Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
51/12.2TBESP-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
Nº do Documento: RP2012061251/12.2TBESP-E.P1
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na interpretação do sentido da exclusão prevista no art. 239°, n° 3, al. b, (i) do CIRE haverá que atender a um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar) e a um limite máximo, obtido de forma objectiva (o valor equivalente a três salários mínimos nacionais).
II - O conceito de sustento minimamente digno do devedor é um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana.
III - O limite, que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, corresponde ao salário mínimo nacional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 51/12.2 TBESP-E.P1
Tribunal Judicial de Espinho – 1º Juízo
Apelação (em separado)
Recorrentes: B… e C…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
B… e mulher C… vieram requerer a sua insolvência tendo simultaneamente formulado pedido de exoneração do passivo restante, o qual foi deferido liminarmente, por despacho proferido em 12.3.2012, tendo-se determinado, ao abrigo do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 239º do CIRE, que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores auferem e venham a auferir, com exclusão da quantia de 485€ para cada um dos insolventes, se considera cedido ao fiduciário.
Escreveu-se neste despacho:
“Tudo ponderado e considerando a idade dos Insolventes, a composição do seu agregado familiar e os seus actuais rendimentos e encargos (factos provados sob os nºs 1, 2, 4, 5 e 11 a 13), reputamos razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno de cada um dos devedores e do seu agregado familiar a quantia global de 970€ (novecentos e setenta euros), sendo 485€ (quatrocentos e oitenta e cinco euros) para cada um dos insolventes.”
Inconformados com o decidido, apenas no segmento assinalado, interpuseram recurso os insolventes B… e C…, que finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
1º No requerimento em que se apresentaram à insolvência B… e esposa C… requereram a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto nos artigos 235º e 236º do CIRE.
2º Declarada que foi a insolvência por sentença de 19.1.2012, o Mmº Juiz “a quo”, no prosseguimento dos autos, por despacho de 12.3.2012, admitiu o pedido de exoneração do passivo restante, por não se verificarem os pressupostos para o seu indeferimento liminar e nos termos do art. 239º, nº 2 do CIRE determinou que “... durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores auferem e venham a auferir, com exclusão da quantia de 485€ para cada um dos insolventes, considera-se cedido ao fiduciário que ora se nomeará ...”
3º O presente recurso tem por objecto o despacho liminar, proferido ao abrigo do disposto no art. 238º do CIRE, apenas, na parte acima transcrita em que determina como razoavelmente necessário para assegurar o sustento, minimamente condigno para cada um dos devedores, bem como do seu agregado familiar o valor correspondente a dois salários mínimos.
4º Tal significa que, no seu conjunto, o rendimento disponível cedido pelos insolventes corresponderia ao valor mensal de 586,56€ (quinhentos e sessenta e oito euros e cinquenta e seis cêntimos).
5º Passando os mesmos a dispor da quantia mensal e ilíquida de 970,00€ (novecentos e setenta euros), para promover o seu sustento, que corresponde a dois salários mínimos nacionais, fixado em 485€, pelo DL nº 143/2010, de 31.12.
6º Tendo sido considerado, em devida conta, no despacho do qual se recorre que os aqui apelantes têm como despesas fixas, nomeadamente:
- Estadia, deslocação, alimentação e propinas da filha que actualmente frequenta o ensino superior, no valor mensal de cerca de 500,00€;
- Água, electricidade, gás e telefone, no valor mensal de cerca de 250,00€;
- Alimentação, vestuário e calçado, na quantia mensal de cerca de 300,00€;
- Bem como assistência médica e medicamentosa, no valor mensal médio de 100,00€.
7º O que perfaz, mensalmente, a quantia mensal de 1.150,00€ (mil cento e cinquenta euros) de despesas fixas – prováveis – suportadas pelos ora recorrentes.
8º Assim sendo, facilmente se depreeende que o valor estipulado pelo douto despacho liminar, proferido pelo Mmº Juiz “a quo”, encontra-se muito aquém do necessário para fazer face às despesas descritas, despesas essas estritamente necessárias à sobrevivência humana!
9º O nº 3 do art. 239º do CIRE consigna que devem considerar-se excluídos do rendimento disponível os montantes tidos por razoavelmente necessários para o sustento, minimamente digno, do devedor e respectivo agregado familiar, podendo tais montantes ir até três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, a 1.455,00€.
10º É, pois, impossível, aos recorrentes viverem dignamente com o valor determinado no despacho recorrido.
11º Acresce ainda referir que não foi, também, contemplada pelo despacho liminar a necessidade que os insolventes têm de recorrer a uma nova habitação, pois o apartamento será entregue para liquidação, o que acarretará, obrigatoriamente, o pagamento de uma renda.
12º Tal como refere Menezes Leitão, em CIRE Anotado, 5ª ed., p. 242, a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía.
13º No entanto, o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da CRP e aludido também no art. 59º, nº 1, al. a) da CRP, exige que se salvaguarde aos devedores o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
14º O legislador afirma que o montante equivalente a três salários mínimos nacionais é o máximo do que entende ser o razoavelmente necessário para o sustento, minimamente condigno do devedor e agregado familiar.
15º Ora, no caso em apreço, os insolventes que casados são, um com o outro e, por isso, presume-se viverem em economia comum, têm uma filha, ainda, a seu cargo fazendo, também esta, parte integrante do seu agregado familiar.
16º Convirá ainda não olvidar que os aqui apelantes terão de com essa importância de pagar renda de casa, luz, água, vestuário, alimentação, despesas de saúde, bem como as despesas inerentes à formação da sua filha, o que vai obrigatoriamente implicar uma vida de bastante sacrifício e limitações.
17º Já que não foi por este despacho assegurado o sustento, minimamente digno dos insolventes, violando assim o disposto no art. 238º, nº 3, al. b) do CIRE e os arts. 1º e 59º, nº 1, al. a) ambos da CRP.
18º Destarte, deverá, por isso, ser substituído por outro que tendo presente o princípio da equidade e dos interesses em causa nos autos – insolventes e credores – determine que nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo (ou período de cessão), o rendimento que exceda o valor de uma vez e meia o salário mínimo nacional, auferido pelos insolventes, seja cedido a fiduciário a designar.
Não foi apresentada resposta.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º – A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se foi correcta a decisão da 1ª Instância na parte em que fixou em 970,00€ (485,00€ para cada um) o rendimento de que os insolventes podem dispor para prover à sua subsistência.
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OS FACTOS
A factualidade relevante para o conhecimento do presente recurso é a seguinte:
1. O requerente nasceu em 2.2.1962 – cfr. doc. de fls. 20-21, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. A requerente nasceu em 21.1.1961 – cfr. doc. de fls. 22-23, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Os requerentes contraíram casamento um com o outro em 6.1.1981, sem convenção antenupcial – cfr. doc. de fls. 24-26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. D…, nascida em 16.12.1992 é filha dos requerentes – cfr. doc. de fls. 27.
5. A filha dos requerentes reside com estes e frequenta o 1º ano do curso de licenciatura em Educação Básica.
6. Os requerentes contraíram um empréstimo, com hipoteca, junto ao E…, SA, encontrando-se por pagar o montante de 74.819,68€, vencido em 15 de Abril de 2007.
7. Os requerentes contraíram um empréstimo, com hipoteca, junto do E…, SA, encontrando-se por pagar o montante de 34.915,85€, vencido em 15 de Novembro de 2008.
8. Os requerentes contraíram um empréstimo, com hipoteca, junto do F…, encontrando-se por pagar o montante de 74.819,68€, vencido em 15 de Junho de 2009.
9. Os empréstimos referidos em 6) a 8) foram concedidos para aquisição de um prédio urbano destinado a casa de morada de família dos requerentes.
10. O requerente esteve de baixa médica e padece de incapacidade total para o trabalho, encontrando-se actualmente na situação de reforma por invalidez.
11. A requerente encontra-se desempregada desde Julho de 2007 e não aufere qualquer tipo de subsídio.
12. A pensão por invalidez auferida pelo requerente constitui o único rendimento do agregado familiar do casal, no valor de 1.538,56€, sendo que desse valor a Segurança Social processa a quantia de 752,12€, a Caixa Geral de Aposentações a quantia de 80€ e a parte restante constitui um complemento da EDP, que, a qualquer momento, poderá deixar de o conceder.
13. Os requerentes utilizam a quantia indicada em 12) na satisfação das seguintes despesas fixas mensais:
a) estadia, deslocação, propinas e alimentação da filha junto do ensino superior, no valor mensal de cerca de 500€;
b) água, electricidade, gás e telefone, no valor mensal de cerca de 250€;
c) alimentação, vestuário e calçado, em montante mensal de cerca de 300€; e
d) assistência médica e medicamentosa, em valor mensal médio de 100€.
14. O requerente está a reembolsar o Instituto de Segurança Social da quantia de 10.021,63€, respeitante ao processamento indevido do subsídio de doença, pagando, por acordo com a Segurança Social, a quantia mensal de 250€.
15. Nos últimos 3 anos, os requerentes não exerceram qualquer actividade por conta de outrem ou em nome individual e não exploram qualquer estabelecimento comercial.
16. Os requerentes são donos da fracção autónoma “AB”, correspondente a habitação, do 3º andar dtº, com entrada pelo nº … da Rua ..., do prédio urbano sito na Rua .., nºs … a … e Rua .., nºs …, …, …, …, … e …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o nº 908, da freguesia de …, concelho de Espinho.
17. Em consequência do descrito em 10) a 13), os requerentes não conseguem pagar as quantias indicadas em 6) a 8) e 14).
18. Os requerentes procuraram, junto do E…, SA, retomar o pagamento das prestações do empréstimo hipotecário, solicitando um crédito reestruturado, mas a instituição bancária apenas concedia essa reestruturação do crédito desde que se liquidasse o valor das prestações em atraso, acrescido dos juros e penalizações, o que perfazia um montante aproximado de 10.000€ a 12.000€, que os requerentes não possuem.
19. O E…, SA instaurou execução contra os requerentes, no valor de 123.562,86€, que corre termos sob o nº 1287/09.9 TBESP no 1º Juízo deste Tribunal e se encontra na fase da venda judicial do imóvel identificado em 16) – cfr. docs. de fls. 28 a 36 e 48.
20. Do certificado de registo criminal do requerente nada consta – cfr. doc. de fls. 51, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
21. Do certificado de registo criminal da requerente nada consta – cfr. doc. de fls. 52, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
22. Os requerentes apresentaram a petição inicial que deu origem aos presentes autos no dia 17 de Janeiro de 2012 – cfr. fls. 2 a 18.
23. Os requerentes foram declarados insolventes por sentença de 19.1.2012 – cfr. fls. 59-66.
24. A partir de Setembro de 2012 a quantia mensal, referida em 14), passará a ser de 252,59€ - cfr. doc. de fls. 31.
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O DIREITO
A exoneração do passivo restante é um regime novo, introduzido pelo actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), específico da insolvência das pessoas singulares. Concretiza-se na possibilidade de conceder aos devedores pessoas singulares a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no respectivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. Visa-se com esta medida, algo afastada da filosofia geral do Código, conceder ao devedor um “fresh start” (arranque novo), permitindo-lhe recomeçar a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior.[1]
Estamos, pois, perante um importante benefício que é concedido ao devedor singular e que se filia na ideia de que quem passou por um processo de insolvência aprende com os seus erros e terá no futuro um comportamento mais equilibrado no plano financeiro.
Tendo sido admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, nos termos do art. 239º, nºs 1 e 2 do CIRE, no qual determinará que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, denominado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário para os fins do art. 241º do CIRE (pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas; distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).
No final do período da cessão, será então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º do CIRE) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º do mesmo diploma, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, salvaguardando-se, contudo, os que vêm referidos no nº 2 deste último preceito.[2]
No caso “sub judice”, a Mmª Juíza “a quo”, considerando não haver motivo para indeferimento liminar, proferiu despacho inicial ao abrigo do art. 239º do CIRE, no qual, além do mais, fixou em 485,00€ para cada um o rendimento de que os insolventes podem dispor para prover à sua subsistência.
É precisamente contra este segmento da decisão proferida pela 1ª Instância que os insolventes se insurgem através do presente recurso, entendendo que o montante necessário para que possam prover dignamente à sua subsistência corresponderá, por cada um deles, ao valor de uma vez e meia o salário mínimo nacional.
O art. 239º, nº 2 do CIRE estabelece que «o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.»
Depois, no nº 3 do mesmo preceito estatui-se que «integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) do que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»
A decisão deste recurso prende-se, pois, com a interpretação a dar ao preceituado no art. 239º, nº 3, al. b), (i) do CIRE.
Ora, a exclusão que aqui se aprecia, consagrada na subalínea (i), trata-se da resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar.
Assim, na definição da amplitude do “rendimento disponível”, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora desse “rendimento disponível” a ceder uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.[3]
Esta exclusão surge, aliás, como uma exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da Constituição da República e aludido também no art. 59º, nº 1, al. a) do mesmo diploma fundamental.[4]
O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
A função interna do património, de que decorre a exclusão prevista na subalínea (i), mais não representa do que uma aplicação prática daquele princípio supra-constitucional e enquanto alicerce da existência digna das pessoas – suporte da sua vida económica – reflecte-se em diversas normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (a obtenção da prestação) e os interesses do devedor (o direito inalienável à manutenção de um nível de subsistência condigno), do que são exemplos o art. 239º, nº 3, al. b), (i) do CIRE e o art. 824º, nºs 1 e 2 do Cód. do Proc. Civil.[5]
Normas estas que têm o mesmo fundamento axiológico – a garantia do sustento minimamente digno das pessoas, ou seja, a defesa da dignidade humana.[6]
No caso concreto do art. 239º, nº 3, al. b), (i) do CIRE, que agora nos ocupa, deverá entender-se que o legislador consagrou um limite máximo para o que considera ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente condigno do indivíduo, fixando-o, de forma objectiva, no montante equivalente a três salários mínimos nacionais. Sucede que para lá deste montante já não estará em causa a dignidade humana, o que justificará, assim, a exigência acrescida de fundamentação no caso desse limite máximo ser excedido.
Mas já no que concerne ao limite mínimo, a técnica legislativa foi diversa, uma vez que em lugar de uma formulação objectiva como no limite máximo, se enveredou por um critério geral e abstracto (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor.
Estamos, deste modo, perante um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana assente na definição do montante que é indispensável a uma existência digna, o que deverá ser avaliado na peculiaridade do caso de cada devedor.[7]
Em suma, o juiz terá que efectuar um juízo de ponderação casuística relativamente ao montante a fixar.
Deverá, contudo, entender-se que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo.[8]
O salário mínimo nacional é assim o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade.[9]
Retornando ao caso dos autos, constata-se que a Mmª Juíza “a quo” entendeu fixar precisamente na verba correspondente ao salário mínimo nacional (485,00€ - Dec. Lei nº 143/2010, de 31.12.) a quantia suficiente para o sustento condigno de cada um dos insolventes.
Mas será que, face aos contornos da situação “sub judice”, esta quantia se deveria ter quedado neste valor ou, pelo contrário, dever-se-ia ter elevado até ao valor de uma vez e meia o salário mínimo nacional, conforme o pretendem os insolventes com o seu recurso?
Passamos a transcrever a factualidade relevante para a resposta a esta questão:
- Os insolventes têm uma filha – D…, nascida em 16.12.1992 – que reside com eles e frequenta o 1º ano do curso de licenciatura em Educação Básica (nºs 4 e 5);
- A requerente encontra-se desempregada desde Julho de 2007 e não aufere qualquer tipo de subsídio (nº 11);
- A pensão por invalidez auferida pelo requerente constitui o único rendimento do agregado familiar do casal, no valor de 1.538,56€, sendo que desse valor a Segurança Social processa a quantia de 752,12€, a Caixa Geral de Aposentações a quantia de 80€ e a parte restante constitui um complemento da EDP, que, a qualquer momento, poderá deixar de o conceder (nº 12);
- Os requerentes utilizam a quantia indicada em 12) na satisfação das seguintes despesas fixas mensais:
a) estadia, deslocação, propinas e alimentação da filha junto do ensino superior, no valor mensal de cerca de 500€;
b) água, electricidade, gás e telefone, no valor mensal de cerca de 250€;
c) alimentação, vestuário e calçado, em montante mensal de cerca de 300€; e
d) assistência médica e medicamentosa, em valor mensal médio de 100€ (nº 13).
- O requerente está a reembolsar o Instituto de Segurança Social da quantia de 10.021,63€, respeitante ao processamento indevido do subsídio de doença, pagando, por acordo com a Segurança Social, a quantia mensal de 250€, que a partir de Setembro de 2012 passará a ser de 252,59€ (nºs 14 e 24).
Da análise de todos estes elementos factuais um aspecto se destaca: os insolventes têm ainda a seu cargo uma filha de 19 anos de idade que está a frequentar o 1º ano do ensino superior, o que motiva com estadia, deslocação, propinas e alimentação o dispêndio de um valor mensal de cerca de 500€.
Ora, a ponderação deste facto, que se justifica destacar e que não foi devidamente valorizado na decisão recorrida, leva-nos a concluir que “in casu” a fixação do montante necessário para assegurar o sustento minimamente condigno de cada um dos insolventes e do seu agregado familiar na quantia correspondente ao salário mínimo nacional pecou por escasso.
Com efeito, na presente situação e na nossa perspectiva, esse mínimo condigno de sustento só se atingirá com a quantia de 600,00€ por cada um dos insolventes, quantia esta que, ao invés dos 485,00€ atribuídos pela 1ª Instância, reputamos de suficiente para fazer face às despesas que visem a satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar, como sejam as tidas com alimentação, vestuário, calçado, gás, água, electricidade, telefone, assistência médica e medicamentosa e ainda – e muito em particular - com o estudo da sua filha.
Deste modo, na linha do que se vem expondo, impõe-se a parcial procedência do recurso interposto, fixando-se em 600,00€, por cada um dos insolventes, o rendimento de que estes podem dispor para prover à sua subsistência [o rendimento global de que os dois podem dispor passará assim a ascender a 1.200,00€, em vez dos 970,00€ fixados na decisão recorrida].
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Sintetizando:
- Na interpretação do sentido da exclusão prevista no art. 239º, nº 3, al. b, (i) do CIRE haverá que atender a um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar) e a um limite máximo, obtido de forma objectiva (o valor equivalente a três salários mínimos nacionais).
- O conceito de sustento minimamente digno do devedor é um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana.
- O limite, que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, corresponde ao salário mínimo nacional.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos insolventes B… e C… e em alterar parcialmente a decisão recorrida, fixando-se em 600,00€ (seiscentos euros) o rendimento de que cada um dos insolventes pode dispor para prover à sua subsistência.
Custas a cargo da massa insolvente.

Porto, 12.6.2012
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
___________________
[1] Cfr. Luís Menezes Leitão, “CIRE anotado”, 4ª ed., págs. 236/7.
[2] Refere-se este nº 2 aos créditos por alimentos – a), às indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade – b), aos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações – c) e aos créditos tributários – d).
[3] Cfr. Ac. Rel. Porto de 15.7.2009, p. 268/09.7 TBOAZ-D.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Neste preceito constitucional estabelece-se que todos os trabalhadores têm direito a retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.
[5] Nesta última norma consagra-se a impenhorabilidade de dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado [nº 1, a)], bem como de dois terços de prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante [nº 1, b)].
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto de 25.5.2010, p. 1627/09.0 TJPRT-D.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Cfr., por ex., Ac. Rel. Lisboa de 18.1.2011, p. 1220/10.5 YXLSB-A.L1.7 e Ac. Rel. Porto de 17.4.2012, p. 959/11.2 TBESP-E.P1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. Rel. Porto de 10.5.2010, p. 1292/10.2 TJPRT-D.P1, disponível in www.dgsi.pt, onde se referem os Acs. Tribunal Constitucional nºs 117/2002, de 23.4.2002 e 96/2004, de 11.2.2004. [9] Cfr. Acs. Rel. Porto de 15.9.2011, p. 692/11.5 TBVCD-C.P1 e de 24.1.2012, p. 1122/11.8 TBGDM-B.P1, disponíveis in www.dgsi.pt.