Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22/09.6GAPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: QUESTÃO DE DIREITO
IDENTIFICAÇÃO DE SUSPEITO
CONDUÇÃO DE SUSPEITO AO POSTO POLICIAL
Nº do Documento: RP2013010922/09.6GAPNF.P1
Data do Acordão: 01/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As expressões “detida” e “detenção” usadas nos factos provados de uma sentença ao descrever a ação do arguido que disse à demandante que estava detida, a conduziu à viatura policial e a empurrou para dentro daquele traduzem matéria de facto (e não matéria de direito).
II - Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial se 1) sobre ela recaírem fundadas suspeitas da prática de crimes, ou 2) contra ela pender processo de extradição ou expulsão, ou 3) tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional, ou 4) tenha sido emitido contra si mandado de detenção.
III - Só pode ser conduzido ao posto policial, para identificação, quem é suspeito da prática de um crime.
IV - A Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro [que estabeleceu a obrigatoriedade do porte de documento de identificação] foi revogada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto [que aprovou a reforma do processo penal e a nova redação do art. 250.º, do CPP].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 22/09.6GAPNF.P1
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum colectivo, antes indicados, do 1º Juízo Criminal de Paredes, acusado pelo MP, foi o arguido B…, casado, guarda da Guarda Nacional Republicana, nascido em 01/10/1979, filho de C… e de D…, natural …, Porto, e residente na Rua …, Entrada ., .º Dto., Penafiel, julgado pela prática, em autoria material, de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, nºs 1 e 2, do Código Penal, em concurso efectivo com um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, nº 4, do Código Penal, e com um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. a), e nº 3, do Código Penal.

E… deduziu PIC contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação e até efectivo e integral pagamento.

Efectuado o julgamento, foi proferido acórdão, que assim decidiu:
a) Absolveu o arguido B… da prática do crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. a), e nº 3, do Código Penal, de que se encontrava acusado;
b) Condenou o arguido B…, pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, nº 4, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, declarada suspensa n a sua execução por igual período;
c) E condenou-o ainda a pagar à Demandante a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a notificação do arguido para contestar o pedido cível e até integral pagamento, à taxa de 4%, ou outra que legalmente venha a estar em vigor.

Não conformado, o arguido interpôs recurso e extraiu da sua motivação as seguintes conclusões:
1. As expressões “deteria”, “detenção”, “detida” e “detenção ilegal”, constantes dos factos 8, 10, 17 e 20 dos factos provados são conceitos de direito ou conclusivos. De acordo com o disposto no artigo 4º do CPP, 646º, n.º 4 do CPC e 254º do CPP, devem considerar-se não escritas.
2. Tomando por base o depoimento da Testemunha F… (15.34.31 a 16.22.14 – minuto 9.35 a 10.10) deve ser dado como não provado o segmento “mas que alguém lhos poderia trazer àquele local” do facto 9 dos Factos Provados.
3. Não é do senso comum que um agente policial face à prática de uma contraordenação estradal não possa conduzir o infractor ao posto policial mais próximo para identificação. Trata-se de uma questão controversa quer na Doutrina quer na Jurisprudência, cujo conhecimento não é acessível ao cidadão comum tão pouco a um soldado da GNR. Deve o Facto 18 dos Factos Provados ser dado como não provado pois não é susceptível de prova com base em presunções naturais e regras do senso comum.
4. Tomando por base o depoimento da Demandante E… (11.18.27 a 12.36.11, minutos 22.00 a 22.20, 25.50 a 26.52, 27.05 a 27.56 e 28.35 a 28.42), deve ser dado como não provado o Facto 19 dos Factos Provados.
5. Tomando por base os depoimentos do Arguido/Recorrente (10.02.49 a 11.17.29, minutos 10.04 a 10.38) e da Testemunha F… (15.34.21 a 16.22.14, minuto 20.40 a 2 1.05) o segmento “para justificar a detenção da Demandante dos Factos 17 e 20 dos Factos Provados deve ser dado como não provado.
6. Em lado nenhum ficou provado que o Arguido/Recorrente tivesse consciência de estar a praticar um acto ilegal. O Facto 22 dos Factos Provados é insusceptível de ser provado com base no senso comum e em presunções maturais. Deve por isso ser dado como não provado o segmento “sabendo que a sua conduta era proibida por Lei”.
7. Alterando-se as respostas à matéria de facto acima referida deve o Arguido/Recorrente ser absolvido do crime em que foi condenado bem corno do pedido de indemnização cível.
QUANTO AO DIREITO
8. O CPP, na sua sistemática, regula as medidas cautelares de Polícia (capítulo II, artigos 248 a 253 do Livro IV) em capítulo distinto da Detenção (capítulo III, art.ºs 254 a 261).
9. O artigo 250, n° 6 do CPP enquadra a condução ao Posto Policial para identificação no leque das medidas cautelares de Polícia.
10. As medidas cautelares de polícia são medidas cautelares provisórias e por isso antecipatórias e preparatórias de posterior investigação judiciária.
11. O acompanhamento coactivo ao posto policial mais próximo, para efeitos de identificação do cidadão que não tenha sido devidamente identificado ou tenha recusado a identificar-se, não reveste natureza de privação de liberdade para efeitos do artigo 27, n° 2 e 3 da Constituição, precisamente porque não atinge um grau ou intensidade de constrição à liberdade individual que legitime tal qualificação.
12. Trata-se tão só de uma medida de polícia de natureza coactiva, para obrigar ao cumprimento da obrigação de identificação, medida essa que comprime e restringe a liberdade individual, mas sem atingir um grau de intensidade tal que autorize a qualificá-la como medida de privação de liberdade.
13. Não é pelo facto da conduta do cidadão a identificar configurar contra-ordenação ou crime que a sua condução ao posto policial para identificação deixa de ser considerada como uma medida cautelar de polícia.
14. Independentemente da situação que motivou a condução ao Posto poder ser considerada como crime ou contra-ordenação, a intenção primeira e última do Arguido/Recorrente ao actuar foi sempre a de através de um mecanismo processual (condução ao Posto) executar uma medida cautelar de Polícia (a identificação) e não privar a condutora/Demandante da sua liberdade.
15. Não se verifica, por isso, o elemento típico do crime p. e p. no artigo 369, n.º 4 do C.P “medida privativa da liberdade”.
Por outro lado,
16. O disposto no artigo 369, n.º 4 do C.P. tem de ser conjugado com o disposto no n.º 1 do mesmo artigo ou seja que “O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar”, isto é a medida privativa da liberdade a que alude o n.º 4 do artigo 369º, n.º 4 do C.P. tem de ocorrer já no âmbito de um processo (no caso de contra-ordenação).
17. Como refere Germano M. da Silva, os actos de identificação não são ainda actos processuais, sendo que corno resulta dos autos que a identificação da condutora visava precisamente iniciar tal processo e por esta razão também não se verifica a factualidade típica do artigo 369, n.º 4 do C.P.
Acresce que,
18. Da conjugação das disposições previstas nos artigos 2 e 3 da Lei 5/95 de 21 de Fevereiro, 48-A e 49 do Dec-Lei 433/82, de 27 de Outubro, 28º da Lei 53/2008 de 29 de Agosto e 250º do CPP, mesmo que por mera hipótese se considerasse que o Arguido/ Recorrente executou medida privativa da liberdade, tal execução sempre teria que ser considerada executada de forma legal.
19. Estando em causa uma contra-ordenação ao telemóvel, nos termos do artigo 49 do Dec-Lei 433/82 de 27 de Outubro, o arguido/Recorrente poderia exigir ao agente da contra-ordenação a respectiva identificação.
20. E ao dispor o n.º 2 artigo 48°-A do dito Decreto-Lei n° 433/82 que “Na medida em que o contrário não resulte desta lei, as autoridades policiais têm direitos e deveres equivalentes aos que têm em matéria criminal” não sendo a condutora portadora de nenhum documento de identificação, nem tendo feito menção de comunicar com uma pessoa que apresentasse os seus documentos de identificação ou manifestando vontade de se deslocar, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação ou finalmente manifestar a vontade de ser reconhecida a sua identidade por uma pessoa identificada que garantisse a veracidade dos dados pessoais indicados pela condutora, nos termos do n.º 6 do art. 250 do CPP estava o Arguido/Recorrente legitimado a poder conduzir a condutora ao posto policial mais próximo e compeli-la a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas.
21. O não acatamento de ordens de identificação, implica o cometimento do crime de desobediência do artigo 348° n.º 1 b) do Código Penal e logo legitimam o procedimento de identificação previsto no art. 250, n.º 6 do CPP pelo que mesmo admitindo por hipótese que o Arguido/Recorrente executou uma medida privativa de liberdade a mesma sempre teria sido executada de forma legal tendo desta forma violado o acórdão recorrido o disposto nas normas conjugadas dos artigos art.ºs 2 e 3 da Lei 5/95, de 21 de Fevereiro, art.ºs 48º-A e 49º do Decreto-Lei n.º 433/82, art.º 28º da Lei n.º 53/2008 de 29 de Agosto (Lei segurança interna) e 250º do CPP.
22. Falha por isso também um dos aspectos da factualidade típica do art.º 369 n.º4 do CP ou seja a execução “de forma ilegal”.
23. Pelas razões de facto e de direito atrás explanadas deve também o Arguido/Recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi condenado bem como do pedido de indemnização cível em que foi condenado.
Não obstante,
24. Se por hipótese se viesse a entender ter incorrido o Arguido/Recorrente em responsabilidade civil, o montante indemnizatório (€2.500,00) arbitrado à Demandante a título de indemnização sempre seria manifestamente exagerado. Violou por isso o acórdão recorrido o disposto nas disposições conjugadas dos art.ºs 494º, 496º, n.ºs l e 3, 570º e 572 do CC.
25. TERMOS EM QUE, revogando-se o douto Acórdão recorrido e proferindo-se Acórdão que acolha as Conclusões precedentes, SE FARÁ JUSTIÇA

Respondeu o MP com as seguintes conclusões:
1. O Tribunal “a quo” fez correcta apreciação dos factos, enquadrou-os legalmente de forma acertada, aplicando o direito vigente;
2. Não se verifica erro na apreciação da prova, mostrando-se, em consequência, inviolado o disposto no nº 2 do artº 410º do CPP;
3. A sentença recorrida fez correcta apreciação da prova produzida em julgamento, com estrita obediência à Lei, fazendo apelo à regra da livre apreciação da prova e com recurso às regras de experiência comum – artº 127º CPP –;
4. Foi correctamente julgada a matéria de facto sendo que nenhuma das provas produzidas impunha decisão diversa da que sufragou a decisão recorrida;
5. Foram criticamente analisados todos os depoimentos prestados em audiência, sendo certo que tal facto implica uma consciência da veracidade de cada um deles;
6. Também operou o Tribunal “a quo” uma correcta subsunção jurídica e aplicou acertadamente o direito aos factos provados,
SENDO QUE
7. Contém todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime para condenar – como condenou – o recorrente pela prática do mesmo –
8. Não se mostram violados os normativos enunciados na motivação de recurso ou quaisquer outros.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA, como é seu timbre, emitiu douto e extenso parecer, do qual se respigam as seguintes passagens:
Como se vê, o recorrente começa por censurar a decisão de facto pretendendo que expressões como “deteria”, “detenção”, “detida” e “detenção ilegal” são conclusivas ou conceitos de direito, a excluir, por isso mesmo, da factualidade provada.
E invoca os artigos 254º e segs. do C. P. Penal, como se aí fossemos encontrar a definição legal de “deter” ou “detenção”. Mas não é assim. O que nesses preceitos legais encontramos é a definição das “finalidades da detenção” (artigo 254°) e dos procedimentos a adoptar pelas autoridades judiciárias e pelos órgãos de polícia criminal, em caso de detenção: “detenção em flagrante delito” (artigo 255°), “flagrante delito” (artigo 256°), “detenção fora de flagrante delito” (artigo 257º), “mandados de detenção” (artigo 258°), “dever de comunicação” (artigo 259º), “condições gerais de efectivação” (artigo 260º) e “libertação imediata do detido” (artigo 261°).
Nada, portanto, que nos remeta para a delimitação legal das palavras “deter” ou “detenção”, o que nos abre já o caminho à demonstração de que nenhuma razão assiste ao recorrente, como resultará, cremos, das breves considerações que se seguem. (…)
O que vale por dizer que, num caso como o presente, as expressões questionadas pelo recorrente correspondem a factos, não se verificando, portanto, a invocada anomalia.
Mas, como já se entrevê do que acaba de ser dito, importará, ainda, considerar o seguinte: o único critério aceitável para debater as questões, de facto ou de direito, que uma determinada sentença possa suscitar é começar por tomar em conta os factos que se apuraram no julgamento e considerá-los na sua globalidade e não aos pedaços.
Ora, se tivermos em conta a globalidade da factualidade apurada, dúvidas não se suscitarão que os factos descritos sob o ponto 11 - “acto contínuo [à “voz de detenção” e à afirmação de que “estava detida”] o arguido cruzou as mãos da demandante atrás das costas e conduziu-a à viatura policial e, para a colocar no interior desse veículo, baixou-lhe a cabeça com uma mão e empurrou-a para dentro daquele” - assim como os descritos sob ponto 13 - “transportou a demandante para o Posto ... sob ponto 19 - “privou a demandante da sua liberdade...” preenchem o conceito de “detenção” em termos tais que se toma patente, evidente, na apreensão de um homem médio, o sentido com que, no contexto da decisão, vem utilizada a palavra “deter” e outras dela derivadas.
Estamos, com efeito, perante expressões que, no contexto da sentença, traduzem uma determinada realidade de facto, cuja existência ou inexistência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica, sendo, pois, expressões de facto que não de direito. É por isso que vemos o recorrente a centrar o essencial da sua argumentação, não em suposto erro jurídico - que invoca de passagem e por mera referência para os artigos 254° e segs. do C. P. Penal -, mas na tentativa de convencer, através da sua versão dos factos, que não “deteve” a lesada, antes se limitou a conduzi-la ao Posto da GNR para identificação. (…)
Na verdade, examinada a fundamentação da sentença e tidos em conta os depoimentos prestados na audiência de julgamento pelo arguido, pela lesada E… e pelas testemunhas presenciais F… (oficial da PSP), G… (colega de trabalho da demandante e interveniente no acidente) e H… (cabo da GNR que integrava a patrulha juntamente com o arguido), e ainda I… (militar da GNR que estava de serviço no Posto de …), e conjugados tais depoimentos com a prova documental disponível, designadamente, o “auto de identificação” de fls. 55 e a informação de fls. 92 (da qual resulta que o arguido não elaborou auto de notícia de contraordenação), não se suscitam dúvidas sobre a justeza da decisão condenatória.
Discorda a recorrente, convocando em seu favor os mesmíssimos depoimentos tidos em conta pelo tribunal a quo, a que vimos de fazer alusão, em particular os depoimentos da testemunha F… e da lesada E….
Essa é, porém, uma versão que, se, por um lado - como a fundamentação da sentença evidencia - colide com o acervo probatório, documental e testemunhal, tido em conta pelo tribunal a quo, por outro, não colhe apoio em qualquer outro elemento de prova, nem, aliás, o recorrente o invoca.
A prova invocada pelo recorrente não se revela, pois, suficientemente consistente para pôr em crise o complexo probatório com base no qual o tribunal a quo formou a sua convicção. (…)
Particularmente no que respeita ao elemento subjectivo do tipo incriminador em causa, o dolo, será de considerar, como doutamente se decidiu no Ac. do STJ, de 08 de Outubro de 2008, proc. n.º 07P031, disponível em www.dgsi, que, «enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente - dolo genérico - contra direito. Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.° 1 deste dispositivo (art.369° do CP); é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, deforma tal que se afirme uma negação de justiça».
Ora, no caso em apreço, face à factualidade provada, está para além de qualquer dúvida razoável que o recorrente tomou a opção de agir contra direito, no sentido de que, sem fundamento válido - e mesmo depois de ter sido alertado de que não podia “fazer aquilo”, por pessoa que estava no local e se identificou como oficial da PSP -, procedeu à detenção, com isso violando de forma terminante as funções que lhe competiam, enquanto Guarda da GNR e órgão de polícia criminal, e negando à lesada a mais elementar justeza de actuação que era, em concreto, exigível. (…)
Entende o recorrente - e por aqui começamos - que o disposto no mencionado normativo [n.º 4] (do art.º 369º do C. Penal) “tem de ser conjugado com o disposto no n.º 1 do mesmo artigo ... ou seja a execução da medida privativa de liberdade a que alude o n.º 4 do artigo terá de ocorrer já no âmbito de um processo (no caso contraordenacional) já instaurado” (conclusões 16 e 17).
Não nos parece que tenha razão.
Desde logo, decorre claramente da letra do preceito que, para a privação da liberdade por acto praticado no âmbito de processo, dispõe o n° 3 do preceito em causa. O n° 4 não exige já a existência de processo, sob pena de haver de ser tido por preceito redundante e inútil.
A interpretação pretendida pelo recorrente não colhe, portanto, a mínima sustentação na letra da lei. (…)
Improcedem, portanto, nesta parte, as conclusões do recurso.
Assim como improcede toda a demais argumentação desenvolvida pelo recorrente no sentido de pôr em causa a justeza da subsunção jurídico-penal levada a cabo pelo tribunal a quo, seja invocando o artigo 250º do C. Penal, seja invocando a Lei 5/95, de 21 de Fevereiro, ou os artigos 48°-A e 49°, da Lei 433/82, de 27 de Outubro, ou o artigo 28°, da Lei n° 53/2008, de 29 de Agosto.
Na verdade, tal argumentação assenta em dois pressupostos fundamentais: o de que o recorrente não deteve a lesada, mas apenas a conduziu ao posto para identificação, e o de que a lesada cometeu uma contraordenação presenciada pelo recorrente.
Ora, nem um nem outro desses pressupostos se verifica.
No que respeita ao primeiro pressuposto - o recorrente não deteve a lesada mas apenas a conduziu ao Posto para identificação - como nos parece evidente, a sua verificação está inteiramente depende da almejada alteração da matéria de facto, pelo que, sendo essa alteração inviável, como vimos acima, e sendo, portanto, de considerar fixada a matéria de facto, tal como decidido em 1ª instância, necessariamente soçobrará a sua pretensão.
Relativamente ao segundo pressuposto - prática, pela lesada, de uma contraordenação presenciada pela recorrente - como nos parece inequívoco, é insustentável tal afirmação.
Da matéria de facto provada, com efeito, não se extrai a existência de qualquer contraordenação (nem de qualquer crime), que possa legitimar a conduta do recorrente, ou sequer suscitar dúvidas quanto à sua actuação contra direito.
Mas, deve dizer-se, ainda que contraordenação tivesse existido - isto é, ainda que se admita que o recorrente viu a lesada a conduzir um veículo automóvel ao mesmo tempo que falava ao telemóvel - mesmo assim, não poderia deixar de ser criminalmente punível e altamente censurável a sua conduta.
A verdade é que o recorrente - dando de barato, repete-se, que ele presenciou a referida contraordenação - omitiu completamente as regras legais atinentes ao levantamento de auto de notícia por contraordenação estradal, previstas no artigo 170º, do C. da Estrada.
Como não poderia deixar de ser do seu conhecimento - ou, se assim não fosse, não reuniria condições mínimas para o exercício das funções que lhe estão cometidas enquanto Guarda da GNR, com competência, designadamente, para fiscalizar o trânsito automóvel - o recorrente deveria ter levantado auto de notícia, nos termos do n° 5 do referido artigo 170°, a que se seguiriam os procedimentos adequados com vista à identificação do contraventor e respectivo sancionamento.
Não o tendo feito, o recorrente, não só omitiu o dever legal de lavrar o auto de notícia, em momento oportuno, como, para além disso, actuou por conta própria, desenvolvendo diligências fora de qualquer processo, com gravíssima violação das suas funções.
E jamais poderá, validamente, invocar em seu favor o preceituado no artigo 250°, do C. P. Penal, relativamente à identificação de suspeito e pedido de informações - nem sequer a Lei 5/95, de 21 de Fevereiro (que terá sido tacitamente revogada pelo citado artigo 250º CPP, como se sustenta no Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º 1/2008, publicado no DR n.° 8, Série II de 2008-01-11, pg. 1524) - uma vez que a aplicação de tais normativos exige corno requisito que a pessoa a identificar seja suspeita da prática de crime.
Assim como de nada vale ao recorrente acenar em sua defesa com uma suposta recusa de identificação por parte da lesada e o consequente cometimento de um eventual crime de desobediência.
Com efeito, se é certo que o recorrente invocou essa recusa para dar ordem de detenção à lesada (ponto 10 dos factos provados) é, no entanto, inquestionável, face à matéria de facto provada, que tal recusa nunca se verificou. Pelo contrário, a lesada dispôs-se a contactar, de imediato, alguém que traria ao local os seus documentos pessoais de identificação, como, aliás, viria a suceder posteriormente, já no Posto da GNR.
Onde está, então, a recusa susceptível de justificar a ordem de detenção? (…)
Enfim, seja qual for o ângulo ou a perspectiva em que se olhe a conduta do recorrente, em nenhum ponto a mesma se mostra conforme ao direito ou, de alguma forma, justificável.
Pelo exposto, emitimos parecer no sentido de que, na improcedência do recurso, é de confirmar o acórdão impugnado.

Colhidos os vitos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal Colectivo considerou provada a seguinte factualidade:
1. O arguido tem a patente de Guarda de Infantaria da Guarda Nacional Republicana, força de segurança na qual foi incorporado no dia 4 de Novembro de 2002;
2. À data de 29 de Julho de 2009 o arguido prestava serviço no Posto Territorial de …, do Comando Territorial do Porto;
3. No dia 29 de Julho de 2009, cerca das 20h00, a demandante E…, quando circulava na …, deparou-se com um acidente de viação que ocorrera junto ao quartel dos Bombeiros Voluntários …, constatando que uma das intervenientes naquele era pessoa das suas relações, pelo que estacionou o seu veículo e aproximou-se para falar com aquela pessoa e ver se necessitava de alguma ajuda;
4. Entretanto, para tomar conta da ocorrência relativa ao acidente, chegou ao local uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, que se fazia transportar num veículo ligeiro de passageiros caracterizado daquela força de segurança, da qual faziam parte o arguido e o cabo H…, que se encontravam fardados e no exercício das suas funções;
5. Cerca das 20h20, quando a demandante E… já havia conversado com a interveniente no acidente que era sua conhecida e se preparava para abandonar o local, o arguido, apercebendo-se de tal facto, ordenou-lhe que não se ausentasse dali para a identificar e autuar;
6. A demandante ficou surpresa e perguntou ao arguido porque motivo iria ser autuada, ao que este respondeu que a tinha visto, nesse mesmo dia, na Rua …, em …, a conduzir um veículo automóvel e ao mesmo tempo a falar ao telemóvel;
7. A demandante argumentou que tal não era possível, porque durante aquela tarde encontrava-se a trabalhar no seu local de trabalho, sito na empresa “J…”, em …, …;
8. O arguido insistiu com a demandante para que se identificasse, o que fez em tom de voz ríspido e, como esta afirmou que não tinha consigo os seus documentos de identificação, acrescentou que ela se estava a recusar a identificar e que se ela se recusasse a identificar que a deteria;
9. A demandante retorquiu que não estava a recusar identificar-se, apenas não tinha consigo os documentos de identificação, o que reafirmou, mas que alguém lhos poderia trazer àquele local;
10. Na sequência desta resposta e reafirmando que a demandante estava a recusar identificar-se, o arguido deu-lhe voz de detenção, dizendo-lhe que estava detida;
11. Acto contínuo, o arguido cruzou as mãos da demandante atrás das costas e conduziu-a à viatura policial e, para a colocar no interior desse veículo, baixou-lhe a cabeça com uma mão e empurrou-a para dentro daquele;
12. Estes factos foram presenciados por diversas pessoas que se encontravam no local, incluindo um oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública, que naquele momento se encontrava à civil e fora de serviço, o qual se aproximou do arguido e, colocando-lhe a mão no ombro, disse-lhe que tivesse calma, ao que este, em reacção, virou-se, disse-lhe se também queria “ir lá para dentro” e empurrou-o, para o afastar de si, sem lhe provocar lesões;
13. Nesse momento, aquele identificou-se como oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública e disse ao arguido que não podia “fazer aquilo”, ao que este nada respondeu, virou as costas e dirigiu-se para o veículo, onde entrou;
14. Após, o arguido transportou a demandante para o Posto da Guarda Nacional Republicana de …;
15. Já no Posto da Guarda Nacional Republicana de …, onde se encontravam o arguido e a demandante e onde entretanto chegou o oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública, quando se encontravam os três a falar numa sala, este disse ao arguido estar convencido de que o procedimento adoptado por este arguido “não era correcto”;
16. No decurso dessa conversa, o arguido disse à demandante que, se ela não apresentasse queixa do sucedido, ele não a autuava, e que ia apenas elaborar o auto de identificação para justificar a ida da demandante ao Posto;
17. Assim, para justificar a detenção da demandante e a sua ida ao Posto da Guarda Nacional Republicana de …, o arguido elaborou o auto de identificação cuja cópia certificada se encontra a fls. 55 dos autos, no qual fez constar, no espaço destinado ao “Motivo”, “Não ser portador de qualquer doc. de Identificação quando circulava na via Pública” e, no espaço destinado a “Observações”, “Finda a identificação foi restituída à liberdade, sem mais expediente”;
18. O arguido sabia que por via da invocada prática de uma contra-ordenação não podia deter a demandante para identificação;
19. Ao proceder da forma descrita, executou medida que privou a demandante da sua liberdade, durante cerca de uma hora, o que sabia ser proibido e punido por lei;
20. O arguido elaborou o auto de identificação referido no ponto 17 para justificar a detenção da demandante e a condução da mesma ao Posto da Guarda Nacional Republicana para ser identificada e assim evitar eventuais consequências de uma “detenção ilegal” daquela;
21. O arguido não levantou auto de contra-ordenação relativamente à situação aludida no ponto 6;
22. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
23. O arguido, em dia não exactamente apurado, após os factos relatados, elaborou o denominado “Relatório de Ocorrência” cuja cópia certificada consta de fls. 56 a 58, que entregou ao Sr. Comandante do Posto de … da Guarda Nacional Republicana;
Exclusivamente do pedido de indemnização cível:
24. A demandante é considerada, pelas pessoas que com ela convivem, uma pessoa educada, séria, respeitadora e respeitada;
25. Devido à forma como ocorreram os factos relatados do dia 29 de Julho de 2009, a demandante sofreu e sentiu vergonha, angústia e tristeza;
26. Pela circunstância de tais factos terem sido comentados nas redondezas ainda durante algum tempo após terem sucedido, a demandante sentiu desgosto, consternação e tristeza;
27. Ainda hoje a demandante sente constrangimento e tristeza quando fala do sucedido;
Mais se provou:
28. O arguido provém de um agregado familiar constituído pelos pais e três filhos, com socioeconómica e cultural humilde, cujo rendimento provinha do exercício da profissão de motorista por parte do pai, mas com uma dinâmica familiar promotora de vinculações afectivas e um modelo educativo veiculador de regras e valores conformes ao socialmente convencionado;
29. Integrou a escolaridade aos seis anos de idade, concluiu o 12º ano aos dezassete anos de idade e enquadrou-se profissionalmente como auxiliar educativo na escola …, em Paços de Ferreira, onde permaneceu aproximadamente dois anos;
30. Concorreu à Câmara Municipal …, onde integrou os serviços de limpeza até ao ano de 2002;
31. Entretanto abriu concurso para formação de forças da G.N.R., candidatou-se e foi aferido;
32. Após obter a formação necessária, a qual ocorreu em Aveiro, pelo período de nove meses, foi colocado como estagiário na Brigada de Trânsito do Porto, onde permaneceu três meses, passando após para o Posto Territorial de …, em Sintra, entre 2003 e 2004;
33. Ainda em 2004 foi colocado como patrulheiro em …, aproximando-se da sua terra de origem, e, no final do ano de 2005, foi colocado, nas mesmas funções, no posto de …, onde se mantém até à data, exercendo funções de policiamento geral;
34. À data dos factos, o arguido vivia na cidade de Penafiel, situação que se mantém, com o cônjuge, num apartamento de tipologia T3, com boas condições habitacionais, inserido em meio urbano, sem problemáticas sociais específicas;
35. O arguido auferia, situação que hoje se mantém, um salário oscilando entre € 850,00 e € 1.000,00, enquanto a esposa exercia e exerce a actividade de educadora social na K…, auferindo € 850,00;
36. Com despesas mensais despendem o valor aproximado de € 420,00, respeitante à prestação do empréstimo para compra da habitação, € 160,00 de mensalidade do infantário que a filha frequenta e uma média de € 100,00 nas restantes despesas mensais fixas;
37. O casal tem uma filha com 24 meses de idade, para a qual direccionam os seus principais interesses, exercendo uma parentalidade adequada;
38. No meio social de origem o arguido é bem referenciado, até pela imagem positiva do agregado de origem, conotado com elementos responsáveis e empenhados no trabalho, correspondendo de um modo geral às exigências sociais normativas;
39. O arguido é também percepcionado, no seu meio actual de residência, como detentor de uma imagem convencional e ajustada ao nível do relacionamento interpessoal, não lhe sendo conhecidas atitudes hostis ou intrusivas;
40. Em termos profissionais é avaliado nas funções que exerce como uma pessoa empenhada, responsável e ajustada no relacionamento com os seus superiores e colegas de profissão;
41. No relatório social elaborado pela D.G.R.S., relativamente ao arguido, no capítulo intitulado “Impacto da situação jurídico-penal”, diz-se: “O presente processo é causador de algum desgaste no próprio e tem impacto ao nível da sua carreira, na medida em que desencadeou um processo disciplinar, ficando suspenso por vinte dias com perda de 1/3 do seu vencimento. É a primeira vez que se confronta com o sistema judicial e por isso mostra-se apreensivo e angustiado.
Relativamente ao processo, o próprio posiciona-se criticamente, avaliando que no exercício da profissão estão sujeitos a estados de tensão e conflitos que exigem um esforço de assertividade, nem sempre bem conseguido.
Da parte da família tem tido todo o apoio, bem como da estrutura profissional que integra, onde continua a beneficiar da confiança dos superiores.
Apesar do presente processo, o seu quotidiano não sofreu alterações.
Se alguma responsabilidade lhe couber nos presentes autos, mostra-se recetivo ao cumprimento de uma medida reparadora”;
42. E na conclusão do mesmo relatório social, diz-se: “O processo de socialização de B… decorreu num ambiente familiar favorável, que lhe permitiu estabelecer laços de vinculação gratificantes e adquirir um referencial normativo conforme às expectativas sociais vigentes.
Adquiriu competências pessoais e sociais ajustadas, após abandonar a escolaridade canalizou o seu investimento para o trabalho, aceitando tarefas menos prestigiantes mas continuando a investir num projeto de vida conforme às suas motivações pessoais e que lhe desse maior qualidade de vida.
Constituiu agregado autónomo, o qual se caracteriza igualmente pela estabilidade e boa interação com os seus elementos.
No meio profissional e social beneficia de uma imagem positiva, não lhe sendo conhecidos registos comportamentais globalmente desajustados.
Face ao presente processo apresenta sentido crítico e reconhece que havia formas mais assertivas de lidar com as situações.
Face ao exposto, somos de parecer que, numa eventual condenação, o arguido reúne condições pessoais e sociais, se devidamente canalizadas, para orientar a sua vida de forma normativa, não sendo indiferente ao presente processo que por si só tem um efeito contentor, já que se trata de uma pessoa capaz de autocrítica e de repensar os comportamentos.”;
43. O arguido não tem antecedentes criminais.

Considerou o Tribunal Colectivo que, com interesse para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
a. que nas circunstâncias referidas no ponto 3 foi para ver quem eram as pessoas envolvidas que a demandante estacionou o seu veículo e aproximou-se;
b. que foi só após ter parado e ao chegar ao chegar ao local que a demandante verificou que uma das intervenientes no sinistro era pessoa das suas relações;
c. que foi apenas quando a demandante já havia conversado com essa sua conhecida e se preparava para abandonar o local que chegou ao local a patrulha da Guarda Nacional Republicana;
d. que foi ao chegar ao local e ao ver ali a demandante que o arguido lhe ordenou que não se ausentasse dali como referido no ponto 5;
e. que o arguido, aquando do referido no ponto 6, disse especificamente à demandante que a tinha visto cerca das 18h30;
f. que a resposta da demandante fosse por referência exactamente a essa mesma hora;
g. que ao ver contrariada a sua versão o arguido enervou-se, reafirmou que o que havia dito era verdade e perguntou-lhe, em tom de voz ríspido, se a ofendida estava a brincar com ele, tendo-lhe esta respondido em tom firme que não;
h. que foi logo ao insistir com a demandante para se identificar que o arguido logo acrescentou que, caso não o fizesse, a deteria;
i. que aquando do referido no ponto 9, o que a demandante disse foi que iria contactar com (ou telefonar a) alguém que lhe traria rapidamente os seus documentos pessoais àquele local;
j. que aquando do referido no ponto 11 e para além do que aí consta, o arguido com uma das mãos agarrou a demandante por um dos braços e puxou-o para trás das costas e manietou-a e, no momento em que a colocava no interior do veículo, com a outra mão segurou-lhe pela cabeça e fez força para baixo;
k. que no momento referido no ponto 12 o oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública alertou o arguido para o facto de estar a cometer “uma ilegalidade”;
l. que o arguido primeiro empurrou esse oficial de polícia e só depois lhe perguntou se também queria “ir lá para dentro”;
m. que na ocasião referida no ponto 15 o que o oficial de polícia disse ao arguido foi que “estava a cometer um acto ilícito”;
n. que, para além do que consta do ponto 20, o arguido elaborou o auto de identificação referido no ponto 17 com o intuito de eximir-se da sua responsabilidade criminal e disciplinar;
o. que foi contra a verdade dos factos que o arguido fez constar o referido no ponto 17 no auto de identificação;
p. que no “Relatório de Ocorrência” referido no ponto 23 o arguido afirma ter presenciado a ofendida a utilizar telemóvel durante a prática da condução, o que teria ocorrido na Rua …, em …;
q. que tal “Relatório” foi elaborado no dia 30/08/2009;
r. que o arguido, ao não levantar o auto de contra-ordenação, omitiu a prática de um acto que lhe estava imposto por lei, visto a função pública de agente de autoridade e os deveres que lhe são inerentes;
s. que, para além do que consta dos pontos 16 e 21, foi para beneficiar a ofendida, como contrapartida de a ter privado ilegalmente da liberdade, e para que esta não apresentasse queixa contra si que o arguido não elaborou o auto de contra-ordenação;
t. que o arguido sabia que, por ter presenciado a prática de uma contra-ordenação por parte de uma pessoa certa e determinada, cuja identidade bem conhecia, estava legalmente obrigado a lavrar auto de contra-ordenação e que a omissão deste dever, de forma livre e consciente, o fazia incorrer em responsabilidade criminal;
u. que quando elaborou o auto de identificação, o arguido agiu com o propósito de dele fazer constar factos falsos e inexactos;
v. que ao redigir tal auto de identificação sabia o arguido que abalava a confiança e a credibilidade na autenticidade e genuinidade de tal documento autêntico e que, dessa forma, atentava contra a fé pública que o mesmo merece para a generalidade das pessoas, causando assim prejuízo ao Estado.

O Tribunal fundamentou a sua convicção pela forma seguinte:
Formou-se esta com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, nos seguintes termos:
- no que resultou da conjugação do teor da informação de fls. 92 (que dá conta de que o arguido não elaborou auto de notícia de contra-ordenação respeitante à situação que o levou a abordar a demandante) e do auto de identificação cuja cópia certificada consta de fls. 55, assinado pelo arguido e pela demandante, onde se dá conta da detenção desta e da sua restituição à liberdade, elaborado no dia 29/07/2009, pelas 21h30, cujo teor não foi colocado em causa por nenhum dos signatários, com as declarações da demandante E…, que descreveu todos os factos que consigo se passaram, desde que chegou ao local até deixar o Posto da G.N.R., passando pela abordagem que lhe foi feita pelo arguido, as palavras que trocaram, a sua detenção e colocação na viatura da patrulha, a condução ao Posto, a conversa ocorrida no Posto, a elaboração do auto de identificação pelo arguido e a sua assinatura do mesmo e restituição à liberdade, fazendo-o de forma que ao tribunal se afigurou, não obstante a sua qualidade de ofendida e demandante, sincera, coerente e consentânea com a realidade, até em face do que resultou dos depoimentos das testemunhas que a seguir se vão referir e dos dados objectivos decorrentes do auto de identificação referido, com o depoimento da testemunha F…, o oficial de polícia da P.S.P. referido nos pontos 12, 13 e 15 da matéria de facto, que estava no local porque aí tinha sido chamado por uma das intervenientes no acidente (a mesma conhecida da demandante), que é sua irmã, tendo assistido à chegada da patrulha da G.N.R. e à abordagem da demandante por parte do arguido e a tudo o que se sucedeu a partir daí, ao que deu atenção naturalmente, tendo em conta a sua condição também de membro de uma força policial, e que até interveio quando presenciou a detenção da demandante por parte do arguido, precisamente por ter presente que tal detenção não era possível no caso e disso quis chamar a atenção ao arguido, relatando a forma como este reagiu à sua intervenção e explicando o motivo pelo qual se dirigiu ao Posto, pretendendo reclamar do comportamento do arguido perante si, do que desistiu porque este lhe deu explicações, que ele compreendeu e relevou, e porque participou na conversa entre o arguido e a demandante, dando conta do que foi dito na mesma por cada um dos intervenientes, depoimento este que se mostrou objectivo, sincero e desapaixonado, com a testemunha a pretender apenas relatar a verdade dos acontecimentos que presenciou e dos que consigo directamente se passaram, dentro daquilo de que se recordava, e sem pretender beneficiar ou prejudicar qualquer uma das partes, manifestando até alguma condescendência com a actuação do arguido no que a si próprio diz respeito, por compreender que os elementos das forças de segurança, como ambos são, actuam muitas vezes sujeitos a situações de stress e sem saberem as intenções de pessoas que se lhes dirijam quando não as conhecem e antes de saberem quem são (e daí ter desculpado o empurrão e as palavras que o arguido lhe dirigiu, nos termos relatados no ponto 12, quando não sabiam quem era a testemunha nem a intenção com que lhe colocou a mão no ombro), com o depoimento da testemunha G…, colega de trabalho da demandante e da interveniente no acidente, ao qual assistiu, porque seguia num veículo atrás do desta, motivo pelo qual se encontrava também no local, tendo assistido à abordagem da demandante pelo arguido, ao decorrer da subsequente troca de palavras entre ambos e à detenção da demandante e sua condução à viatura da G.N.R., dando conta, de acordo com aquilo que se recordava e de forma que se afigurou sincera, coerente e consentânea com a realidade, do que viu e ouviu, e também com as próprias declarações do arguido, que, embora apresentando uma descrição da situação mais favorável à sua posição, dizendo que apenas a demandante estava exaltada e que ele sempre lhe falou com calma e lhe explicou tudo o que pôde explicar (porque ela é que não deixava explicar mais, por estar muito nervosa), inclusivamente perguntando se havia alguém que a pudesse identificar no local (o que foi negado quer pela demandante, quer pelas restantes testemunhas já referidas, cujos depoimentos, como já se disse, mereceram a credibilidade do tribunal), sempre admitiu que pretendeu que a demandante se identificasse, alegando tê-la visto anteriormente a conduzir um veículo e em simultâneo a falar ao telemóvel, e que lhe deu voz de detenção, afirmando que o fez por ela se ter recusado a identificar, que a conduziu, nessa condição de detida, ao Posto da G.N.R., onde depois se dirigiu a mãe da demandante com a identificação desta, que esteve a conversar numa sala com a demandante e o oficial de polícia da P.S.P., que no local interviera pretendendo que ele não conduzisse a demandante ao Posto, e que elaborou o auto de identificação, sendo o mesmo assinado por si e por aquela, após o que a restituiu à liberdade.
Não se consideraram as declarações no arguido na parte restante, em que não se afiguraram confirmadas pelos depoimentos das duas testemunhas já referidas e pelas declarações da demandante, não se mostrando consentâneas com a realidade, tendo em conta, também, que as regras da experiência nos dizem que não é normal que, mesmo um elemento de uma força policial, que está habituado a lidar com situações anormais e de agressividade ou pelo menos exaltação por parte de outras pessoas, mantenha sempre a calma até ao fim de uma diligência, quando é confrontado com uma pessoa, que aborda dizendo-lhe que cometeu um acto ilícito, e esta se sente injustiçada, estando convencida de que não há motivo para ser assim abordada, questionando aquela abordagem e argumentando para se defender, para mais em local público e estando várias pessoas a assistir – não deixando de ser normal e habitual que o arguido pretenda transmitir uma versão dos factos que lhe seja menos desfavorável, até por eventualmente ter noção do que foi (e não devia ter sido) a sua actuação, por forma a desculpabilizar-se, ele próprio, e a convencer-se, a si próprio, de que a sua conduta tenha sido menos grave do que efectivamente foi.
Do mesmo modo e pelos mesmos motivos (excepto a parte respeitante à auto-desculpabilização do arguido), não se consideraram os depoimentos das testemunhas L… e M…, intervenientes no acidente, seguindo no outro veículo que não aquele onde seguia a colega da demandante, motivo pelo qual também estiveram no local e se aperceberam de que algo se passava entre o arguido e a demandante, mas sem saberem qual o motivo e o assunto, cujos depoimentos (prestados na segunda sessão da audiência de julgamento, depois de ouvidas, em dia diferente, as testemunhas já anteriormente referidas) pretenderam transmitir também, tal como o arguido, que este esteve sempre calmo e a demandante é que estava exaltada, continuando o arguido a falar com ela sempre calmamente, intentando a segunda ainda corroborar a versão do arguido de que disse à demandante se tinha outra pessoa que a identificasse e que esta dizia que não se identificava – ora, estes depoimentos afiguraram-se parciais, com intenção de beneficiar o arguido, não se mostrando consentâneos com as regras da normalidade e experiência em situações semelhantes, nos termos já referidos (não é normal que a demandante estivesse sempre exaltada e o arguido sempre calmo, como se disse), e sendo infirmados pelos depoimentos das restantes testemunhas já referidas, que mereceram a credibilidade do tribunal, nos termos supra analisados.
Considerou-se ainda o depoimento da testemunha I…, militar da G.N.R., que exerce funções, tal como o arguido, no Posto de …, o que já sucedia à data dos factos, que no dia em causa estava de serviço de apoio no Posto, tendo assistido à chegada do arguido e da demandante, bem como, “passados uns minutos”, à chegada do oficial de polícia da P.S.P., que solicitou o livro de reclamações a um outro militar que estava de serviço, sendo que entretanto o arguido veio ter com aquele oficial e esteve a falar com ele, após o que entraram ambos para uma sala onde estiveram a falar com a demandante, saindo “passados uns quinze minutos”, tendo o oficial de polícia dito que já não queria apresentar qualquer reclamação contra o arguido, e o depoimento da testemunha H…, cabo da G.N.R., que integrava, juntamente com o arguido, a patrulha que se deslocou ao local para tomar conta do acidente de viação ocorrido, o qual, embora prestando um depoimento com certo constrangimento e comprometimento, porque era o graduado da patrulha e, “naturalmente”, não tinha interesse em manifestar que pudesse ter existido alguma falha da sua parte, sendo certo que o primeiro contacto que tem com os factos ocorre quando o arguido vem para o veículo com a demandante, acabou por deixar transparecer que tinha ficado desagradado com o comportamento do arguido (até porque também ele foi chamado a “prestar contas” às chefias sobre o sucedido), que não lhe deu conhecimento de nada, presenciado ele o oficial de polícia a comparecer no Posto e a querer escrever no livro de reclamações e depois irem os três (arguido, demandante e oficial de polícia) para o Gabinete dos Inquéritos, sem que ele (testemunha) soubesse o que se estava a passar, e por referir que o arguido não deu conhecimento ao Ministério Público de que tinha uma pessoa detida no Posto, embora a testemunha o tenha alertado de que “se a levava detida” tinha de contactar o Ministério Público.
Assim, em face de tudo quanto se expôs, logrou o tribunal convencer-se da ocorrência dos factos nos termos que ficaram descritos nos pontos 3 a 22 da matéria de facto.
Especificamente quanto aos factos dos pontos 18, 19 (elemento subjectivo) e 22, considerou-se igualmente a circunstância de ter resultado, quer da descrição dos factos feita pelas testemunhas e pela demandante dos termos relatados, quer da própria postura do arguido na audiência de julgamento e das declarações que prestou, quer ainda do que decorre da sua conduta objectiva, que o arguido é imputável e tem consciência dos actos que pratica, tendo tido noção, aquando da prática dos factos, de que não lhe era possível deter a demandante pelo motivo por que o fez. Com efeito, qualquer elemento das forças policiais tem necessariamente de saber quais os procedimentos para identificação de uma pessoa, quando é que pode solicitar a alguém que se identifique e quando pode proceder a uma detenção para identificação, sendo que algumas dessas regras (nomeadamente as respeitantes aos procedimentos de identificação) são do senso comum, conhecidas de qualquer cidadão normal que circule em locais públicos, como o teria que saber o arguido e o sabia com certeza, ele que ingressou na G.N.R. em 04/11/2002 (cfr. informação de fls. 91), cerca de seis anos e meio antes da data dos factos, e era um profissional empenhado, competente, sério e que exercia eficazmente as suas funções (como decorre dos depoimentos das testemunhas, que infra se irão referir, N…, O… e P…).
Sendo de salientar que - porque ligadas ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do C.P.P. e não a uma qualquer presunção “de jure ou iuris tantum”, inadmissível em direito penal - é perfeitamente aceitável recorrer às denominadas “presunções naturais” ligadas ao “princípio da normalidade ou da regra geral” e às “chamadas máximas da vida e regras da experiência” (cfr. Figueiredo Dias, cit. por Lourenço Martins, in Droga e Direito, 1994, pág. 111) - no mesmo sentido, Ac. do S.T.J. de 02/04/1986, B.M.J. 356, pág. 122, onde se refere que “as ilações que as instâncias extraem dos factos constituem uma forma correcta de avaliação de conduta dos réus, na medida em que sejam meras consequências ou prolongamentos daqueles factos”;
- quanto aos factos dos pontos 1 e 2, considerou-se a informação de fls. 91 dos autos;
- relativamente ao facto do ponto 23, considerou-se o teor do documento cuja cópia certificada consta de fls. 56 a 58 dos autos, as próprias declarações do arguido, que confirmou tê-lo elaborado, existindo um lapso na data do mesmo, mas sem conseguir com precisão indicar a data exacta em que o fez, estando convencido que foi muito próximo dos factos, talvez no próprio dia ou no dia seguinte, e o depoimento da testemunha Q…, militar da G.N.R., actualmente na reserva, que foi comandante do Posto de …, sendo-o à data dos factos, tendo sido a si a quem o arguido entregou o aludido documento, tendo ideia de que não lho entregou pessoalmente, mas que lho colocou em cima da sua mesa, onde a testemunha o viu passados 2/3 dias da ocorrência dos factos;
- no que toca aos factos dos pontos 24 a 27, considerou-se os depoimentos das testemunhas F… e G…, já referidas, S…, a interveniente no acidente a quem a demandante foi falar quando parou no local, que é amiga e colega de trabalho desta, motivo pelo qual com ela contacta com regularidade, o que já sucedia à data dos factos, apercebendo-se da forma como esta se sentiu e como reagiu ao sucedido e como ainda hoje reage quando se fala do assunto, e T…, marido da anterior testemunha, que se deslocou ao local quando soube da ocorrência do acidente, tendo assistido ao sucedido e verificado a forma como a demandante ficou em face do que lhe ocorreu e foi presenciado por várias pessoas que lá se encontravam;
- no que respeita às condições pessoais e económicas do arguido, teve-se em conta o C.R.C. entretanto junto aos autos, o relatório social da D.G.R.S. de fls. 240 a 242 e os depoimentos das testemunhas N…, comandante do Posto da G.N.R. de … desde 2010, onde o arguido exerce funções, sob a chefia da testemunha, O…, magistrado do Ministério Público, que exerceu funções nos Serviços do Ministério Público de Paredes durante três anos e meio, tendo contactado com o arguido várias vezes no âmbito das respectiva funções, e P…, guarda da G.N.R., que foi comandante do Destacamento da G.N.R. de Penafiel, ao qual pertence o Posto de … até Outubro de 2010, tendo contactado com o arguido por força dessas funções, desde que este veio para o Posto de … em 2005;
- quanto aos factos não provados, tal deveu-se:
- a ter-se provado antes e diferentemente o que consta dos pontos 3 a 20 da matéria de facto provada, pelos motivos já referidos (respeitantes à prova que foi produzida, designadamente quanto à descrição da sucessão de acontecimentos do dia 29/07/2009), quanto às alíneas a), b), c), d), g), h), i), j), l), m), n), o), p), t), v) e x). Anote-se que, quanto à alínea o), nada mais resultou apurado, nem foi possível concluir, da prova produzida, senão o que ficou a constar do ponto 20, sendo que dessa factualidade não decorre necessariamente, só por si, que logo nesse momento houvesse uma previsão do arguido especificamente de uma responsabilidade criminal e disciplinar da qual se quisesse eximir, e, quanto à alínea t), igualmente nada mais resultou apurado, nem foi possível concluir, da prova produzida, sendo que o simples facto de o arguido ter dito à demandante o que consta do ponto 16 – para mais quando, do depoimento da testemunha F… e das declarações da demandante, resulta apenas que tal frase foi dita e não que tenha havido qualquer “negociação” no sentido de se conceder uma coisa como contrapartida da outra, nem qualquer aceitação da demandante desse “acordo”, a qual nunca disse que não ia apresentar queixa, tendo o arguido, independentemente disso, mantido a não elaboração do auto – não significa que, depois, a causa que o determinou efectivamente a não elaborar o auto fosse conseguir que a demandante não apresentasse queixa contra si (aliás, o arguido nas suas declarações refere que foi porque deixou de ter certeza de que a demandante tivesse praticado a contra-ordenação em causa que não elaborou o auto – e a não existir contra-ordenação obviamente que até se lhe impunha que não o elaborasse);
- relativamente às alíneas e) e f), embora o arguido tenha referido essa hora nas suas declarações, tal não resultou dos depoimentos das testemunhas F… e G…, nem das declarações da demandante, que referiram que não foi exactamente essa a hora que o arguido logo referiu, para além de que, no “relatório” que este elaborou, referido no ponto 23, o mesmo até escreve que teria sido “dias antes” que vira a prática da “infracção”;
- quanto à alínea q), porque, do teor do “Relatório de Ocorrência” em questão, referido no ponto 23, se retira que não foi exactamente o que consta desta alínea que o arguido aí diz – na verdade, o arguido não escreve que presenciou a demandante a utilizar o telemóvel durante a condução, o que escreve concretamente é que abordou a demandante “no sentido de a mesma ser identificada por infracção praticada dias antes”, mas nunca refere que ele próprio presenciou a prática dessa infracção;
- no que concerne à alínea r), porque, conforme explicado aquando da motivação da resposta ao ponto 23, não foi possível apurar a data concreta em que o documento foi elaborado, existindo um lapso na data indicada no próprio documento;
- finalmente, quanto às alíneas s) e u), a não se ter efectuado qualquer prova sobre os mesmos em audiência de julgamento, pois que só existiria obrigação de o arguido levantar o auto de contra-ordenação caso a demandante tivesse efectivamente praticado a infracção que o arguido lhe imputou quando a abordou, o que não ficou, de qualquer maneira, provado, pois que nenhuma prova foi feita de que a demandante tivesse conduzido veículo automóvel em simultâneo com a utilização de telemóvel.

As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
Submete o Recorrente à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:
- Porque as expressões “deteria”, “detenção”, “detida” e “detenção ilegal”, constantes dos factos 8, 10, 17 e 20 dos factos provados são conceitos de direito ou conclusivos, devem considerar-se não escritas.
- No item 9 dos factos provados deve ser retirado o segmento “mas que alguém lhos poderia trazer àquele local”. Impõe tal decisão o depoimento da Testemunha F….
- Deve ser considerado não provado o item 18 dos Factos Provados, que é insusceptível de prova com base em presunções naturais e regras do senso comum. E deve ser retirado porque não é do senso comum que um agente policial, face à prática de uma contraordenação estradal, não possa conduzir o infractor ao posto policial mais próximo para identificação.
- Deve ser considerado não provado o item 19 dos Factos Provados. Impõe tal decisão o depoimento da Demandante E….
- Deve ser considerado não provado o segmento “para justificar a detenção da Demandante”, constante dos itens 17 e 20 dos Factos Provados. Impõem tal decisão os depoimentos do Arguido/Recorrente e da Testemunha F….
- Deve ser considerado não provado o item 22 dos factos provados pois que em lado nenhum ficou provado que o Arguido/Recorrente tivesse consciência de estar a praticar um acto ilegal, o que é insusceptível de ser provado com base no senso comum e em presunções maturais.
- A conduta do arguido enquadra-se no disposto no artigo 250, n.º 6 do CPP, como medida cautelar e de polícia e, por isso, é legal.
- O acompanhamento coactivo ao posto policial mais próximo, para efeitos de identificação do cidadão que não tenha sido devidamente identificado ou tenha recusado a identificar-se, não reveste natureza de privação de liberdade para efeitos do artigo 27, n.º 2 e 3 da Constituição.
- Não é pelo facto da conduta do cidadão a identificar configurar contra-ordenação ou crime que a sua condução ao posto policial para identificação deixa de ser considerada como uma medida cautelar de polícia.
- Não se verifica, por isso, o elemento típico do crime p. e p. no artigo 369, n.º 4 do C.P “medida privativa da liberdade”.
- O disposto no artigo 369, n.º 4 do C.P. tem de ser conjugado com o disposto no n.º 1 do mesmo artigo ou seja que “O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar”, isto é a medida privativa da liberdade a que alude o n.º 4 do artigo 369º, n.º 4 do C.P. tem de ocorrer já no âmbito de um processo (no caso de contra-ordenação).
- Da conjugação das disposições previstas nos artigos 2 e 3 da Lei 5/95 de 21 de Fevereiro, 48-A e 49 do Dec-Lei 433/82, de 27 de Outubro, 28º da Lei 53/2008 de 29 de Agosto e 250º do CPP, mesmo que por mera hipótese se considerasse que o Arguido/ Recorrente executou medida privativa da liberdade, tal execução sempre teria que ser considerada executada de forma legal.
- Estando em causa uma contra-ordenação ao telemóvel, nos termos do artigo 49 do Dec-Lei 433/82 de 27 de Outubro, o arguido/Recorrente poderia exigir ao agente da contra-ordenação a respectiva identificação.
- E ao dispor o n.º 2 artigo 48°-A do dito Decreto-Lei n° 433/82 que “Na medida em que o contrário não resulte desta lei, as autoridades policiais têm direitos e deveres equivalentes aos que têm em matéria criminal” não sendo a condutora portadora de nenhum documento de identificação, nem tendo feito menção de comunicar com uma pessoa que apresentasse os seus documentos de identificação ou manifestando vontade de se deslocar, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação ou finalmente manifestar a vontade de ser reconhecida a sua identidade por uma pessoa identificada que garantisse a veracidade dos dados pessoais indicados pela condutora, nos termos do n.º 6 do art. 250 do CPP estava o Arguido/Recorrente legitimado a poder conduzir a condutora ao posto policial mais próximo e compeli-la a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas. Falha por isso também um dos aspectos da factualidade típica do art.º 369 n.º4 do CP ou seja a execução “de forma ilegal”.
- Face à improcedência da acusação, deve também o Arguido/Recorrente ser absolvido do pedido de indemnização cível em que foi condenado.
- Ainda que venha a ser condenado, o montante indemnizatório (€2.500,00) arbitrado à Demandante a título de indemnização, sempre seria manifestamente exagerado.

DECIDINDO

QUESTÃO PRÉVIA
Entende o Recorrente que, a manter-se a condenação, como se vai manter, o montante indemnizatório (€2.500,00) arbitrado à Demandante a título de indemnização, sempre seria manifestamente exagerado.
A Demandante deduziu PIC contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação e até efectivo e integral pagamento.
E foi o arguido condenado a pagar-lhe a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a notificação do arguido para contestar o pedido cível até integral pagamento, à taxa de 4%, ou outra que legalmente venha a estar em vigor.
Ora, nos termos do n.º 2 do art.º 432º do CPP, “o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
O valor do pedido é inferior à alçada do tribunal recorrido, que hoje está fixada em 5.000€ - n.º 1 do art.º 24º da LOFTJ. Consequentemente, não é admissível recurso da sentença na parte relativa à indemnização civil.
Deste modo não se toma conhecimento do recurso do PIC.
Isto sem prejuízo de – e não será, como veremos – se retirar da procedência da parte penal as devidas consequências – n.º 3 do art.º 403º do CPP.

DE FUNDO
1. Pretende o Recorrente que as expressões “deteria”, “detenção”, “detida” e “detenção ilegal”, constantes dos factos 8, 10, 17 e 20 dos factos provados, se considerem como não escritas atendendo a que se trata de conceitos jurídicos ou de conclusões.
Prescreve o n.º 4 do art.º 646º do CPC, aplicável ex vi do disposto no art.º 4º do CPP: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
A questão da distinção entre matéria de facto e de direito está sobejamente tratada na doutrina e na jurisprudência, como bem o demonstra o Ex.mo PGA no seu douto parecer, citando a doutrina dos Profs. Paulo Cunha, Alberto dos Reis e Anselmo de Castro.
Afirma Paulo Cunha que estamos na presença de matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, o intérprete tem a necessidade de se socorrer de uma disposição legal - ainda que se trate de uma simples palavra da lei; estamos perante matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, por averiguação de factos cuja existência ou não existência não depende de nenhuma norma jurídica.
Ou seja, deve afirmar-se que é de direito tudo aquilo - todos aqueles pontos - cuja averiguação dependa do entendimento a dar a normas legais seja qual for espécie destas. Sempre que se discuta ou possa discutir a observância ou violação duma disposição legal estaremos diante de matéria de direito; no caso contrário diante de matéria de facto.
E acrescenta, em nota de rodapé: “Note-se que é preciso não confundir isto com o facto de que toda e qualquer averiguação de factos, por mais ajurídica que seja, se realiza por meio de processos regulados e prescritos na lei. Tal circunstância não interessa. Quando dizemos que há matéria de direito sempre que para se chegar a uma solução temos de recorrer a uma disposição legal, referimo-nos apenas às disposições legais que determinam a solução, e não às disposições legais que regulam a actividade por meio da qual se chega a uma solução”.
Parece apontar no mesmo sentido a doutrina de Alberto dos Reis[1]: “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; é questão de direito tudo o que respeita á interpretação e aplicação da lei. Reduzido o problema á sua maior simplicidade a fórmula é esta:
a)- É questão de facto determinar o que aconteceu.
b)- É questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei do processo.
No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos).
Em síntese, poder-se-á afirmar que tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto; e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.
O Supremo Tribunal de Justiça[2] não deixa de alinhar pelo mesmo diapasão:
“Poder-se-á dizer que não há fronteiras rígidas a demarcar matéria de facto e de direito, interpenetrando-se, por vezes, as duas situações.
Mas a questão de facto corresponde a situações materiais e concretas, a ocorrências da vida real e de quaisquer mudanças ocorridas no mundo exterior bem como a averiguação do estado, da qualidade ou da situação real das pessoas ou das coisas. Além destes, a doutrina inclui no âmbito da matéria de facto os factos internos (relativos à vida psíquica e sensorial dos indivíduos) e os factos hipotéticos (relativos a ocorrências virtuais).
Em contrapartida, as questões de direito serão constituídas pelos juízos jurídico-normativo dessas ocorrências reais.
E ao lado dos factos e da matéria de direito, existem os juízos de apreciação sobre as tais ocorrências da vida real, autênticos juízos de valor sobre a matéria de facto.
A distinção entre «matéria de facto» e «matéria de direito», aliás, tem vindo a esbater-se cada vez mais, com a crescente passagem para o elenco da primeira de conceitos jurídicos que ingressaram na linguagem comum.
Têm sido, também, considerados factos «os juízos que contenham a subsunção a um conceito geralmente conhecido que seja de uso corrente na linguagem comum» e «as relações jurídicas que sejam elementos da própria hipótese de facto da norma» (cfr. Acórdãos deste Supremo de 8 de Novembro de 1995, CJSTJ, III, 3, p. 293 e de 3.05.2000, proc. 00A315, in www.dgsi.pt).
Os juízos de valor continuam, pois, a ser matéria de facto, quando baseados em critérios do homem comum ou mesmo técnico especializado (não ligado ao mundo do direito), ou seja, quando não apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada”.

Pois bem.
Qualquer cidadão comum utiliza a expressão “detenção”.
Não no sentido técnico-jurídico, mas no sentido de uma ocorrência da vida real, correspondente a uma precária privação da liberdade por parte de um agente policial.
Ou, como diz o Ex.mo PGA, transcrevendo matéria de facto provada, no sentido “correntemente usado para significar a actuação de um agente policial sobre determinada pessoa, por forma a privá-la da sua liberdade de movimentos, manietando-a, introduzindo-a numa viatura policial, transportando-a para o Posto da GNR, isto apenas para referir alguns dos actos em que se traduziu a concreta actuação do arguido, conforme dado como provado”.
Como aconteceu no caso em apreço, em que os vocábulos referidos têm de ser conjugados com a restante factualidade dada como assente, seja, que o arguido, depois de dizer que estava detida, cruzou as mãos da demandante atrás das costas, a conduziu à viatura policial; para a colocar no interior desse veículo, baixou-lhe a cabeça com uma mão e empurrou-a para dentro daquele”.
Após, transportou-a para o Posto, na viatura de serviço.
Ou seja, deteve-a no sentido corrente e comum do termo.
Os vocábulos em questão traduzem, pois, matéria de facto e, por isso, não podem considerar-se não escritos.

2. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
2.1 GENERALIDADES
O Recorrente defende que determinados pontos da matéria de facto estão incorretamente julgados.
Porque a prova produzida em audiência se encontra documentada, pode o tribunal de recurso reapreciá-la nos termos da alínea b) do art. 431º do C. P. Penal: “sem prejuízo do disposto no art. 410°, a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser modificada (…): b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3 do art. 412º”.
Todavia, o Tribunal ad quem não pode efectuar um novo julgamento da matéria de facto. Na verdade, afirma Germano Marques da Silva, “o tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida”[3].
Para impugnar validamente a matéria de facto, o Recorrente deve, segundo o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do CPP, especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
E deve ainda “indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Ónus que o Recorrente cumpriu.
Por isso, passamos a apreciar os factos impugnados.

2.2 Defende o Recorrente que deve ser retirado o segmento “mas que alguém lhos poderia trazer àquele local”, constante do item 9, porque o depoimento da Testemunha F… impõe tal decisão.
Consta do item 9: “A demandante retorquiu que não estava a recusar identificar-se, apenas não tinha consigo os documentos de identificação, o que reafirmou, mas que alguém lhos poderia trazer àquele local”.
A prova do facto assentou no depoimento da testemunha F…, mas também no depoimento da testemunha G… e nas declarações da demandante civil.
Entende o Recorrente que o depoimento da testemunha F… (que até tentou desculpabilizar o arguido em sede de julgamento!...), impõe se considere não provado que a Demandante afirmou que alguém lhe podia trazer os documentos ao local em questão.
Transcreve, em abono da sua tese, a seguinte passagem do depoimento:
Procurador: Nessa conversa agora a final que me está a relatar, a D. E… dizia eventualmente ao guarda B… que estava em condições de conseguir que alguém a identificasse ou que alguém lhe trouxesse os documentos?
F…: Ele nunca questionou!
Procurador: Não, se a E…, se a E… transmitiu isso ao Guarda B…?
F…: Se poderia alguém levar a identificação? Não. Ele também não questionou. Parece evidente que esta passagem do depoimento, assim truncada, não impõe nada, minimamente que seja.
Designadamente não impõe se considere não provado que a Demandante não disse que alguém podia trazer os seus documentos ao local em questão.
Este depoimento tem de ser conjugado com as declarações da Demandante e com o depoimento da G….
E tem de se ter presente que o Juiz não é um depositário de depoimentos, antes analisa criticamente os meios de prova e, após, indica os factos provados.
A testemunha pode não ter ouvido toda a conversa – e não a ouviu seguramente – entre a Demandante e o arguido.
A demandante faz a afirmação de forma peremptória.
Foram consideradas credíveis e sinceras as suas declarações.
Por isso, mantém-se o facto.

2.3. Alega o Recorrente que deve ser considerado não provado o item 18 dos Factos Provados pois que o mesmo é insusceptível de prova com base em presunções naturais e regras do senso comum. E deve ser retirado porque não é do senso comum que um agente policial, face à prática de uma contraordenação estradal, não possa conduzir o infractor ao posto policial mais próximo para identificação.
Começando pela última parte.
Um agente da GNR tem de saber, sob pena de ser considerado incompetente e merecedor de processo disciplinar com vista à demissão com justa causa, que, face a uma infracção estradal, que sempre é punida com coima, não pode deter seja quem for atentas finalidades da detenção consignadas no art.º 254º do CPP.
Por isso, não pode invocar desconhecimento da Lei ou falta de consciência da ilicitude pois que, a existir, sempre o desconhecimento seria censurável.
Como tem de saber que não pode conduzir ao Posto Policial para ser identificado ninguém que não se encontre nas específicas situações referidas no art.º 250º do CPP, e que infra melhor explanaremos.
Depois. Consta do item 18:
“O arguido sabia que por via da invocada prática de uma contra-ordenação não podia deter a demandante para identificação”.
O Tribunal Colectivo fundamentou a sua decisão quanto a este ponto da matéria de facto pela forma seguinte:
“Especificamente quanto aos factos dos pontos 18, 19 (elemento subjectivo) e 22, considerou-se igualmente a circunstância de ter resultado, quer da descrição dos factos feita pelas testemunhas e pela demandante dos termos relatados, quer da própria postura do arguido na audiência de julgamento e das declarações que prestou, quer ainda do que decorre da sua conduta objectiva, que o arguido é imputável e tem consciência dos actos que pratica, tendo tido noção, aquando da prática dos factos, de que não lhe era possível deter a demandante pelo motivo por que o fez. Com efeito, qualquer elemento das forças policiais tem necessariamente de saber quais os procedimentos para identificação de uma pessoa, quando é que pode solicitar a alguém que se identifique e quando pode proceder a uma detenção para identificação, sendo que algumas dessas regras (nomeadamente as respeitantes aos procedimentos de identificação) são do senso comum, conhecidas de qualquer cidadão normal que circule em locais públicos, como o teria que saber o arguido e o sabia com certeza, ele que ingressou na G.N.R. em 04/11/2002 (cfr. informação de fls. 91), cerca de seis anos e meio antes da data dos factos, e era um profissional empenhado, competente, sério e que exercia eficazmente as suas funções (como decorre dos depoimentos das testemunhas, que infra se irão referir, N…, O… e P…).
Subscrevemos, sem reserva, a fundamentação do Tribunal a quo.
Acrescentando apenas que os fenómenos do mundo interior, na falta de confissão do agente, são insusceptíveis de apreensão directa e, por isso, hão-de resultar dos factos materiais provados, conjugados com as regras da experiência.
O Ex.mo PGA cita, em abono do que afirmamos, um Ac do STJ[4], que aponta no sentido do decidido: “enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente - dolo genérico - contra direito. Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.° 1 deste dispositivo (art. 369° do CP); é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, deforma tal que se afirme uma negação de justiça”.
No caso em apreço a violação dos poderes funcionais por parte do arguido é tão gritante que, por si só, conduz ao facto ora impugnado.
E nunca à sua não prova.

2.4 Afirma ainda o Recorrente que deve ser considerado não provado o item 19 dos Factos Provados. Impõe tal decisão o depoimento da Demandante E….
Consta do item 19:
“Ao proceder da forma descrita, executou medida que privou a demandante da sua liberdade, durante cerca de uma hora, o que sabia ser proibido e punido por lei”.
As passagens do depoimento da Demandante que, no entender do Recorrente, impõem decisão diversa da recorrida:
Juiz: No caminho para o Posto houve alguma conversa?
E…: Sim. Ele perguntou se eu queria resolver aquilo ali ou então se íamos para o Posto? Eu apenas respondi que o assunto tinha que ser resolvido, que ia ser resolvido no Posto, que era para onde íamos.
Juiz: E depois quando chegou ao Posto?
E…: Quando chegamos ao Posto saímos e entramos e fomos à secretaria, no qual estavam lá dois agentes.
Juiz: Mas aí saíram do carro normalmente e entraram normalmente na secretaria ou foi empurrada?
E…: Não, Não, Não!
Juiz: Foi tudo normal até chegarem à secretaria?
E…: Exactamente.
Juiz: E então na secretaria?
E…: Estavam lá dois agentes. Entretanto o agente B… foi lá dentro não sei o que é que ele foi fazer e eu estava na secretaria a dar os meus dados e depois fomos para uma sala ao fundo que eu sinceramente não sei qual era a sala. Fui eu, o agente B… e o Subcomissário da PSP.
E…: Porque eu no caminho liguei à minha mãe para ela me trazer a identificação ao Posto da GNR porque estava detida.
Juiz: Ligou? Mas alguém disse para ligar?
E…: Não, Não, Não. Fui eu que liguei.
Juiz: Ligou sem pedir nada a ninguém?
E…: Peguei no telefone e liguei para a minha mãe.
Juiz: E não disseram nada na altura?
E…: Não
Juiz: Porque é que o Subcomissário foi para a tal sala?
E…: Porque eu pedi-lhe para ir comigo
Juiz: O guarda B… não disse nada?
E…: Não.
Não é difícil concluir que, ao fazer a transcrição referida, truncada e descontextualizada, a Recorrente pretende misturar e confundir dois momentos: o da detenção e o da condução, sob detenção, ao Posto da GNR.
A simples enunciação da pretensão demonstra o absurdo da impugnação.
No entanto, afirmamos, o depoimento da Demandante não impõe se considere como não provado que o arguido, “Ao proceder da forma descrita, executou medida que privou a demandante da sua liberdade, durante cerca de uma hora, o que sabia ser proibido e punido por lei”.
Ao invés, se bem analisar as declarações da Demandante, na sua globalidade, e as conjugar com os depoimentos das testemunhas F… e G…, ambas presenciais da 1ª parte dos factos, no local do acidente, consideradas isentas e credíveis, verá que se impõe se considere provado, como se considerou, que:
- Cerca das 20h20, quando a demandante E… já havia conversado com a interveniente no acidente que era sua conhecida e se preparava para abandonar o local, o arguido, apercebendo-se de tal facto, ordenou-lhe que não se ausentasse dali para a identificar e autuar;
- A demandante ficou surpresa e perguntou ao arguido porque motivo iria ser autuada, ao que este respondeu que a tinha visto, nesse mesmo dia, na Rua …, em …, a conduzir um veículo automóvel e ao mesmo tempo a falar ao telemóvel;
- A demandante argumentou que tal não era possível, porque durante aquela tarde encontrava-se a trabalhar no seu local de trabalho, sito na empresa “J…”, em …, …;
- O arguido insistiu com a demandante para que se identificasse, o que fez em tom de voz ríspido e, como esta afirmou que não tinha consigo os seus documentos de identificação, acrescentou que ela se estava a recusar a identificar e que se ela se recusasse a identificar que a deteria;
- A demandante retorquiu que não estava a recusar identificar-se, apenas não tinha consigo os documentos de identificação, o que reafirmou, mas que alguém lhos poderia trazer àquele local;
- Na sequência desta resposta e reafirmando que a demandante estava a recusar identificar-se, o arguido deu-lhe voz de detenção, dizendo-lhe que estava detida;
- Acto contínuo, o arguido cruzou as mãos da demandante atrás das costas e conduziu-a à viatura policial e, para a colocar no interior desse veículo, baixou-lhe a cabeça com uma mão e empurrou-a para dentro daquele.
E conduziu a Demandante ao Posto da GNR sob detenção, onde permaneceu cerca de 1 hora.
Consequentemente, e como nos parece óbvio, o arguido, “ao proceder da forma descrita, executou medida que privou a demandante da sua liberdade, durante cerca de uma hora, o que sabia ser proibido e punido por lei”
O que se passa no percurso para o Posto, isto é, a conversa entre o arguido e a demandante, detida, repete-se, é já secundário.
É evidente que a detida estava à vontade e exigia se resolvesse tudo no Posto.
Resolver significava, no contexto, que o arguido teria de justificar a detenção.
Não faça o recorrente leitura diferente pois que as declarações da demandante o não permitem.

2.5 Considera ainda o Recorrente que deve ser considerado não provado o segmento “para justificar a detenção da Demandante”, constante dos itens 17 e 20 dos Factos Provados. Impõe tal decisão os depoimentos do Arguido/Recorrente e da Testemunha F….
Transcreve as seguintes passagens:
B…: Foi elaborado o auto de identificação para fazer chegar ao tribunal e a mesma abandonou o Posto sem qualquer incidente mais... Uma vez que tinha sido conduzida ao Posto foi só esse o único objectivo de ter elaborado o auto de identificação.
Testemunha F…: A E… inicialmente não queria assinar porque estava com receio que aquele auto de identificação a prejudicasse. Eu disse que aquele auto de identificação só iria justificar, de certa forma, iria justificar a razão pela qual ela foi conduzida à esquadra, que foi por questões de identificação. Foi aquilo que disse o Guarda B…, que ela foi ao Posto para ser identificada e ficava por ali.
Vistas passagens transcritas, conjugando-as com o auto de identificação, cuja cópia se encontra a fls. 55 dos autos, o que é imprescindível, do qual o arguido fez constar, no espaço destinado ao “Motivo”: “Não ser portador de qualquer doc. de Identificação quando circulava na via Pública”; e, no espaço destinado a “Observações”: “Finda a identificação foi restituída à liberdade, sem mais expediente”, só pode considerar-se provado que a elaboração do auto de identificação teve como única finalidade “justificar a detenção da demandante e a condução da mesma ao Posto da Guarda Nacional Republicana para ser identificada e assim evitar eventuais consequências de uma «detenção ilegal» daquela”, como considerou o Tribunal Colectivo.
Como resulta das regras da experiência.
E como é por demais evidente.

2.6 Finalmente, pede o Recorrente se considere não provado o item 22 dos factos provados pois que em lado nenhum ficou provado que o Arguido/Recorrente tivesse consciência de estar a praticar um acto ilegal, o que é insusceptível de ser provado com base no senso comum e em presunções naturais.
Valem aqui, in totum, as considerações que tecemos no ponto 2.3, para as quais remetemos.
Repetimos que o Recorrente tinha consciência de que estava a praticar um acto ilegal até porque para o mesmo foi chamado à atenção pelo Oficial da PSP.
O que, no mínimo, o deveria ter feito reflectir.
E ainda que tivesse agido em erro – e não agiu -, este seria sempre censurável atenta a especial obrigação que recai sobre o arguido de saber que só pode deter um cidadão que é indiciado da prática de um qualquer crime ou a solicitação da autoridade judiciária para comparência em acto processual.
Ou ainda para identificação se houver fundadas suspeitas da prática de um crime.
Situações que não se verificam no caso em análise.

2.7 Porque improcede a impugnação da matéria de facto e porque não se verificam os vícios do art.º 410º do CPP, considera-se aquela definitivamente fixada.

3. A detenção para fins processuais e a detenção como medida de polícia
Porque o Recorrente navega em alguma confusão conceptual relativamente à detenção a que se alude no art.º 254º do CPP e à detenção como medida de polícia referida no art.º 250º do mesmo Diploma Legal, vamos caraterizar devidamente as duas para se apurar as diferenças e bem assim as finalidades.
Sempre por recurso ao ensinamento dos Mestres e dos Doutrinadores.
Refere Anabela Miranda Rodrigues[5]:
“Uma das implicações advindas da posição de dominus do inquérito que cabe ao Ministério Público reside na nova compreensão das relações, funcionais, entre aquele e os órgãos de polícia criminal, que agora são, na terminologia do futuro Código, «todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos determinados por este Código ou ordenados por uma autoridade judiciária» (art. 1º, al. c)). Embora se acentue, por esta forma, que, continuando as diversas polícias a ter competência no domínio da investigação criminal - com excepção dos actos que são da competência exclusiva do juiz de instrução ou do Ministério Público (vejam-se, por exemplo, os artigos 268º e 270º, n.º 2) -, se trata de uma tarefa de que são encarregadas pelo Ministério Público, isso não quer dizer nem faz esquecer que à iniciativa própria da polícia compete a prática de certos actos: transmitir a notícia do crime (art. 248.°), tomar providências quanto aos meios de obtenção da prova (art. 249.°, 251 e 252.°), proceder à identificação (art. 250.°) e à detenção de pessoas (art. 254.° e seg.).
Deter-me-ei sobre a prática destes actos de iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, tentando analisá-los de acordo com um esquema no essencial coincidente com o do novo Código.
a) Assim, quanto às medidas cautelares e de polícia cumpre desde logo salientar que se trata de uma categoria conceitual nova no nosso direito processual penal. A sua consagração visa, através da tomada imediata de providências pelos órgãos de polícia criminal sem prévia autorização da autoridade judiciária competente, acautelar a obtenção de meios de prova que, de outra forma, poderiam irremediavelmente perder-se, provocando danos irreparáveis na obtenção das finalidades do processo. E isto, quer devido à natureza perecível de certos meios de prova, quer ainda dado o carácter urgente dos actos a praticar. O que se observa é, pois, que através da sua consagração, se prefere a eficácia da acção conseguida ao rigor dos princípios. Esta opção representa, entretanto, por parte do legislador, a consciência clara de que a realização de uma investigação criminal necessita, para ser eficaz, de ter ao seu dispor certos meios que são afinal, na prática, os meios «normais» de actuação naquelas fases em que a prova se estrutura. Assim, respeita-se, por um lado, a nova filosofia do futuro Código assente na legalização dos meios de actuação que até aqui se encontravam numa zona de semiclandestinidade; por outro lado, a consciência muito nítida de que a sua consagração representa um risco, assumido pelo Código, de utilização abusiva dessas medidas, levou a apertar os critérios que legitimam a intervenção das polícias nesses casos - restringe-se a tomada de medidas a «actos urgentes» (artigo 251º, n.º l e 252º, n.º 2) - e a introduzir o limite da intervenção homologadora da autoridade judiciária (art. 251.º, n.º 2 e 252º, n.º 3). (…)
b) Como sub-espécie das medidas cautelares e de polícia, encontramos consagrada no novo Código, numa nítida concessão à regulação neste diploma de uma actividade administrativa dos órgãos de polícia criminal, a possibilidade de estes «procederem à identificação de pessoas» (art. 250º, n.º 1). (…)
c) Resta-me, dentro do esquema traçado, dizer algumas palavras sobre a detenção (art. 254.° e segs.). Trata-se, com este instituto, de regular o acto material de captura em que verdadeiramente consiste a detenção que, num primeiro grupo de casos, tem por finalidade, no prazo máximo de quarenta e oito horas, que o detido seja presente a julgamento sob forma sumária ou presente ao juiz compe­tente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação de uma medida de coacção (art. 254º, alínea a)).
Prevê-se, assim, no Código, que a detenção possa ter lugar quer em flagrante delito (art. 255º), quer fora de flagrante delito (art. 257º), sempre para cumprir qualquer das finalidades enunciadas e tendo, qualquer uma destas formas de detenção, de ser validade no prazo máximo de quarenta e oito horas. As características do sistema resultarão porventura mais precisas se o compararmos com o direito ainda em vigor. Assim, observa-se que a detenção em flagrante delito é tratada nos termos tradicionais, apenas sendo aqui de salientar, por inovador quanto à definição de flagrante delito, o n.º 3 do 256º que visa solucionar essa questão em caso de crimes permanentes; e, por restringir a possibilidade de detenção por qualquer pessoa aos casos que não esteja presente ou não possa ser chamada em tempo útil qualquer autoridade judiciária ou entidade policial (art. 255º, n.º l, alínea b)). É quanto à detenção fora de flagrante delito, entretanto que são necessárias algumas observações: de acordo com o disposto no art. 257º pode ela ser efectuada por mandado do Juiz mesmo nos casos em que não é admissível a prisão preventiva, mas também, por mandado do Ministério Público nos casos em que aquela for admis­sível ou por mandado da autoridade de polícia criminal quando se verificarem, cumulativamente, os três requisitos enunciados no número dois do referido artigo 257º. Quer dizer; ressalta aqui o bem fundado da necessidade de validação judicial de uma captura que, ao contrário do direito ainda em vigor, pode ser ordenada por entidade diferente do juiz. Este último aspecto é, aliás, de realçar, tendo o Código optado por distinguir da «captura» a prisão preventiva, esta configurada como uma medida de coacção a aplicar, sendo caso disso, sempre por despacho do juiz.
Pode ainda a detenção ter por finalidade – e é este o segundo grupo de casos que ela visa regular - assegurar a presença imediata do detido perante o juiz em acto processual (art. 254º, alínea b)). A indispensabilidade de uma tal medida há muito que era reconhecida entre nós. Como já em 1981 referia FIGUEIREDO DIAS «nenhuma ordem jurídica pode viver ou manter-se sem a utilização de certas medidas que obriguem fisicamente as pessoas a apresentarem-se a certos actos ou a submeterem-se a certas formalidades». E, da constitucionalidade de uma tal norma processual não pode já hoje legitimamente duvidar-se, consagrada que foi na Constituição revista a figura da mera detenção ou custódia (art. 27º, n.º 3, alínea e), segunda parte)”.
É coincidente o ensinamento de Germano Marques da Silva[7]:
“Não é fácil definir a detenção. A lei não o faz, nem lhe competia fazê-lo, cumprindo ao intérprete caracterizá-la.
A colocação sistemática do tratamento normativo da detenção no CPP também não ajuda muito à caracterização do instituto, pois a sua colocação no livro que trata das fases preliminares do processo não tem significado especial. Como veremos, a detenção pode ocorrer em qualquer fase e pode ocorrer até antes de instaurado um processo, como sucede com a detenção em flagrante delito.
No domínio do CPP/29 a legislação e a doutrina identificavam os institutos da detenção e da prisão preventiva. Detenção ou prisão preventiva, no domínio do processo penal comum, significavam a prisão com fins processuais anterior à condenação.
Não é assim no CPP/87 que distingue a detenção da prisão preventiva.
A Constituição da República Portuguesa só admite a privação da liberdade como consequência do cumprimento de uma pena de prisão ou medida de segurança ou nos casos expressamente indicados nas diversas alíneas do n.º 3 do art. 27º.
O n.º 3 do art.º 27º da CRP refere-se à detenção em flagrante delito [al. a)], à detenção por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos [(al. b)], à detenção de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão, [al.c)], à detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente [al. f)] e à detenção de suspeitos para efeitos de identificação .
A Constituição atendeu essencialmente a que nos diversos casos que prevê no n.º 3 do art. 27º se trata sempre de privação da liberdade diversa da que é consequência de execução da pena de prisão ou de medida de segurança, distinguindo depois entre detenção e prisão preventiva, como o faz o CPP desde a sua redacção originária.
O Código de Processo Penal disciplina a detenção no livro dedicado às fases preliminares do processo (arts. 254.° a 261.°), seguindo a sistematização adoptada pelo CPP italiano.
A colocação da disciplina do arresto e fermo no livro dedica­do às fases preliminares é justificada pela doutrina italiana por considerar estes institutos como pertinentes à actividade de polícia, de natureza cautelar e caracterizadas pela sua provisoriedade.
Pensamos que a provisoriedade e a finalidade específica são as características essenciais para caracterizar a detenção no direito português.
Com efeito, a detenção é sempre precária. Como medida processual ela é efectuada para, no prazo máximo de quarenta e oito horas o detido ser submetido a julgamento ou ser presente ao juiz competente para interrogatório judicial ou aplicação ou execução de uma medida de coacção [art. 254º, al. a)] ou para assegurar a presença imediata do detido perante a autoridade judiciária em acto processual [art. 254º, al. b)] e também como medida policial ela tem a mesma natureza de precariedade (art. 250º, n.º 6). (…)
Importa também distinguir a detenção com fins processuais, indicados nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 254º e a detenção como medida de polícia, prevista nos arts. 27º, n.º 3, al. g) da CRP e 250º, n.º 6 do CPP. Distinguem-se essencialmente pelas suas finalidades já, que ambas são medidas precárias.
A detenção como medida processual tem como finalidades as indicadas no art. 254º; a medida prevista no art.º 250º, n.º 6, é apenas uma medida de polícia que tem por finalidade a identificação coactiva de suspeitos, medida que só pode ser aplicada quando o suspeito a identificar não o faça doutro modo, nos termos dos n.ºs 3, 4 ou 5 do art. 250º.
A detenção policial de suspeitos para efeitos de identificação, por um período não superior a seis horas, foi introduzida no CPP de 1987 e a sua constitucionalidade foi controvertida em virtude de, ao tempo, a Constituição não a prever, contrariamente ao que sucede após a revisão de 1997 [art. 27º, n.º 3, al. g)].
As normas constantes do art.º 250º são essencialmente normas permissivas da actividade policial, embora a lei procure limitar, e é essa a função essencial destas formas, a discricionaridade desta medida de polícia.
É de destacar a norma constante do n.º 7 do art. 250º ao exigir que os actos de identificação levados a cabo mediante a detenção policial são sempre reduzidas a auto e as provas da identificação dele constantes são sempre destruídas na presença do identificando, a seu pedido, se a suspeita não se confirma”.
Da transcrição acabada de fazer, importa reter uma ideia fundamental: quer a detenção com fins processuais, quer a detenção como medida de polícia, prevista no art.º 250º do CPP, implicam uma restrição da liberdade de outrem, que, por imposição constitucional, é de natureza excepcional e tem de respeitar os requisitos legais.
Vai no mesmo sentido a posição dos Magistrados do MP do Distrito Judicial do Porto[8]:
“Importa dizer que não existe na lei qualquer definição do conceito de detenção.
No entanto, podemos lançar mão dos elementos interpretativos para densificar este instituto.
Desde logo, no que toca à inserção sistemática desta figura jurídica, há que referir que, pese embora colocada no livro do Código dedicado às fases preliminares do processo, o certo é que a detenção pode ocorrer em qualquer fase processual e mesmo antes de instaurado o processo penal. Então, quanto a nós, a sua inserção nesta parte do Código é mais um resquício da sua identificação com a prisão preventiva, no Código de 1929, no qual «prisão preventiva» e «detenção» significavam prisão com fins processuais anterior à condenação (cfr. germano marques da silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, Editorial Verbo, 1999. p. 208).
No entanto, a inserção sistemática neste livro permite-nos destacar duas característi­cas essenciais da detenção - a provisoriedade e a sua específica finalidade cautelar e de auxílio à actividade de polícia.
Com efeito, a detenção é sempre precária, pois que efectuada para determinadas finalidades que hão-de verificar-se em prazos máximos muito curtos - 24 ou 48 horas. (…)
Tal como se mostra evidente, a detenção de uma pessoa, seja para que fim for, apresenta-se como restrição ao princípio constitucional do direito à liberdade, previsto no art. 27° da CRP.
O direito à liberdade engloba fundamentalmente os seguintes «sub-direitos»: (a) direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos e termos previstos neste artigo: (b) direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou cons­trangido por parte de outrem; c) direito à protecção do Estado contra os atentados de outrem à própria liberdade (gomes canotilho e vital moreira, Constituição da Repú­blica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora. 2007, arts. 1º a 107º, p. 478).
Porque não se trata de um direito absoluto, o direito à liberdade admite restrições, e que são as previstas nos números 2 e 3, não podendo a lei criar quaisquer outras que extravasem o conteúdo destas normas, sob pena de inconstitucionalidade por violação do princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade (cfr. Acs. TC n.os 185/1996, 363/2000 e 83/2001). (…)
Tal como ensina germano marques da silva (ob. cit., p. 210), há ainda que distinguir a detenção da medida de polícia prevista no art.º 250º, n.º 3, distinção que assenta essencialmente nas finalidades de cada uma. Ao passo que a detenção propriamente dita é apenas aquela que se efectua de acordo com as finalidades elencadas no artigo em apreço, a medida prevista naquele normativo é uma mera medida de polícia, um meio instrumental necessário e adequado à realização do acto legítimo de identificação do suspeito.
Assim, a detenção de suspeitos para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários, prevista no art. 27º, n.º 3, al. g), da CRP, conjugado com os n.os 6 e 7 do art. 250º do CPP, não reveste a natureza da detenção que temos vindo a analisar, mas, antes, é verdadeira medida cautelar e de polícia.
Poder-se-á, então, entender que o nosso Código acolhe um conceito lato de detenção, onde se enquadra a detenção sticto sensu, que se caracteriza pelas finalidades espe­cíficas previstas neste preceito, e outras privações de liberdade, também efémeras (o que as distingue igualmente da prisão preventiva), e que se assumem como instrumentais de outras finalidades processuais ou de polícia.
Antes de nos debruçarmos finalmente sobre as finalidades deste instituto, façamos uma breve alusão à questão da detenção para fins exclusivos de identificação de pessoas (e não só de suspeitos) não portadoras de documento de identificação ou que não se identificassem por meio idóneo e aceitável, que chegou a ser estudada e discutida pela Comissão encarregada da elaboração do CPP de 1987. Possibilidade que acabou por ser excluída, por se revestir de constitucionalidade duvidosa, precisamente porque o art. 27º, n.º 3, al. g), da CRP se reporta exclusivamente ã identificação de suspeitos.
Cremos que nenhuma outra conclusão pode ser extraída do que se transcreve que não seja a de que a condução ao Posto para identificação é uma medida de polícia, é certo, mas medida que se traduz em detenção em sentido amplo, como vimos.
Ora, porque assim, só pode ser detido para ser identificado quem é suspeito da prática de um crime.
Como o impõe a alínea g) do n.º 3 do art.º 27º da CRP.
Qualquer outra interpretação é violadora da Lei Fundamental e, por isso, é inconstitucional.

Importa deixar claro que a Procuradoria-Geral da República, em 3 de Fevereiro de 2005 aprovou um Parecer, publicado no DR, II Série, de 11/1/2008.
E que tal Parecer foi homologado pelo Sr. Ministro da Administração Interna por despacho de 13 de Dezembro de 2007 razão pela qual é de seguimento obrigatório para o Arguido enquanto agente de uma força policial.
São as seguintes as conclusões do Parecer:
1.ª - A Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, foi tacitamente revogada pelo artigo 250º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto;
2.ª - A identificação por órgãos de polícia criminal - de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sobre quem recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção - e, bem assim, a possibilidade de condução e permanência do identificando em posto policial obedecem ao disposto no artigo 250.º do Código de Processo Penal;
3.ª - A obrigação de identificação perante autoridade competente é uma medida de polícia e a sua aplicação está subordinada aos pressupostos e limites que condicionam a actividade de polícia, com relevo para o princípio da proibição do excesso;
4.ª - Em conformidade com este princípio, a permanência de suspeito em posto policial para efeito de identificação deve, nos termos da lei (artigo 250.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), restringir-se ao «tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas».

Assim é, com efeito.
Por isso, com os fundamentos constantes do Parecer citado, que se subscrevem in totum, os órgãos de polícia criminal só podem, segundo o prescrito no n.º 1 do art.º 250º do CPP, proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que:
1. Sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes; ou
2. Contra ela penda processo de extradição ou de expulsão; ou
3. Tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional; ou
4. Tenha sido emitido contra si mandado de detenção
Fora destas condições restritas não pode ser detida a pessoa para efeitos de identificação.

3.1 O caso em análise
Consta da matéria de facto provada:
- No dia 29 de Julho de 2009, cerca das 20h00, a demandante E…, quando circulava na …, deparou-se com um acidente de viação que ocorrera junto ao quartel dos Bombeiros Voluntários …, constatando que uma das intervenientes naquele era pessoa das suas relações, pelo que estacionou o seu veículo e aproximou-se para falar com aquela pessoa e ver se necessitava de alguma ajuda;
- Entretanto, para tomar conta da ocorrência relativa ao acidente, chegou ao local uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, que se fazia transportar num veículo ligeiro de passageiros caracterizado daquela força de segurança, da qual faziam parte o arguido e o cabo H…, que se encontravam fardados e no exercício das suas funções;
- Cerca das 20h20, quando a demandante E… já havia conversado com a interveniente no acidente que era sua conhecida e se preparava para abandonar o local, o arguido, apercebendo-se de tal facto, ordenou-lhe que não se ausentasse dali para a identificar e autuar;
- A demandante ficou surpresa e perguntou ao arguido porque motivo iria ser autuada, ao que este respondeu que a tinha visto, nesse mesmo dia, na Rua …, em …, a conduzir um veículo automóvel e ao mesmo tempo a falar ao telemóvel;
- A demandante argumentou que tal não era possível, porque durante aquela tarde encontrava-se a trabalhar no seu local de trabalho, sito na empresa “H…”, em …, …;
- O arguido insistiu com a demandante para que se identificasse, o que fez em tom de voz ríspido e, como esta afirmou que não tinha consigo os seus documentos de identificação, acrescentou que ela se estava a recusar a identificar e que se ela se recusasse a identificar que a deteria;
- A demandante retorquiu que não estava a recusar identificar-se, apenas não tinha consigo os documentos de identificação, o que reafirmou, mas que alguém lhos poderia trazer àquele local;
- Na sequência desta resposta e reafirmando que a demandante estava a recusar identificar-se, o arguido deu-lhe voz de detenção, dizendo-lhe que estava detida;
- Acto contínuo, o arguido cruzou as mãos da demandante atrás das costas e conduziu-a à viatura policial e, para a colocar no interior desse veículo, baixou-lhe a cabeça com uma mão e empurrou-a para dentro daquele;
- Estes factos foram presenciados por diversas pessoas que se encontravam no local, incluindo um oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública, que naquele momento se encontrava à civil e fora de serviço, o qual se aproximou do arguido e, colocando-lhe a mão no ombro, disse-lhe que tivesse calma, ao que este, em reacção, virou-se, disse-lhe se também queria “ir lá para dentro” e empurrou-o, para o afastar de si, sem lhe provocar lesões;
- Nesse momento, aquele identificou-se como oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública e disse ao arguido que não podia “fazer aquilo”, ao que este nada respondeu, virou as costas e dirigiu-se para o veículo, onde entrou;
- Após, o arguido transportou a demandante para o Posto da Guarda Nacional Republicana …;
- Já no Posto da Guarda Nacional Republicana …, onde se encontravam o arguido e a demandante e onde entretanto chegou o oficial de polícia da Polícia de Segurança Pública, quando se encontravam os três a falar numa sala, este disse ao arguido estar convencido de que o procedimento adoptado por este arguido “não era correcto”;
- No decurso dessa conversa, o arguido disse à demandante que, se ela não apresentasse queixa do sucedido, ele não a autuava, e que ia apenas elaborar o auto de identificação para justificar a ida da demandante ao Posto;
- Assim, para justificar a detenção da demandante e a sua ida ao Posto da Guarda Nacional Republicana …, o arguido elaborou o auto de identificação cuja cópia certificada se encontra a fls. 55 dos autos, no qual fez constar, no espaço destinado ao “Motivo”, “Não ser portador de qualquer doc. de Identificação quando circulava na via Pública” e, no espaço destinado a “Observações”, “Finda a identificação foi restituída à liberdade, sem mais expediente”;
- O arguido sabia que por via da invocada prática de uma contra-ordenação não podia deter a demandante para identificação;
- Ao proceder da forma descrita, executou medida que privou a demandante da sua liberdade, durante cerca de uma hora, o que sabia ser proibido e punido por lei;
- O arguido elaborou o auto de identificação referido no ponto 17 para justificar a detenção da demandante e a condução da mesma ao Posto da Guarda Nacional Republicana para ser identificada e assim evitar eventuais consequências de uma “detenção ilegal” daquela;
- O arguido não levantou auto de contra-ordenação relativamente à situação aludida no ponto 6.

Pois bem.
Da matéria de facto transcrita, sem dificuldade se conclui:
1. O arguido, no exercício das suas funções de agente da GNR, deteve e conduziu ao Posto da GNR a Demandante para efeitos de identificação;
2. Contra a Demandante não havia fundadas suspeitas da prática de um qualquer crime;
3. Não pendia contra ela qualquer processo de extradição ou de expulsão;
4. Trata-se de cidadã portuguesa que não penetrou ou permaneceu irregularmente no território nacional;
5. Não pendia contra ela um qualquer mandado de detenção
Consequentemente, de forma seca e simples, a detenção foi ilegal.

3.2 Argumenta o Recorrente que a sua conduta se enquadra no disposto no artigo 250, n° 6 do CPP, como medida cautelar e de polícia e, por isso, é legal; que o acompanhamento coactivo ao posto policial mais próximo, para efeitos de identificação do cidadão que não tenha sido devidamente identificado ou tenha recusado a identificar-se, não reveste natureza de privação de liberdade para efeitos do artigo 27, n° 2 e 3 da Constituição.
Manifestamente não é assim, como antes se demonstrou.
O Recorrente, como agente da GNR que é, tem de saber em que condições pode identificar um cidadão e em que condições o pode deter.
De resto, a Demandante não recusou identificar-se, é bom frisar-se.
Ainda que fosse obrigada a fazê-lo por ter cometido uma contraordenação, se é que a cometeu (onde foi levantado o auto que justificasse a ordem de identificação?).
Ao invés, disse ao Arguido que “não tinha consigo os documentos de identificação”.
Mas, logo acrescentou “que alguém lhos poderia trazer àquele local”.
O que o Recorrente pretende ignorar, interpretando a resposta de forma abusiva, como se de recusa se tratasse.

3.3 Alega ainda o Recorrente que não é pelo facto da conduta do cidadão a identificar configurar contra-ordenação ou crime que a sua condução ao posto policial para identificação deixa de ser considerada como uma medida cautelar de polícia.
Se configurar crime, naturalmente que pode ser usada a medida de polícia.
Jamais quando configura uma contraordenação, como antes melhor expendemos.

3.4 Afirma ainda o recorrente que não se verifica o elemento típico do crime p. e p. no artigo 369, n.º 4 do C.P “medida privativa da liberdade”; e que o disposto no artigo 369, n.º 4 do C.P. tem de ser conjugado com o disposto no n.º 1 do mesmo artigo ou seja que “O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar”, isto é a medida privativa da liberdade a que alude o n.º 4 do artigo 369º, n.º 4 do C.P. tem de ocorrer já no âmbito de um processo (no caso de contra-ordenação).
Carece de razão em ambos os argumentos.
Quanto á verificação do elemento do tipo “ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal” porque, como já vimos, a detenção que ordenou foi a todos os títulos ilegal.
Quanto á pretensa subordinação do n.º 4 do art.º 369º do CP ao n.º 1 do mesmo preceito legal porque, enquanto que neste se pune a conduta do funcionário que actua no âmbito de um inquérito processual, de um processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, no n.º 4 pune-se a conduta do funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei.
Já não faz referência a lei a um qualquer processo pelo que a conduta típica pode ser levada a cabo no âmbito de um processo ou fora dela.
A não ser assim, para além da tautologia da lei, ficariam sem punição casos como os levados a cabo pelo arguido.
O que, contrariando a letra da lei, seria absurdo[9].

3.5 O recorrente afirma ainda que da conjugação das disposições previstas nos artigos 2 e 3 da Lei 5/95 de 21 de Fevereiro, 48-A e 49 do Dec-Lei 433/82, de 27 de Outubro, 28º da Lei 53/2008 de 29 de Agosto e 250º do CPP, mesmo que por mera hipótese se considerasse que o Arguido/ Recorrente executou medida privativa da liberdade, tal execução sempre teria que ser considerada executada de forma legal.
Não é isso que resulta de qualquer um das leis citadas.
De resto, a Lei 5/95 está hoje revogada.
Com efeito, como bem se afirma no Parecer da PGR, antes citado, a lei 5/95 “visava o estabelecimento da obrigatoriedade de porte de documento de identificação, o qual, nos termos da respectiva proposta, era exigível a qualquer pessoa que se encontrasse ou circulasse em lugar público ou sujeito a vigilância policial, quando razões de segurança interna o justificassem.
A exigência de identificação era encarada como uma medida de polícia (administrativa), da competência dos agentes das forças ou serviços de segurança que exerciam funções de segurança interna (forças e serviços identificados por remissão para disposições da Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, a lei de Segurança Interna).
A intervenção do Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva (acórdão n.º 479/94) retirou ao diploma a sua abrangência inicial e originou a sua modificação, restringindo-se a obrigação de identificação aos casos de existência de fundadas suspeitas da prática de certos tipos legais de crimes. Se não for possível formular este juízo de suspeição, não existe obrigação de identificação nem é possível a condução de cidadão a posto policial com a única finalidade de proceder à sua identificação.
Isto é, a obrigação de identificação, inicialmente concebida como medida de polícia administrativa transmuda-se em medida cautelar de polícia inserida na função administrativa e na função judiciária das polícias, na sua actividade de órgãos de polícia criminal.
O outro aspecto tem a ver com a reforma do processo penal de 1998.
Com a reformulação do artigo 250.º do CPP o legislador pretende resolver as «dificuldades de conjugação» entre este artigo e a Lei n.º 5/95 por forma a eliminar «incertezas e ambiguidades» em matéria directamente relacionada com direitos fundamentais.
Isto dito, há que reconhecer que a reformulação, na reforma de 1998, do artigo 250.º do CPP obedece ao propósito, assumido pelo legislador, de eliminar «incertezas e ambiguidades» existentes entre o primitivo artigo 250º e a Lei n.º 5/95, aproveitando os aspectos mais positivos de cada um destes regimes.
O novo artigo 250.º, ao regular de forma sistematizada a identificação de suspeitos, incorporando ou contrariando soluções anteriores, vai procurar substituir tanto o artigo alterado como a Lei n.º 5/95, cujas soluções nalguns casos reproduz, noutros afeiçoa, noutros contraria.
Só esta solução poderá eliminar «as incertezas e ambiguidades numa matéria que se prende com os direitos fundamentais».
O certo é, porém, que a Lei n.º 5/95 não só não foi objecto de revogação expressa por parte da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto (que aprovou a reforma do processo penal e a nova redacção do artigo 250.º) como foi alterada, algum tempo antes, pela Lei n.º 49/98, de 11 de Agosto.
Esta alteração, tratada no âmbito do Ministério da Defesa Nacional, traduziu-se tão-só no aditamento da Polícia Marítima ao elenco das forças e serviços de segurança constante do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 5/95 [a inclusão não ocorrera inicialmente por causa da indecisão então existente sobre o futuro da Polícia Marítima].
A observação da não revogação expressa reveste, como a anterior, carácter formal e não tem maior valor que o da mera constatação de um dado de facto: a inexistência de revogação expressa.
Para além da revogação expressa, nas situações de sucessão de leis, quando existe incompatibilidade entre as disposições novas e as regras precedentes, as primeiras substituem as segundas, que cessam a sua vigência por efeito da chamada revogação tácita.
E, justamente, os autores que encararam a questão que nos ocupa têm considerado - mas não justificado, reconheça-se - que a Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, foi tacitamente revogada pelo artigo 250.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
Assim, Lopes da Mota, depois de referir que a reformulação do artigo 250.º resolveu as dificuldades de conjugação com o estipulado na Lei n.º 5/95, afirma que esta circunstância «implica a revogação tácita das normas da Lei n.º 5/95 cujo conteúdo passou a fazer parte da previsão do artigo 250.º do CPP».
Também Maia Gonçalves se pronuncia sobre a matéria, referindo, primeiro, que «[c]om o texto deste artigo ficaram revogados dispositivos da Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro» e noutro passo, mais afirmativo, que a Lei n.º 5/95 «ficou revogada com os novos dispositivos deste artigo 250.º».
Secundando o anterior entendimento de que da redacção dada ao artigo 250.º do CPP «terá resultado a revogação tácita da Lei n.º 5/95», afigura-se-nos que tal posição deve ser confirmada.
Mas importa analisar mais de perto a solução da revogação tácita.
O artigo 250.º do CPP e a Lei n.º 5/95 versam sobre a mesma matéria e há, como acabamos de ver, entre ambos uma grande sobreposição normativa.
Esta sobreposição abrange os aspectos essenciais do regime jurídico da identificação de suspeitos (e só esta é possível): competência subjectiva para a identificação, pressupostos, meios de identificação e procedimento de identificação no caso de condução e permanência em posto policial.
Em todos estes aspectos as disposições novas do artigo 250.º afastam a aplicação das regras precedentes constantes da Lei n.º 5/95. Nomeadamente, a permanência em posto policial não pode em caso algum ser superior a seis horas, devendo restringir-se ao tempo estritamente indispensável à identificação.
O legislador, acentuando que o tempo de permanência deve ser o «estritamente indispensável à identificação», manteve o limite máximo constante do código, porventura por o considerar mais realista face à natureza das provas que haja necessidade de produzir.
Apesar disto, os órgãos de polícia criminal devem sempre restringir ao mínimo o tempo de permanência em posto policial, o que, face à obrigatoriedade de documentação dos actos e investigações efectuados (cf. artigos 250.º, n.º 7, e 253.º, n.º 1, do CPP), não deixará de ser fiscalizado tanto pelas autoridades judiciárias como pelos controlos policiais internos.
Mas há também, é certo, aspectos pontuais da Lei n.º 5/95 que não são considerados nem têm correspondência no artigo 250.º
Em primeiro lugar, o n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º 5/95 (a omissão do dever de comunicação ao identificando das circunstâncias que fundam a obrigação de identificação e de indicação dos meios por que se pode identificar determinam a nulidade da ordem de identificação) não tem paralelo no artigo 250.º do CPP.
Neste consagra-se igualmente esse dever, mas, por opção do legislador, a sua omissão ficará sujeita ao regime geral das nulidades previsto no código.
Em segundo lugar, a obrigatoriedade de os cidadãos maiores de 16 anos serem portadores de documento de identificação sempre que se encontrem em lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial (n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 5/95), também não tem correspondência no artigo 250.º do CPP.
E compreende-se que não tenha. Tal prescrição - como a constante do n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 5/95 (comunicação ao respectivo responsável quando se deva presumir que o identificando possa ser menor) – faziam sentido na lógica abrangente da proposta de Lei n.º 85/VI e do decreto n.º 161/VI, que previam a possibilidade de os agentes das forças ou serviços de segurança exigirem a identificação de qualquer pessoa que se encontrasse em lugar não reservado.
Quando, nos termos da própria Lei n.º 5/95 tal obrigação passa a abranger apenas os suspeitos da prática de crime (e não qualquer pessoa), a obrigatoriedade do porte de documento de identificação deixou de fazer sentido; e é por isso que a Comissão de Revisão do CPP fala na manutenção de «um pitoresco dever geral de porte de identificação, cuja violação não é sancionada».
De todo o modo, ainda se pode dizer, a este propósito, que do artigo 250.º, ao estatuir o dever de identificação, «decorre implicitamente a consagração da obrigação do porte de documento de identificação», ao menos para aqueles a quem o mesmo pode ser exigido.
Por fim, merece menção o n.º 4 do artigo 2.º também sem expressão no artigo 250.º do Código.
Tal disposição - proveniente da proposta de Lei n.º 85/VI – faz todo o sentido em diploma que imponha o dever geral de identificação e que preveja a possibilidade de detenção de qualquer pessoa, abstraindo da qualidade de suspeita, para efeito de identificação. Já faz menos sentido num diploma como a Lei n.º 5/95 ou o actual artigo 250.º do CPP, onde se restringe a obrigação de identificação aos suspeitos da prática de crimes.
Todavia, ainda aqui importa acrescentar o seguinte: alguns dos documentos referidos no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 59/93, de 3 de Março, como no correspondente n.º 2 do artigo 12.º do Decreto- Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto (agora em vigor), são susceptíveis de enquadramento no conceito de «documento que substitua o passaporte» ou no de «documento original, ou cópia autenticada» que contenha o nome completo, a assinatura e a fotografia do identificando [artigo 250º, n.º 3, alínea b), e n.º 4, respectivamente].
Enfim, tudo ponderado, afigura-se-nos que os elementos coligidos - com realce tanto para os resultantes dos processos legislativos da Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, e da reforma de 1998 do processo penal como para a teleologia subjacente à alteração do artigo 250.º do CPP - apontam com clareza no sentido de que a Lei n.º 5/95, de 21 Fevereiro, foi objecto de revogação tácita pelo artigo 250.º do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto”.
Não pode o Recorrente socorrer-se, em abono da sua tese, de legislação revogada.
Que, aliás, nem sequer consagrava solução diferente do que a prevista no art.º 250º do CPP.
E nem a podia consagrar sob pena de pena de violar o texto constitucional – referida al. g) do n.º 3 do art.º 27º - o que implicaria a sua desaplicação.

O art.º 250º do CPP, em vez de “legalizar” a conduta do Recorrente, e como já anteriormente demostrámos, “obriga” a se considere ilegal a detenção.

O art.º 48º-A do RGCO tem por epígrafe “apreensão dos objectos” e, por isso, não tem aplicabilidade no caso em análise.
Seguramente queria o Recorrente referir-se ao n.º 2 do art.º 48º do RGCO.
Este preceito, conjugado com o do artigo 49º do RGCO permite às autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais que exijam ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação.
Mas não lhes permite deter esse cidadão quando o mesmo não se recusa a identificar, como aconteceu no caso em apreço.
Por isso, tem razão o Recorrente quando afirma que, estando em causa uma contra-ordenação ao telemóvel, nos termos do artigo 49 do Dec-Lei 433/82 de 27 de Outubro, o arguido/Recorrente poderia exigir ao agente da contra-ordenação a respectiva identificação.
Verdade.
Todavia: onde está o auto de contraordenação?
E como pode o Recorrente afirmar que há recusa de identificação se a Demandante quis mandar vir os documentos que não tinha consigo, e o Recorrente o impediu, detendo-a?
Enfim…
O art.º 28º da Lei 53/2008 de 29 de Agosto apenas permite, em redundância do art.º 250º do CPP, na sua alínea a) do n.º 1 “A identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial”.
Pessoas suspeitas (da prática de crimes ou em qualquer outra das situações previstas no art.º 250º do CPP) e não pessoas não suspeitas de práticas delituosas.
Como é óbvio, num Estado de direito Democrático.

3.6 Quando o Recorrente alega que, ao dispor o n.º 2 artigo 48°-A do dito Decreto-Lei n° 433/82 que “Na medida em que o contrário não resulte desta lei, as autoridades policiais têm direitos e deveres equivalentes aos que têm em matéria criminal” está a afirmar o óbvio.
Porém, quando acrescenta que, não sendo a condutora portadora de nenhum documento de identificação, nem tendo feito menção de comunicar com uma pessoa que apresentasse os seus documentos de identificação ou manifestando vontade de se deslocar, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação ou finalmente manifestar a vontade de ser reconhecida a sua identidade por uma pessoa identificada que garantisse a veracidade dos dados pessoais indicados pela condutora, está a, abusivamente, e salvo o devido respeito, litigar contra a factualidade assente, o que, a todos os títulos é censurável.
O princípio do processo equitativo tem como destinatários todos os sujeitos processuais, incluindo o Arguido.
Por isso, nada mais se refere neste ponto concreto salvo que, nos termos do n.º 6 do art. 250 do CPP não estava o Arguido/Recorrente legitimado a poder conduzir a condutora ao posto policial mais próximo e compeli-la a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas.
Antes, deteve a Demandante de forma arbitrária e ilegal, altamente censurável, pelo que tinha de ser, como foi, condenado pela prática de um crime de prevaricação.

Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação.

DECISÃO:
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma o douto acórdão recorrido.
Fixa-se em 6 Ucs a tributação.

Porto, 9.01-2013
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro
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[1] Código de Processo Civil Anotado
[2] Ac do STJ de 22/05/2012, processo 5504/09.7TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt
[3] Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol I, Coimbra 2001. No mesmo sentido, Damião da Cunha, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260.
[4] Ac. do STJ, de 08 de Outubro de 2008, processo 07P03 1, disponível em www.dgsi.pt
[5] Jornadas de Direito Processual Penal, Edição do CEJ, Almedina 1997, pp 70 a 73
[6] Este e os realces que se seguem são da nossa responsabilidade
[7] Curso de Processo Penal, Editorial verbo, 1999, II vol. pp 208 e segs.
[8] Código Anotado, pp. 624 e segs
[9] Neste sentido, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, III edição, II vol. p. 1583