
Ondina de Oliveira Carmo Alves
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Sumário
1. A constituição da servidão pressupõe a existência de vantagem para o prédio dominante à custa do serviente.
2. O direito de servidão de águas confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.
3. A cláusula da escritura de doação das águas que estabelece que as sobras do abastecimento público pertenceriam na totalidade aos donatários, que poderiam fazer delas o que bem entendessem não é idónea para constituir uma servidão.
4. O direito que adveio aos donatários — direito à sobras do abastecimento público —não estava vinculado a qualquer fim, nem revestia carácter real, mas apenas obrigacional, atento o princípio do numerus clausus dos direitos reais (cfr. artigo 1306.º, n,º 1, CC).

Márcia Portela