Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1832/08.7TBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP00042729
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
CONCORRÊNCIA DESLEAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RP200906291832/08.7TBOAZ.P1
Data do Acordão: 06/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO - LIVRO 384 - FLS 111.
Área Temática: .
Sumário: Um sócio de sociedade comercial só pode accionar um Gerente ou Administrador com base num comportamento de concorrência desleal com vista a obter indemnização em nome da sociedade ou fazendo uso da acção uti singuli (em que a lei exige o litisconsórcio necessário activo), nos termos do art. 77º do CSC, mas nunca e só em nome próprio, visando indemnização para si mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pº nº 1832/08.7TBOAZ
Apelação
(97)


ACÓRDÃO

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

O A. B………. intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo a condenação do R. C………. a pagar-lhe a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, acrescida de € 70.000, a título de danos não patrimoniais.
Alega, em resumo, que ambos eram sócios gerentes de uma sociedade comercial – a “D………., Lda.” -, tendo o R., em 15 de Outubro de 2004, constituído outra sociedade – a “E………., Lda.”.
Mais diz que, ambas as sociedades se dedicavam ao mesmo objecto comercial, tendo o R., no âmbito da sociedade que veio a constituir, praticado actos de comércio que consubstanciam a prática de concorrência, os quais teriam levado à insolvência da “D………., Lda”.
Diz ainda que, tal conduta do réu lhe provocou danos patrimoniais enquanto sócio da “D………., Lda”. Afirma, porém, que não é ainda possível apurar e contabilizar uma estimativa de perda de lucros, uma vez que o processo de insolvência ainda não se encontra encerrado.
Mais alega que, a conduta do R. lhe provocou, ainda, danos não patrimoniais motivados pelo sofrimento e abandono que então sofreu.
A par disto, mais dá conta que assinou, enquanto gerente da “D………., Lda” e a pedido do R, uma livrança sacada sobre o “F……….”, a qual não veio a ter pagamento, daqui resultando a execução pessoal de bens seus.
Informa ainda que, no âmbito de contrato promessa de cessão de quotas celebrado com o R., este não procedeu ao pagamento da totalidade da quantia acordada a título de sinal, o que também lhe terá gerado danos não patrimoniais.
Pela prática de tais actos, pugna pela condenação do R. a pagar-lhe uma compensação de € 40.000.
Finalmente, alega ainda o A. que, fruto da conduta do réu, a aludida “D………., Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida a 18 de Abril de 2006 no Processo nº …/06.9 TBOAZ do .º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis.
Por via deste facto, informa o autor que sentiu “vergonha”, aliado ao facto de “ter de se defender e à sua honra” em processo de qualificação de insolvência, inicialmente qualificada pelo respectivo Administrador como culposa (mas, posteriormente, decidindo-se pelo carácter fortuito da mesma).
Para ressarcimento deste dano, peticiona o A. o pagamento, pelo réu, de uma compensação de € 30.000.

O R. apresentou contestação, defendendo-se por excepção, arguindo a excepção de caso julgado e por impugnação, pedindo a improcedência da acção.

O A. replicou, pugnando pela improcedência da excepção invocada, no mais, concluindo como na p.i.

Foi proferido saneador-sentença que julgou:
- improcedente a invocada excepção de caso julgado;
- verificadas as excepções de ilegitimidade do A. e de nulidade de todo o processo (na vertente de falta de indicação de causa de pedir) e, consequentemente absolveu o R. da instância.

Inconformado, apelou o A. apresentando alegações, cujas conclusões são as seguintes:
1 – A sentença recorrida deve ser revogada e, em consequência, ordenar-se o prosseguimento dos autos até final; porquanto
2 – Não padece a lide processual de falta de legitimidade activa;
3 – Nem tão pouco de falta de causa de pedir que determine a nulidade de todo o processo;
4 – A legitimidade afere-se nos termos do disposto no artº 26º/1 do CPCivil;
5 – O A. tem interesse próprio e directo em demandar o R. nos presentes autos;
6 – Alegando matéria fáctica e de direito, que implicam para o mesmo R. o ressarcimento do A. a título de responsabilidade civil por factos ilícitos. De igual modo, e
7 – Desta forma encontra-se devidamente fundamentado tal interesse, não existindo falta de causa de pedir;
8 – A qual foi, aliás, devidamente interpretada pelo R.;
9 – Havendo de averiguar da sua procedência ou improcedência;
10 – Termos em que violou a sentença recorrida o disposto nos artºs 26º/1, 193º/1 al. a), 493º/2, 494º als. b) e e) e 498º/1 e 3, todos do CPCivil;
11 – Pelo que deverá ser revogada.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

II – QUESTÕES A RESOLVER

Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artºs 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artº 660º nº 2 também do CPC.
Assim, em face das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
1. Verificação da excepção de ilegitimidade activa.
2. Nulidade de todo o processado por falta de indicação de causa de pedir.

III – FUNDAMENTOS DE FACTO

São os seguintes os factos provados a ter em consideração:

- A. e R. são sócios e foram gerentes da sociedade “AD………., Lda.”, a qual foi constituída em 30/09/1998, com sede no ………., freguesia de ………., concelho de Oliveira de Azeméis, tendo como objecto social a comercialização de componentes e equipamentos industriais para a indústria de alumínio.
- Tal sociedade foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 21/06/2006 no processo …/06.9 TBOAZ, do .º Juízo Cível deste Tribunal.
- Por decisão transitada em julgado em 23/07/2007, foi a insolvência de “D………., Lda.” qualificada como fortuita.
- No dia 15 de Outubro de 2004, o réu C………., juntamente com G………. e H………., constituíram a sociedade comercial “E………., Lda.”, com sede no ………., freguesia de ………., concelho de Oliveira de Azeméis, tendo como objecto social o comércio por grosso e a retalho de artigos, painéis e acessórios para a indústria de alumínio.
- O réu C………. detém nessa sociedade uma quota no valor nominal de 900 €.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Verificação da excepção de ilegitimidade activa.

A sentença recorrida considerou estar verificada a excepção de ilegitimidade do A., tendo, em consequência, absolvido da instância, o A.
O A./recorrente discorda de tal entendimento.
Vejamos se lhe assiste razão.
Como resulta da matéria de facto supra enunciada, o A. e o réu C………. são sócios e foram gerentes da sociedade “D………., Lda.”, a qual foi constituída em 30/09/1998, com sede no ………., freguesia de ………., concelho de Oliveira de Azeméis, tendo como objecto social a comercialização de componentes e equipamentos industriais para a indústria de alumínio.
Mais resultou provado que, no dia 15 de Outubro de 2004, o réu C………., juntamente com G………. e H………., constituíram a sociedade comercial “E………., Lda.”, com sede no ………., freguesia de ………., concelho de Oliveira de Azeméis, tendo como objecto social o comércio por grosso e a retalho de artigos, painéis e acessórios para a indústria de alumínio.
E tal sociedade conforme se constata do doc. de fls. 26 e segs. tem a sua sede localizada no mesmo ………., freguesia de ………., concelho de Oliveira de Azeméis, isto é, no mesmo local que a sociedade “D………., Lda.” e segundo o alegado pelo autor, situa-se precisamente do lado oposto às instalações anteriormente ocupadas por esta sociedade.
Alega ainda o A., ora recorrente que, a partir de 15/10/2004 (data da constituição da E………., Lda.), todas as transacções comerciais promovidas pelo R. começaram a ser realizadas em nome desta sociedade comercial e, por via disso a D………., Lda deixou de efectuar vendas e consequentemente de ter lucro nos últimos anos da sua actividade, passando a sua clientela a estabelecer, em exclusivo, uma ligação de fidelidade ao R. e à E………., Lda., adquirindo a esta sociedade os mesmos produtos que antes adquiriam à D………., Lda.
Todo este conjunto de situações, segundo alega o A., causou-lhe “um claro e grave prejuízo patrimonial e não patrimonial”.
Ora, de acordo com o artº 254º/1 do Código das Sociedades Comerciais, doravante designado por CSC, “os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, actividade concorrente com a sociedade”.
Resulta da materialidade apurada e do que vem alegado pelo A./recorrente que o R., enquanto foi gerente da D………., Lda. foi preparando a constituição da E………., Lda., de que é sócio maioritário, arrastando para esta última sociedade não só dois dos seus trabalhadores, que figuram agora na E………., Lda., também como sócios, mas toda a clientela daquela, “esvaziando”, assim, a D………., Lda., em proveito da E………., Lda..
Não existem, assim, dúvidas, que tais factos constituem uma violação ilícita e culposa, culpa que, aliás, se presume, dos deveres de gerente, nomeadamente dos deveres de lealdade, fidelidade e diligência e do dever de defesa dos interesses da D………., Lda. por parte do seu sócio-gerente, o R./recorrido (cr. artºs 2º e 64º do CSC), para além da violação da obrigação de não concorrência que sobre si impendia (cfr. o já citado artº 254º do CSC). [1]
Esta concorrência desleal é uma actividade voluntária, desonesta e conscientemente praticada com a intenção de desviar clientela alheia em proveito próprio, operando-se a responsabilização dos gerentes que assim tenham actuado, ao nível da indemnização à sociedade pelos prejuízos que esta sofra (nº 5 do artº 254º do CSC).
De facto, “a mera circunstância de uma pessoa pertencer à administração ou gerência de uma sociedade não determina, desde logo e sem mais, a sua responsabilização. Os administradores e gerentes respondem para com a sociedade em função dos actos por si praticados e geradores de prejuízo”. [2]
De acordo com o preceituado no nº 1 do artº 71º do CSC, a responsabilidade dos administradores ou gerentes é funcional ou seja, “Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa”.
Existem três tipos de acções de indemnização como garantia da responsabilidade dos administradores ou gerentes para com a sociedade:
a) a acção social da sociedade, também chamada uti universi (artº 75º do CSC)
b) a acção social proposta pelos sócios, também designada de uti singuli (artº 77º do CSC)
c) a acção sub-rogatória dos credores sociais (artº 78º do CSC).
Para o que ao caso interessa, apenas nos importa saber se se trata ou não no caso dos autos, de uma acção uti singuli, a qual só pode ser proposta nos termos do artº 77º/1 do CSC, quando a acção não tenha sido proposta pela sociedade ou por a respectiva assembleia geral não ter deliberado nesse sentido, ou por ter deixado decorrer o prazo de seis meses sobre a deliberação sem propor a acção, já que todas os outros tipos de acções de indemnização não poderão encaixar, de todo, no caso concreto.
Trata-se, assim, de uma acção social e não de uma acção pessoal porque os sócios vão pedir a condenação dos administradores ou dos gerentes na indemnização dos prejuízos causados à sociedade e não directamente a eles próprios. [3]
É uma acção social da iniciativa de algum ou alguns dos sócios que aproveita, directamente, à sociedade e, por via disso, aproveita, indirectamente, a todos os sócios e não apenas àqueles que a propuseram.
Ora, como é bom de ver, a acção proposta pelo A., ora recorrente não se integra neste tipo de acção de indemnização, até porque tratando-se de uma acção social de um ou de vários sócios, proposta no interesse da sociedade e ao mesmo tempo de uma acção sub-rogatória, a lei exige a intervenção da sociedade nesta acção (cfr. artº 77º/4 do CSC), tratando-se, assim, de um litisconsórcio necessário activo.
Mas, apesar de os sócios poderem cumular a acção social uti singuli com a acção pessoal, deduzindo os pedidos correspondentes a favor da sociedade e em benefício próprio individual, como vimos, no caso em apreço o A. deduziu um pedido de indemnização a seu favor por danos próprios e individuais, patrimoniais e não patrimoniais resultantes do “esvaziamento” da sociedade por culpa do R.
A parte inicial do nº 1 do artº 77º do CSC prevê efectivamente essa possibilidade.
E, assim, como bem refere a decisão recorrida, o meio processual adequado é a acção prevista no artº 79º/1 do CSC.
Dispõe este preceito legal que “Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções”.
A este propósito, o Prof. Menezes Cordeiro entende que esta responsabilidade dos gerentes para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções, “ocorre pelos danos causados” em termos que não são interferidos pela presença da sociedade. Tudo se passará, pois em moldes tais que a representação da sociedade, mesmo a ser invocada, se mostre irrelevante”. [4]
Igualmente o Prof. Raul Ventura e Brito Correia já no domínio de legislação anterior (artº 24º do DL 49.381 de 15/11/69, cujo conteúdo é essencialmente idêntico ao do artº 79º do CSC) defendiam que era “importante acentuar que artº 24º só admite a responsabilidade para com os sócios na base de danos directos. É, de excluir, portanto, que um prejuízo causado à sociedade e que só indirectamente afecta os sócios seja fundamento de uma “acção individual” destes …”.[5]
Voltando ao caso sub judice, e como bem se salienta na decisão recorrida, parece não existirem dúvidas que, os alegados comportamentos do R., constituíram, aparentemente, um acto directamente lesivo do património da D………., Lda., comportamento esse que só indirectamente se poderá considerar como prejudicial para o A./sócio pela eventual diminuição do valor da sua participação social.
Na verdade, como vimos, tendo o R., gerente da sociedade D………., Lda. exercido sem o consentimento do outro sócio, o A./recorrente, actividade concorrente com a daquela sociedade, este só pode accionar aquele para obter indemnização em nome da sociedade e não em nome próprio.
De facto, “A proibição de o gerente exercer actividade concorrente com a da sociedade, regulada no artº 254º do CSC, visa directamente a protecção da actividade social e não qualquer direito do sócio que, de imediato, não é susceptível de ser afectado pelo não acatamento da proibição”.[6]
Isto quer dizer que o A./recorrente com base num comportamento de concorrência desleal do R./recorrido só podia accioná-lo com vista a obter indemnização em nome da sociedade ou fazendo uso da já mencionada acção uti singuli em que a lei exige o litisconsórcio necessário activo, nos termos do já citado artº 77º do CSC e nunca apenas e só em nome próprio.
Face ao atrás exposto, carece naturalmente o A./recorrente de legitimidade activa para propor a presente acção.
Procedendo a invocada ilegitimidade do A./recorrente, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada no recurso.
Improcedem, assim, in totum, as conclusões do recurso.

V – DECISÃO

Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

Porto, 29/06/2009
Maria José Rato da Silva e Antunes Simões
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho

________________________
[1] Cfr. Ac. do TRP de 30/11/2004 (relator Alziro Cardoso) disponível em www.dgsi.pt
[2] Cfr. Ac. do TRP de 10/10/2005, publicado em Sociedades Comerciais, Jurisprudência, 1997-2008. Colectânea de Jurisprudência, Edições, pag. 257 e segs..
[3] Cfr. A. Pereira de Almeida – Sociedades Comerciais (2ª ed.), pag. 133 e Ac. do TRP de 13/07/2006 (relatora Deolinda Varão) consultável em www.dgsi.pt.
[4] In “A Responsabilidade civil dos administradores das Sociedades Comerciais”, pag. 496 (passagem também citada na decisão recorrida).
[5] In “Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Anónimas e dos Gerentes das Sociedades por Quotas”, pag. 449.
[6] Neste sentido, cfr. Ac. do TRL de 16/05/2000 in CJ, Ano XXV, Tomo III, 2000, pag. 89/91.