Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
323/09.3GACNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: PERDA DE INSTRUMENTOS PRODUTOS E VANTAGENS
RESTITUIÇÃO DOS OBJECTOS APREENDIDOS
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: RP20120111323/09.3GACNF.P1
Data do Acordão: 01/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Só podem ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e seja possível prognosticar que esses objectos podem colocar em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou que oferecem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
II - A omissão da sentença ou acórdão quanto ao destino a dar os objectos apreendidos relacionados com o crime não gera qualquer nulidade, mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afectar a decisão do objecto do processo, não determina a invalidade da sentença.
III - A decisão de declarar perdido a favor do Estado o objeto apreendido ou de ordenar a sua restituição a quem de direito não faz parte do objeto do processo, razão pela qual pode ser proferida mesmo depois do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão onde deveria ter sido tomada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 323/09.3GACNF-B.P1
do Tribunal Judicial da Comarca de Cinfães

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto (1.ª Secção Criminal):

I - Relatório.
1. B… e C… foram julgados e definitivamente condenados no processo em epígrafe, aquele pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 3, do Código Penal, dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e punidos pelos art.os 143.º e 145.º, n.º 1 do Código Penal e outro de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 57/2006, de 23 de Fevereiro e, este, pela prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a) e 23.º, do Código Penal.

2. Posteriormente, foram notificados de um despacho proferido pelo Mm.º Juiz do processo em que, além do mais que aqui não importa, declarou perdidos para o Estado alguns dos objectos apreendidos no processo, sendo que acerca do destino a dar-lhes nada foi dito no Acórdão condenatório.

3. Inconformados com esse despacho, aqueles interpuseram recurso, pretendendo que o mesmo seja revogado na parte em que declara perdido a favor do Estado a arma de calibre 6,35mm e se ordene a sua devolução ao arguido C…, rematando a motivação com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem como objecto o despacho datado de 06/07/2011, mediante o qual, o Tribunal a quo declara como perdidos a favor do Estado os seguintes bens:
• Um invólucro de cartucho calibre 12 mm; c Um bastão de aço;
• Uma pistola de calibre 6,35mm;
• 1 espingarda, calibre 12mm e respectivo livrete;
• 24 cartuchos, calibre 12mm;
• Vários bagos de chumbo;
• 1 bucha.

2. O referido despacho foi proferido após a decisão final de 1.ª Instância, que não declarou os objectos perdidos, e após 2 requerimentos dos arguidos datados de 13/12/2010 e 25/5/2011 respectivamente, mediante os quais se requeria a devolução dos objectos apreendidos.
3. Podia o Tribunal a quo, após decisão final, na qual não se ordenou o destino dos bens apreendidos, proferir um despacho a declarar os bens perdidos a favor do Estado?
A resposta só poderá ser negativa. Vejamos,
4. Nos termos do art.º 374.º, n.º 3, al. c) do CPP: "A sentença termina pelo dispositivo que contém: c) A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime."
5. Proferida a sentença esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal.
6. Esgotado o poder jurisdicional, não pode o Tribunal, posteriormente, vir colmatar a falta de menção sobre o destino a dar aos bens apreendidos, até porque tal representaria uma pronúncia sobre factos não considerados no acórdão ou seja, os factos que implicam subsunção aos requisitos do art.º 109.º do CP.
7. Na sequência dos requerimentos dos arguidos e não tendo sido determinado na decisão final o destino a dar aos bens, o Tribunal deveria ter devolvido todos os objectos apreendidos.
6. Também neste sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/01/2011.
8. Pelo exposto, deverá o despacho de fls. ..., posterior à decisão final, e no qual se declaram os bens perdidos a favor do Estado, ser revogado por violação dos art.os 374.º, n.º 3, al. c) do CPP e 109.º do CP e, em consequência ser ordenada a devolução de todos os bens apreendidos aos arguidos.
9. Caso assim não se entenda, sem conceder, sempre se dirá que, pelo menos a pistola de calibre 6,35mm deveria ter sido devolvida ao arguido C…. Porquanto:
10. Da matéria de facto dada como provada, pode ler-se no ponto 31: "A pistola de calibre 6,35, com inscrição "Auto-pistole 2 6.35 Made in …, com o n.º ……, carregada com 6 munições de idêntico calibre, e o coldre de cor castanha, que se encontravam no porta luvas da viatura do arguido, bem como o tubo de cablagem de cor preta, com 1,20 cms de comprimento e 2,5 cms de diâmetro que se encontrava no interior do habitáculo do automóvel supra identificado junto à consola central, pertenciam ao arguido C…, o qual os havia colocado no veiculo nesse mesmo dia.
11. Em relação a esta factualidade e a propósito do crime de detenção ilegal de arma imputável ao arguido B…, o Tribunal a quo tomou seguinte posição: Ora, cumpre sublinhar, dada a matéria de facto dada como provada, que a pistola calibre 6,35 mm e o tubo de cablagem não se encontravam sob o domínio fáctico do arguido B…. Com efeito, estes objectos pertenciam ao seu pai, que os havia colocado na sua viatura nesse mesmo dia, pelo que é forçoso considerar que era este último quem exercia o domínio de facto sobre a espingarda. Na verdade, face às regras da experiência, temos que admitir que o arguido C… não se demitiu dos poderes de dominus geralmente associados aos proprietários, encarregando outrem da sua guarda. Bem pelo contrário, tais objectos permaneceram sob a sua esfera de domínio. Assim não poderá a detenção da pistola calibre 6,35 mm e do tubo de cablagem ser imputada ao arguido.
12. Da referida fundamentação retira-se que a arma apreendida não serviu nem para a prática do crime pelo qual os arguidos vinham acusados, nem para a prática de qualquer outro crime.
13. Não existe um único facto provado que permita concluir que aquela arma em particular se destinavam à prática de qualquer ilícito.
14. A arma era propriedade do arguido C… que era titular da respectiva licença de uso (fls. 963 e 964).
15. O Tribunal a quo entende que os requisitos do art.º 109.º n.º 1 do CP estão reunidos mas, certamente por lapso, e porque existia outra arma no processo, com a qual foi efectivamente praticado um crime, decidiu que todas as armas foram utilizadas na prática de ilícitos ou se destinavam à sua prática.
16. Conclusão que não se pode extrair da factualidade vertida no acórdão.
17. A apreensão da arma em causa ocorreu na sequência de um busca, após a prática dos crimes pelos quais os arguidos vieram a ser condenados.
18. Pelo exposto, inexistem razões fácticas e jurídicas que permitam fazer a subsunção aos requisitos do art.º 109.º, n.º 1 do CP.
19. Em consequência do exposto, deverá ser revogado o despacho de que se recorre na parte em que declara perdido a favor do Estado a arma de calibre 6,35mm, ordenando-se a sua devolução ao arguido C….

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, concluindo resumindo assim:
A omissão da indicação do destino a dar aos objectos apreendidos, não gera a nulidade do douto acórdão proferido nos autos, e, por conseguinte, tratando-se de uma mera irregularidade, o mesmo convalidou-se com o seu trânsito em julgado.
Tal não poderá significar que, relativamente aos itens omitidos também recaiu caso julgado.
Sendo a perda de objectos a favor do Estado, exclusivamente determinada por necessidades de prevenção da prática de outros crimes, na media em que exige que os bens em causa, considerando a sua natureza e as circunstâncias do caso em concreto, se possa traduzir num perigo para a segurança das pessoas, para a morai ou a ordem públicas ou que ofereçam risco sério de utilização para o cometimento de novos factos lícitos.
Não se mostra necessário que os objectos tenham sido efectivamente utilizados no cometimento do crime em causa nos autos, ou que, com ele mantenham uma relação directa.
Bastando que o agente tivesse em mente utilizá-los.
Não podemos olvidar da perigosidade inerente ao objecto em causa – arma de fogo – não podemos também ignorar que é o próprio arguido/recorrente, C… que, em sede de audiência de discussão e julgamento, vem afiançar que, na data dos factos, havia colocado, o tubo de cablagem de cor preta e a pistola apreendidos no veículo automóvel do arguido B…, “após a ocorrência dos factos acima descritos no intuito de se defender de eventual agressão que os assistentes quisessem levar a cabo, na medida em que teriam de se ausentar de casa e passar junto a casa deles” – vd. ponto 31 dos factos provados a fls. 1069 e motivação de facto constante do douto acórdão proferido nos autos a folhas. 1081.
Pelo que, considerando, a perigosidade inerente à arma apreendida e, bem assim, as concretas circunstâncias do caso dos autos, supra evidenciadas, mostra-se suficiente, por si só, para justificar tanto a apreensão das armas como a sua ulterior perda, nos termos do artigo 109.º do Código Penal, justamente, por reclamarem maiores exigências de prevenção.

5. Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto secundou a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte do Arguido.

7. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação.
1. A decisão recorrida.
Na sequência do Acórdão proferido nos presentes autos, promove a Digna Magistrada do Ministério Público que sejam declarados perdidos a favor do Estado os objectos que discrimina nas alíneas b), d) a g), i) e j), apreendidos a fls. 5 e 21.
Pois bem.
Determina o artigo 109°, n.º 1, do Código Penal que "s6.o declarados perdidos favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um facto ilícito típico".
Ora, nos presentes autos foram os arguidos condenados:
a) O arguido C… foi condenado pela prática de um crime de coacção agravada, p. e p., pelos artigos 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
b) O arguido B… foi condenado, entre outros, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p., pelos artigos 143.º e 145.º, n.º 1, alínea a), do CP e um crime de detenção de arma proibida, p. e p., pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei 57/2006, de 23/02.
Atenta a factualidade dada como provada no Acórdão e considerando-se que parte dos referidos objectos serviram para a prática dos crimes de que vêm condenados e os restantes estivessem destinados a servir a prática de factos ilícitos típicos, considera-se que tal situação é subsumível à hipótese normativa prevista no artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal, impondo-se concluir que os mesmos devem ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos promovidos pelo Ministério Público.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal, declaram-se os objectos identificados nas alíneas b), d) a g), i) e j), da Douta Promoção que antecede perdidos a favor do Estado.
*
Notifique e, oportunamente, remeta os referidos objectos à PSP, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78.0 da Lei n.05/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n.017 /2009, de 6 de Maio.
*
Restitua aos arguidos os objectos descritos nas alíneas a) e h) da Douta Promoção que antecede, conforme requerido, e transfira o objecto identificado na alínea c) para os autos de inquérito n.º 108/11.7TACNF, cujos termos correm pelos Serviços do Ministério Público junto deste Tribunal.

2. Do Acórdão condenatório.
2.1. Factos provados.
(…)
20 - Em deslocação ao local em momento subsequente aos factos supra descritos,[1] e por forma a desencadear a investigação pelos mesmos e acautelar os respectivos meios de prova, a policia Judiciária, por volta das 15h30m efectuou busca ao veiculo automóvel de marca Citröen, modelo …, matricula ..-..-01, propriedade do arguido B…, e encontrou no seu interior os seguintes objectos que devidamente apreenderam:
- uma pistola de calibre 6,35, com a inscrição Auto pistole, 2 6.35 Made in …, e com o número ……, carregada com 6 munições de idêntico calibre, e o um coldre de cor castanha, que se encontravam no porta-luvas da referida viatura;
- um bastão de aço, com um comprimento total de 53 cm, sendo 10 cm para o punho e com o diâmetro de 3 cm, que se encontrava na mala do automóvel em questão;
- um tubo de cablagem de cor preta, com 1,20cm de comprimento e 2.5 cm de diâmetro, o qual se encontrava no interior do habitáculo do automóvel supra identificado, junto á consola central.
(…)
22 - O arguido B… não é detentor de licença de uso e porte de arma que o habilite a deter as referidas armas.
23 - Quis deter a espingarda Benelli, bem como o bastão de 53 cms. que se encontrava dentro da sua viatura, com perfeito conhecimento das suas características.
(…)
31 - A pistola de calibre 6,35, com a inscrição Auto pistole, 2 6.35 Made in …, e com o n.º ……, carregada com 6 munições de idêntico calibre, o coldre de cor castanha, que se encontravam no porta-luvas da viatura do arguido, bem como o tubo de cablagem de cor preta, com 1,20 cms de diâmetro que se encontrava no interior do habitáculo do automóvel supra identificado junto à consola central, pertenciam ao arguido C…, o qual os havia colocado no veículo nesse mesmo dia.
(…)
37 - O arguido C… denota auto-centramento e valorização de ostentação, evidenciando um comportamento explosivo, o que facilita o surgimento de conflitos na esfera interpessoal e potencia reacções desproporcionadas perante a percepção de ataques pessoais.

2.1. Motivação da decisão da matéria de facto.
Por ambos os arguidos foi igualmente confirmado que a pistola e o tubo de cablagem pertenciam ao arguido C…, tendo este referido que os havia ali colocado após a ocorrência dos factos acima descritos no intuito de se defender de eventual agressão que os assistentes quisessem levar a cabo, na medida em que teriam de se ausentar de casa e passar junto a casa deles.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. A abrir diremos que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[2] Mas porque as conclusões são um resumo das motivações,[3] não pode conhecer-se de questões constantes daquelas que não tenham sido explanadas nestas. Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso das nulidades que se não devam considerar sanadas.[4]
Daí que as únicas questões a apreciar neste recurso sejam as seguintes:
1.ª Sendo o acórdão condenatório, já transitado em julgado, omisso relativamente ao destino a dar aos objectos apreendidos no processo, pode depois o juiz do processo declará-los perdidos para o Estado?
2.ª Podendo, estão reunidos os seus pressupostos no caso sub iudicio?
3.ª No caso contrário, quais as consequências disso?
***
2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas. Convindo desde já referir que se não detecta qualquer nulidade no douto despacho recorrido de entre as que se devesse conhecer ex officio.

Para iniciarmos o nosso excurso indicaremos em primeiro lugar as normas relevantes.
Como sabemos, «são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova.»[5]
Na consequência disso, a lei estabelece que «são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.»[6]
Para permitir que tal se materialize, estabelece depois que «a sentença termina pelo dispositivo que contém (…) a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime»[7] e, por fim, que «logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.»[8]

A perda de objectos é uma medida essencialmente preventiva[9] e não reactiva contra o crime. O que, de resto, justifica seja decretada tendo em vista obviar a perigosidade resultante da sua circulação e, com isso, que novos crimes possam com eles ser cometidos, impondo-se essa perigosidade por si mesma, independentemente, portanto, da pessoa do agente do crime ou do detentor dos objectos.[10]
O que importa, portanto, é que, em concreto,[11] seja possível prognosticar que esses objectos possam colocar em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou que eles ofereçam sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.[12] Mas é forçoso que os objectos tenham servido ou apenas estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico.[13] Sendo certo que sem a prova disso não pode ser declarada a perda dos objectos.[14]

De todo o modo, a omissão cometida na sentença ou acórdão de destinar os objectos apreendidos relacionados com o crime não gera qualquer nulidade, aportando-se a esta conclusão a partir da conjugação do princípio da legalidade que enferma tal espécie de invalidade[15] com a ausência de norma que comine tal omissão com tal consequência.[16] Pelo que assim sendo as coisas estaremos em face de uma mera irregularidade,[17] a qual, por não afectar a decisão verdadeiramente objecto do processo, não determina a invalidade da sentença ou do acórdão.[18]

É tempo agora de enfrentarmos a primeira das questões atrás enunciadas.
A jurisprudência tem divergido[19] quanto à questão de saber se no caso de acórdão condenatório transitado em julgado no qual foi omitindo o destino a dar aos objectos apreendidos no processo o juiz do processo pode depois declará-los perdidos para o Estado. Por nós, alinhamos com os que seguem pela afirmativa.
Na verdade, a determinação sobre o destino a dar aos objectos relacionados[20] com o crime, embora, como já vimos atrás, deva constar do dispositivo, o certo é que, como fez notar o Supremo Tribunal de Justiça, «já está para além da solução da concreta questão que é submetida ao tribunal. Tal como a remessa de boletins ao registo criminal, por exemplo. Tais requisitos devem integrar a decisão (…) mas rigorosamente não fazem parte do objecto do processo.»[21] Sendo por isso que a omissão de pronúncia do acórdão condenatório sobre o destino a dar aos objectos apreendidos não forma caso julgado. Tanto mais que se trata da omissão de proferir uma decisão, sem que o tribunal tenha chegado a apreciar o seu mérito. E assim é tanto no caso dos objectos deverem ser declarados perdidos para o Estado como no de deverem ser devolvidos a quem de direito. Pelo que, como já decidiu a Relação de Lisboa, «nada referindo a sentença a tal propósito,[22] pode o juiz, posteriormente, decidir sobre essa matéria.»[23]
Assim e em resumo poderemos dizer, com a Relação do Porto,[24] que:
«1 - Para a sua perda a favor do Estado, torna-se necessária a verificação dos seguintes elementos:
a) que exista um facto anti-jurídico, sendo suficiente a sua tentativa;
b) os objectos devem ser produto de um crime, terem sido utilizados ou estarem destinados à sua comissão;
c) Os objectos devem, pela natureza ou pelas circunstâncias, oferecer sérios riscos de serem utilizados para a prática de crimes ou pôr em perigo a comunidade.»

Estamos agora habilitados a baixar ao caso sub iudicio e apurar se, pese embora ter o acórdão condenatório transitado em julgado, sendo omisso relativamente ao destino a dar aos objectos apreendidos no processo podia o Mm.º Juiz do processo declará-los perdidos para o Estado.

O Arguido B… foi julgado e definitivamente condenado no processo em epígrafe, pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 3, do Código Penal, dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e punidos pelos art.os 143.º e 145.º, n.º 1 do Código Penal e outro de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 57/2006, de 23 de Fevereiro.
Por sua vez, o Arguido C… também foi condenado mas pela prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a) e 23.º, do Código Penal.
Em ambos os casos, as condenações decorreram do disparo, por cada um dos Arguidos, de uma espingarda caçadeira, da marca Benelli, calibre 12, de um cano, sobre os Ofendidos ou visando intimidá-los, separados por um período de três horas e meia a quatro horas. Mas não a pistola, de calibre 6,35, com a inscrição Auto pistole, 2 6.35 Made in …, e com o n.º ……, carregada com 6 munições de idêntico calibre, a qual só posteriormente a isso foi apreendida para os autos por Inspectores da Polícia Judiciária,[25] a qual pertencia ao Arguido C… mas encontrava-se no porta-luvas da viatura pertencente ao Arguido B…, mas tendo sido aquele quem a lá a havia colocado nesse mesmo dia.

Sendo as coisas assim, é apodíctico concluir que a pistola não serviu para a prática de qualquer dos factos ilícitos típicos, uma vez que não ficou assente que alguma vez qualquer dos Arguidos / Recorrentes a tivessem utilizado contra ou em ameaça aos Ofendidos.
Por outro lado, também não ficou provado que a pistola estivesse destinada a servir para esse fim. Pelo contrário, da motivação da decisão da matéria de facto até se poderia inferir o contrário, pois que os Mm.os Juízes que integraram o Colectivo a esse propósito referiram[26] que «por ambos os arguidos foi igualmente confirmado que a pistola e o tubo de cablagem pertenciam ao arguido C…, tendo este referido que os havia ali colocado após a ocorrência dos factos acima descritos no intuito de se defender de eventual agressão que os assistentes quisessem levar a cabo, na medida em que teriam de se ausentar de casa e passar junto a casa deles.» De resto, também não se provou que o Arguido B… soubesse que a pistola lá havia sido colocada pelo Arguido C…, sendo de realçar que este a colocara no porta-luvas e, portanto, num local fechado, que por isso não impunha que conhecesse que ela lá se encontrava.[27]
Assim, porque se não apurou que a pistola em causa tenha servido ou sequer que estivesse destinada a servir para a prática de um facto ilícito típico, já não importa saber se estavam reunidos os demais pressupostos legais[28] para que a sua perda para o estado pudesse ser decretada.

Destarte e em conclusão, diremos que, pese embora o Mm.º Juiz a quo estivesse legalmente habilitado a decidir acerca do perdimento para o Estado da pistola apreendida ou da sua devolução ao seu legítimo proprietário, a verdade é que, no caso concreto, não estavam reunidos os pressupostos legais para que decidisse naquele sentido. Pelo que o recurso terá que proceder, devendo a pistola ser entregue ao Arguido C…, a quem pertence. Mas desde que esteja demonstrado no processo, como parece estar, que o mesmo está legalmente habilitado a detê-la.
Cumpre agora decidir em conformidade com o atrás referido.
***
III - Decisão.
Termos em que se concede parcial provimento ao recurso e, em consequência, se revoga o despacho recorrido na parte em que declarou perdido para o Estado a pistola de calibre 6,35 mm e se ordena a sua devolução ao arguido C…, mas apenas no caso de demonstrar que está legalmente habilitado a detê-la.
Sem custas pelo (art.os 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).
*
Porto, 11-01-2012.
António José Alves Duarte
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
________________
[1] Esses factos foram os disparos feitos com a espingarda caçadeira, da marca Benelli, calibre 12, de um cano, no dia 11-09-2009, primeiro pelo Arguido C… (quando eram 08:00 horas) e depois pelo Arguido B… (quando eram 11:30 / 12:00 horas), aquele para o ar mas perante os Ofendidos D… e E… e, este, na direcção dos mesmos.
[2] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[3] Idem. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou o Prof. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[4] Art.º 119.º do Código de Processo Penal.
[5] Art.º 178.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[6] Art.º 109.º, n.º 1 do Código Penal.
[7] Art.º 374.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
[8] Art.º 186.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
[9] Cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-11-1985, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 351, página 206 e da Relação de Évora, de Évora, de 27-04-199 e de 06,11-2001, publicados na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1999, Tomo II, página 281 e Ano 2001, Tomo V, página 278, respectivamente.
[10] Cfr. os Acórdãos proferidos pelas Relações de Lisboa, em 31-03-2004, no processo n.º 903/2004-3, de Coimbra, em 06-01-2010, no processo n.º 946/05.OGCVIS-A.C11 e do Porto, em 26-05-2010, no processo n.º 582/09.1GCVFR.P1 e em 02-03-2011, no processo n.º 49/09.8PTVNG.P2, estes disponíveis em www.dgsi.pt e o Prof. Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, página 311 e seguinte. Por isso é que, segundo o A. e loc. cits., não é sequer «necessário que esse crime se tenha consumado, nem seja imputável ao arguido.»
[11] Dada a referência legal à natureza dos objectos ou às circunstâncias do caso.
[12] Citado art.º 109.º, n.º 1 do Código Penal.
[13] Art.º 109.º, n.º 1 do Código Penal. Neste sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, prolatados em 16-02-1982 e 12-05-1991, ambos na Colectânea de Jurisprudência, aquele do Ano 1982, Tomo V, página 159 e, este, do Ano 1991, Tomo III, página 5.
[14] Daí que o Acórdão da Relação do Porto, de 29-11-1989, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1989, Tomo V, página 233, tenha decidido que «se nenhuma prova se fez de que uma espingarda apreendida tenha servido ou estivesse destinada a servir para a prática dos crimes por que os arguidos foram condenados não pode a mesma, posteriormente à sentença, ser declarada perdida a favor do Estado, a título de correcção daquela.»
[15] Art.º 118.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, de acordo com o qual «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei
[16] Porquanto as nulidades da sentença se restringem aos casos previstos no art.º 379.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[17] Art.º 380.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal. Neste sentido, cfr. Prof. Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 964.
[18] Art.º 123.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[19] Assim o fizeram, por exemplo, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 28-09-1988, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 379, página 625 e de 10-01-1995, este na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1995, Tomo I, página 147, da Relação de Évora, de 13-05-2003, Colectânea de Jurisprudência, Ano de 2003, Tomo III, página 259 e do Porto, de 06-04-2011, processo n.º 538/06.6GNPRT.P1, visto em www.dgsi.pt. De modo contrário decidiram os Acórdãos da Relação do Porto, de 15-02-1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1995, Tomo I, página 248 e, os da Relação de Guimarães, de 12-01-2009, no processo n.º 2200/08-2, de 28-09-2009, no processo n.º 2143/05.5TBBCL-A.G1 e de 17-01-2011, no processo n.º 1168/03.0PBGMR.G1, estes publicados em www.dgsi.pt, convocando em seu apoio o efeito do caso julgado. O que, pelo que se adiante dirá, merece a nossa discordância.
[20] Como decidiu o Acórdão da Relação do Porto, de 26-11-1986, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 361, página 609, «a expressão cometimento de novos crimes pressupõe a ocorrência de um crime anterior em que o instrumento tenha sido utilizado». Note-se, porém, que, como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra, de 12-04-2011, no processo n.º 1488/08.7GBAGD.C1, visto em www.dgsi.pt, a lei «não exige como condição do seu funcionamento que os objectos apreendidos tenham uma relação directa com o crime imputado ao arguido. A relação pode ser meramente indirecta, como sucede no caso do agente que é proprietário de arma de fogo e que ameaça dar um tiro em alguém, desde que essa ameaça seja credível ao ponto de, pelo menos, causar inquietação ao destinatário da ameaça (e portanto, constituindo crime), arrastando para o domínio de hipótese que deve ser acautelada a efectiva utilização de arma de fogo contra o visado. O facto de o agente ter na sua disponibilidade uma ou mais armas de fogo confere maior gravidade à ameaça, por a sua consumação se oferecer como plausível, reforçando as exigências cautelares tendentes a evitá-la, sendo essa circunstância suficiente, só por si, para justificar tanto a apreensão das armas como a sua ulterior perda, visto as armas de fogo constituírem por natureza objectos dotados de grande perigosidade e a sua perda não poder considerar-se desproporcionada à gravidade do ilícito cometido.»
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-10-2011, no processo n.º 141/06.0JALRA.C1.S1, visto em www.dgsi.pt.
[22] A perda de bens, entenda-se.
[23] Cfr. os citados Acórdãos da Relação de Lisboa, de 28-09-1988, consultado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 379, página 625 e de 10-01-1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano 1995, Tomo l, página 147, assim sumariado: «É ao juiz do processo e não ao tribunal colectivo que procedeu ao julgamento que compete decidir o incidente relativo a um objecto apreendido nos autos e a que na sentença final não foi dado destino.»
[24] Acórdão da Relação do Porto, de 17-2-1988, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1988, Tomo l, página 240.
[25] Quando se deslocaram ao local para efectuarem a recolha de provas.
[26] Sem que tivesse sido produzida prova em contrário, diga-se.
[27] É deveras significativo que o Tribunal Colectivo tenha julgado provado (facto provado enumerados em 23) que o arguido B… «… quis deter a espingarda Benelli, bem como o bastão de 53 cms. que se encontrava dentro da sua viatura, com perfeito conhecimento das suas características» mas sobre a pistola nada tenha dito.
[28] Ou seja, que a pistola, pela natureza ou pelas circunstâncias, oferecia sérios riscos de ser utilizada para a prática de crimes ou pôr em perigo a comunidade.