Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
752/08.0TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: DIFAMAÇÃO
DIREITO DE CRÍTICA
Nº do Documento: RP20110928752/08.0TAVFR.P1
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Numa sociedade democrática o exercício do direito de crítica na relação professor/aluno, mormente ao nível do ensino superior, deve ser percecionado mediante uma relação paritária intersubjetiva e não mediante uma relação de poder e de dominação.
II - Consubstancia exercício salutar da democracia a crítica feita por parte de certos alunos em relação a um professor, dando conta, numa exposição a ser ponderada pelos órgãos competentes da escola, de atos e omissões que, sem descer à dimensão da esfera pessoal, consideravam incorrectos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 752/08.0TAVFR.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Carlos Espírito Santo

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. Na Instrução n.º 752/08.0TAVFR do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Santa Maria da Feira, em que são:

Recorrente/Assistente: B…

Recorrido/Arguido: C… e outros
Recorrido: Ministério Público

foi proferida decisão instrutória em 2010/Jul./14, a fls. 843-858 que não pronunciou os arguidos, num total de trinta e um, na sequência da acusação particular formulada a fls. 537-541 pela prática, como autores materiais, de um crime de difamação – muito embora naquele libelo se tenha dito crime de injúrias – da previsão do art. 180.º do Código Penal.
2. O assistente interpôs recurso por faz expedido em 2010/Set./21 a fls. 877 e ss., pugnando pela revogação dessa decisão e sua substituição por outra que pronuncie todos os arguido pelo mencionado crime de difamação, tal como consta da acusação particular, concluindo, resumidamente o seguinte:
1.º) Para a imputação de factos ou juízos ofensivos da honra e consideração, haverá que averiguar a existência, ou não, de uma conduta desvaliosa e pela avaliação do nível do desvalor da ofensa, a partir do qual a conduta do agente é susceptível de censura jurídico-penal [1-3];
2.º) Porque o bem jurídico protegido é a consideração social e pessoal do visado, é em função do conteúdo e extensão da lesão do bem protegido que se aferirá da antijuridicidade da conduta do agente [4-5];
3.º) O crime de difamação exige para além do elemento objectivo referenciado, a verificação de uma conduta dolosa do agente e a jurisprudência e doutrina têm sido unânimes no sentido de referir que basta o dolo genérico em qualquer uma das suas formas (arts. 13.º e 14° do Cod. Penal), “bastando, portanto, que o agente, ao realizar voluntariamente a acção, se tenha dado conta da capacidade ofensiva das palavras públicas, isto é, que tenha conhecimento que a imputação do facto, mesmo sob a forma de suspeita, é objectivamente ofensiva da integridade moral da pessoa visada, não se exigindo qualquer finalidade ou motivação especial” [6-7];
4.º) Como é sabido, existe em cada comunidade um sentimento comum, por todos ou por uma maioria aceite, do que razoavelmente se deverá ter por consentido ou do que será susceptível de ultrapassar limites mínimos de convivência social normal, numa perspectiva de respeito cívico, social e moral [8];
5.º) Resulta da prova recolhida ao longo do inquérito e da instrução que:
i) O Assistente é professor no D…, em Santa Maria da Feira e na E…, no Porto.
ii) Desde que está no Ensino sempre foi considerado, quer pelos seus colegas, funcionários e alunos como uma pessoa exemplar e de bem, nunca tendo ao longo dos anos nenhum tipo dc problema com qualquer destas ou com outras pessoas.
iii) Foi com grande surpresa sua que, em 17 de Dezembro de 2007, tomou conhecimento através da Directora do D1…, a Ex.ma Sr. Professora Dr.ª F…, de uma carta escrita e assinada pelos arguidos, alunos do D1…, em que o bom nome, a honra, a consideração, a dignidade, o brio profissional, os métodos de trabalho e o rigor do Assistente são postos em causa perante sj, a Instituição e pessoas com quem trabalha. (VIDE doe. Junto com a queixa com o n.° 1 e 1 e aqui se dá como reproduzido)
iv) Esta carta consiste concretamente em afirmações de que o Assistente, agiria em situações que os arguidos consideram incorrectas; não cumpriria o seu horário de lecção, não prepararia convenientemente as suas aulas, pois escolheria exercícios à sorte; transcreveria os exercícios incorrectamente para o quadro o que originaria erros na sua resolução sendo que haveria exercícios que nem o Assistente saberia resolver e outros que nem sequer teriam resolução, face aos métodos leccionados.
v) E acaba por concluir, em suma, que os métodos adoptados e utilizados pelo Assistente, afastam-no do princípio de leccionarnento do D1…, apontado com consequência da sua “insuficiência de ensino” o forte insucesso escolar dos denunciantes.
vi) Tais imputações, falsas, causaram ao Assistente grande angústia, ansiedade e mal-estar, pois viu-se ofendido na sua honra, dignidade e consideração de forma tanto mais graves quanto é certo que foram levadas ao conhecimento dos seus superiores hierárquicos, no local de trabalho.
vii) Outrossim, a Ex.ma Sr.a Directora do D1… optou por reformular a lecção das aulas de Cálculo e de Cálculo 1 que eram leccionadas só pelo Assistente, passaram a ser leccionadas por este e pela Dr. G…, em regime de alternância sendo que a regência das mesmas foi atribuída a um novo docente, Doutor H…, contratado especialmente para coordenar pedagogicamente as duas disciplinas sem que leccionasse nenhuma aula das disciplinas nem tivesse qualquer contacto com os alunos mas que elaborava os respectivos programas, produzia os enunciados dos mini-testes, testes e exames, efectuava a sua correcção e atribuía as classificações aos alunos.
viii) O forte, fortíssimo, insucesso escolar dos denunciantes, depois de todas as alterações pedagógicas mencionadas, continua... [9];
6.º) Nesta perspectiva, os juízos e imputações dirigidos ao assistente, são susceptíveis de ofender a honra e a consideração o assistente como seriam capazes de afectar uma generalidade de pessoas sendo juízos objectivamente violadores dos deveres de respeito devidos em sociedade a qualquer pessoa [10-12];
7.º) Mostra-se ainda indiciado que os arguidos sabiam que tais juízos e imputações relativos a um Professor no D…, em Santa Maria da Feira e na E…, no Porto e que dirigiu à Directora do D1…, a Ex.ma Sr. Professora Dr.a F… eram inequivocamente ofensivos da honra e consideração do visado, justificando a intervenção do direito penal [13-21]
3. O Ministério Público respondeu a fls. 899-900 pugnando pela improcedência do recurso, o mesmo sucedendo com a resposta da arguida I… de fls. 949-956.
4. Recebidos os autos nesta relação, aonde foram autuados em 2011/Mai./20, foram os mesmos com vista ao Ministério Público, o qual emitiu parecer em 2010/Mai./25 no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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O objecto deste recurso passa pela apreciação da existência ou não de indícios da prática pelos trinta e um arguidos do crime de difamação.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1.- O despacho de não pronúncia
Na parte que aqui releva transcrevem-se as seguintes passagens:
“Temos assim que durante o inquérito, foram tomadas declarações ao assistente que confirmou os factos constantes da denúncia; foram inquiridas as testemunhas Profª F…, Prof. J…, que confirmaram as expressões constantes da carta em causa nos autos proferidas pelos arguidos que lhes são imputadas pelo assistente.
Foram os arguidos interrogados que confirmaram que subscreveram, na qualidade de alunos do D1…, onde o assistente lecciona a disciplina de Gestão e dirigida à Directora do D1….
Encontra-se junto aos autos a carta subscrita pelos arguidos.
No decorrer da instrução não foram realizadas quaisquer diligências de prova.
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Da conjugação de toda a prova produzida, nos termos acabados de referir, resulta assim indiciado o eguinte factualismo, com relevo para a decisão da causa:
O assistente é professor no D…, em Santa Maria da Feira.
No dia 17 de Dezembro de 2007, o assistente, através da Directora do D1…, tomou conhecimento de uma carta, subscrita pelos arguidos e na qual constam afirmações de que o assistente agiria em situações que os arguidos consideram incorrectas; não cumpriria o seu horário de lecção, não prepararia convenientemente as sua aulas, pois escolheria exercícios à sorte, transcreveria os exercícios incorrectamente para o quadro o que originaria erros na sua resolução sendo que haveria exercícios que nem o assistente saberia resolver e outros que nem sequer teriam resolução, face aos métodos leccionados.
De toda a prova já supra referida, resulta contudo que não se encontra indiciado o seguinte factualismo, com interesse para a decisão da causa:
1) Os arguidos, ao subscreverem tal carta tiveram a intenção de ofender a honra, a dignidade e o bom nome do assistente.
2) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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Certo que o “exercício do direito de crítica” pode criar situações de conflito com bens jurídicos como o da honra pessoal.
Mas, envolvendo o exercício da liberdade de expressão, reconhecido a qualquer pessoa, deveres e responsabilidades, entre eles, no domínio dos direitos de personalidade, o respeito pelo bom nome e reputação da pessoa visada, há a obrigação de evitar expressões gratuitamente ofensivas ou desproporcionadas atento o contexto global em que são proferidas.
Claro que, nas sociedades democráticas, a crítica a personalidades conhecidas, v.g. que exercem funções públicas, seja a nível nacional ou local, quando actuam nessa qualidade, tem limites mais amplos (do que a de um particular), na medida em que os seus actos estão sujeitos a um controlo atento das pessoas que compõem a respectiva comunidade, na qual exercem as suas funções.
Quando estiverem em causa temas de interesse comunitário (ainda que local, a nível de um estabelecimento de ensino), além de ter de existir uma maior tolerância perante a crítica razoável, as restrições à liberdade de expressão (para conceder maior protecção à reputação do ofendido), só poderão ser justificadas por uma “necessidade social imperiosa” na vida democrática, que permita considerar essa ingerência como “proporcional ao fim legítimo perseguido”.
Os direitos fundamentais em jogo (por um lado o direito ao bom nome e reputação e, por outro, o direito de expressão), que têm peso igual na hierarquia dos valores protegidos constitucionalmente, estando sujeitos a determinadas restrições (no caso da liberdade de expressão, estando as limitações também previstas no art. 37 nº 3 da CRP), não podem ser considerados como direitos absolutos.
O conflito que pode resultar do confronto entre o “direito ao bom nome e reputação” e o “direito de expressão” ou “direito de informação em sentido amplo”, só poderá ser resolvido com a ponderação dos respectivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (art. 18 nº 2 da CRP), salvaguardando, porém, o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo.
Nesse caso, há que introduzir limites a esses dois direitos fundamentais, de forma a preservar o núcleo essencial de cada um deles, com o fim de alcançar a necessária composição (“«harmonização» ou «concordância prática» dos bens em colisão, a sua optimização”) dos interesses em conflito.
Lendo o texto integral (dado como reproduzido) percebe-se que todo ele foi escrito com o mesmo objectivo: apresentar a opinião e crítica à actuação do assistente como docente e no domínio dessa sua função.
A forma como no texto são abordados os pontos quanto à forma que o assistente conduzia as suas aulas, ainda que atingindo matéria de foro pessoal, objectivamente não pode ser considerada como ofensiva da honra e consideração do ofendido, sobretudo e por causa do exercício da profissão deste.
Objectivamente, o que foi escrito naquela carta, dirigida à Directora do D1…, não é ofensivo da honra, consideração e dignidade do assistente.
Neste sentido, o Ac. Do TRP, de 05/11/2008, proc. 0844658, disponivel em www.dgsi.pt: “Para determinar se certa expressão, imputação ou formulação de juízo de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra há que considerar o contexto em que o agente actuou, as razões que o levaram a agir, a maior ou menor adequação social, etc”.
Neste mesmo sentido, escreveu-se no Ac. do TRP, de 28/02/2007, proc. nº 0640513, disponível em www.dgsi.pt: “O direito de expressão do pensamento, de opinião, de critica deve prevalecer se as expressões e termos utilizados não ofendem o princípio da proporcionalidade e são adequados ao fim legitimamente perseguido”.
Recorde-se, também, que não incumbe ao direito penal proteger “a susceptibilidade pessoal” do assistente.
De qualquer modo, atento o teor do texto em questão, impõe-se concluir que o que ali se escreveu não é objectivamente ofensivo, nem tem conteúdo e capacidade difamatórias.
Daí que sejam inconsequentes as considerações que o julgador faz a propósito de incumbir ao arguido provar a verdade do que escrevera.
Em conclusão: não se extrai da matéria indiciada que a arguida tivesse adoptado conduta ilícita, pelo que se impõe a sua não pronuncia.
Por outro lado, e mesmo que assim não se entenda, da prova carreada para os autos não resultou minimamente indiciado que a arguida, ao proferir tais expressões, tivesse tido a intenção de difamar e/ou injuriar o assistente. Assim, e pelo que referimos supra, sendo os crimes em apreço apenas puníveis na forma dolosa, por força do disposto nos artigos 13.º e 14.º, ambos do Código Penal, então, não se verificando indiciariamente esse elemento subjectivo do tipo de ilícito, forçoso é concluir que a arguida não praticou o crime de difamação nem qualquer outro.”
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2. Os fundamentos do recurso
No culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. de 2006/Jan./04(1), o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases.
Em primeiro lugar um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.
Por último efectuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir, que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento.
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O crime de difamação do art. 180.º, n.º 1, do Código Penal pune “Quem, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
Neste ilícito tutela-se a honra, abarcando tanto o valor pessoal ou interior que cada pessoa tem por si, como a reputação ou consideração que a comunidade tem por essa mesma pessoa.
A acção típica deste crime consistirá na divulgação de factos (acontecimentos da realidade), incluindo a suspeição, ou então de considerações (palavras ou expressões) injuriosas, tanto na sua dimensão pessoal, como social.
Por sua vez e segundo o art. 182.º, do mesmo Código “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.
No entanto, tanto os conceitos de honra como de desconsideração não devem estar dependentes da perspectiva ou compreensão que cada um tem dos seus valores “morais” ou “ético-sociais”.
Daí que os mesmos devam ser insuflados por aqueles valores que emergem do nosso quadro constitucional (art. 26.º, n.º 1 Constituição), que alude ao “bom nome e reputação, à imagem”, como legislativo (v. g. 70.º, n.º 1 Código Civil), nomeadamente aquela que diz respeito à tutela geral da personalidade (“personalidade física ou moral”).
Como se sabe o direito penal tem carácter subsidiário ou fragmentário, como decorre expressamente do art. 18.º, n.º 2 da C. Rep., ao preceituar que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Deste modo e ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, a nossa Constituição consagra expressamente o princípio constitucional da intervenção mínima da tutela penal, na vertente da natureza fragmentária ou subsidiária do direito penal. (2)
Daí que essa protecção apenas deva surgir nos casos de flagrante ruptura ou interrupção da convivência social entre os cidadãos, surgindo como uma resposta do ordenamento jurídico de “ultima ratio” – as penas e as medidas de segurança não são os únicos meio de protecção da sociedade, mas apenas o seu último recurso – e com “carácter fragmentário” – que deve apenas exercer-se na medida do necessário para essa tutela.(3)
A propósito também se alude ao princípio constitucional da proporcionalidade, enquanto “limite dos limites” da necessidade das penas, da subsidiariedade, da ultima ratio, da fragmentaridade e da intervenção mínima, da ofensividade e da exclusiva função de protecção de bens jurídico-penais.(4)
Será pois esta a concepção de um direito penal democrático, enquanto sistema ao serviço das necessidades dos seres humanos, em que os bens jurídicos por si tutelados são a tradução dos seus interesses reais merecedores de uma protecção exigente e necessariamente drástica através do “jus puniendi”, de modo a possibilitar uma coexistência e vivência comunitária.
Assim e muito embora, tanto a descrição típica do crime legal de difamação, como de injúria, não exijam que a correspondente ofensa da honra ou consideração tenham, pela sua natureza, efeitos ou circunstâncias, que ser consideradas como graves, como sucede com o Código Penal Espanhol [art. 208.º, § 2.º](5), somos de crer que a vinculação constitucional ao citado art. 18.º, n.º 2, estabelece um efectivo critério limitador.
Tanto assim é, que a jurisprudência desta Relação, tem vindo paulatinamente a considerar, como sucedeu com o Ac. de 2002/Jun./12(6), que “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”.
Para o efeito já se considerou que em certos circunstancialismos, designadamente no decurso de uma discussão, que a alusão “não era padre; não era nada”(7), apelidar um outro de “maluco”(8) ou então alguém dirigir-se a outrem dizendo-lhe “que ele lhe devia dinheiro, pedindo-lhe o pagamento”(9) não seriam expressões criminalmente atípicas e, como tal, destituídas de qualquer carga injuriosa.
Estamos, nestes casos, naquela margem do nosso relacionamento social, que se deve ter como jurídico-penalmente aceitável, por não revestir, naqueles concretos circunstancialismos, qualquer imputação objectivamente ofensiva da honra ou consideração do assistente.
A prova produzida indicia que, tal como resulta do despacho recorrido que “No dia 17 de Dezembro de 2007, o assistente [professor no D…, em Santa Maria da Feira], através da Directora do D1…, tomou conhecimento de uma carta, subscrita pelos arguidos e na qual constam afirmações de que o assistente agiria em situações que os arguidos consideram incorrectas; não cumpriria o seu horário de lecção, não prepararia convenientemente as sua aulas, pois escolheria exercícios à sorte, transcreveria os exercícios incorrectamente para o quadro o que originaria erros na sua resolução sendo que haveria exercícios que nem o assistente saberia resolver e outros que nem sequer teriam resolução, face aos métodos leccionados.”
Trata-se do exercício do direito de crítica por parte de certos alunos em relação a um seu professor, dando conta de actos e omissões deste que os subscritores consideram incorrectas, cuja exposição tanto podia ter tido provimento ou não pelos órgãos competentes do instituto, que no caso e pelos vistos até originaram reformulações na leccionação das aulas.
Numa sociedade democrática o exercício do direito de crítica na relação professor-aluno, mormente ao nível do ensino superior, deve ser percepcionado mediante uma relação paritária intersubjectiva e não mediante uma relação de poder e de dominação.
As “relações especiais de poder” (besonderer Gewaltverhältnisse) são típicas de instituições tendencialmente totalitárias mas não de uma escola democrática, em que se deve cultivar a liberdade de pensamento e da crítica, ainda que esta muitas vezes possa ser acutilante.
Não descendo essas críticas à dimensão da esfera pessoal do visado, mas ficando-se pelo exercício das suas funções profissionais, temos de considerar as mesmas como um exercício salutar da democracia nas escolas, onde se devem preparar os alunos para a vida.
Por outro lado, as avaliações pedagógicas não devem ser um exclusivo dos professores, devendo também o seu desempenho ser à avaliação dos respectivos alunos, por mais imerecidas ou estéreis que as mesmas possam ser.
Assim, contendo-se a exposição dos alunos em causa no âmbito da livre exposição do pensamento e crítica dos seus autores, num processo comunicativo, mostrando-se aquela adequada aos fins em vista, que no caso seria a crítica ao modo de leccionação das aulas efectuadas pela recorrente, considera-se a mesma, como também sucedeu com o despacho de não pronúncia, como criminalmente atípica, pelo que não temos nenhuma censura a fazer à decisão recorrida.
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III. DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo assistente B…, e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.

Mais se condena o assistente na taxa de justiça de quatro (4) Ucs. [515.º, n.º 1, al. b), do C. P. Penal]

Notifique.

Porto, 28 de Setembro de 2011
Joaquim Arménio Correia Gomes
Carlos Manuel Paiva do Espírito Santo
___________________
(1) Divulgado em www.dgsi.pt e que o signatário foi relator, donde se transcrevem as passagens indicadas.
(2) MIR PUIG, Santiago, Estado, Pena y Delito, Editora BdeF, Montevideo-Buenos Aires, 2006, p. 334 e 339; MOLINA BLÁSQUEZ, Concepción; LANDECHO VELASCO, Carlos Maria, Derecho Penal Español – Parte General, Tecnos, Madrid, 2004, p. 58; FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 125; COSTA ANDRADE, Manuel, em “A dignidade penal e a carência de tutela penal como referência de uma doutrina teleológico-racional do crime”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, n.º 2, Abril-Junho, 1992, p. 182/183.
(3) MIR PUIG, Santiago, Intoducción a Las Bases del Derecho Penal, Editora BdeF, Montevideo-Buenos Aires, 2007, p. 108 e ss.
(4) MIR PUIG, Santiago, “O princípio da proporcionalidade enquanto fundamento constitucional dos limites materiais do direito penal”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 19, n.º 2, Janeiro-Março de 2009, pp. 12-13
(5) “Solamente serán constitutivas de delito las injurias que, por su naturaleza, efectos y circunstancias, sean tenidas en el concepto público por graves”.
(6) Relatado pelo Des. Manuel Braz, no Recurso n.º 332/02.
(7) Ac. de 2006/Abr./19, relatado pela Des. Élia São Pedro [Rec. n.º 5927/05-1], divulgado em www.dgsi.pt
(8) Ac. de 2005/Dez./07, relatado pelo Des. Borges Martins [Rec. n.º 5154/05-1], divulgado em www.dgsi.pt
(9) Ac. 2007/Dez./19, por nós relatado e subscrito pelo mesmo Ajunto [Rec. n.º 5118/07-1], divulgado em www.dgsi.pt