Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2907/05.0TBPRD-A.P1
Nº Convencional: JTRP00042494
Relator: M. PINTO DOS SANTOS
Descritores: EXECUÇÃO ESPECIAL POR ALIMENTOS
TÍTULO EXECUTIVO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
Nº do Documento: RP200904202907/05.0TBPRD-A.P1
Data do Acordão: 04/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 308 - FLS 23.
Área Temática: .
Sumário: I - Não deve ser rejeitada a execução especial por alimentos (devidos a menor), com base em (manifesta) falta de título executivo, quando na base da mesma está uma sentença homologatória — transitada em julgado - do acordo alcançado na acção de regulação do poder paternal em que os progenitores da menor estipularam uma determinada prestação mensal a título de alimentos.
II - Tal sentença homologatória é título executivo suficiente para a propositura da execução para pagamento das prestações entretanto vencidas e não pagas pelo progenitor-devedor (e, bem assim, para cobrança coerciva das prestações/mensalidades que se forem vencendo na pendência do processo executivo, fundamentando, neste caso, o recurso à cumulação sucessiva prevista no art. 54° do CPC), não havendo necessidade de recurso prévio ao incidente de incumprimento, previsto no art. 181° da OTM, a fim de aí se obter decisão que reconheça o não pagamento das prestações vencidas a executar, incidente que nem sequer é aplicável quando estejam em causa prestações de alimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2907/05.0TBPRD-A.P1
(agravo)
_________________________________
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Cândido Lemos
Des. Marques de Castilho
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Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

B………. instaurou contra C………., ambos devidamente sinalizados nos autos, a presente execução especial por alimentos devidos a menor (apesar da exequente a ter apelidado de “execução comum para pagamento de quantia certa” e de ter sido autuada como “execução comum”), requerendo o pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), fundando-a em sentença homologatória do acordo concretizado no âmbito do processo de regulação do poder paternal da menor D………., filha de ambos, mediante o qual o executado se obrigou a pagar a esta, a título de alimentos, a quantia mensal de € 200,00, até ao dia 20 do mês a que dissesse respeito e com início em Outubro de 2005, depositando-a numa conta aberta em nome da menor, o que, no entanto, nunca aconteceu, estando já em dívida a quantia cujo pagamento reclama.

Realizada a penhora (que incidiu sobre bens móveis), foi o executado citado nos termos legais, não tendo deduzido qualquer oposição.
A fls. 54-55 e 81-82, a exequente requereu cumulações sucessivas (designando-as de “ampliações do pedido”) – que foram admitidas -, tendo, por via disso, a dívida exequenda passado, sucessivamente, para € 2.600,00 e € 3.400,00.
A fls. 97-98 requereu nova cumulação sucessiva que, no entanto, não foi admitida por despacho de fls. 99.
Foi cumprido o art. 864º do CPC e não foi reclamado qualquer crédito.

A fls. 125, por ter dado conta que “quando a exequente intentou a presente execução não havia sido proferida qualquer decisão quanto ao incidente de incumprimento que havia sido deduzido” e que, por isso, “não havia ainda nenhuma decisão judicial que reconhecesse o incumprimento do requerido relativamente à prestação de alimentos”, ordenou a notificação da exequente “para, no prazo de 10 dias, se pronunciar quanto à excepção de inexistência de título”.

A exequente pronunciou-se, a fls. 133 a 137, sobre a questão suscitada no despacho de fls. 125 pugnando pela improcedência da “excepção de inexistência de título” e pelo prosseguimento dos autos.

A fls. 138 e 139, a Mma. Juíza proferiu o seguinte despacho (que se transcreve integralmente):
“B………. intentou, em 7 de Fevereiro de 2006, por apenso aos autos de regulação do exercício do poder paternal n.º 2907/05.0TBPRD, a presente execução por alimentos, fazendo constar do requerimento inicial que o título executivo é “sentença condenatória judicial".
A verdade é que compulsados melhor os autos de regulação e o incidente de incumprimento do poder paternal que a, aqui, exequente deduziu, verificamos que na data em que a exequente intentou a presente execução não havia qualquer decisão judicial que reconhecesse o incumprimento por parte do executado relativamente à prestação de alimentos fixada.
Por essa razão, determinou-se a notificação da exequente para se pronunciar quanto à excepção de inexistência do título executivo.
A mesma veio, a fls. 127 e seguintes, dizer que quando deu entrada da execução já era detentora de título executivo, já que baseou a execução na sentença que homologou o acordo de regulação do exercício do poder paternal.
Diz, ainda, que a excepção em causa não foi arguida e que na presente execução foram já proferidos vários despachos, pelo que deixou essa excepção de ser de conhecimento oficioso.
Apreciando.
Ao contrário do que alega a exequente, quando a mesma intentou a presente execução não existia qualquer título executivo, porquanto não havia sido proferida decisão quanto ao incidente de incumprimento que havia deduzido que reconhecesse que o requerido estava em dívida e legitimasse a exequente a intentar a presente execução.
Diz a exequente que o tribunal não pode, neste momento, conhecer oficiosamente da excepção de falta de título executivo.
Ora, a verdade é que a ausência de título executivo deveria ter conduzido ao imediato indeferimento liminar da presente execução - cfr. art. 812.º, n.º 2, aI. a), do Código Processo Civil.
Por sua vez o art. 820.º, n.º 1, do Código Processo Civil dispõe que "sem prejuízo do disposto no n.º 1 do art. 812.º, o juiz pode conhecer oficiosamente das questões a que aludem os n.º 2 e 4 do mesmo artigo ( ... ) até ao primeiro acto de transmissão de bens penhorados".
Ora, na presente execução não houve ainda qualquer acto de transmissão de bens penhorados, pelo que pode o tribunal conhecer oficiosamente da referida excepção.
Decisão:
Em face do exposto, e por considerar ser manifesta a inexistência de título executivo, indefiro liminarmente o requerimento executivo.
Custas pela exequente (art. 446º do Código de Processo Civil).
Notifique”.

Inconformada com este despacho, a exequente interpôs tempestivamente o presente recurso de agravo cuja motivação, constante de fls. 166 a 178, culminou com as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente agravo da sentença que indeferiu liminarmente a presente execução alegadamente por inexistência de título executivo, quando, por apenso ao processo de regulação de poder paternal, ficou a exequente detentora de título executivo.
2. O título executivo, podemos defini-lo, na esteira de Manuel de Andrade, como o documento de acto constitutivo ou certificado de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base (de) apoio ao processo executivo.
3. Ou, então, como Mandrioli como um acto de verificação (acertamento) contido num documento que, no seu complexo, constitui a condição necessária e suficiente para proceder à execução forçada sendo condição indispensável para o exercício da acção executiva, mas a causa de pedir na acção, não é o próprio documento, mas a relação substantiva que está na base da sua emissão, ou seja, o direito plasmado no título, pressupondo a execução o incumprimento de uma obrigação de índole patrimonial, seja ela pecuniária ou não - art. 46º c) do Código de Processo Civil, após a Revisão.
4. A questão de saber se o acordo de regulação de poder paternal, o qual como resulta dos presentes autos tem vindo a ser incumprido independentemente do incidente de incumprimento deduzido nos autos tem força executiva.
5. No caso, se vale para a exequente pedir o pagamento dos alimentos para a sua filha menor, implica que, sob o ponto de vista material e formal, o credor da prestação de entrega tivesse o seu direito indiscutivelmente reconhecido, quer em função do documento que o forma, quer em função da obrigação do devedor, plasmada no documento invocado como titulo executivo.
6. Ora, a verdade é que já foi a presente execução objecto de despacho liminar que a admitiu, já foi realizada penhora de bens do executado, já houve citação do mesmo para deduzir oposição, e o mesmo nada disse, tendo pois como cominação a assunção da obrigação plasmada no título executivo, foi já requerida por diversas vezes a ampliação do pedido, tendo em todas elas o executado sido citado para dizer o que tivesse por conveniente, tendo o mesmo aceite em todas elas o valor do montante em dívida.
7. O alegado título executivo, em causa, reconhece ao credor o direito de receber o montante referente aos alimentos devidos à filha menor de exequente e executado.
8. Sendo assim, tal documento constitui condição necessária e suficiente para instaurar execução contra o alegado devedor da prestação exequenda.
9. É certo que do requerimento executivo consta “sentença condenatória judicial”, mas a verdade é que ao tempo da entrada em juízo não dispunha o sítio "habilus" de possibilidade de mencionar outro título judicial a não ser "despacho", motivo pelo qual a exequente para a realização coactiva da prestação deu à execução como título a acta que homologou a regulação de poder paternal, da qual constava a obrigação do executado de liquidar mensalmente o montante que dali decorria e que não havia feito.
10. Assim, e como o acordo de regulação de poder paternal foi convertido em sentença, encontrava-se o executado judicialmente obrigado a prestar de alimentos 200,00 Euros mensais, e porque não (o) fez, a exequente intentou a presente execução com o título único de que dispunha.
11. Sabe-se que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam, o fim e os limites da acção executiva (art. 65º, nº 1 do Código de Processo Civil, abreviando e doravante CPC).
12. O título executivo é o documento donde resulta a exequibilidade de uma pretensão, e por conseguinte, a possibilidade da realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva.
13. Por isso, costuma dizer-se que tem uma função constitutiva, na medida em que atribui exequibilidade a um pretensão, possibilitando que a correspondente prestação seja realizada coactivamente.
14. Às partes está vedado atribuir força executiva a qualquer documento que a lei não preveja como título executivo, assim como também lhes é vedada a recusa de força executiva a um documento legalmente previsto e qualificado como tal, é regra da tipicidade estabelecida no art. 46º do CPC, ao dispor que à execução apenas podem servir de base os títulos enumerados.
15. No caso dos autos o exequente baseou a execução na sentença que homologou o acordo de regulação de poder paternal, que é claro quanto à causa da dívida, e a execução foi admitida, porque sujeita a despacho liminar, e depois de realizada a penhora de bens do executado, foi a mesma judicialmente validada, tendo os autos prosseguido para venda daqueles, o objecto de diversas ampliações de pedido.
16. Assim, a excepção de inexistência do título executivo não foi arguida, e depois da existência de diversos despachos judiciais a incidir na execução, também deixou de ser de conhecimento oficioso, mais a mais tendo sido aberta conclusão por diversas vezes da presente execução, para que o meritíssimo juiz "a quo" ordenasse o que tivesse por mais conveniente.
17. Decorre dos arts. 812º-A, nº 1, d) e 812º-B, nº 1, parte final, do Código e Processo Civil que a execução em causa, dado o seu valor e a natureza do título executivo invocado (título judicial) não comporta, nem despacho liminar, nem citação prévia do executado, iniciando-se o processo com a penhora, tudo se passando sem a intervenção do juiz, devendo, após o ingresso do processo em juízo, ter início as diligências visando a penhora, sob a égide do solicitador da execução - art. 832º, nº 1, 1ª parte, do Código de Processo Civil.
18. Nas situações previstas nas alíneas b) e c) do nº 2 e no nº 4 do artigo 812º, é manifesto que, tendo o funcionário as dúvidas que tiver, se elas se reportarem à competência territorial do tribunal da execução, tal não é fundamento para apresentar o processo a despacho liminar.
19. Só o deverá fazer nos casos previstos nas als. a) e b) do nº 2 do art. 812º-A que, manifestamente, não contemplam a questão da competência territorial, e nos casos do nº 4 do art. 812º do Código de Processo Civil, com remissão para o nº 2, que, de modo algum, implicam a apreciação da excepção da incompetência relativa, antes contendendo com a falta de título, a ocorrência de excepções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso ou, em caso do título ser de índole negocial, se for manifesta a inexistência de factos constitutivos, ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação plasmada no titulo exequendo.
20. Nestes casos é que o Juiz deve intervir, a solicitação do funcionário judicial, tendo que proferir despacho liminar, "convidando o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 2 do artigo 265º”.
21. O Tribunal recorrido não poderia, oficiosamente, conhecer (da) inexistência de título executivo, depois de na mesma ter proferido várias decisões quanto ao mérito da mesma.
22. Decisão de mérito é a que versa sobre a questão substancial discutida no processo, a que tem atinência com a relação jurídico-material, constituindo o objecto processual.
23. No caso da execução em apreço, a questão do mérito nem sequer é passível de apreciação oficiosa - art. 820º do Código de Processo Civil - devendo ser suscitada pelo executado, pela via da oposição à execução - arts.813º e 816º do Código de Processo Civil.
24. Não havendo, no caso, despacho liminar, não há "decisão de mérito" sobre qualquer questão.
25. Na penhora, por não haver decisão prévia, a apreensão de bens ocorre sem controlo judicial, que apenas pode existir na fase de apreciação do mérito do processo executivo, ou seja, na oposição eventualmente oferecida pelo executado, que bem pode aí invocar a incompetência territorial.
26. Assim sendo, não pode manter-se o despacho sob censura e, deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, para que seja substituído por outro que determine a normal tramitação do processo no Tribunal recorrido.
Nestes termos, (…), deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e o douto despacho «a quo» ser revogado e substituído por outro que determine a normal tramitação da execução”.

O executado não apresentou contra-alegações e a Mma. Juíza «a quo» sustentou o despacho recorrido, mantendo-o (fls. 195).
Foram colhidos os vistos legais.
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II. Questões a apreciar e decidir:

Porque o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (art. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3 do actual C.Proc.Civ.), as questões que importa apreciar e decidir neste acórdão, apesar da extensão daquelas, são apenas duas e consistem em saber:
● Se o título executivo da presente execução por alimentos podia ser (e é) apenas a sentença homologatória do acordo concretizado no processo de regulação do poder paternal da menor supra identificada (na parte em que foi estipulada uma quantia mensal a título de alimentos), ou se a execução só podia ser instaurada depois da exequente se munir de decisão que reconhecesse o incumprimento da obrigação de alimentos ali fixada (funcionando esta – e não aquela sentença homologatória - como verdadeiro título executivo).
● E se – inexistindo título executivo - a execução podia ser rejeitada ao abrigo do disposto no art. 820º do CPC, como o foi «in casu».
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III. O circunstancialismo a considerar e o direito:

Para decisão deste agravo importa ter em conta o seguinte circunstancialismo:
a) Em 28/09/2005, por acordo efectuado entre os aqui exequente e executado no processo de regulação do poder paternal da menor D………., filha de ambos, o segundo obrigou-se, designadamente, a pagar, a título de alimentos, a quantia mensal de € 200,00, até ao dia 20 de cada mês, com início em Outubro de 2005, actualizada anualmente de acordo com o índice de inflação.
b) Tal acordo foi homologado por sentença proferida no mesmo dia, a qual não foi objecto de recurso.
c) Em 04/01/2006, a aqui exequente deduziu incidente de incumprimento do acordado/decidido no aludido processo de regulação do poder paternal, o qual foi decidido a 19/12/2007, com reconhecimento de que o executado, aí requerido, incumpriu o que estava estabelecido naquele processo (o exarado nesta alínea e nas duas anteriores resulta directamente da certidão emitida, a nossa solicitação, pelo tribunal «a quo» e que nós próprios juntámos aos autos constando das folhas que antecedem este acórdão).
d) A presente execução deu entrada em juízo a 07/02/2006 e no respectivo requerimento inicial é indicado como título executivo a sentença homologatória referida em b) (circunstância que decorre, respectivamente, do carimbo aposto na parte superior direita da 1ª folha do requerimento executivo e do teor deste).
e) Nesta execução os bens penhorados não foram objecto de qualquer acto de transmissão (circunstância que se afere da tramitação levada a cabo nos autos).
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1. Apesar da sequência indicada em II, começaremos pela apreciação da questão referida em segundo lugar, ou seja, por saber se era possível à Mma. Juíza «a quo», desde que verificado o pressuposto em que assentou a sua decisão (questão que apreciaremos depois), rejeitar a execução nos termos do invocado art. 820º do CPC, na versão aqui aplicável, dada pelo DL 38/2003, de 08/03 [diploma de que serão os preceitos que citaremos sem outra menção].
Antes disso, há que fazer um primeiro reparo aos termos utilizados na parte decisória do despacho recorrido, no segmento em que se diz que “(…) indefiro liminarmente o requerimento executivo (…)”, pois nem o processo se encontrava, então, na sua fase “liminar” - pelo contrário, já estava pendente há dois anos e oito meses e já havia sido objecto de inúmeros actos típicos da normal tramitação do processo executivo, conforme se afere da resenha constante do ponto I deste acórdão - nem o art. 820º alude a “indeferimento liminar” (a isso referem-se os nºs 2, 3 e 5 do art. 812º), mas sim a “rejeição”, como expressamente consta do seu nº 2, expressão que deveria, por isso, ter sido ali adoptada.
Retomando a questão em apreço, dispõe o art. 820º que “sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 812º, o juiz pode conhecer oficiosamente das questões a que aludem os nºs 2 e 4 do mesmo artigo, bem como a alínea c) do nº 3 do art. 812º-A, até ao primeiro acto de transmissão de bens penhorados (nº 1) e que “rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, ordenando-se o levantamento da penhora, sem prejuízo de prosseguir com objecto restrito quando a rejeição for parcial” (nº 2).
Este normativo é aplicável à execução especial por alimentos, regulada nos arts. 1118º e segs., “ex vi” do estatuído no nº 3 do art. 466º que prescreve que “às execuções especiais aplicam-se subsidiariamente as disposições do processo comum”.
Apreciando aquele art. 820º, escreve Amâncio Ferreira (in “Curso de Processo de Execução”, 4ª edição revista e actualizada, 2003, pg. 152), que o mesmo prevê, nomeadamente, “que o juiz não ordene o prosseguimento da execução, determinando a sua extinção, mesmo que não tenha sido deduzida oposição, baseado nas questões que não haja apreciado liminarmente”, acrescentando, porém, que estabelece “um limite temporal a esta actividade do juiz: o do primeiro acto de transmissão de bens penhorados”. E conclui, de seguida, que a solução do artigo se justifica “por não haver uma fase de saneamento no processo executivo e ser necessário limitar o efeito preclusivo emergente não só do não conhecimento pelo juiz de certa questão, em sede liminar, mas também da não dedução de oposição pelo executado, quando a instância executiva é fatalmente irregular ou a obrigação exequenda é manifestamente inexistente”.
Por sua vez, Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pgs. 334 e 335) refere que “o conhecimento oficioso das questões que, inicialmente, podiam fundar o indeferimento liminar ou um despacho de aperfeiçoamento pode ter agora lugar até ao primeiro acto de transmissão de bens penhorados” e que “só com a primeira transmissão de bens realizada no processo executivo, seja por venda, seja por adjudicação, seja por entrega de dinheiro, (…), é que preclude, (…), a possibilidade de apreciação, (…), dos pressupostos processuais gerais (…) e das questões de mérito respeitantes à existência da obrigação exequenda (…)” (cfr. tb Joel Timóteo, in “Prontuário de Formulários e Trâmites”, vol. IV, Processo Executivo, Quid Juris, 4ª ed. rev. e act., pg. 614, nº 58).
Temos, por conseguinte, como incontroverso que o Juiz pode rejeitar a execução ao abrigo do disposto no art. 820º quando, tenha havido ou não despacho liminar, se verifique (o Juiz se aperceba) alguma das causas que nos termos dos arts. 812º nºs 2 als. a) a c) e 4 e 812º-A nº 3 al. c) determinariam o indeferimento liminar se o processo o comportasse ou se o Juiz tivesse constatado a sua existência, e desde que nos autos não tenha havido ainda nenhum acto de transmissão de bens penhorados, quer na sequência de venda dos mesmos, quer devido a adjudicação ou a entrega de dinheiro.
Daí que a rejeição em questão tanto possa acontecer antes como depois das fases da penhora e da citação dos credores e independentemente dos incidentes que tenham ocorrido nos autos, nomeadamente por dedução de cumulação(ões) sucessiva(s).
Por isso, não era pelo facto de no presente processo terem sido já requeridas e admitidas várias cumulações sucessivas da execução, nem por a penhora e a citação dos credores terem sido já levadas a cabo, que a Mma. Juíza «a quo» estava impedida de lançar mão do permitido por aquele art. 820º, tanto mais que, por um lado, não tinha havido [e não tinha que haver, em atenção ao estabelecido nas als. a) e d) do nº 1 do art. 812º-A] conclusão nos autos para prolação do despacho liminar a que aludem os referidos arts. 812º e 812º-A e, por outro, porque a causa invocada para a rejeição foi a da al. a) do nº 2 do primeiro destes artigos – ausência de título executivo – que é uma das previstas no nº 1 daquele art. 820º.
Questão é saber se não havia efectivamente título executivo que sustentasse a pretensão executiva da exequente, como se entendeu no despacho recorrido.
Esta é a questão que passaremos a apreciar.
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2. A Mma. Juíza «a quo» rejeitou a execução por ter entendido que inexistia título executivo que “legitimasse a exequente a intentar a presente execução”, uma vez que ainda “não havia sido proferida decisão quanto ao incidente de incumprimento que havia deduzido que reconhecesse que o requerido estava em dívida”.
Considerou-se, pois, no despacho recorrido que a presente execução por alimentos devidos à menor supra identificada não podia basear-se na sentença homologatória do acordo concretizado nos autos de regulação do poder paternal referidos nas als. a) e b) do ponto III deste acórdão (no qual, relembre-se, o aqui executado, com a «chancela» judicial, ficou obrigado a pagar à menor, a título de alimentos, até ao dia 20 de cada mês, a partir de Outubro de 2005, a quantia mensal de € 200,00), mas sim na decisão que viesse a ser proferida no incidente de incumprimento – previsto no art. 181º da OTM - que a aqui exequente-agravante tinha apresentado antes da propositura desta acção executiva.
A agravante insurge-se contra este entendimento sustentando que a execução podia fundar-se apenas na mencionada sentença homologatória.
Daí que a questão a resolver seja, precisamente, a de saber se tal sentença homologatória era título executivo suficiente para a instauração desta execução - e para as cumulações sucessivas apresentadas pela exequente (conforme explanado em I) -, ou se esta devia antes assentar na decisão que viesse a ser proferida no citado incidente de incumprimento.
Prescreve o nº 1 do art. 45º que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”, resultando do nº 2 do mesmo preceito que o fim desta “pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo”.
O «título executivo» pode ser definido “como o documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo”, ou “como um acto de verificação (…) contido num documento que, no seu complexo, constitui a condição necessária e suficiente para proceder à execução forçada”, ou, ainda, como “o documento que, por consubstanciar a demonstração legal bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base a uma execução” (cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., pg. 19, citando Manuel de Andrade e Mandrioli e Salvador da Costa, in “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, 6ª Ed., Almedina, 2008, pgs. 312 e 313, citando Castro Mendes e as suas “Lições de Processo Civil” e “A Causa de Pedir na Acção Executiva”).
E não se confunde com a causa de pedir na acção executiva, pois esta “é a factualidade essencial reflectida no título executivo”, é o relato da “existência da própria obrigação exequenda” apresentado no requerimento inicial, ao passo que o título executivo é “o documento idóneo à sua legal demonstração” (cfr. Salvador da Costa, ob. cit., pg. 313; em sentido diverso, defendendo que o título executivo corresponde à causa de pedir, v. Lopes Cardoso, in “Manual da Acção Executiva”, Ed. INCM, 1987, pg. 27).
Entre as espécies de títulos executivos tipificados (taxativamente) no art. 46º surgem, em primeiro lugar, as de natureza judicial, mais propriamente as “sentenças condenatórias” (expressão utilizada em sentido amplo, abrangendo quer as sentenças propriamente ditas, quer os despachos que contenham uma decisão condenatória), nelas se incluindo, designadamente, as sentenças homologatórias de transacção (cfr. Lopes Cardoso, ob. cit., pgs. 41 a 43; Lebre de Freitas, ob. cit., vol. 1º, 1999, pgs. 90 e 91 e Amâncio Ferreira, ob. cit., pgs. 21 e 22). Mas para que constituam título executivo, é necessário, em regra, que as sentenças tenham transitado em julgado, embora, excepcionalmente, possam executar-se sentenças ainda não transitadas, quando o recurso contra elas interposto tenha efeito meramente devolutivo – cfr. art. 47º nº 1.
No caso em apreço, existe uma sentença homologatória do acordo alcançado entre os aqui exequente e executado na acção de regulação do poder paternal da menor filha de ambos, mediante a qual o segundo ficou «condenado» (obrigado) a pagar a esta última, a título de alimentos, a quantia mensal a que já atrás fizemos referência. Tal sentença homologatória transitou em julgado.
Não há, pois, dúvida que a sentença em questão comporta uma verdadeira condenação do aqui executado numa determinada prestação de alimentos, embora com vencimentos futuros (a prestação só teve início no mês seguinte ao da concretização do acordo/transacção e da sentença homologatória) e periódicos.
Será que por causa destes vencimentos futuros e periódicos da prestação alimentícia a exequente estava impedida de lançar mão daquela sentença homologatória como título executivo desta execução e estava, outrossim, obrigada a recorrer ao aludido incidente de incumprimento para obter decisão que confirmasse/reconhecesse estarem em dívida as prestações reclamadas na petição executiva?
Foi este o entendimento da Mma. Juíza «a quo». Mas, com o devido respeito, não podemos acompanhar a decisão recorrida, já que esta, em nossa opinião, contraria não só as regras atinentes ao processo executivo, como as regras gerais do direito civil e é até contrária à lógica inerente a este tipo de obrigações.
Expliquemos porquê.
Em primeiro lugar, a decisão recorrida é contrária às regras que regulam o processo executivo porque a dita sentença homologatória era (e é) título suficiente (tem todos os ingredientes legalmente exigíveis para tal, na medida em que contém uma condenação numa prestação certa e determinada e transitou em julgado) para que a exequente, ora agravante (que actua em nome e representação da menor), com base nela, instaurasse a presente execução requerendo que (após a efectivação da penhora, na medida em que na execução especial por alimentos este acto precede sempre a citação do executado para pagar a dívida exequenda ou deduzir oposição à execução e/ou à penhora, conforme consta do nº 5 do art. 1118º) o executado lhe pagasse as prestações vencidas e não pagas desde a data em que este devia ter iniciado o cumprimento da obrigação de alimentos (Outubro de 2005) até à data da propositura da acção executiva, bastando que no requerimento inicial alegasse, precisamente, a existência da referida obrigação, decorrente do aludido acordo homologado por sentença (e nem sequer tinha que juntar certidão destes acordo e sentença já que a execução corre por apenso ao processo de regulação do poder paternal, onde os alimentos foram fixados) e o não pagamento, por parte do executado, das prestações mensais (ou seja, o incumprimento da dita obrigação). Não tinha que juntar título que também comprovasse o não pagamento das prestações periódicas (mensalidades de alimentos) vencidas até à instauração da execução. Pelo contrário, quem teria que fazer prova, se fosse o caso, do cumprimento da obrigação a que estava vinculado (ou seja, do pagamento das prestações mensais de alimentos) era o executado, em articulado de oposição à execução, nos termos da al. g) do art. 814º. E quanto às prestações que se foram (e iriam) vencendo na pendência da execução, a dita sentença homologatória, por estar dotada de trato sucessivo, continuaria a ser título suficiente para que a exequente, ao abrigo do disposto no art. 54º, requeresse, como requereu, as necessárias cumulações sucessivas, desde que no requerimento do respectivo incidente alegasse o não pagamento dessas mensalidades (em confirmação de que a sentença homologatória de acordo havido em processo de regulação do poder paternal em que se fixaram alimentos a um menor é título suficiente para a instauração da correspondente execução por alimentos, vejam-se, i. a., os Acs. desta Relação do Porto de 26/01/2004, proc. 0356365, in www.dgsi.pt/jtrp, da Rel. de Lisboa de 29/11/90, proc. 0038242, in www.dgsi.pt/jtrl, da Rel. de Guimarães de 30/10/2002, CJ ano XXVII, 5, 267 e do STJ de 23/01/2003, proc. 02B4379, in www.dgsi.pt/jstj e Abílio Neto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 21ª ed. act., 2009, pg. 1434, anotação 10 ao art. 1118º; e no sentido de que a mesma sentença homologatória é também título adequado às cumulações sucessivas decorrentes do não pagamento das prestações que se vencem na pendência da execução, cfr., além do Ac. do STJ citado neste parêntesis, o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/01/2008, proc. 8991/2007-1, in www.dgsi.pt/jtrl - neste último consta expressamente que a sentença homologatória do acordo com base na qual foi instaurada a execução especial por alimentos “encontra-se dotada de trato sucessivo, ou seja, possui força bastante para servir de base a execuções sucessivas, sempre que deixe de ser paga uma prestação que se vencer e dá a possibilidade de a acção executiva se renovar no mesmo processo”; e no acórdão do STJ de 23/01/2003 também se decidiu que “a sentença que fixa alimentos na acção de regulação do poder paternal constitui título executivo até à maioridade ou emancipação” do alimentando).
Em segundo, a decisão recorrida, ao exigir que o título executivo também deve demonstrar o incumprimento das prestações mensais por parte do devedor-executado, contraria, igualmente, as regras gerais do direito civil (que o processo civil adjectiva) já que não é ao credor que compete fazer a prova do não cumprimento das obrigações (ou do não pagamento das prestações) a que o devedor está vinculado, mas sim ao devedor que cumpre provar o respectivo cumprimento (ou pagamento), por este ser um facto extintivo das obrigações – art. 342º nº 2 do CCiv..
Finalmente, a tese defendida na decisão recorrida contraria a própria lógica das coisas pelo simples facto de que a ser seguida e de cada vez que o executado deixasse de pagar uma das mensalidades de alimentos, a exequente, para a poder cobrar no processo executivo, teria que, previamente, recorrer ao incidente de incumprimento para aí obter decisão que reconhecesse esse mesmo incumprimento por parte do executado, só depois podendo exigi-los nos termos do art. 1118º ou do art. 189º, este da OTM. Seria, com o devido respeito, uma duplicação absurda de procedimentos num segmento em que está em causa a prestação de alimentos (no caso até a uma menor) que podem ser (e no caso dos menores são-no) necessários à sobrevivência do alimentando e cuja cobrança coerciva exige celeridade e simplicidade, precisamente o contrário do que se conseguiria com a orientação adoptada na 1ª instância (neste sentido, Ac. da Rel. de Lisboa de 22/01/2008, supra citado).
E estas conclusões não sofrem restrição alguma pelo facto da exequente ter, desnecessariamente (quanto às prestações de alimentos não pagas), recorrido ao incidente de incumprimento, regulado no citado art. 181º da OTM, antes de ter instaurado a presente execução por alimentos (no sentido de que quando está em causa o incumprimento da prestação de alimentos não há que lançar mão deste incidente de incumprimento, cfr. Tomé Ramião, in “Organização Tutelar de Menores Anotada e Comentada”, 7ª ed., 2008, pg. 122, que refere que “tratando-se apenas de incumprimento quanto à prestação de alimentos, importa considerar o disposto no art. 189º que prevê o modo de cobrança coerciva dos alimentos vencidos e vincendos” sendo então “directamente aplicável esse preceito e não o processamento do presente incidente”). O que se impunha, no caso de estar apenas em causa o incumprimento da obrigação de alimentos por parte do aqui executado, era sim o indeferimento do incidente de incumprimento, por não ser o meio processual adequado à cobrança coerciva das prestações em dívida ou, pelo menos, a sua extinção por inutilidade superveniente a partir do momento em que a exequente (provavelmente dando conta da desnecessidade/inutilidade daquele incidente) recorreu também à execução por alimentos. Por se tratar de um incidente inútil ou, pelo menos, inócuo, relativamente à obrigação de alimentos, jamais a decisão que nele viesse a ser proferida poderia ser útil e necessária – e título executivo - para a instauração da execução destinada à cobrança das prestações de alimentos em dívida.
Munida, como estava, da sentença homologatória do acordo que, na regulação do poder paternal, havia fixado a prestação de alimentos a favor da menor, a exequente, para cobrança coerciva das importâncias mensais vencidas e não pagas, podia ter feito uma de duas coisas: recorrer à execução especialíssima (ou procedimento pré-executivo – como refere Tomé Ramião, ob. cit., pg. 152) prevista no art. 189º da OTM – se o executado-devedor se encontrasse em alguma das situações previstas nas als. a) a c) do seu nº 1 -, ou recorrer à execução especial por alimentos prevista nos arts. 1118º e segs. (do CPC) (neste sentido, Autor e obra citados em último lugar, pg. 152, anotação 1).
No caso, foi a esta última que a exequente lançou mão.
E porque dispunha de título suficiente, não podia a Mma. Juíza «a quo» ter rejeitado a execução ao abrigo do disposto no art. 820º nºs 1 e 2, com referência ao art. 812º nº 2 al. a), como o fez.
Como tal, impõe-se o provimento do agravo e a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine o prosseguimento dos autos.
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Síntese conclusiva do que ficou exposto:
● A execução pode ser rejeitada (e declarada extinta) nos termos do art. 820º do CPC, quando, tendo havido ou não despacho liminar, se verifique alguma das causas que nos termos dos arts. 812º nºs 2 als. a) a c) e 4 e 812º-A nº 3 al. c) do mesmo diploma legal determinariam o indeferimento liminar se o processo o comportasse ou se o Juiz tivesse constatado a sua existência, e desde que não tenha havido ainda nenhum acto de transmissão de bens penhorados, quer na sequência de venda dos mesmos, quer devido a adjudicação ou a entrega de dinheiro.
● Não deve ser rejeitada a execução especial por alimentos (devidos a menor), com base em (manifesta) falta de título executivo, quando na base da mesma está uma sentença homologatória – transitada em julgado - do acordo alcançado na acção de regulação do poder paternal em que os progenitores da menor estipularam uma determinada prestação mensal a título de alimentos.
● Tal sentença homologatória é título executivo suficiente para a propositura da execução para pagamento das prestações entretanto vencidas e não pagas pelo progenitor-devedor (e, bem assim, para cobrança coerciva das prestações/mensalidades que se forem vencendo na pendência do processo executivo, fundamentando, neste caso, o recurso à cumulação sucessiva prevista no art. 54º do CPC), não havendo necessidade de recurso prévio ao incidente de incumprimento, previsto no art. 181º da OTM, a fim de aí se obter decisão que reconheça o não pagamento das prestações vencidas a executar, incidente que nem sequer é aplicável quando estejam em causa prestações de alimentos.
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IV. Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao agravo e revogar a decisão recorrida, ordenando, em consequência, o prosseguimento da execução.
Sem custas, por nenhuma das partes ter dado causa a este recurso.
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Porto, 2009/04/20
Manuel Pinto dos Santos
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Augusto José Baptista Marques de Castilho