Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0850755
Nº Convencional: JTRP00041324
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: GERENTE
SUSPENSÃO
DESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP200805120850755
Data do Acordão: 05/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 339 - FLS. 91.
Área Temática: .
Sumário: I- Existindo justa causa qualquer sócio pode pedir a suspensão/destituição do gerente, sem necessidade de prévia e correspondente deliberação social e mesmo nos casos em que há um direito especial à gerência por parte do “suspendendo-destituendo”.
II- Este direito não existirá só pelo simples facto de no título constitutivo a gerência é atribuída a todos os sócios.
III- Para a justa causa em direito comercial, cuja noção a lei não dá, contribuem dois elementos: um de natureza subjectiva (comportamento simplesmente negligente do gerente, não tendo o mesmo de ser doloso); e outro de cariz objectivo (insubsistência de uma relação de confiança entre os sócios e o gerente).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 755/08[1]
(Rel. 1214)

Fernandes do Vale (10/08)
Pinto Ferreira (1897)
Marques Pereira

Acordam, no Tribunal da Relação do Porto


1 – B…………….. instaurou, em 08.03.07, na comarca de Peso da Régua, acção especial de suspensão e destituição (judicial) de gerente contra “C……………, Lda” e D……………., pedindo que seja decretada a suspensão imediata do 2º requerido das funções de gerente, ficando os poderes de gerência confiados apenas aos restantes sócios gerentes, sem audiência prévia dos requeridos, sendo, a final, decretada, com justa causa, a destituição do 2º requerido como gerente da 1ª requerida, passando esta a ser representada apenas pelo requerente e pelo sócio gerente, E…………….
Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:
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--- O requerente, o 2º requerido e E……………. são os únicos sócios da 2ª requerida, a qual se vincula apenas mediante a assinatura de dois sócios, sendo uma delas, obrigatoriamente, a do 2º requerido;
--- O funcionamento da sociedade sempre foi assegurado pelos 3 sócios que, além de gerentes, são seus trabalhadores, cabendo ao 2º requerido todo o sector de compras, gestão de stocks, encomendas, administração financeira, pagamentos e recebimentos;
--- A sociedade sempre tem tido resultados positivos e pago atempadamente os seus compromissos;
--- Em Setembro de 2006, o 2º requerido comunicou aos restantes sócios que queria ir-se embora, propondo vender a sua quota, mas nenhum dos outros sócios se mostrou interessado na sua aquisição;
--- Desde então, o mesmo não faz nada, apesar de se encontrar nas instalações da 1ª requerida, boicota o trabalho dos outros sócios, vendeu uma peça trocada, que teve de ser devolvida, mandou colocar uma bateria errada, às escondidas, emprestava material à concorrência, adquiriu peças que não vendem, bem sabendo que com essa atitude prejudicaria a sociedade;
--- A partir de Janeiro de 2007, não mais compareceu nas instalações do estabelecimento, a não ser ocasionalmente, recusou-se a assinar cheques para pagamentos de fornecedores, em Fevereiro de 2007 assinou cheques apenas para pagamento do IVA e só em 5 de Fevereiro assinou os cheques para pagamento dos salários dos trabalhadores, o que não fez ainda quanto ao mês de Fevereiro, podendo, assim, determinar a deserção do pessoal e afastar a clientela, prejudicando o bom nome que a firma tem no mercado, bem como, a curto prazo, a declaração de falência da mesma.
Realizadas as diligências reputadas necessárias e ponderada a globalidade da prova produzida, foi, em 19.03.07, proferida decisão que, deferindo ao requerido, suspendeu do cargo de gerente da sociedade “C……………, Lda” o sócio, D………….., e nomeou como representantes provisórios da referida sociedade os restantes sócios da mesma, B…………… e E…………...
Inconformado, interpôs o requerido o presente recurso de agravo, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que “declare que o agravante detém e permanece com o direito especial a gerência da mencionada sociedade, quer por via da verificação e reconhecimento da nulidade invocada por violação do princípio do contraditório, da verificação e reconhecimento que a alteração da norma estatutária que procedeu à nomeação do agravante como gerente envolve uma alteração essencial e condicionante do respectivo pacto social, por via da ausência prévia de deliberações sociais para o efeito, ou por ausência de factos concretos integradores de justa causa”.
Assim não sendo entendido, deve a decisão recorrida ser revogada, na parte em que nomeou como representantes especiais o requerente e o outro sócio, E…………, sendo substituída por outra que “determine a nomeação” (houve patente lapso, quando se escreveu “determinação”) “de representante especial, imparcial, com conhecimentos técnicos e comerciais para o efeito e a designar pelas partes”.
Culminando as suas doutas alegações, formulou estas conclusões:
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l. No requerimento inicial onde formulou o pedido de suspensão do cargo de gerente, o ali requerente e aqui recorrido, para além de ter peticionado, em sede de prova, o depoimento de parte do aqui recorrente, também aí não articulou factos concretos tendentes a fundamentar e justificar a manifesta desnecessidade de audição prévia do requerido, ou que esta poderia pôr em risco sério o fim ou a eficácia do pedido de suspensão, e tal como expressamente impõem os art.° 3°, n.° 3, e 385°, n.° l, do Código de Processo Civil;
Por outro lado,
2. Conforme douto despacho de fls. 40 dos autos, a Meritíssima Senhora Juiz “a quo”, indeferindo o peticionado depoimento de parte do aqui recorrente, não determinou a respectiva audição prévia, o que fez sem processar qualquer fundamentação ou justificação para o efeito;
3. O supra exposto conduz à conclusão no sentido de se defender e declarar que a decisão de suspensão do aqui recorrente do cargo de gerente da sociedade "C……………., Lda.", está ferida do vício da nulidade, pois que proferida sem a respectiva audiência prévia, o que também não foi fundamentado nem justificado nos autos, assim se tendo violado o princípio do contraditório;
4. Nulidade esta que o aqui recorrente invocou expressamente nos autos, conforme requerimento que formulou, e que consta de fls. 106 a 108, o que aqui também expressamente invoca nos termos do preceituado no art.° 201°, n.° l, do Código de Processo Civil, e com as legais consequências ;
5. Assim, também se concluindo, que a Meritíssima Senhora Juiz “a quo”, violou o preceituado nos art.° 3°, 385°, n.° l, e 1484° -B, n.° 2, todos do Código de Processo Civil;
Isto posto, e por outro lado,
6. Resultou indiciariamente demonstrado, e sob os números l, 2 e 4 da decisão de suspensão que aqui se impugna, que a sociedade "C…………., Lda." tem o capital social de 14.963,94 €, repartido em três quotas iguais (33,33 (3) %), pertencentes, respectivamente, ao aqui recorrente, ao requerente do pedido de suspensão e ao sócio, E………………, sendo que a sociedade obriga-se mediante a assinatura de, pelo menos, dois gerentes, devendo uma delas ser obrigatoriamente a do aqui recorrente ;
Ou seja,
7. O clausulado do contrato de sociedade em apreço indica o aqui recorrente, enquanto sócio, e de forma nominativa, como a pessoa que obriga a sociedade, pois que sem ele a sociedade não gira por os poderes de gerência não poderem ser validamente exercidos;
Por outro lado,
8. Tal como se encontra alegado nos art.°s 9° a 19° do articulado de oposição que formulou nos autos, o que também resultou indiciariamente provado sob os números 3, 4, 7, 8 e 9 da decisão de suspensão que aqui se impugna, a cláusula estatutária da nomeação do aqui recorrente como gerente foi essencial e condicionante da constituição, estrutura e funcionamento da sociedade "C………….., Lda." ;
E, por isso,
9. A suspensão ou destituição do cargo de gerente do aqui recorrente, envolve uma verdadeira alteração do pacto social, enquanto elemento essencial e estruturante da sociedade, pois que a destituição do aqui recorrente da qualidade de gerente implica uma verdadeira revogação judicial da cláusula do contrato de sociedade que lhe atribui um direito especial à gerência, ou seja, a cláusula quinta do pacto social;
Neste enquadramento,
10. E em primeiro lugar, o requerente não formulou qualquer pedido de revogação judicial da cláusula do contrato de sociedade que atribui ao aqui recorrente um direito especial à gerência, pelo que os pedidos que formulou são insuficientes e ineptos para que se conheça e decida da referida revogação judicial da cláusula estatutária de nomeação de gerente;
11. Por outro lado, e ainda que assim não fosse, enquanto elemento essencial e condicionante do contrato de sociedade, a cláusula estatutária de nomeação do aqui recorrente como gerente só poderá ser alterada por deliberação da assembleia geral de sócios tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social, nos termos do art.° 265°, do Código das Sociedades Comerciais;
E, portanto,
12. Na falta de deliberação da assembleia geral de sócios tomada nos termos expostos, não poderá o requerente, por via da presente acção judicial, obter a suspensão ou destituição do aqui recorrente do cargo de gerente e, com isso, obter a revogação judicial da cláusula que lhe atribui um direito especial à gerência, o que, para além de não ter sido peticionado, também consubstancia uma alteração ao pacto social, enquanto seu elemento essencial e condicionante;
13. Pelo que, e ao proferir a decisão de suspensão do aqui recorrente do cargo de gerente, a Senhora Juiz “a quo” violou o preceituado nos art.°s 9°, 24°, n°s l, 3, 5, 246° e 265°, todos do Código das Sociedades Comerciais;
Sem prescindir, e por outro lado,
14. Para além da acção judicial que os autos documentam não ter sido precedida de qualquer convocatória e deliberação da assembleia da sociedade para os fins de suspensão e destituição do aqui recorrente, também não foi designado qualquer representante especial;
Sendo certo que,
15. O requerente e o outro sócio e gerente, E……………., detêm, e detinham, a maioria dos votos representativos do capital social para votarem no sentido da suspensão e destituição do aqui recorrente do cargo de gerente e respectiva nomeação de um representante especial;
E, assim,
16. Sempre a acção deveria ser julgada improcedente por violação dos requisitos formais que a lei expressamente prevê para o efeito, tendo a Meritíssima Senhora Juiz “a quo” violado, desta forma, o preceituado nos art.°s 251°, n° l, al. f), 257°, n°s 2 e 3, do Código das Sociedades Comerciais, e art.° 21° do Código de Processo Civil.
Por último,
17. Não resulta da matéria de facto indiciariamente considerada provada que o aqui recorrente, culposamente, e após solicitação dos restantes outros dois gerentes, aqui incluído o requerente, tenha, de forma expressa e pessoalmente, recusado assinar cheques, nomeadamente os relativos a fornecedores e a funcionários;
Na verdade,
18. Todos os comportamentos pretensamente culposos e censuráveis que se imputam ao aqui recorrente foram justificados nos termos dos art.°s 35° a 94° do articulado de oposição que juntou aos autos, os quais, por razões de economia processual, aqui se dão por integralmente reproduzidos, e com especial relevância para o acompanhamento e assistência da doença do foro cancerígeno de que padecia a sua esposa e que, no dia 13 de Agosto do corrente ano de 2007, haveria de a vitimar, conforme documento que aqui se junta nos termos do preceituado do art.° 743°, n.° 3, do Código de Processo Civil.
Mas, mais importante ainda,
19. Não resultou indiciariamente demonstrado que, em qualquer altura, nomeadamente no mês de Fevereiro do corrente ano de 2007, o aqui recorrente tenha, por qualquer meio que fosse, provocado prejuízos à sociedade que ele próprio constituiu, foi o mentor, e durante cerca de 35 anos desenvolveu com resultados positivos;
E, por isso,
20. Da matéria de facto indiciariamente provada não se podem extrair factos ou situações em face das quais e segundo a boa-fé não seja exigível à sociedade a continuação da relação contratual;
21. Em face do exposto, também se concluirá que o aqui recorrente, segundo a boa fé, não violou de forma culposa e reiterada as suas obrigações legais e estatutárias, pelo que, ao decidir suspendê-lo do cargo de gerente, a Meritíssima Senhora Juiz “a quo” também violou desta forma o preceituado no art.° 257°, n°s 2 a 4 do Código das Sociedades Comerciais.
Contra-alegando, defende o agravado a confirmação da decisão recorrida, que foi objecto de tabelar sustentação.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Na decisão agravada, tiveram-se por, indiciariamente, provados os seguintes factos (os quais, por inimpugnados e na ausência de fundamento legal para a respectiva alteração, temos por definitivamente fixados):
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1 – O requerente, o 2º requerido e E…………. são, actualmente, os únicos três sócios e gerentes da 1ª requerida, “C……………., Lda”, com sede e estabelecimento comercial na Av. ………….., com o capital social de € 14 963,94, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Peso da Régua, sob o nº 500229619;
2 – Cada um dos três sócios possui na referida sociedade uma quota igual, no valor de € 4 987,98, cada uma, representativas de 33,33 (3)% do capital social, num total de 100%;
3 – A sociedade foi criada, em 20.11.72, e, desde essa data, desenvolveu regularmente a actividade de reparação de automóveis e outros veículos motorizados e o comércio de compra e venda de carros usados e de acessórios para os mesmos, destinando o fornecimento de bens e serviços ao mercado existente na cidade de Peso da Régua e toda a região duriense;
4 – A sociedade obriga-se mediante a assinatura de, pelo menos, dois gerentes, devendo uma delas ser, obrigatoriamente, a do 2º requerido;
5 – A sociedade tem, actualmente, 3 trabalhadores, para além dos três sócios e gerentes, que também são seus trabalhadores e que sempre asseguraram o funcionamento da sociedade;
6 – Desde a constituição da sociedade, coube ao 2º requerido todo o sector de compras e vendas, encomendas, gestão de stock, gestão administrativa e financeira, pagamentos e recebimentos, tendo sido o 2º requerido que, desde a sua constituição, conduziu, nessa área, os desígnios da empresa;
7 – A sociedade, ao longo da sua actividade, tem gerado resultados positivos, sempre pagou pontualmente aos fornecedores, pagou pontualmente aos funcionários, honrou os seus compromissos com os clientes e laborou em pleno;
8 – O 2º requerido tem 76 anos de idade e vem demonstrando cansaço e saturação no desmpenho das funções de gerente;
9 – Em final de Setembro de 2006, o 2º requerido comunicou aos restantes sócios que pretendia abandonar a sociedade, propondo a venda da sua quota;
10 – O requerente e o outro sócio, Carlos Morais, e o 2º requerido não se entendem sobre o ponto referido em 9;
11 – Desde essa altura, o 2º requerido deixou de trabalhar e exercer qualquer tipo de funções na empresa, não obstante comparecer diariamente no estabelecimento;
12 – Em Novembro de 2006, vendeu a um cliente uma peça trocada, que teve que ser devolvida;
13 – Pela mesma altura, mandou colocar uma bateria errada no seu próprio veículo;
14 – Emprestou baterias e material de alternadores a empresas concorrentes sedeadas em Peso da Régua, designadamente, a “F…………….”;
15 – Em Dezembro de 2006, um erro informático deu origem à necessidade de se proceder a um inventário minucioso das existências (“stock”) do estabelecimento;
16 – O referido inventário ainda não está concluído, mas já se conseguiu apurar que existe material que não é vendável, por estar desactualizado, ter caído em desuso e não ter procura;
17 – Esta situação foi causada pela gestão que o requerido fez do “stock”, adquirindo material em grandes quantidades, quando não eram precisas;
18 – A partir do final da 1ª semana de Janeiro de 2007, o 2º requerido apenas compareceu ocasionalmente, na empresa, para assinar um ou outro cheque;
19 – O requerido recusou-se a assinar os cheques para pagamento aos seguintes fornecedores: “G………………, Lda”, cheque no valor de € 1 860,29, datado de 30.01.07; “H……………, Lda”, cheque no valor de € 1 584,16, datado de 05.02.07; I…………., cheque no valor de € 1 099,05, datado de 05.02.07; e “J……………, Lda”, cheque no valor de € 395,98, datado de 02.02.07;
20 – Em Fevereiro de 2007, assinou o cheque destinado ao pagamento do IVA;
21 – E os cheques destinados ao pagamento dos funcionários só os assinou, em Fevereiro de 2007, quando os salários sempre têm sido pagos pela empresa até ao último dia do mês;
22 – Apesar do requerente e o outro sócio lhe terem solicitado, por carta registada remetida no dia 26.02.07, o requerido não assinou os cheques destinados ao pagamento dos salários dos trabalhadores, relativos ao mês de Fevereiro de 2007, os quais ainda não receberam os seus vencimentos;
23 – O 2º requerido disse aos trabalhadores e a alguns fornecedores e clientes da sociedade que ia embora, alegando estar doente e cansado e ter necessidade de prestar assistência à sua esposa, que tem estado doente;
24 – O 2º requerido recusa-se a assinar os cheques;
25 – O normal desenvolvimento da actividade da sociedade não se compadece, nem com a ausência do 2º requerido, nem com a sua recusa em assinar os cheques para pagamento a fornecedores, trabalhadores, IVA e Segurança Social;
26 – O referido em 25 poderá, a muito curto prazo, provocar a saída do pessoal, impedir que os fornecedores forneçam materiais à sociedade nas mesmas condições em que o faziam e, em consequência, afastar a clientela e, a curto prazo, a possibilidade de a sociedade solver os seus compromissos e prejudicar o bom nome que o requerente, outro sócio e a sociedade têm perante os bancos, clientes e fornecedores.
Os demais factos – excluindo, pois, matéria conclusiva, de direito ou irrelevante – alegados não foram havidos por, indiciariamente, provados.
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3 – Conjugando o teor das conclusões formuladas pelo agravante com o preceituado nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº1, ambos do CPC, na pregressa e, aqui, aplicável redacção[2], constata-se que as questões por aquele suscitadas e que demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso podem assim resumir-se:
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I – Violação do denominado “princípio do contraditório”;
II – Inobservância e violação do regime decorrente do direito especial à gerência conferido, no pacto social da requerida, ao agravante; e
III – Não preenchimento, pela factualidade tida por, indiciariamente, provada, do conceito de justa causa previsto no art. 257º, nº4, do Cod. das Sociedades Comerciais (CSC).
Apreciemos, pois, tais questões.
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4 – I – O agravante entende que não foi observado o sobredito “princípio do contraditório”, uma vez que a decisão agravada foi proferida sem que o mesmo tivesse tido oportunidade processual de à mesma deduzir oposição.
Com respeito por diferente opinião, não tem razão.
Na realidade, o art. 1484º-B (introduzido pelo DL nº 180/96, de 25.09) encontra-se subordinado ao “Capítulo” que, no âmbito do CPC, disciplina os denominados processos de jurisdição voluntária, cujos princípios estruturantes se mostram acolhidos nos arts. 1409º a 1411º.
Sendo que, no mesmo art., se prevêem e disciplinam duas situações, factual e juridicamente, diferentes: suspensão (por um lado) ou destituição (por outro) judicial de titulares de órgãos sociais, designadamente de gerentes de sociedades por quotas. Isto porque, no dizer do Prof. Raúl Ventura[3], “o legislador reparou em que o sistema por ele criado tinha um grave inconveniente: a manutenção do gerente, apesar da justa causa, até ao trânsito em julgado da sentença que o destitua e que produz efeito «ex nunc»”.
Ora bem, neste configurado quadro e existindo para tanto justa causa, é atribuído a qualquer sócio o direito de requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade (Art. 257º, nº4, do CSC), caso em que, nos termos previstos no nº2 do citado art. 1484º-B, “o juiz decidirá imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias”.
Ou seja, assumindo a mencionada pretensão de suspensão do exercício da gerência a natureza de verdadeira “providência cautelar inominada enxertada no próprio processo principal de destituição”[4], aderindo, em parte, ao pensamento, antes, expresso pelo Prof. Raúl Ventura (Ob. e local citados), não faria qualquer sentido que, perante a invocação da mencionada justa causa, o gerente continuasse a exercer as respectivas funções, em detrimento da sociedade, sócios e credores daquela. Nada, por outro lado, tendo de anómalo que a mencionada suspensão seja decretada sem prévia audiência do “suspendendo” gerente: para além de tal estatuição ser tributária da previsão paralela e genérica constante do art. 385º, nº1, aquele gerente sempre poderá deduzir a respectiva oposição e oferecer os respectivos meios de prova, uma vez citado, na sequência do decretamento da mesma suspensão, estando-lhe, igualmente, facultada a interposição de recurso de tal decisão e da que, a final, venha a ser proferida quanto ao próprio pedido de destituição do exercício das funções de gerente.
Assim, para além de não poder sustentar-se que a decisão agravada incorreu em violação do princípio do contraditório, impõe-se acentuar que só assim pôde ser dado acatamento ao princípio da prevalência dos critérios de oportunidade e conveniência sobre o da legalidade estrita, à sombra do disposto no art. 1409º. Além de que tem de haver-se como assente que o juiz que aprecia livremente a prova, unilateralmente, produzida pelo requerente da suspensão não se limita a ser um receptáculo acrítico da mesma, tudo interiorizando e absorvendo, em tal qualidade, antes devendo proceder, nos genéricos e aplicáveis termos previstos no art. 653º, nº2, à análise e ponderação crítica da mesma. Sendo que, entre dois riscos, sempre será preferível o decretamento duma suspensão que, “logo adiante”, poderá ser corrigida e emendada, do que manter no exercício das funções de gerente da sociedade quem, indiciariamente, vem mantendo um comportamento integrante, objectivamente, do conceito de justa causa condicionador de tal suspensão.
Aliás, deve observar-se que é o próprio art. 3º que afasta da respectiva incidência “os casos excepcionais previstos na lei” – como já se viu ser o caso – estando, por outro lado, devidamente assegurada a observância do princípio do contraditório, nos termos previstos no nº3 do citado art. 1484º-B, à semelhança do que se mostra estatuído no nº4 daquele art. 3º.
Improcedendo, pois, as correspondentes conclusões formuladas pelo agravante, aqui, “data venia”, se remetendo, no omitido e por comodidade de exposição, para as correspondentes e pertinentes considerações tecidas, a propósito, pelo agravado.
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II – Se ocorreu violação do regime decorrente da titularidade de um direito especial à gerência da requerida, por parte do requerido-agravante.
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Nos termos do disposto no art. 24º do CSC, “Só por estipulação no contrato de sociedade podem ser criados direitos especiais de algum sócio (1)” e “Os direitos especiais não podem ser suprimidos ou coarctados sem o consentimento do respectivo titular, salvo regra legal ou estipulação contratual expressa em contrário”.
Em consonância, estipula o art. 257º, nº3, do mesmo Cod., quanto às sociedades por quotas – o que é o nosso caso –, que “A cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial”.
No caso dos autos, constata-se que, no art. 5º do pacto social da requerida, se estipulou que “A gerância da sociedade…será exercida por todos os sócios, que desde já ficam nomeados gerentes…”, o que, por si só, não integra, em princípio, qualquer direito especial[5], uma vez que daí não advém, designadamente, qualquer vantagem especial ou posição de supremacia, obtida por via contratual, de qualquer dos associados perante os demais, antes se tratando de uma nomeação meramente ocasional, com o condão de dispensar que a mesma viesse a ter lugar, ulteriormente.
Todavia, acrescenta-se, no mesmo art., que “…a sociedade só se obriga com a intervenção de pelo menos dois sócios, devendo um deles ser obrigatoriamente o sócio D……………”.
Ora, esta última estipulação e que por nós acaba de ser sublinhada implica, indiscutivelmente, a atribuição de um direito especial (à gerência) ao sócio e, ora, agravante, D………….., uma vez que só a respectiva assinatura foi reputada necessária para, em conjunto com a de um outro dos sócios, obrigar ou vincular a sociedade.[6]
Mas, o reconhecimento deste direito especial do requerido-agravante não acarreta a ilegalidade da decretada suspensão das funções de gerente que o mesmo vinha exercendo na requerida.
É que, na imediata sequência da estatuição constante do transcrito nº3 do art. 257º do CSC, dispõe-se, no respectivo nº4, que “Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade”. Tudo residindo, pois, na existência ou inexistência daquela “justa causa”, porquanto se tem entendido que este último comando legal tem aplicação, sem necessidade de prévia e correspondente deliberação social e mesmo nos casos em que há um direito especial à gerência por parte do “suspendendo-destituendo”.[7]
Concluindo-se, pois, que, sendo o correspondente pedido fundamentado na invocação da existência de justa causa, não obsta à suspensão-destituição das funções de gerente da sociedade por quotas o reconhecimento de um direito especial a tal gerência por parte do “suspendendo-destituendo”. Sendo, por outro lado, plenamente justificada, no caso dos autos, a nomeação dos demais sócios como representantes provisórios da requerida, uma vez que, nos termos estatutários e como já se viu, a normal e corrente representação da requerida implicaria a intervenção do próprio gerente que se pretende suspender e destituir.
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III – Da existência, ou não, de justa causa para a decretada suspensão do requerido-agravante da gerência da requerida.
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a) – A lei comercial não define o que deve entender-se por “justa causa”, limitando-se a apontar, de modo exemplificativo e genérico, que “constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções” (art. 257º, nº6, do CSC).
Raúl Ventura, na sua citada obra (Pags. 93), utilizando o resumo feito por António Caeiro[8], indica como integrando o sobredito conceito de justa causa: o facto de o gerente se ter deixado subornar, em prejuízo da sociedade, de ter praticado um abuso de confiança, de estar insolvente ou fortemente endividado, de fazer concorrência à sociedade, de ficar impossibilitado, por doença, de exercer as suas funções durante um largo período de tempo, a subscrição de uma letra com a firma social para garantir uma dívida pessoal, a falsificação da escrita ou do balanço, a diminuição injustificada do volume de negócios para conseguir a destituição de outros gerentes, a discórdia permanente entre os gerentes que se reflicta na boa marcha dos negócios sociais. Acrescentando: “No Título VII, DISPOSIÇÕES PENAIS, do CSC estão descritos vários factos dos gerentes que os sujeitam a penas de prisão ou multa ou a coimas: em princípio, tais factos, nos termos em que forem puníveis, constituem violações graves dos deveres dos gerentes e justificam a destituição”.
Não obstante, pode assentar-se em que o mencionado conceito se analisa em dois elementos essenciais: um de natureza subjectiva (comportamento simplesmente negligente do gerente, não tendo o mesmo de ser doloso) e outro de cariz objectivo (insubsistência de uma relação de confiança entre os sócios e o gerente).[9]
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b) – Transpondo os antecedentes considerandos para o caso dos autos, inevitável se mostra a conclusão de que a douta decisão agravada se pautou por correspondente e total acerto.
Na realidade, perante a factualidade, indiciariamente, provada e que foi relevada naquela douta decisão, não pode deixar de considerar-se que o requerido-agravante incorreu, com tal conduta omissiva, em violação grave dos seus deveres de gerente, mormente tendo-se em atenção que a respectiva assinatura é necessária para poder vincular a requerida perante terceiros com quem tem relacionamento comercial ou meras obrigações de natureza fiscal e laboral. Bem se podendo acompanhar a douta decisão agravada quando ponderou que “…com a sua” (do requerido) “recusa, é patente que a sociedade não pode laborar nem atingir o seu escopo lucrativo, colocando em risco, em primeira linha, o seu funcionamento normal e credibilidade e, a prazo, a sua solvabilidade”.
A tal acrescendo que a conduta omissiva do requerido viola frontalmente os seus correspondentes deveres da mais elementar diligência, na qualidade de gerente da requerida com necessária intervenção nos actos de vinculação da mesma perante terceiros, bem podendo a mesma filiar-se em verdadeiro dolo, se tida em consideração a sua proclamada vontade de afastamento da requerida, com inerente tentativa de sobrevalorização da respectiva quota perante os outros sócios, colocados num verdadeiro “beco sem saída”, em temos comerciais e perante os respectivos trabalhadores e entidades oficiais, se não fosse posto termo àquela sua conduta. Não sendo, por outro lado, justificação atendível para tal conduta a necessidade de acompanhar a inexorável doença que vitimou a sua esposa, já porque só esta teve de ser internada, já porque tal circunstancialismo não era, de modo algum, impeditivo de que o requerido fizesse fugazes visitas e passagens pelas instalações da requerida, que mais não fosse para assinar os cheques que, aí, o aguardavam…
Improcedendo, pois, as conclusões formuladas pelo agravante.
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5 – Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, confirmando-se, em consequência, a douta decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
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Porto, 12 de Maio de 2008
José Augusto Fernandes do Vale
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de C. Marques Pereira
___________
[1] Autos distribuídos, neste Tribunal, em 25.01.08
[2] Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[3] In “Sociedades por Quotas”, Vol. III, 2ª Reimpressão, pags. 111.
[4] Assim, Ac. de 19.05.01, desta Relação – Col. – 3º/191.
[5] Neste sentido, e além do mencionado na subsequente nota, cfr.: Ac. da Rel. de Lx., de 23.01.96 – Col. – 1º/100; Pinto Furtado, in “Código Comercial Anotado”, Vol. II, “Das Sociedades Em Especial”, pags. 773 e segs.; e Raúl Ventura, in “Sociedades por Quotas”, Vol. III, “Comentário ao Código das Sociedades Comerciais”, pags. 16 e segs.
[6] Cfr., neste sentido e designadamente, o Ac. desta Relação, de 11.06.92 – Col. – 3º/306.
[7] Neste sentido, designadamente, o Ac. referido na antecedente nota, o Ac. desta Relação, de 25.01.93 – Col. – 1º/213; Raúl Ventura, in “Ob. citada”, pags. 111; e António Pereira de Almeida, in “Sociedades Comerciais”, 4ª Ed., pags. 365.
[8] In “As cláusulas restritivas da destituição do sócio-gerente nas sociedades por quotas e o exercício do direito de voto nas deliberações de destituição”, hoje, em “Temas de direito das sociedades”, pags. 165.
[9] No douto acórdão desta Relação, de 24.03.03 – Col. – 2º/180 –, relatado pelo, ora, 1º Adjunto e em que interveio como 1º Adjunto o, ora, 2º Adjunto, foi esta temática objecto de análise e desenvolvimento aprofundados, com abundantes recensões jurisprudenciais, para o mesmo se remetendo, por comodidade de exposição e dada a sua fácil acessibilidade.