Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1464/11.2TTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: ACORDO DE EMPRESA
USO DA EMPRESA
Nº do Documento: RP201307011464/11.2TTPRT.P1
Data do Acordão: 07/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: SOCIAL - 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – Se o AE refere que todos os trabalhadores do movimento têm direito a gozar o domingo como dia de descanso, ainda que rotativamente quanto aos menos antigos, então a Ré só terá de proceder à abertura de vagas salvaguardando o descanso rotativo (ao domingo).
II – Os usos da empresa não podem prevalecer sobre os instrumentos de regulamentação coletiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1464/11.2TTPRT.P1
Relator: M. Fernanda Soares – 1129
Adjuntos: Dr. Ferreira da Costa
Dra. Paula Leal de Carvalho


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I

O Sindicato Nacional dos Motoristas – SNM – instaurou, em 13.10.2011, no Tribunal do Trabalho do Porto, acção sob a forma comum contra B….., pedindo a condenação da Ré a) A dar cumprimento ao estipulado na clª31ª, nº4, do AE, nomeadamente, a proceder à abertura, no mínimo, de 136 vagas de descanso fixo ao domingo para os associados, representados pelo Autor, devendo tal processo iniciar-se no prazo máximo de 15 dias; b) A pagar a sanção compulsória no valor diário de € 100,00 por cada dia de atraso em relação ao prazo de 15 dias indicado em a).
Alega o Autor que tendo aderido ao AE, em vigor na Ré – publicado no BTE, 1ªsérie, nº43, de 22.11.1984 e subsequentes alterações – representa todos os seus associados, trabalhadores na Ré. Acontece que os motoristas representados pelo Autor desempenham as suas funções nos vários horários implementados pela Ré, sendo que na organização do período normal de trabalho semanal a Ré criou os seguintes horários de trabalho: «normais» (seguidos, nocturnos e madrugada) e «fora de regras», sendo que um dos horários detém como descanso sempre fixo «o domingo», descanso previstos na clª31ª, nº4 do AE. Contudo, e desde 2003, a Ré não procede à abertura para as vagas de descanso fixos ao domingo, apesar de as mesmas existirem, violando, deste modo, o determinado na referida cláusula e cuja observância o Autor reclama na presente acção.
A Ré contestou invocando a ilegitimidade do Autor para intervir em representação de todos os seus associados trabalhadores na empresa/Ré. Mais alegou que o AE de 1984 não fixa nenhum número de trabalhadores que devam ter o domingo como dia fixo de descanso, bem como dos nºs. 4 e 5 da clª31ª não resulta que a decisão de criação de vagas não esteja na dependência dos critérios de gestão da Ré, sendo que a abertura de vagas de descanso ao domingo terá de ser cotejada com a obrigação emergente do nº2 da clª31ª. Refere ainda que pelo facto de não proceder à abertura de vagas de descanso ao domingo desde 2003, deve prevalecer tal procedimento em homenagem aos usos da empresa e à boa fé.
O Autor respondeu pugnando pela sua legitimidade.
No despacho saneador o Mmº. Juiz a quo conheceu da invocada excepção de ilegitimidade do Autor, julgando-a improcedente.
Designado dia para a audiência de discussão e julgamento, e após a sua realização, consignou-se a matéria de facto dada como provada, com referências à matéria alegada nos articulados.
De seguida foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente com a condenação da Ré a dar cumprimento ao estipulado na clª31ª, nº4 do AE, procedendo, no prazo máximo de 15 dias, à abertura de vagas – das vagas que então se verificarem de acordo com os critérios estabelecidos e a limitação decorrente da observância da clª31ª, nº3 do AE – de descanso fixo ao domingo, e a pagar uma sanção pecuniária compulsória no valor diário de € 100,00 por cada dia de atraso.
A Ré veio recorrer pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que a absolva dos pedidos, concluindo do seguinte modo:
1. O Tribunal a quo declarou que o Autor é parte ilegítima para por si demandar em representação de todos os trabalhadores a recorrente, considerando que apenas seria parte legítima para representar os 32 trabalhadores que o autorizaram a intervir na acção, e no que concerne ao direito/interesse de cada um.
2. A sentença apenas poderia condenar a recorrente na abertura de vagas especificamente para aqueles associados em concreto e não para a generalidade dos restantes trabalhadores como faz.
3. O artigo 661º, nº1 do CPC estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, vício que fere a decisão de nulidade – artigo 668º, nº1 al. e) do CPC.
4. Sempre se dirá que a sentença não tem em consideração a realidade concreta da recorrente nem os usos que foram adoptados pelas partes em 2003.
5. Importa ponderar o que sentença desconsiderou, e conforme provado ficou nos autos, apenas os trabalhadores do movimento, com maior antiguidade na categoria, podem vir a ter atribuídos os descansos fixos ao domingo, conforme estabelecido no AE.
6. A cumprir-se o decidido, isto é, caso a recorrente abra vagas para descanso fixo ao domingo para os trabalhadores do movimento – motoristas e técnicos de receita e condução – menos possibilidades têm os restantes trabalhadores do movimento, com menor antiguidade na categoria, de poderem usufruir de descansos naquele mesmo dia da semana.
7. Como ficou provado nos autos, a recorrente assegura em permanência, 24 horas por dia e 365 dias por ano, o transporte público rodoviário de passageiros, devendo existir uma cuidada organização dos descansos semanais, por ser inviável que todos os trabalhadores do movimento usufruam do descanso semanal fixo ao domingo.
8. Se o número de trabalhadores do movimento com descanso fixo ao domingo for elevado fica colocada em causa a possibilidade da recorrente poder facultar com a frequência desejada aos outros trabalhadores do movimento o descanso naquele dia da semana que, por tradição, é um dos dias de descanso preferido, pondo em causa o disposto nos demais números da clª31ª do AE.
9. Esta situação agrava-se com a redução de motoristas que se verificou no seio da Ré – em 2003 eram 1250 e em 2011 rondava os 920 – impede a recorrente consiga abrir vagas para descanso ao domingo, sem prejudicar decisivamente o funcionamento regular da empresa e do serviço que presta, e cumprir o estabelecido nos demais números da referida clª31ª do AE.
10. Conforme ficou provado nos autos por confissão do Autor – e a sentença recorrida omite – a recorrente desde há muito tempo tem concedido aos seus trabalhadores a possibilidade de descansar de forma fixa aos sábados, sendo este outro dos dias de descanso preferido pelo trabalhadores.
11. Tal possibilidade apesar de não estar especificadamente prevista no AE constitui actualmente um «uso» da empresa que não pode, nem deve ser desconsiderado.
12. Tal facto é de extrema relevância para o caso em apreço desde logo porque o espírito que preside a existência da clª31ª, nº4 é o de que os trabalhadores tivessem um dia de descanso fixo, ao fim de cada semana, por forma a que esse período de repouso coincida com o habitual descanso familiar.
13. Esta a prática que mais se aproxima do sentido da norma, já que é a leitura mais consentânea com a unidade do sistema jurídico e as condições de tempo em que se está a considerar a situação em apreço, sendo que parece mesmo tratar-se da consagração da solução mais acertada e adequada ao pensamento das partes quando quiseram elaborar a referida cláusula no seu todo – artigo 9º do C. Civil.
14. Como ficou provado nos autos, até 1999 o descanso rotativo ao domingo era atribuído de 7 em 7 semanas conforme estabelece o AE na clª31ª, nº3; a partir de 2003 a recorrente tem vindo a conceder aos seus trabalhadores do movimento, com descanso rotativo (distribuído por 24 grupos e 24 semanas), em média, e ao longo das 24 semanas, o descanso ao domingo de 4 em 4 semanas, dando assim cumprimento ao disposto no nº2 da clª31ª do AE.
15. Esta opção, consagra o espírito daquilo que resulta da articulação dos diversos números da clª31ª do AE entre si, razão pela qual foi comummente aceite na empresa com o acordo de um maior número de trabalhadores e por, em concreto, permitir dar cumprimento às restantes cláusulas do AE, tendo-se assim tornado um «uso» da recorrente.
16. A sentença recorrida desconsidera assim a questão dos usos laborais que tão relevante é no caso e resulta dos factos provados – a acção entrou em Outubro de 2011 e esta prática decorre desde 2003.
17. Na verdade, o uso laboral tem que levar a uma interpretação ajustada da clª.31ª nº4 e nº5 do AE de acordo com as regras constantes do artigo 9º do C. Civil.
18. A prática sempre seguida, sem excepções, demonstra que actualmente a vontade real das partes que subscreveram o AE não vai no sentido que a sentença recorrida preconiza, pelo que não pode ser aceite a interpretação meramente literal do regime constante dos nº4 e nº5 da clª31ª do AE, como o Autor tenta fazer e a sentença acolheu.
19. Desta forma entende a recorrente estar a dar cumprimento à clª31ª do AE adaptada às circunstâncias de hoje, não o conseguindo fazer no caso de ser obrigada a dar cumprimento à sentença recorrida.
20. A sentença fez errada aplicação da lei violando o disposto nos artigos 661º, nº1 do CPC e clª31ª do AE.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Admitido o recurso e corridos os vistos cumpre decidir.
* * *
II
Matéria dada como provada e a ter em conta no presente recurso.
1. Os motoristas ora representados pelo Autor desempenham as suas funções nos vários horários implementados pela Ré na sua organização de trabalho.
2. Na organização do período normal de trabalho semanal a Ré, no que concerne ao pessoal do movimento (motoristas serviço público e TRC), implementou os seguintes horários de trabalho: «normais» (seguidos, nocturnos e madrugada), e «fora de regras».
3. O período normal de trabalho semanal do pessoal do movimento está distribuído por seis dias.
4. Na organização dos dias de descanso semanal do pessoal do movimento, desde há mais de 30 anos que a Ré implementou dois tipos: o rotativo e o fixo.
5. O descanso fixo reporta-se aos dias de sábado (sabadeiros) e domingo (domingueiros).
6. Para efeitos de gozo do dia de descanso semanal dos motoristas em horário rotativo (descansos rotativos), a Ré distribui-os por grupos e por semanas, sendo que cada «semana» corresponde a uma semana de calendário, de segunda a domingo.
7. De modo que o dia de descanso semanal deste pessoal (dos descansos rotativos) vai rodando todas as semanas em função do respectivo calendário, coincidindo de 4 em 4 semanas com o domingo.
8. A título de exemplo, que no ano de 2011, o pessoal do movimento do grupo IROT, na semana nº10 que corresponde às semanas de calendário de 10 a 16 de Janeiro, 27 a 3 de Julho e de 12 a 18 de Dezembro, tem o seu descanso semanal ao domingo, variando nas três semanas seguintes e retomando, à quarta, o dia de descanso ao domingo e assim sucessivamente.
9. Tal qual como nos restantes grupos.
10. O pessoal do movimento que tem o descanso fixo ao sábado (sabadeiros) integra também os referidos grupos, usufruindo, de igual modo, do descanso ao domingo de 4 em 4 semanas.
11. Os motoristas «domingueiros» têm o descanso sempre fixo aos domingos.
12. Sempre foi critério da atribuição do descanso fixo ao domingo a antiguidade na categoria.
13. A Ré manteve uma organização de horário de serviço semanal em que chegaram a estar atribuídos mais de 300 descansos fixos aos domingos.
14. A quantidade destes descansos sempre foi aferida em função da média da soma do número de serviços de semana a sábado, a que se subtraía o número de serviços ao domingo (conforme exemplificado em 24 da petição inicial).
15. Tal número ia flutuando, anualmente, em razão dos serviços e do acerto das vagas que, entretanto, se iam abrindo por força das situações referidas nas als. a) a e) do nº5 da clª31ª do AE.
16. Para o efeito, a Ré publicitava, anualmente, o número de vagas a preencher e para as quais se candidatavam os motoristas interessados naquele descanso fixo (ao domingo), atribuindo-se cada uma das vagas em função do critério da antiguidade na categoria.
17. No ano de 2003, a Ré concedeu descansos fixos ao domingo, em duas ocasiões, uma em Março e outra em Outubro.
18. Nesse ano, o número de descansos domingueiros fixou-se em cerca de 260.
19. Entre 2003 a 2011 cerca de 136 motoristas com descanso fixo ao domingo reformaram-se, a maior parte, e ou mudaram de categoria ou foram reconvertidos profissionalmente.
20. Desde aquela data – 2003 – nunca mais a Ré abriu o acesso às vagas para descansos fixos ao domingo.
21. Actualmente – 2011 – o número de motoristas que têm descanso fixo ao domingo (domingueiros) é de 114.
22. A Ré, desde há anos, que autoriza a troca de descanso da semana para os domingos a todos os motoristas que as solicitem.
23. Os serviços a assegurar pelos trabalhadores do movimento da Ré podem ser de dois tipos: A) Serviços Normais, que podem ser diurnos, nocturnos – realizados entre as 18 horas e as 02 horas – e madrugadas – realizados entre as 24 horas e até cerca das 06 horas. Os serviços normais podem ser: i) Seguidos, sem interrupção do período de trabalho diário, ou com interrupção do período de trabalho diário que pode ir no máximo até uma hora; ii) Em duas etapas, com interrupção do período de trabalho diário entre 1 e 2 horas. Nos serviços normais, a duração da interrupção do trabalho diário não pode ser superior a 2 horas e a média semanal de trabalho corresponde a 40 horas. B) Fora de Regras – são serviços realizados em duas etapas, uma de manhã e outra à tarde. Estes serviços visam reforçar a oferta de serviço de transporte por parte da Ré nos períodos de ponta, ou seja nos períodos em há mais procura de transporte público por parte dos seus utentes. O período de trabalho diário dos serviços fora de regras é interrompido por um intervalo superior a 2 e não superior a 7 horas. A duração do trabalho efectuado em regime de fora de regras corresponde a uma média mensal de 38 horas.
24. No que concerne à organização dos descansos semanais do pessoal do movimento a Ré tem trabalhadores, com maior antiguidade na categoria, a descansarem sempre ao domingo, sendo que os restantes têm um descanso rotativo, distribuídos por 24 grupos e por 24 semanas.
25. Até 1999 o descanso rotativo ao domingo era atribuído de 7 em 7 semanas, e a partir desse ano até 2003 de 5 em 5 semanas. Todavia, desde 2003 a Ré tem vindo a conceder aos seus trabalhadores do movimento descanso rotativo ao domingo de 4 em 4 semanas.
26. A Ré assegura (aos seus trabalhadores) em todos os dias da semana e do ano o transporte público rodoviário de passageiros.
27. Em 2003 o número de motoristas rondava os 1250, e em 2011 o número de motoristas ronda os 920.
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III
Questões em apreciação.
1. Da nulidade da sentença – artigo 668º, nº1 do CPC.
2. O desigual tratamento dos trabalhadores em função da aplicação do disposto na clª34ª, nº4 do AE.
3. Dos usos da empresa – sua prevalência.
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IV
Da nulidade da sentença.
A apelante veio dizer que a sentença é nula por ter condenado em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido – artigo 668º, nº1 al. e) do CPC.
Segundo o disposto no artigo 77º, nº1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) “A arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”.
Tem sido entendimento unânime do STJ que a arguição de nulidades da sentença, se ocorrer apenas nas alegações de recurso, o Tribunal ad quem não pode delas conhecer, por extemporaneidade invocatória – acórdão do STJ de 20.01.2010 em www.dgsi.pt.
Ora, a recorrente omitiu, por completo, a arguição de nulidades da sentença no requerimento de interposição de recurso, e só o fez nas respectivas alegações, a determinar que se julgue tal arguição extemporânea, e como tal não se conhece da mesma [no requerimento de interposição de recurso que dirigiu ao Tribunal a quo, a apelante apenas referiu que «notificada da douta sentença, vem dela interpor recurso que é de apelação, a subir imediatamente nestes autos e com efeito devolutivo (cf. arts.79 e seguintes do Código do Processo de Trabalho) vem, apresentar as suas ALEGAÇÕES»].
* * *
V
O desigual tratamento dos trabalhadores em função da aplicação do disposto na clª34ª, nº4 do AE.
Diz-se na sentença recorrida o seguinte: (…) “ afigura-se que o sentido a retirar da citada cláusula [clª31ª, nº4] é o de que as partes que subscreveram o AE quiseram que, sempre que – e na medida em que – ocorressem vagas que possibilitassem a atribuição de horários com descanso fixo ao domingo (“domingueiros” cf. pontos 1 a 5, 19 e 24 da lista dos factos provados) tais vagas fossem preenchidas, isto é, que fosse possibilitado (de acordo com os critérios estabelecidos, cf. pontos 12, 14, 15 e 16 da lista dos factos provados e também nº5 da cláusula 31ª do AE) o acesso dos motoristas/trabalhadores do movimento a tais horários. E analisada a questão quanto à vertente da interpretação da norma ínsita à citada cláusula, segundo os cânones de interpretação estabelecidos no artigo 9º do CC, chegamos a idêntica conclusão: partindo da sua letra, e presumindo que os seus autores se exprimiram de forma adequada, a norma prescreve a obrigatoriedade – traduzida na medida em que as vagas no referido descanso se forem dando – de conceder aos trabalhadores do movimento, tendo preferência os mais antigos, (vagas com) horários com descanso fixo ao domingo. Atente-se, aliás, que mesmo que se tenha em consideração as pertinentes actualizações do AE – e em particular as alterações que ocorreram quanto à frequência com que os motoristas que têm descanso rotativo ao domingo o gozam, tendo havido variação no sentido desse gozo ocorrer em intervalo sempre mais curto – cf. ponto 25 da matéria de facto e cláusula 31ª, nº3 do AE – a ré nada de concreto logrou provar quanto ao “diálogo” e “negociações” a que alude em 48 da contestação e que contenderia com a concreta problemática aqui em análise, sendo de enfatizar, antes, que tendo as partes (Sindicato e ré) acordado alterar a passagem do gozo do descanso alternado ao domingo para uma frequência primeiro das 7 em 7 semanas para 5 em 5 semanas, e depois para 4 em 4 semanas, deixaram intocado o nº4 da falada cláusula. Ora, a vingar a tese da ré, far-se-ia letra morta deste número, alcançando efeito prático semelhante àquele que resultaria da revogação pelas partes desse clausulado” (…).
A apelante refere que a seguir-se o ordenado na sentença recorrida menos possibilidades têm os restantes trabalhadores do movimento, com menor antiguidade na categoria, de poderem usufruir de descansos ao domingo, e que se o número de trabalhadores do movimento com descanso fixo ao domingo for elevado fica colocada em causa a possibilidade da empresa poder facultar com a frequências desejada aos outros trabalhadores do movimento o descanso naquele dia, sendo que esta situação agrava-se com a redução de motoristas. Vejamos então.
Sob a epígrafe “Descanso semanal e complementar” a clª31ª do AE publicado no BTE, 1ªsérie, nº43, de 22.11.1984 prescreve, na parte que para aqui interessa, o seguinte: “ 1. Os trabalhadores têm direito a um descanso semanal e a um descanso complementar, que serão, em princípio, o domingo e o sábado, respectivamente. 2. Se o número de interessados permitir elaborar detalhes em conformidade, os trabalhadores do movimento terão o descanso e o descanso complementar em dias seguidos, coincidindo o descanso com o domingo pelo menos uma vez de 4 em 4 semanas. 3. Quando for impossível dar cumprimento ao disposto no número anterior, e sem prejuízo das regalias já existentes para alguns trabalhadores, o descanso coincidirá com o domingo pelo menos de 7 em 7 semanas. 4. Os trabalhadores do movimento pela sua antiguidade na categoria terão acesso ao descanso fixo ao domingo, na medida em que as vagas no referido descanso se forem dando. 5. As vagas referidas no número anterior serão consideradas do seguinte modo: a) Passagem à situação de reforma; b) Mudança de categoria; c) Reconversão profissional; d) Alargamento do quadro profissional; e) Alargamento da escala” (…) [deixa-se sublinhado o nº4 por ser o que está aqui em causa].
Da conjugação dos vários números da citada cláusula decorre que os trabalhadores do movimento devem gozar o dia de descanso ao domingo, na pior das hipóteses, de 7 em 7 semanas, sendo que os mais antigos na categoria devem descansar sempre ao domingo, ou seja, quanto a estes trabalhadores está afastado o descanso rotativo ao domingo.
Em face da matéria de facto dada como provada – nº 19 e 20 – inexistem dúvidas de que a Ré/apelante não tem procedido à abertura de vagas a que alude o nº4 e o nº5 da clª31ª do AE [Entre 2003 a 2011 cerca de 136 motoristas com descanso fixo ao domingo reformaram-se, a maior parte, e ou mudaram de categoria ou foram reconvertidos profissionalmente. Desde aquela data – 2003 – nunca mais a Ré abriu o acesso às vagas para descansos fixos ao domingo].
Ora, a Ré/apelante refere que se proceder à abertura de vagas, então, os demais trabalhadores do movimento, com menor antiguidade, ficam prejudicados podendo nem sequer gozar o domingo, como dia de descanso, de 4 em 4 semanas.
Salvo o devido respeito, a afirmação da recorrente não está minimamente demonstrada factualmente.
Por outras palavras: não está provado que a abertura de vagas a que alude o nº4 da clª31ª do AE seja impeditiva do cumprimento do descanso ao domingo, em regime de rotatividade, de 4 em 4 semanas, como igualmente não está provado que o cumprimento pela empresa da citada cláusula, seu nº4, poderá inviabilizar a prestação do serviço de transporte público de passageiros ao domingo.
Por isso, não se vislumbra onde está o invocado «tratamento desigual» a que a apelante alude.
De qualquer modo se acrescenta o seguinte.
O AE não indica qual o número de trabalhadores a considerar para efeitos do nº4 da clª31ª já que apenas se refere aos trabalhadores do movimento mais antigos na categoria.
E se a empresa está obrigada a conjugar a abertura de vagas para a atribuição de descanso fixo ao domingo com os descansos rotativos aos domingos dos trabalhadores do movimento com menos antiguidade – como aliás decorre da conjugação do disposto nos nºs.3 e 4 da referida cláusula – não resulta [por não demonstrado] que essa conjugação/harmonização seja impeditiva daquela abertura. Aliás, e se o AE refere que todos os trabalhadores do movimento têm direito a gozar o domingo como dia de descanso, ainda que rotativamente, relativamente aos menos antigos, então a Ré só terá de proceder à abertura de vagas salvaguardando o descanso rotativo (ao domingo).
Deste modo, e não se tendo provado as «razões» apresentadas pela Ré para o não cumprimento do nº4 da clª31ª do AE não merece a sentença recorrida qualquer reparo ao ter ordenado que a empresa observasse a referida cláusula.
* * *
VI
Dos usos da empresa – sua prevalência.
Na sentença recorrida diz-se ainda o seguinte: (…) “não está em causa qualquer uso laboral, eventualmente decorrente de nova implementação ou novo esquema de horários de trabalho, v.g. quanto à previsão de descansos fixos ao domingo, antes e tão só a violação do que a propósito estabelece o AE” (…).
A apelante refere que instituiu a possibilidade de os trabalhadores descansarem, de forma fixa, aos sábados – matéria de facto constante do nº10 – e tal constitui um «uso» da empresa que não pode ser desconsiderado atendendo que o espírito que preside ao nº4 da clª31ª do AE é o facto de se conceder um dia de descanso fixo, ao fim de cada semana, por forma a que esse período de repouso coincida com o descanso familiar. E tal prática deve ser acolhida em face do disposto no artigo 3º, nº1 do C. Civil e do artigo 1º do C. do Trabalho. Que dizer?
Está provado que na organização dos dias de descanso semanal do pessoal do movimento, desde há mais de 30 anos que a Ré implementou dois tipos: o rotativo e o fixo e que o descanso fixo reporta-se aos dias de sábado (sabadeiros) e domingo (domingueiros) – nº4 e nº5 da matéria de facto. Provou-se, igualmente, que o pessoal do movimento que tem o descanso fixo ao sábado usufrui também do descanso ao domingo de 4 em 4 semanas – nº10 da matéria de facto – e ainda que desde 2003 a Ré tem vindo a conceder aos seus trabalhadores do movimento descanso rotativo ao domingo de 4 em 4 semanas – nº25 da matéria de facto.
Salvo o devido respeito, o procedimento instituído pela Ré não «afasta» o cumprimento do determinado na clª31ª, nº4 do AE, que só se aplica aos trabalhadores do movimento com mais antiguidade.
Acresce dizer que em face do teor da clª31ª nº1, o descanso complementar deve ocorrer, por regra, ao sábado, e de preferência, deve anteceder o dia de descanso semanal, o domingo (nº2 da mesma cláusula), pelo que o descanso fixo ao sábado, na falta de outros elementos de facto mais esclarecedores, parece coincidir antes com a atribuição de um descanso complementar fixo ao sábado [e não com um descanso semanal fixo ao domingo que pelos «usos» foi alargado para os sábados].
Com efeito, e não se podendo ignorar o preceituado no nº1 e no nº2 da clª31ª, importava que a Ré tivesse esclarecido, o que não fez, de que forma é que os seus trabalhadores gozam o descanso complementar, incluindo aqueles a que ela apelida de «sabadeiros». Não esquecemos que em causa está tão só o descanso semanal. No entanto, a clª31ª não se reporta tão só a este último mas também ao descanso complementar, o qual, por regra, deve ser gozado ao sábado, e de preferência, imediatamente antes do gozo do descanso semanal ao domingo.
A argumentação da Ré – de que com a não abertura de vagas para efeitos do disposto no nº4 do clª31ª do AE tem possibilitado que a maioria dos trabalhadores do movimento tenham um dia de descanso fixo, ao fim de cada semana – permite-nos concluir que ela «afastou» desde o ano de 2003, a aplicação do nº4 da clª31ª do AE [nºs. 19 e 20 da matéria de facto].
E será que a prática seguida pela Ré deve prevalecer sobre o AE, concretamente sobre o que determina o nº4 da clª31ª do AE?
Segundo o disposto no artigo 1º do CT/2009 “O contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa fé” [o artigo 1º do CT/2003 tem idêntica redacção].
Maria do Rosário Palma Ramalho defende que “dado o seu papel eminentemente integrador do conteúdo do contrato de trabalho, os usos laborais não devem prevalecer sobre disposição contratual expressa em contrário; na mesma linha não prevalecem também os usos sobre disposição do regulamento interno com conteúdo negocial, porque esta pressupõe que os trabalhadores sobre ela se tenham podido pronunciado, podendo tê-la afastado; e, por fim, podem os usos ser afastados pelos instrumentos convencionais de regulamentação colectiva do trabalho, já que estes correspondem a uma auto regulamentação laboral. Já no que respeita à relação dos usos com a lei, parece decorrer da formulação da norma que o uso pode afastar normas legais supletivas, mas, naturalmente, não valerá se contrariar uma norma imperativa” (…) – Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, 2ªedição, páginas 235/236.
No mesmo sentido são os acórdãos do STJ de 5.7.2007 e de 26.09.07 – em www.dgsi.pt – constando do sumário deste último o seguinte: “I. Os usos da empresa constituem fonte de direito, não podendo, contudo, prevalecer sobre normas legais de regulamentação do trabalho, instrumentos de regulamentação colectiva, ou princípios da boa fé”.
Igualmente Bernardo da Gama Lobo Xavier, com a colaboração de P. Furtado Martins e A. Nunes de Carvalho, defendem que “Os usos valem na medida em que não contrariem o princípio da boa fé e desde que não sejam afastados pela vontade das partes. Com efeito, não pode (até por força de imperativos constitucionais) atribuir-se aos usos uma vinculatividade que colida (ou comprima radicalmente) a liberdade contratual. Sendo sem dúvida exteriores ao contrato de trabalho, parece insustentável que os usos se apliquem ao contrato individual onde este estabeleça coisa diferente. Em síntese, os usos serão atendíveis quando não contrários aos princípios da boa fé e dentro da prevalência da autonomia negocial” (…) “Entendemos, no entanto, que os usos podem e devem constituir fonte de Direito quando associados e legitimados pela autonomia colectiva, que é uma base de legitimação normativa aceite pela Constituição (artº56º, nº4)” – Iniciação ao Direito do Trabalho, 3ªedição, página 180.
E finalmente, em comentário ao artigo 1º do CT, António Monteiro Fernandes, conclui pela relevância e carácter vinculante dos usos se verificadas as seguintes condições: a generalidade, a fixidez e a constância, dependendo, ainda, “da sua conformidade com as disposições imperativas da lei e da convenção colectiva eventualmente aplicável. Uma prática ilegal, mesmo que generalizada e repetida, não pode ascender à dignidade que lhe é reconhecida pelo artigo 1º do CT” – Direito do Trabalho, 13ªedição, página 117.
Posto isto, avancemos para o caso concreto.
Como já referimos, a Ré/apelante, desde 2003, não procede à abertura de vagas em conformidade com o determinado no nº4 e no nº5 da clª31ª do AE. A Ré não logrou provar que a observância do estabelecido na citada cláusula conduz à preterição e à impossibilidade de cumprimento do determinado no nº2 e no nº3 da mesma cláusula.
Ora, se assim é, necessariamente se conclui que a prática assumida pela Ré colide com o determinado na referida cláusula, concretamente com os seus nºs. 4 e 5. Tal colisão é impeditiva da valorização da invocada prática, do «uso».
Acresce dizer que sendo a clª31ª uma cláusula normativa – artigos 541º al. e) do CT/2003 e 492º, nº2, al. e) do CT/2009 – não pode ser «substituída» pelo alegado «uso» a não ser que a convenção colectiva, concretamente o AE, a acolha e a incorpore no seu texto, o que parece não ter acontecido [não se provou que de algum modo, a partir de 2003, a Ré tentou chegar a acordo com o Autor no que respeita à alteração da clª31ª].
Assim, e por tais razões, não há que valorar ou dar prevalência ao invocado «uso».
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Termos em que se julga a apelação improcedente e se confirma a decisão recorrida.
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Custas da apelação a cargo da apelante.
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Porto, 01/07/2013
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
Paula Alexandra Pinheiro G. Leal S.M. de Carvalho