Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3275/06.8TBPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP00043738
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: EXTINÇÃO DO CASAMENTO
RELAÇÕES PATRIMONIAIS ENTRE OS CÔNJUGES
EXTINÇÃO DA COMUNHÃO CONJUGAL
RESPONSABILIDADE POR DÍVIDAS
COMPENSAÇÕES
Nº do Documento: RP201003163275/06.8TBPVZ.P1
Data do Acordão: 03/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 360 - FLS. 72.
Área Temática: .
Sumário: I- A extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha.
II- No tocante à responsabilidade por dívidas, nos termos gerais, pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (art° 1697 nos e 2 do Código Civil) .
III- Estas compensações só são exigíveis no momento da partilha dos bens do casal (art° 1697 n° 1 do Código Civil).
IV- Todavia, há que fazer um distinguir entre as – verdadeiras
compensações e os créditos entre os cônjuges.
V- As compensações verificam-se entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges e, portanto, só têm lugar, evidentemente, nos regimes de comunhão;
VI- Os créditos entre cônjuges são os que existem entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, sem intervenção do património comum, admissíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3275/06.8TBPVZ.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório.
B…………… propôs, no ..º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Póvoa de Varzim, contra o ex-cônjuge, C…………., acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 9 537,88, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da proposição da acção até ao pagamento.
Fundamentou a sua pretensão no facto de, por sentença transitada em julgado, ter sido decretado o divórcio por mútuo consentimento entre si e o réu e homologado o acordo de prestação de alimentos celebrado entre ambos, de harmonia com o qual o último ficou obrigado a pagar integralmente, as prestações do empréstimo contraído para a compra da casa do Porto e o respectivo condomínio, e de o réu, ter deixado de pagar, a partir de Agosto de 2003, as prestações do empréstimo bancário, e de Outubro de 2003, as despesas de condomínio, pelo que, a fim de evitar que o credor bancário – a CGD – a demandasse judicialmente, por o empréstimo ter sido concedido a ambos os cônjuges, se viu obrigada a proceder ao pagamento das prestações, tendo adoptado igual procedimento no tocante às despesas de condomínio, incumbindo ao réu o dever de lhe restituir tudo aquilo com que injustificadamente se locupletou à sua custa.
O réu defendeu-se por excepção dilatória, invocando a incompetência, material e territorial, do tribunal, o caso julgado e a nulidade de todo o processo por ineptidão – resultante da falta de causa de pedir – da petição inicial, e por impugnação, alegando que jamais assumiu o pagamento da prestação à CGD como obrigação de alimentos, que o prédio urbano sujeito ao pagamento da prestação bancária foi adjudicado, na partilha, à autora, tendo sido acordado tal pagamento enquanto não fosse feita aquela partilha, que aquela prestação não cabe no conceito usual de alimentos, tendo intentado acção para cessação da obrigação de prestar alimentos, que foi julgada procedente, pelo que nada deve à autora.
O réu pediu, em reconvenção, a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de € 16 500.000, acrescida de juros, vencidos e vincendos.
Fundamentou este pedido no facto de, após a separação, desde Novembro de 1996 até Outubro de 2003, ter pago todas as prestações que eram da responsabilidade de ambos os comproprietários, num total de € 14 096.26, e o condomínio do andar, no valor total de € 5 000.00.
O despacho saneador julgou improcedentes as excepções dilatórias.
Em articulado avulso, a autora ampliou o seu pedido, de modo a que o réu fosse condenado a pagar-lhe todas as quantias, que vierem a ser objecto de liquidação, que venha a suportar relativas ao empréstimo contraído para a compra da casa e as despesas do respectivo condomínio, posteriores a Outubro de 2006, e os juros de mora, à taxa legal, calculados, desde as datas em que tiver procedido aos pagamentos, até integral reembolso pelo réu.
Admitida a ampliação do pedido da autora, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, no terminus da qual se decidiu, acto contínuo, a matéria de facto.
O réu ofereceu alegação escrita, na qual, depois de observar que não estamos perante uma situação de enriquecimento sem causa e que o processo de inventário/partilha é o próprio/adequado para a autora reclamar os seus créditos sobre o réu (o outro cônjuge), concluiu pela sua absolvição do pedido.
A sentença final da causa, porém, além de desamparar o pedido reconvencional, ponderando, designadamente, que perante a instituição bancária que concedeu o empréstimo quer perante do condomínio autora e réu são devedores, de forma solidária, que, contudo, nas relações internas é possível que um dos devedores solidários assuma a responsabilidade pela satisfação integral do crédito de terceiro, sendo que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete, pelo que assim sendo, a acção deve proceder, competindo apenas esclarecer nada na lei obriga a que seja em processo de inventário que a questão aqui levantada pela autora tenha de ser apreciada, condenou o réu no pagamento à autora da quantia global de € 9 537.68, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, juros calculados à taxa de 4%.
O réu logo interpôs recurso de apelação desta sentença, que também foi logo admitido.
A autora, porém, arguiu a nulidade da sentença, por ter omitido qualquer pronúncia sobre o pedido, no segmento em que foi objecto de ampliação.
O Sr. Juiz de Círculo, suprindo a nulidade, condenou ainda o réu no pagamento das quantias que a autora venha a suportar e relativas ao empréstimo e condomínio referidos no ponto 1 do facto assente B), a partir de Novembro de 2006, inclusive, quantias a apurar em sede de liquidação de sentença.
O réu, notificado deste despacho, declarou, então, vir interpor recurso da sentença no seu todo para o Tribunal da Relação do Porto.
O recorrente pede, no recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua absolvição do pedido, tendo, com o propósito de convencer do mal fundado da decisão impugnada, extraído da sua alegação estas conclusões:
1 - A decisão recorrida é nula nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 668° do CPC.
2 - Não estamos no caso presente perante uma situação de enriquecimento sem causa.
3 - Admitindo por mera hipótese de raciocínio que seja outro o entendimento desse Tribunal, ainda assim mesmo a considerar-se que há enriquecimento sem causa - esta acção não é meio processual admissível para se conhecer do pedido.
4 - Nos termos do artº 474° do C.C., o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária.
5 - Ou seja, a Recorrida só poderia recorrer à figura do enriquecimento sem causa se não tivesse outro meio processual para o fazer e, no caso, tinha.
6 - Com efeito, de acordo com o disposto no artº 1689°, nº 3 do C.C. sempre o processo de inventário/partilha seria um meio adequado para a Recorrida reclamar os seus créditos sobre o Recorrente (o outro cônjuge).
7 - Não sendo a presente acção, tal como está configurada a causa de pedir, meio processual admissível para conhecer do pedido, deverá o Recorrente ser absolvido do mesmo com todas as legais consequências
8 - A decisão recorrida violou o disposto nas alíneas b) e d) do nº 1 do artº 668°, do CPC e arts. 474° e 1689º, nº 3 do Cód. Civil.
Na resposta, a apelada pronunciou-se, naturalmente, pela improcedência do recurso.
2. Factos provados.
O tribunal de que provém o recurso julgou provados os seguintes factos:
1. Por sentença transitada em julgado proferida nos autos de divórcio por mútuo consentimento que correram termos sob o nº …./1996 pela …ª secção do …º Juízo do Tribunal de Família e Menores do Porto, foi decretado o divórcio entre a ora A., B…………., e o ora R., C………….; (facto A)
2. Nessa sentença foram homologados os acordos estabelecidos entre os cônjuges, entre os quais estava o designado "acordo de prestação de alimentos entre cônjuges", contendo as seguintes cláusulas:
1. A título de prestação alimentícia, o cônjuge marido pagará integralmente as prestações do empréstimo contraído para a compra da casa do Porto (sita na …….., …. - …. Dto., na freguesia de …….), bem como o respectivo condomínio;
2. O cônjuge marido pagará ainda à cônjuge mulher a importância de 44.000$00 (quarenta e quatro mil escudos) mensais, por cheque nominativo a enviar para a morada desta até ao dia 5 do mês a que respeitar, com início em Dezembro de 1996;
3. Este último montante será actualizado sempre e na mesma percentagem em que for actualizada a reforma auferida pelo cônjuge marido, por ter sido agente da Guarda Nacional Republicana;
4. A fim de permitir que a cônjuge mulher possa ter conhecimento das actualizações no ponto anterior, o cônjuge marido obriga-se a enviar àquela cópia do recibo do mês em que a sobredita reforma tenha sido objecto de actualização, até ao mês de Abril de cada ano; (facto 8).
3. O réu pagou todas as prestações devidas à C. G. de Depósitos, desde a sua aquisição até Julho de 2003; (facto C).
4. Desde o divórcio o réu sempre pagou as despesas de condomínio do apartamento, até Julho de 2003; (facto D).
5. O R., a partir de Agosto de 2003, deixou de pagar as prestações do empréstimo bancário que foram referidas na cláusula 1. do acordo mencionado em B) dos Factos Assentes; (quesito 1°).
6. A A. tem a sua a residência na casa sita na …………, …..- ….. Dto., na freguesia ……, Porto; (quesito 2°).
7. O R. a partir de Outubro de 2003, deixou de pagar as despesas de condomínio que foram referidas na cláusula 1. do acordo mencionado em B) dos Factos Assentes; (quesito 3°).
8. A A., em 23/02/2004, procedeu ao pagamento, por débito na sua própria conta bancária, aberta na caixa Geral de Depósitos, das prestações do empréstimo já vencidas (nºs 117 a 123), respeitantes ao período compreendido entre Agosto de 2003 e Fevereiro de 2004, respectivos juros e despesas inerentes, no montante total de € 1.116,55; (quesito 4°).
9. A A. solicitou à instituição bancária credora que passasse a debitar mensalmente a sua própria conta relativamente ao valor das referidas prestações do empréstimo em causa; (quesito 5°).
10. A requerente pagou à Caixa Geral de Depósitos, igualmente, todas as prestações que se venceram após Fevereiro de 2004 até Outubro de 2006, no valor global de € 5.216,15; (quesito 6°).
11. A A. efectuou estes pagamentos para evitar que a entidade bancária credora (Caixa Geral de Depósitos) a demandasse judicialmente e procedesse à penhora do imóvel; (quesito 7°).
12. A requerente pagou à administração do Condomínio, em 8 de Junho de 2004, as prestações que se encontravam em dívida referentes a Outubro de 2003 a Junho de 2004, no valor de € 355,00; (quesito 8°).
13. E todas as demais que entretanto se venceram após tal data, até Outubro de 2006, no valor global de € 2.285,00; (quesito 9°).
3. Fundamentos.
3.1Delimitação objectiva do âmbito do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].
A recorrida arguiu, na instância recorrida, a nulidade da sentença impugnada resultante de um vício de conteúdo ou substancial: a omissão de pronúncia sobre o seu pedido, com a configuração resultante da ampliação.
A nulidade acusada era, na verdade, patente.
Diferente da falta de fundamentação, i.e., da falta de indicação dos fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão, é a omissão de pronúncia, que resulta da abstenção de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados.
O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artº 660 nº 2 do CPC)[2].
O tribunal deve examinar toda a matéria de facto disponível e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou dos pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões.
A nulidade substancial ou de conteúdo resulta precisamente da violação, pela sentença, de um tal dever (artº 668 nº 1 d), 1ª parte, do CPC).
No caso, desde que a recorrida pedira, através da ampliação do pedido originário, a condenação in futurum do recorrente, no pagamento das prestações de amortização do empréstimo bancário e dos encargos de condomínio, a sentença final da causa deveria ter estatuído sobre tal pretensão. Como, inversamente, omitiu pronúncia sobre tal questão, a conclusão de que se encontrava ferida com o vício grave da nulidade não deve merecer discussão séria.
O autor da sentença supriu essa nulidade, tendo condenado o apelante naquele pedido.
Como, porém, o suprimento da nulidade ocorreu depois da interposição do recurso pela parte contrária, importa determinar a influência da decisão de suprimento sobre o recurso já interposto.
Dado que se deu provimento à reclamação por nulidade da sentença, a nova decisão integra-se na primitiva (artº 670 nº 2, 2ª parte, do CPC). Daqui resulta a inevitável repercussão sobre o recurso já interposto, pela parte de que não procede a arguição.
O recurso fica abrangendo a nova decisão, na parte em que é desfavorável ao recorrente, dado que é evidente que a decisão de suprimento da nulidade importa uma modificação automática do recurso (artº 686 nº 2, 1ª parte, do CPC[3]).
O recorrente, em face da decisão de reparação de nulidade, apressou-se a ampliar o objecto do recurso. Mas a verdade é que não tinha necessidade nenhuma de o fazer.
Dado que o réu recorreu sem ter feito especificação alguma não precisava de tomar posição, dado que o recurso sempre abrangeria tudo o que na nova decisão lhe é desfavorável (artº 684 nº 2, 2ª parte do CPC).
Uma vez que, por força da lei, o recurso já interposto passa a incidir sobre a nova decisão, i.e., projecta a sua eficácia sobre a decisão que posteriormente for proferida, nada tem de estranho, todavia, que a parte peça o que a lei determina. O recorrente, ou seja a parte contrária ao arguente, pode perfeitamente dizer: quero que o meu recurso abranja a parte da nova decisão na parte em que me é desfavorável, quero ampliar o objecto do meu recurso de modo a abranger a parte da nova decisão em que fiquei vencido.
Nestas condições, tendo em conta a vinculação temática deste tribunal ao conteúdo da decisão impugnada e das conclusões do apelante, a questão concreta controversa que este Tribunal é chamado a resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva o recorrente do pedido.
A resolução deste problema fundamental exige que se examinem as causas de nulidade da sentença e a nulidade do erro na forma do processo. Esta análise deve ser entretecida com uma reflexão, ainda que leve, sobre a natureza do património conjugal comum, as compensações entre as diversas massas patrimoniais, a finalidade do processo de inventário e, finalmente, sobre os pressupostos do enriquecimento sine causa e o conteúdo da obrigação de alimentos.
3.2. Nulidade da sentença apelada.
Como é, infelizmente, extraordinariamente comum, o recorrente imputa à sentença o vício grave da nulidade. De todas as causas possíveis de nulidade, o apelante assaca-lhe duas: a falta de motivação ou fundamentação; a omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 b) e d), 1ª parte, do CPC).
Convém, portanto, relembrar, em traços largos, o regime das nulidades da decisão.
O regime das nulidades da decisão diverge do regime geral das nulidades em pontos em três aspectos muito importantes.
Em primeiro lugar, existe aqui um numerus clausus de causas de nulidade[4]. Corolário deste princípio da tipicidade é a de quem nem todo e qualquer vício, de forma ou de conteúdo, da sentença produz nulidade. Estão nessas condições, nomeadamente, os vícios formais diversos da falta de assinatura do juiz, resultantes, por exemplo, da infracção das regras processuais relativas à forma externa da sentença: a sentença que a que falte o nome das partes ou identificação do litígio, encontra-se decerto ferida com um vício formal, mas essa patologia não é causa de nulidade da sentença (artº 659 nºs 1 e 2 do CPC).
Em segundo lugar, com excepção da nulidade formal decorrente da omissão da assinatura do juiz, as demais nulidades da decisão não são de conhecimento oficioso, exigindo, portanto, a arguição das partes (artº 668 nº 3 do CPC).
Por último, todas as nulidades são supríveis ou sanáveis. Deste princípio apenas se afasta a nulidade por falta de assinatura do juiz que proferiu a sentença, quando se mostrar impossível colhê-la (artº 668 nº 2, a contrario do CPC).
A falta de impugnação da sentença nula importa a sanação da nulidade de que se encontra ferida e, consequentemente, o seu trânsito em julgado (artº 677 do CPC).
Uma distinção que o regime dos vícios da decisão judicial inculca é a que separa os vícios formais dos vícios substanciais ou de conteúdo.
Exceptuando o vício formal da falta de assinatura do juiz todas as demais causas de nulidade – omissão e excesso de pronúncia, falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão - têm por objecto vícios de substância ou de conteúdo.
A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais (artº 208 nº 1 da CRP e 158 nº 1 do CPC).
Isto é assim, dado que uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes.
A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso.
Por isso que as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer, dúvida suscitada no processo serão sempre fundamentadas (artºs 208 nº 1 da CR Portuguesa, 158 nº 1 e 659 nº 2 do CPC).
No entanto, quanto a este ponto há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação – da motivação deficiente, medíocre ou errada. O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (artº 158 nº 1 do CPC)[5].
O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[6].
Depois, o tribunal não está vinculado a analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários á decisão da causa[7]. Se a decisão invocar algum fundamento de facto ou de direito, está afastada a nulidade, no tocante à justificação fáctica e jurídica da decisão.
O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[8]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte).
Face a este enunciado é bem de ver que a sentença impugnada não se encontra ferida com o vício feio da nulidade que os recorrentes lhe assacam. A sentença apelada não constitui, talvez, um exemplo de ouro em que se deva por os olhos. Mas daí até dever ser estigmatizada com o ferrete da nulidade, vai uma distância considerável.
A sentença recorrida especifica, embora de forma avara, os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão que nela se contém, elucidando as partes a respeito dos motivos dessa decisão. O decisor da 1ª instância produziu as razões que, na sua perspectiva, apoiam o conteúdo preceptivo da decisão.
Esses fundamentos podem resumir-se assim: dado que o recorrente e o recorrido são devedores solidários das obrigações de restituição da quantia mutuada pelo banco e de pagamento dos encargos do condomínio, à segunda, porque satisfez a estes credores mais do que lhe competia, tem o direito de, por via de regresso, exigir do primeiro a parte que a este compete; nada na lei vincula a que a exigência desse pagamento tenha de ser actuada no processo de inventário.
Decerto que não pode dizer-se que a sentença seja particularmente pródiga ou loquaz na justificação da decisão; mas também não pode afirmar-se que não tenha explicado os motivos por que deu ao caso a solução nela contida.
Do mesmo modo, também não é lícito dizer-se que a sentença impugnada não tenha resolvido qualquer questão que as partes, bem ou mal, submeteram à sua apreciação.
O problema fundamental que a sentença impugnada tinha de resolver era o de saber se à autora assistia ou não o direito de exigir do réu o pagamento das quantias que aquela satisfez ao credor bancário e ao condomínio. E, seja qual for a bondade da fundamentação, a sentença final da causa, resolveu um tal problema, julgando procedente – para mal do recorrente - aquele pedido da autora.
O apelante, na sua alegação escrita sobre o aspecto jurídico da causa, levantou dois problemas: que a causa de pedir invocada pela autora não podia amparar-se no enriquecimento sem causa; que o processo adequado para actuar o direito de crédito alegado pela autora era o processo especial de inventário e não o processo comum de declaração.
O segundo destes problemas recebeu da sentença apelada uma resposta expressa, ainda que puramente apodíctica; a apreciação do primeiro era inútil em função do enquadramento jurídico escolhido para a causa petendi invocada pela autora. Desde que, segundo o decisor da 1ª instância, a pretensão da autora derivava do direito de regresso resultante do carácter solidário da obrigação, não era necessário explicar que ao caso não era aplicável o instituto do enriquecimento sine causa.
É claro que o fundamento encontrado pela sentença apelada para julgar procedente o pedido da autora mais do que discutível – está errado. Se o pedido da autora se funda no direito de regresso, como é que a sentença explica a procedência in totum do pedido da autora? Na verdade, ao devedor solidário só é lícito exigir do co-devedor a parte da responsabilidade deste no crédito (artº 524 do Código Civil). Ergo, se o caso fosse verdadeiramente de direito de regresso, à autora apenas assistiria o direito de exigir do recorrente metade daquilo que satisfez aos credores comuns e não, como concluiu a sentença apelada, a totalidade daquilo que pagou àqueles.
Seja como for, para o problema que constitui o universo das nossas preocupações – a nulidade da decisão recorrida - a sentença impugnada pode ter incorrido num error in judicando mas não, decerto, no error in procedendo, como é aquele que está na origem da nulidade substancial da decisão.
De resto, a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.
O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.
Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC).
No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC).
Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso.
Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.
Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas, ex-abundanti ou à míngua de melhor razão, mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC).
A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.
Por este lado, o recurso não tem, portanto, bom fundamento.
3.3. Erro na forma do processo.
Tal como já havia feito na alegação escrita que produziu sobre o aspecto jurídico da causa, a recorrente sustenta no recurso que o processo adequado para a actuação do pedido da autora não é o processo comum de declaração – mas o processo especial de inventário. Um tal erro imporia, no ver do recorrente, a sua absolvição do pedido.
Mas a amarga verdade, para os interesses do recorrente, é que não se verifica esse erro, que dele não resulta a consequência jurídica que lhe associa e, em qualquer caso, que já não lhe era lícito sequer invocar, no momento em que o fez – a discussão sobre o aspecto jurídico da causa - um tal erro.
A nulidade por erro na forma do processo deve ser arguida pelo réu ou requerido até à contestação ou neste articulado (artº 204 nº 1 do CPC). Só o réu o requerido pode arguir a nulidade do erro na forma de processo; se quiser argui-la, há-de fazê-lo, o mais tardar, na contestação. Pode deduzir a arguição, em simples requerimento logo a seguir à sua citação; pode também deduzi-la na própria contestação ou em articulado equivalente. Oferecida a contestação, ou articulado equivalente, extingue-se o direito de arguição. Esta nulidade está, portanto, subordinada ao princípio a que toda a contestação – em sentido material – está submetida: o da concentração ou da preclusão.
Todavia, o tribunal pode e deve conhecer oficiosamente desta nulidade, dado que se trata de uma nulidade a que se pode chamar de primeiro grau (artº 204 do CPC). Mas há que assinalar duas restrições: o tribunal não pode conhecer desta nulidade nos casos em que devam considerar-se sanada (artº 202, 1ª parte, do CPC); proferido o despacho saneador, cessa o poder – e o dever – de conhecimento oficioso (artº 206 nº 2 do CPC).
Esta última restrição pressupõe que o processo comporta despacho saneador. Se o processo não comporta despacho saneador, então o poder de conhecimento oficioso subsiste até à sentença final: o juiz pode conhecer da nulidade referida em qualquer altura do processo e até na própria sentença final (artº 206 nº 2, in fine, do CPC).
No caso, o recorrente não arguiu na contestação o aludido erro e a nulidade correspondente e o juiz também não a suscitou nem conheceu dela antes ou no despacho saneador. Tal nulidade, a ter-se verificado, considera-se, pois, sanada, dado que, no momento em que a arguiu – a alegação escrita sobre o aspecto jurídico da causa - ao recorrente já não era lícito reclamar contra ela e, uma vez proferido o despacho saneador, cessou o poder de conhecimento oficioso.
Da nulidade por erro na forma de processo é também coisa de que, no caso, não se pode falar. Basta atentar no critério técnico para a aplicação do processo comum e nas consequências do erro sobre na forma de processo.
O processo é comum ou especial (artº 460 nº 1 do CPC). O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum aplica-se a todos os casos a que não corresponda processo especial (artº 460 nº 2 do CPC).
Dado que não existe um processo especial, mas uma multiplicidade de processos especiais, cada um dos quais apresenta, em relação aos outros diferença sensíveis de forma, e como cada processo especial deve ser aplicado ao caso para o qual a lei expressamente o estabeleceu, o problema da forma de processo empregar em cada caso concreto põe-se assim: ao caso corresponde, segundo a lei, algum processo especial? A resposta é dada pelo procedimento seguinte: examina-se se, entre o quadro dos processos especiais há algum que se ajuste ao caso de que se trata, averigua-se se, para o caso vertente, a lei estabeleceu algum processo especial. Se a averiguação conduz a um resultado positivo, a lança-se mão do processo especial; se o resultado é negativo concluiu-se, de forma segura, que tem de empregar-se processo comum.
A consequência do erro na forma de processo consiste, regra geral, na anulação, maior ou menor, dos actos praticados (artº 199 nº 1 do CPC). O princípio geral é este: anulam-se unicamente os actos que não puderem ser aproveitados.
Portanto, o princípio, claramente ordenado por uma ideia de máximo aproveitamento dos actos processuais, é o seguinte: o erro na forma de processo não importa, em regra, a anulação de todo o processo e, portanto, não se resolve em regra, numa excepção dilatória (artº 288 nº 1 b) do CPC).
Pode, porém, excepcionalmente, ter esse efeito em dois casos: quando nada se puder aproveitar, por haver uma incompatibilidade irredutível entre a forma que se seguiu e a que devia seguir-se – como sucede quando a petição não puder ser aproveitada para a forma de processo que podia adoptar-se; quando o aproveitamento do processo, embora possível redunde numa diminuição de garantias do réu (artº 199 nºs 1 e 2 do CPC)[9].
Fora destes casos excepcionais, o referido erro tem, portanto, esta consequência limitada: a anulação dos actos que não puderem ser aproveitados, e a prática daqueles que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida na lei.
Mas quando é que, realmente se comete a nulidade de empregar processo comum para caso em que a lei não o admite? Quando se apura que para o caso vertente a lei estabeleceu algum processo especial. O caso ou casos para que o processo especial foi criado pela lei estão designados pelo fim; o fim a que se destina qualquer processo é-nos dado pela respectiva petição inicial, dado que é neste articulado que o autor ou requerente marca a finalidade que se propõe atingir – e marca-a, formulando o pedido que pretende ver acolhido pelo tribunal[10]; assim, o processo comum considera-se mal empregado quando o pedido formulado na petição inicial corresponde precisamente ao fim para o qual a lei estabeleceu um processo especial[11].
Em face deste critério fundamental, é bem de ver que não se verifica, na espécie sujeita, qualquer erro na forma de processo.
A recorrida pediu ao Sr. Juiz de Direito da Póvoa de Varzim que condenasse o réu no cumprimento de uma prestação pecuniária - a entrega de uma dada quantia de espécies pecuniárias - e usou do processo de declaração comum, sumário pelo valor. Um exame ainda que breve do quadro dos processos especiais, mostra que não há nenhum que se ajuste ao caso de que tratamos, que para um tal pedido a lei não estabeleceu nenhum processo especial. Não há que hesitar: o processo de que se deve lançar mão é o comum.
Se considerarmos o fim a que se destina, o processo de inventário é um processo divisório, tem por objectivo a partilha de uma massa de bens pelos respectivos titulares; relacionam-se bens com vista à preparação da partilha (artº 1326 nºs 1 e 3 do CPC)[12].
Portanto, o processo de inventário exerce, em regra, uma função estritamente divisória: dissolve uma universalidade, substituindo-lhe a formação de quinhões ou quotas individuais e concretizadas.
Ora, a recorrida não pediu, na petição inicial a partilha consequente à extinção, por força do divórcio, da comunhão de bens, entre ela e o recorrente, seu ex-cônjuge – a que de, resto, se procede, autonomamente, no competente processo de inventário. Aquela pediu simplesmente, a condenação do recorrido na realização de uma prestação pecuniária, resultante de um acordo complementar do divórcio por mútuo consentimento, concluído entre os então cônjuges.
Se à recorrida não assistir, de harmonia com a lei substantiva aplicável, o direito a reclamar do recorrente a realização daquela prestação, o que isso significa é que a acção não tem fundamento, ou que à autora não assiste o direito que se arroga: o direito de pedir exigir o pagamento das quantias que satisfez a terceiro. A consequência desta verificação é a improcedência da acção – e não a anulação do processo.
É importante e indispensável evitar a confusão entre as questões de fundo e as de forma.
A acção improcede caso se deva concluir que autora não tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação a que, segundo ela, o réu está adstrito – mas o processo comum foi bem aplicado, visto que, para o caso vertente, a lei não estabeleceu nenhum processo especial.
Portanto, no caso a recorrida não errou quanto à forma do processo. Mas ainda que, ex-adverso, se devesse concluir pela existência desse erro, a consequência não seria nunca a anulação de todo o processo – e a verificação da excepção dilatória nominada correspondente – dado que não estamos em presença de nenhum dos casos excepcionais em que a lei associa a esse erro uma consequência tão drástica. Haveria, quando muito, lugar à anulação de actos singulares do processo, de modo a que este se aproximasse, quando possível, da forma estabelecida na lei, ou dos quais tenha resultado uma diminuição das garantias do réu.
O recorrente sustenta que o direito de crédito alegado pela autora – e ao contrário do que esta afirma na petição inicial – se não funda no enriquecimento sem causa.
Estamos inteiramente de acordo.
A doutrina exige, una voce, três requisitos para a verificação do enriquecimento sem causa, que, aliás, se compreendem nitidamente na provisão legal: um enriquecimento; um empobrecimento ou dano; a falta de causa desse enriquecimento (artº 473 nº 1 do Código Civil). A estes requisitos deve adicionar-se um outro: o da existência de um nexo entre o enriquecimento e o dano, dado que se exige que o enriquecimento seja feito à custa de outrem[13].
Por força do carácter da subsidiariedade que a nossa lei – clara mas discutivelmente - imprime ao enriquecimento sine causa, a acção de enriquecimento não pode ser utilizada sempre que sejam disponibilizados ao empobrecido outros meios para se defender (artº 474, 1ª parte, do Código Civil).
Um dos pressupostos do enriquecimento é que seja carecido de causa. Neste ponto, a nossa lei exemplifica diversas hipóteses de ausência de causa, individualizando outras tantas modalidades de enriquecimento (artº 473 nº 2 do Código Civil). Todavia, em geral, a ausência de causa ocorre sempre que falte uma norma jurídica que, a título permissivo ou de obrigação, leve a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, i.e., tolerada ou desejada pelo Direito[14].
Assim, por exemplo, se o enriquecido tiver sido investido num direito subjectivo, faltará a causa quando não tenha ocorrido qualquer forma de constituição ou de transmissão a seu favor do direito em causa.
No entanto, na espécie do recurso, a obrigação a que o recorrente se encontra vinculado não configura uma obrigação de restituição resultante do facto de ser ter locupletado à custa da autora. Trata-se, antes, muito simplesmente, de uma obrigação alimentar.
No conceito de alimentos compreendem-se todas as prestações, seja qual for a sua periodicidade e o seu montante, que uma pessoa tenha de efectuar a outra, com vista a proporcionar-lhe os meios que ela necessita para viver – sem que tais prestações tirem a sua causa duma contraprestação que a segunda tenha de efectuar à primeira ou de danos que haja sofrido por acção que a esta seja imputável.
De harmonia com este conceito constituem, sem dúvida, obrigações alimentares os deveres dos cônjuges e dos ex-cônjuges de prover ao sustento, habitação e vestuário do outro (artºs 1675, 2003 nº 1, 2015 e 2016 do Código Civil).
A prestação não deixa de ser alimentar pelo facto se o devedor, em vez a entregar ao alimentando a satisfazer ao credor deste. Que, por exemplo, o devedor de alimentos entregue ao credor uma quantia para que este pague a renda de casa que habita ou que aquele devedor pague directamente ao senhorio do alimentando essa renda, é uma e mesma coisa: trata-se, sempre de uma prestação de alimentos, destinada, no fundo a fazer viver o credor, no exemplo dado, a prover à habitação do alimentando.
O autor e a ré foram casados um com outro, sendo lícito concluir considerando a data – indicada na certidão que documenta a acta da segunda conferência do processo de divórcio, iniciado como litigioso e concluído por mútuo consentimento - em que o casamento foi contraído, que eram casados sob o regime geral de bens (artºs 1098 e 1108 do Código Civil de 1867).
Da plena comunhão de vida, nascida do casamento, que tem por conteúdo a dádiva profunda e constante de cada um dos cônjuges ao outro, emerge para estes, entre outros, o dever conjugal de assistência (artºs 1577 e 1672 do Código Civil).
O dever de assistência que vincula reciprocamente os cônjuges compreende, no seu perímetro, a obrigação de prestar alimentos (artºs 1675 nº 1, 2009 nº 1 a) e 2015 do CC, na redacção do DL 496/77, de 25 de Novembro).
Por alimentos entende-se, em princípio, tudo o que é necessário não apenas ao sustento, mas também à habitação e vestuário do alimentando (artº 2003 nº 1 do Código Civil).
Importa, contudo, sublinhar que a prestação de alimentos devida ao cônjuge não tem o mesmo objecto que a obrigação alimentar comum. Aquela, ao contrário desta, não se mede pelas estritas necessidades vitais do credor - alimentação, vestuário, habitação - antes visa assegurar o trem de vida económico e social a que tem direito como cônjuge do devedor, i.e., tudo o que integre o nível de vida correspondente à condição económica e social da família[15].
Todavia, o casamento do recorrente e da recorrida foi dissolvido por divórcio (artº 1788 do Código Civil[16]).
O divórcio dissolve o casamento e opera a cessação da generalidade das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, portanto, do dever de assistência que reciprocamente os vinculava (artº 1688 do Código Civil)[17].
Não obstante a dissolução do casamento-contrato, subsistem as relações de afinidade e a possibilidade de manutenção do uso do apelido pelo cônjuge que assim o deseje, desde que devidamente autorizado pelo outro e, bem assim, a obrigação de alimentos (artºs 1602 c), 1677-B e 2016 do Código Civil).
A consagração legal a manutenção destas relações não é mais que um reconhecimento de que o matrimónio não se reconduz, sem mais, ao casamento contrato previsto na lei. O casamento é um contrato outro, que liga profundamente a pessoa dos cônjuges e tem amplos reflexos em relação a terceiros[18].
Não obstante a similitude, não se pode comparar o casamento a qualquer outro contrato. Se faltassem fundamentos – ligados à particular importância social e jurídica do casamento - a este óbice, bastaria a ponderação dos valores em causa. Até porque o vínculo familiar que se constitui na constância do matrimónio não se apagará jamais, designadamente quando existirem filhos. E a própria lei reconhece este princípio, ao prescrever imperativamente a manutenção das relações de afinidade que, mesmo depois da dissolução, continuam a configurar como obstáculo à celebração de casamento entre os cônjuges e os afins.
E é em atenção à tendencial perpetuidade desse vínculo familiar que, não obstante a cessação de todos os deveres conjugais com a dissolução do casamento por divórcio, que se reconhece que o dever de respeito se mantém entre os cônjuges[19], embora desprovido das características intrinsecamente inerentes à condição de casado[20], o mesmo sucedendo com a obrigação de alimentos.
Existe, assim, no tocante à obrigação de prestação de alimentos um fenómeno de ultra actividade patrimonial do vínculo conjugal.
Trata-se, pois, de uma obrigação não autónoma que se constitui na dependência ou decorrência de outra relação jurídica. Estruturalmente o dever de sustentar o ex-cônjuge é uma obrigação – assumindo um dos cônjuges a posição de credor e o outro a de devedor. A sua origem e o seu fundamento radicam, ainda, na situação ou relação jurídica matrimonial. No caso, a decisão judicial que decretou o divórcio por mútuo consentimento entre a recorrida e o recorrente, homologou um acordo complementar desta espécie de divórcio, condicionante do seu decretamento: o acordo extrajudicial de prestação de alimentos (artºs 1775 nº 3, 1778 do Código Civil).
O acordo conjugal sobre a prestação de alimentos é um dos acordos complementares que devem ser homologados pelo juiz - actualmente só no caso de conversão do divórcio litigioso para divórcio por mútuo consentimento - ou pelo conservador do registo civil, para que este seja decretado (artºs 1778 CC, 12 nº 1 b), 14 e 17 nº 1 do DL nº 272/2001, de 13 de Outubro e 272 nº 3 do CR Civil).
Entre o acordo sobre o divórcio e o acordo sobre prestação de alimentos por um cônjuge ao outro uma coligação negocial genética, traduzida numa relação de dependência bilateral. Mas é claro que o acordo sobre o divórcio apenas fica dependente da celebração desse outro acordo e da sua homologação – e não do seu cumprimento ou da sua manutenção[21].
Quanto à natureza jurídica do acordo extrajudicial relativo à obrigação conjugal de alimentos, deve assentar-se no seu carácter essencialmente negocial: ele é expressão da autonomia privada dos cônjuges, apesar da compressão que sofre pela ordem pública da família, que legitima a intervenção do juiz ou do conservador do registo civil na sua conformação[22].
A decisão homologatória representa igualmente um elemento constitutivo do acordo, traduzindo o controlo, pelo juiz ou pelo conservador, a que está sujeito[23].
Por força desse acordo, e da decisão que o homologou, o recorrente ficou judicialmente vinculado a, entre outras obrigações, prestar à recorrente, a título de alimentos, a parte que àquela cabia na obrigação de pagamento das prestações do empréstimo contraído para a aquisição da casa localizada no Porto e as despesas e encargos do respectivo condomínio.
O recorrente, porém, deixou de satisfazer qualquer daquelas prestações. Dado que, por força do princípio da relatividade, aquele acordo e, bem assim, o caso julgado que se formou sobre a decisão judicial que o homologou, não eram oponíveis aos credores terceiros, a recorrente viu-se na contingência, de modo a não incorrer em incumprimento para com aqueles, a satisfazer-lhes os respectivos créditos (artº 406 nº 2 do Código Civil e 671 nº 1 do Código Civil).
Todavia, este acto de cumprimento, deixou naturalmente intacto o direito da recorrida de exigir do recorrente a realização daquelas prestações. Portanto, o facto de que emerge o direito de crédito que a autora alegou na acção – e que a sentença lhe reconheceu – funda-se naquele acordo conjugal e não no enriquecimento sem causa, seja por transferência ou por intervenção, do recorrente.
A acção é, indubitável e simplesmente, uma acção de cumprimento: a autora alegando como causa de pedir o facto de que emerge o seu crédito – o acordo conjugal complementar do divórcio por mútuo consentimento – pede ao tribunal que condene o recorrente, devedor, a cumprir (artº 817 do Código Civil).
E aquele crédito é, como se notou, um crédito alimentar, submetido, por inteiro, aos princípios da relatividade, da actualidade e da alterabilidade da obrigação de alimentos em geral[24]. A decisão – homologatória ou não – transitada em julgado que fixe alimentos ou condene na satisfação de prestações daquele natureza, pode, como reflexo da regra rebus sic stantibus sobre o caso julgado, ser substituída por uma outra quando se altere a situação de facto subjacente (artºs 292 nºs 1 e 2, 671 nº 2 do CPC).
A obrigação alimentícia é uma obrigação duradoura que assenta em dois parâmetros fundamentais - as necessidades económicas do alimentando e as disponibilidades financeiras do devedor (artº 2004 do Código Civil). Qualquer destes dois factores pode alterar-se. Não surpreende, por isso, que a lei permita que o quantitativo da prestação se adapte, a cada momento, à necessidade de quem recebe os alimentos e aos meios de quem tem de prestá-los (artº 2012 do Código Civil).[25]
De resto, o recorrente não se furtará, decerto, à exactidão desta proposição, dado que pediu a extinção desta obrigação – através da acção de cessação da obrigação alimentar.
Alega, todavia, o recorrente que a recorrida deveria ter actuado aquele crédito no inventário a que se procede para partilha do património conjugal comum.
Todavia, este ponto de vista, não toma em devida e boa conta a natureza do património conjugal comum nem a diferença entre compensações entre massas patrimoniais e créditos de um dos cônjuges sobre o outro.
O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela[26].
Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto não duma relação de compropriedade - mas duma propriedade colectiva ou de mão comum[27].
Cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum - no qual participam por metade - posição que a lei tutela (artº 1730 nºs 1 e 2 do CC). Cada cônjuge tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar[28].
As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bens (artºs 1688 e 1795-A do Código Civil).
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (artº 1689 nº 1 do Código Civil).
Cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (artº 1689 nº 1 do Código Civil).
A lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção de divórcio ou mesmo à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, a requerimento do cônjuge inocente ou menos culpado nessa cessação (artº 1789 nº 1 do Código Civil).
Com a retroacção - que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da acção e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha dever ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da acção ou na data em que cessou a coabitação[29] - quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos actos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da acção sobre valores do património comum[30].
Cumpre, por isso, notar que, na espécie sujeita, os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre a recorrida e o recorrente, retroagem à data da proposição da acção de divórcio e não a qualquer outra data, designadamente, por exemplo, à data da cessação da coabitação entre ambos, dado que, não houve, no caso, fixação, na sentença que o decretou, da data em que a coabitação tenha cessado por culpa, exclusiva ou predominante de qualquer dos cônjuges (artºs 1789 nº 1 do Código Civil e 267 nº 1 do CPC).
Problema particularmente espinhoso é o de saber qual a natureza jurídica dessa comunhão no arco temporal compreendido entre a dissolução do regime de bens resultante da extinção da relação matrimonial e a partilha. As relações patrimoniais e pessoais entre os cônjuges cessam com o divórcio – mas mantém-se, até à partilha, a comunhão de bens.
Alguma doutrina e jurisprudência sustentam que a natureza do património conjugal comum só termina com a partilha dos bens comuns[31]. Não falta, contudo, quem sustente a transformação da comunhão conjugal em compropriedade e, consequentemente, a aplicação àquela das normas desta[32].
A indivisão que permanece entre a dissolução do regime de bens e a partilha do património conjugal comum tem, decerto, uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal. Todavia, ao passo que alguma doutrina sustenta que se passa de uma comunhão colectivistica para uma comunhão individualistica, onde cada um dos cônjuges detém um quota abstracta de 50% sobre a totalidade do património comum, ainda que não concreta sobre os bens que a integram[33] - outra aproxima-a da comunhão hereditária[34]: cada ex-cônjuge pode dispor da sua meação bem como pode pedir a separação das meações – coisa que não podia fazer antes do divórcio – mas isso não significa que os bens comuns deixem de ser um património comum e passem a pertencer aos dois cônjuges em compropriedade.
Seja como for – e como já se fez notar - o casamento da reclamante e do reclamado considera-se contraído sob segundo o regime de comunhão geral de bens (artºs 1098 e 1109 do Código Civil de Seabra).
Nos regimes de comunhão, seja da comunhão de adquiridos seja da comunhão geral, a massa dos bens comuns dos cônjuges pode coexistir com outras massas patrimoniais: a dos bens próprios de cada um dos cônjuges (artºs 1721, 1722, 1723, 1724, 1732 e 1733 do CC).
Nos regimes de comunhão – ao contrário do que sucede no regime se separação[35] – podem, portanto, existir patrimónios separados que pertençam ao mesmo cônjuge.
A extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha.
Contudo, antes de se proceder à partilha desse património, depois da separação dos bens próprios de cada um dos cônjuges, caso existam, importa, previamente, proceder à liquidação da comunhão. E é no momento dessa liquidação que se deverá proceder às compensações entre os patrimónios próprios e comuns.
Com efeito, a partilha do casal, não se limita à partilha do património comum, antes se desdobra em várias operações distintas: entrega dos bens próprios; liquidação da comunhão, na qual se inclui o apuramento e o pagamento das dívidas; avaliação e cálculo das compensações e, por fim, a partilha dos bens comuns (artº 1689 nºs 1 a 3 do Código Civil).
Na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento, o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. Uma vez apurada a existência de compensação a efectuar à comunhão, procede-se ao seu pagamento através da imputação do seu valor actualizado na meação do cônjuge devedor, que assim receberá menos nos bens comuns, ou na falta destes, mediante bens próprios do cônjuge devedor de forma a completar a massa comum.
É o que sucede, por exemplo, quando um dos cônjuges, por negócio gratuito, aliena ou onera, sem consentimento do outro, bens móveis comuns de que é administrador. O valor dos bens alienados ou a diminuição do valor dos onerados será levado em conta na sua meação daquele cônjuge, i.e., dá lugar a uma compensação ao património comum (artº 1682 nº 4 do CC). É o que ocorre também no caso de satisfação de divida da responsabilidade de um dos cônjuges com bens comuns (artº 1687 nº 2 do CC).
É verdade que não há uma norma legal que expressamente contemple a espécie sujeita.
Deve, contudo, admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro. Caso contrário, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custa do património de um dos cônjuges ou de um dos cônjuges à custa do património comum[36].
No tocante à responsabilidade por dívidas, nos termos gerais, pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (artº 1697 nºs e 2 do Código Civil). Estas compensações só são exigíveis no momento da partilha dos bens do casal (artº 1697 nº 1 do Código Civil)[37].
Todavia, há que fazer um distinguo entre as - verdadeiras – compensações e os créditos entre os cônjuges: as compensações verificam-se entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges e, portanto, só têm lugar, evidentemente, nos regimes de comunhão; os créditos entre cônjuges são os que existem entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, sem intervenção do património comum, admissíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo[38].
Esta distinção é patente no caso de dívidas contraídas depois da dissolução do casamento, portanto, depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges e antes da liquidação e partilha da comunhão. A dívida surgida depois daquele momento é própria do cônjuge que a contraiu, e, portanto, o caso já não é de compensações – mas de créditos entre cônjuges.
Na espécie do recurso, o crédito – alimentar – da autora foi constituído através de um acordo conjugal concluído – por força da retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio ao momento da proposição da acção – num momento em que as relações patrimoniais entre a recorrida e o recorrente se consideravam cessadas.
Trata-se, portanto, de um crédito de um dos cônjuges sobre o outro – e não de uma compensação. O débito correspondente não integra o passivo comum, como dívida da comunhão a um dos cônjuges, e, portanto, não tem que ser relacionado no processo de inventário, consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.
De resto, a intervenção dos credores no processo de inventário é puramente facultativa. Estes são admitidos a reclamar os seus créditos, ainda que o cabeça-de-casal os não tenha relacionado, mas se não o fizerem, e mesmo que tenham sido citados, não ficam inibidos de exigir o pagamento pelos meios comuns (artº 1331 nº 2 do CPC).
Portanto, o cônjuge que seja titular de um crédito sobre o outro cônjuge não tem, necessariamente, de reclamar o seu crédito no inventário em que se procede à partilha do património conjugal comum, para ser pago pela meação do devedor nesse património: a esse cônjuge é inteiramente livre o recurso aos meios judiciais comuns para obter esse pagamento.
Não é necessário prodigalizar outras considerações para mostrar que, realmente, o recurso não merece provimento.
As custas do recurso serão satisfeitas pelo recorrente, dado que nele sucumbe (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.

10.03.16
Henrique Ataíde Rosa Antunes
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
________________
[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] Ac. RL de 23.03.95, CJ, 95, II, pág. 95 e STJ de 26.09.95 e 16.01.96, CJ, 95, III, pág. 22 e 96, I, pág. 43.
[3] Neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1980, pág. 325.
[4] Ac. do STJ de 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558.
[5] Acs. do STJ de 08.07.87, BMJ nº 369, pág. 481, da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197 e da RL de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, pág. 139 e 140 e Acs. da RP de 06.01.94 e da RL de 03.11.94 e 17.1.91, CJ, 94, I, págs. 197, 94, V, pág. 90 e 91, I., pág. 121, respectivamente.
[7] Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, III, pág. 22 e da RE de 24.11.94, BMJ nº 441, pág. 420.
[8] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[9] Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. 2º, Coimbra Editora, Coimbra, 1945, págs. 470 e 471 e Ac. da RE de 10.03.94, CJ, II, pág. 259.
[10] A determinação da forma de processo legalmente adequada deve ocorrer face ao pedido formulado pelo autor ou requerente na petição inicial; a defesa dos réus ou requeridos, seja a título de impugnação seja a título de excepção, não releva para tal efeito: cfr. Acs. do STJ 03. 01. 81 e 03.11. 81, BMJ nºs 303, pág. 182, e 311, pág. 316, respectivamente.
[11] Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pág. 8.
[12] Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, págs. 355 e 356.
[13] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 423 a 425 e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, CEF, Lisboa, 1996, pág. 858.
[14] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, AAFDL, 1980, págs. 55 e 56.
[15] Antunes Varela, Direito da Família, 5ª ed., I volume, pág. 354 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anot., vol. IV, págs. 265 e 266, V. Serra, RLJ ano 93, pág. 342 e 344 e ano 103, pág. 263 e Ac. STJ de 8.2.00, CJ, STJ, I, pág.74.
[16] Na exposição subsequente será considerado o regime jurídico do divórcio e da obrigação de alimentos entre os cônjuges e os ex-cônjuges, anterior à alteração legislativa decorrente da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, dado que era esse o regime vigente ao tempo em que foi decretado o divórcio entre a recorrente e o recorrido e homologado o acordo conjugal relativo à prestação de alimentos (artº 9 daquele diploma legal).
[17] Miguel Teixeira de Sousa, O Regime Jurídico do Divórcio, 1991, pp. 103 e ss.
[18] Pereira Coelho, RLJ nº 3720, págs. 91 e 93.
[19] Assim, Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 107.
[20] Sobre o dever de respeito, Antunes Varela, cit., págs. 357 e ss.
[21] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, Introdução ao Direito Matrimonial, 2ª edição, pág. 607.
[22] Antunes Varela, Direito da Família, 1º vol., 5ª edição, págs. 514 e 515 e Maria Clara Pereira de Sousa Santiago Sottomayor, Exercício do Poder Paternal Relativamente à Pessoa do Filho Após o Divórcio ou a Separação Judicial de Pessoas e Bens, págs. 171 e 172.
[23] Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, 1965, pág. 514.
[24] Manuel de Andrade, RLJ Ano 77, pág. 226.
[25] Acs. da RL de 26.10.77 e 11.04.69, BMJ nº 272, pág. 240 e JR nº 15, pág. 317. A consequência prática da variabilidade enquanto característica nuclear da obrigação de alimentos, consiste no facto do credor não sofrer o risco da depreciação monetária, o que mostra que aquela obrigação não é em si mesma uma pura obrigação pecuniária mas uma obrigação em espécie - a obrigação de fazer viver o credor. Cfr. Carbonnier, Droit Civil, II, pág. 492.
[26] Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, pág. 397.
[27] Antunes Varela, Direito da Família, pág. 436.
[28] A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de os direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente. Na partilha dos bens destinada a por fim à comunhão, os respectivos titulares apenas têm direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objecto da partilha. O que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património. cf. Pires de Lima, Enciclopédia Verbo, comunhão e Ac. RP de 19 Abril 83, CJ VII, II, pág. 259.
[29] Ac. da RC de 17.04.90, CJ, II, pág. 63.
[30] P. de Lima e A. Varela. CC Anot., vol. IV, pág. 561.
[31] Cristina M. Araújo Dias, Processo de inventário, administração e disposição de bens (conta bancária) e compensações no momento da partilha dos bens do casal – comentário ao acórdão da Relação de Évora de 21.01.02, Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, ano I, nº 2, 2004, pág. 117 e Acs. do STJ de 15.12.98 e da RL de 12.07.01, www.dgsi.pt.
[32] Acs. do STJ de 16.07.71 e Vaz Serra, RLJ Ano 105º, pág. 159, da RL de 30.11.90, www.dgsi.pt, e da RE de 02.02.84, CJ, I, 84, pág., 288.
[33] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação jurídica, vol. I, págs. 225 e 226.
[34] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, cit., pág. 689, Cristina M. Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões, Coimbra, 2009, págs. 925 a 928, e Acs. do STJ de 25.11.98, BMJ nº 481, pág. 492, da RL de 08.07.99, CJ, IV, pág. 94 e da RE de 07.07.92, CJ, IV, pág. 295.
[35] Pire de Lima, RLJ Ano 99º, pág. 172.
[36] Neste sentido, Cristina Araújo Dias, Processo de inventário, administração e disposição de bens (conta bancária) e compensações no momento da partilha dos bens do casal, Comentário ao Ac. RE de 21.1.02, Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 2, 2004, pág. 121 e Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões, Coimbra, 2009, págs. 769 a 792; sobre o problema da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa relativamente a atribuições patrimoniais realizadas na constância do casamento após o divórcio entre os cônjuges, cfr. Luís Manuel Teles de Menezes de Leitão, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, CEF, 1996, págs. 513 a 516.
[37] São duas as razões que explicam que as compensações apenas sejam exigíveis no momento da partilha dos bens do casal. Ponderou-se, por um lado, ser de toda a vantagem adiar para esse momento a exigibilidade das dívidas entre cônjuges, por poder ser fonte de dissensões ou desentendimentos conjugais quando admitida antes disso; observou-se, por outro, que a atribuição imediata de exigibilidade a essas dívidas entre os cônjuges equivaleria a atribuir-lhes uma exigibilidade a todo o tempo, já que entre os cônjuges não pode correr prescrição (artº 318 a) do Código Civil) e dessa maneira colocar-se-ia nas mãos do cônjuge credor um meio fácil de tutelar economicamente o actividade do cônjuge devedor. Cfr. Braga da Cruz, BMJ nº 69, pág. 413.
[38] Foi exactamente por confundir as compensações entre patrimónios diferentes e os créditos entre cônjuges que a Relação de Lisboa concluiu no Ac. de 21.02.02 (CJ, I, pág. 109) - que não pode ser objecto de relacionação, no processo de inventário para partilha do património comum do casal o direito de crédito constituído depois da acção de divórcio da titularidade de cada um dos ex-cônjuges em relação ao outro. No caso, tratava-se de dívida comum no decurso do regime de bens, que foi satisfeita apenas por um dos cônjuges, depois da proposição da acção de divórcio. Nestas condições, aquela dívida integrava o passivo comum, como dívida da comunhão a um dos cônjuges. Não se tratava, portanto, de um crédito dos cônjuges sobre o outro, mas de uma compensação resultante da satisfação, por apenas um dos cônjuges, de dívida contraída no decurso da comunhão.