Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
157335/09.1YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
CONHECIMENTO OFICIOSO
FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO
SOCIEDADE GESTORA
RESPONSABILIDADE
LICENÇA
CADUCIDADE
AVALIAÇÃO
PAGAMENTO
Nº do Documento: RP20101103157335/09.1YIPRT.P1
Data do Acordão: 11/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: ARTº 264º, Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - Factos essenciais são os que se revelam absolutamente indispensáveis à identificação preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo.
II - De acordo com o disposto no artº 264º, nº 2 do Código de Processo Civil, o juiz, oficiosamente pode considerar na sua decisão os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
III - Os fundos de investimento imobiliário são administrados por uma sociedade gestora que o faz em representação dos respectivos participantes.
IV - No caso do fundo de investimento imobiliário não se ter constituído por ter caducado a respectiva licença, a responsabilidade pelo pagamento de serviços de avaliação de imóveis que foram prestados compete aos participantes do fundo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 157335/09.1 YIPRT.P1
. Juízo Cível do Porto – . secção
Apelação
Recorrentes: “B………., SA” e “C………., Ldª”
Recorrida: “D………., Ldª”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Pinto dos Santos e Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
“D………., Ldª”, com sede na ………., …., .º andar, no Porto, intentou injunção contra “C………., Ldª”, com sede em ………., ………., Braga e “B………., SA”, com sede na ………., nº .., ..º Dtº, Braga, a qual, após a dedução de oposição por parte desta segunda ré, passou a seguir os seus termos ao abrigo do Dec. Lei nº 108/2006.
Pretende a autora que, na procedência da acção, sejam as rés condenadas a pagar-lhe a quantia de € 23.813,50, sendo € 22.500,00 a título de capital, € 1.237,00 de juros e € 76,50 de taxa de justiça.
Fundamenta a sua pretensão dizendo que se dedica à prestação de serviços de consultadoria imobiliária e que no âmbito da sua actividade prestou serviços de avaliação de imóveis constantes das facturas 816 e 817 que as rés se obrigaram solidariamente a liquidar nas datas de emissão das identificadas facturas.
Apenas a ré “B………., SA” apresentou contestação dizendo que no ano de 2008 a requerente não lhe prestou quaisquer serviços, nem nunca recepcionou as facturas nºs … e …, pelo que nada lhe deve.
Foi proferido despacho saneador e designado dia para a audiência de julgamento, tendo esta decorrido com observância do formalismo legal.
Seguidamente, proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou as rés “C………., Ldª” e “B………, SA” a pagar à autora “D………., Ldª” a quantia de €22.500,00, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Inconformadas com esta sentença, dela interpuseram as rés que finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O requerimento inicial carece de factos que nos permitam concluir pela existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre recorrentes e recorrida;
2. Os factos dados como provados não foram alegados pelas partes e,
3. mesmo que referidos na audiência de julgamento, deles a recorrida não manifestou a vontade de se aproveitar,
4. conferindo-se, em consequência, o direito às recorrentes de os contraditar e apresentar a respectiva prova.
5. Daí que se tenha violado os princípios do dispositivo e contraditório previstos no art. 264 do CPC.
6. Tais factos, als. C), E), H) e N) dos factos provados, porque não instrumentais, porque essenciais à procedência do pedido, necessitavam de ser alegados e provados.
7. Houve, por isso, uma errada análise crítica da prova, uma vez que considerou que foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre recorrentes e recorrida,
8. em que as recorrentes intervieram através da F………., sua mandatária.
9. Quer os factos alegados,
10. quer mesmo os dados como provados, não nos permitem concluir pela existência de um qualquer mandato conferido pelas recorrentes à F……….,
11. daí a errada análise da prova.
12. Da mesma forma, não nos permitem os factos alegados ou dados como provados concluir pela existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre as recorrentes e a recorrida,
13. daí, ainda, a errada análise da prova e dos factos dados como provados.
14. Violou, por isso, a decisão em mérito, entre outros, o disposto nos arts. 1154, 1157 do CC, 669, 264, 660-2 do CPC
15. devendo, por isso, ser a decisão declarada nula, al. c) do nº 1 do art. 668 do CPC, ou, se assim não se entender, 16. ser revogada por outra que absolva as recorrentes do pedido,
17. alterando-se a matéria de facto provada, considerando-se como não provados os factos constantes das als. C), E), H), N), O) dos factos provados,
18. nos termos do art. 712 do CPC.
A autora apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
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Aos presentes autos, face à data da sua entrada em juízo, é aplicável o regime de recursos resultante do Dec. Lei nº 303/2007, de 24.8.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684, nº 3 e 685 – A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I - Apurar se ao dar-se como provada a factualidade constante das alíneas C), E), H) e N) ocorreu violação do disposto no art. 264, nº 3 do Cód. do Proc. Civil, por tais factos, não alegados pelas partes, serem essenciais à procedência do pedido;
II – Apurar se, perante os meios probatórios que foram produzidos nos autos, deveriam ter sido dados como provados os factos constantes das alíneas C), E), H), N) e O);
III – Apurar se, face à factualidade dada como assente pela 1ª Instância, a solução jurídica do pleito se mostra correcta;
IV – Apurar se a sentença recorrida está ferida pela nulidade referida na al. c) do nº 1 do art. 668 do Cód. do Proc. Civil.
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OS FACTOS
A matéria fáctica dada como assente pela 1ª Instância é a seguinte:
A) A autora “D………., Ldª” é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de consultadoria imobiliária, cujos peritos se encontram credenciados pela CMVM para o exercício da actividade no âmbito de sociedades cotadas no mercado de valores mobiliários através do registo n. …../../…/….
B) As rés são sociedades comerciais vocacionadas para o exercício da actividade imobiliária.
C) Na constituição do E………. é necessária a intervenção de uma sociedade gestora de fundos imobiliários, tendo as rés escolhido a “F………., Lda”.
D) Ao E………. foi atribuída a designação de “E……….” e foi autorizado pela CMVM em 20.12.2006.
E) Na concretização da constituição do E………. tornava-se necessário proceder a avaliações de terrenos tendo a sociedade “F………., Ldª” entregado a avaliação dos activos imobiliários à autora.
F) O regulamento da gestão do E………. consta do documento junto aos a fls. 259 e ss. que se dá por integralmente reproduzido.
G) Para além da avaliação inicial e a que se alude em E) foi ainda solicitado à autora a avaliação de mais prédios que conduziram a elaboração dos relatórios de Março de 2007.
G) (1) No conjunto a autora procedeu a avaliação dos seguintes prédios:
- edifício com a área de implantação de 937 m2 sito no ………., no ………., freguesia e concelho de Santo Tirso, descrito na CRP de Santo Tirso sob o nº 02253/210200 e inscrito na matriz urbana sob o art. 4998 em 2 de Março de 2007;
- fracção destinada a escritório, sita no primeiro andar direito/sul, com entrada pelo nº .. da ………., na freguesia de ………., Braga, descrita na CRP de Braga sob o nº 01420/240495 – G e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 4495/G em 2 de Março de 2007;
- edifício sito no ………., freguesia de ………., Braga, descrito na CRP de Braga sob o n.º 261/19950704 e inscrito na matriz urbana sob o nº 6 em 30 de Novembro de 2006;
- parcela de terreno, sito no ………., ………., freguesia de ………., Braga, designado por lote nº 5, descrito na CRP de Braga sob o nº 0024/020787 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 406 em 2 de Março de 2007;
- parcela de terreno, sito no ………., ………., freguesia de ………., Braga, designado por lote nº 6, descrito na CRP de Braga sob o nº 0024/020787 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 427 em 2 de Março de 2007;
- edifício com uma área de implantação de 510 m2 sito no ………., freguesia de ………., Braga, descrito na CRP de Braga sob o nº 00521/920727 e inscrito na matriz predial urbana 1060 em 30 de Novembro de 2006;
- edifício terreno, com a área de implantação de 450 m2, sito no ………., descrito na CRP de Braga sob o nº 00521/920727 inscrito na matriz sob o artigo 1061 em 30 de Novembro de 2006;
- terreno com uma área de 10.540 m2 sito no ………., freguesia de ………., Vila Nova de Famalicão, composto por dois artigos contíguos, descrito na CRP de Vila Nova de Famalicão sob o nº 00920/110203 inscrito na matriz 1179 e 1271 em 30 de Novembro de 2006;
- terreno sito no ………., freguesia de ………., concelho de Montalegre, constituído por um prédio rústico e urbano contíguos perfazendo a área total de 96474 e descritos na CRP de Montalegre sob os nºs 00061/200387 e 01224/011207 em 30 de Novembro de 2006;
- terreno para construção sito no ………., freguesia de ………., Braga, descrito na CRP de Braga sob nº 00141/………. em 2 de Março de 2007.
H) Os terrenos avaliados iriam integrar o património do E………..
I) Em 5.12.2006 a ré “B………., SA” enviou um telefax dirigido ao Eng. G………. (sócio da autora) do qual consta além do mais que “ conforme solicitado pelo Dr. H………., junto enviamos avaliação ao nosso empreendimento, sito em ………. – Vila Nova de Famalicão, efectuada pelo I………. em Junho de 2004.” (…)
J) O referido G………. enviou em 12.3.2007 um email dirigido a “F……….” onde refere que “Junto envio o último relatório da E………. para completar trabalho. Agradecia a confirmação do NIF para facturar e entregar relatórios em papel.”
J) (1) Em 29.6.2007 J………. enviou um email a G………. onde refere como assunto “cobrança das avaliações E……….” e refere além do mais que “devido a caducidade da autorização de constituição do E………., deveram emitir as facturas das avaliações realizadas as empresas promotoras do E………. B………., SA (…) C………., L.da (…). Contactar por favor Dr. H………..”
L) Em 21.8.2007 a autora enviou um fax ao Dr. H………. solicitando que sejam confirmados os dados da empresa para facturação dos trabalhos de avaliação realizados em nome do E………. e respectiva data de liquidação.
M) Em 22.12.2007 foi enviado um novo fax ao Dr. H………. onde se refere que “no seguimento de contactos telefónicos, do fax de 21.8.2007 e de uma reunião nas vossas instalações, fomos sendo informados que a liquidação dos honorários relativos aos trabalhos de avaliação de onze imóveis realizados em nome do E1………. estaria para breve (…) Assim não nos sendo possível manter esta situação indefinidamente, solicitamos a sua regularização nos próximos 15 dias (…).
N) O E1………. não chegou a ser constituído tendo a licença da sua constituição caducado.
O) Na sequência dos serviços de avaliação supra-aludidos a autora emitiu em nome da ré “C………., Ldª” e da ré “B………., SA” as facturas nºs 816 e 817, respectivamente, ambas datadas de 24.10.2008 e com data de vencimento para 24-10-2008 no montante de € 22.500,00 cada, com o esclarecimento que uma e outra das facturas aludidas titulam a prestação dos mesmos serviços.
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Simultaneamente, deu-se como não provado que:
- a autora e rés tenham acordado que o pagamento do valor da factura seria efectuado na data de emissão das mesmas;
- a autora não tenha prestado à ré contestante os serviços constantes das facturas no ano de 2008
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O DIREITO
I – O princípio dispositivo na sua formulação pura significa que as partes dispõem do processo como da relação jurídica material. O processo é coisa ou negócio das partes. É uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas. O juiz limita-se a arbitrar a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado. Daí que a inércia, inactividade ou passividade do juiz contraste com a actividade das partes.[1]
A tendência das legislações modernas vai no sentido da introdução de cada vez mais restrições ao princípio dispositivo, acentuando a importância do princípio que lhe é contraposto - o princípio inquisitório.
Com a profunda reforma processual de 1995/96 passou-se a encarar o processo civil como um meio de alcançar a justa composição de um litígio, de se atingir a verdade material pela aplicação do direito substantivo e em que, ao cabo e ao resto, o fundo deverá prevalecer sobre a forma.
Não se eliminou, porém, o princípio dispositivo, substituindo-o pelo princípio inquisitório, que corresponde à possibilidade de livre investigação judicial dos factos. Com efeito, continua a caber às partes a alegação dos factos que integram a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as excepções (cfr. art. 264, nº 1 do Cód. do Proc. Civil), tal como o juiz, em princípio, só pode, na sua decisão, servir-se dos factos articulados pelas partes (cfr. art. 664 do Cód. do Proc. Civil).
Contudo, teremos agora que atender ao que se estatui nos nºs 2 e 3 do art. 264 do Cód. do Proc. Civil, vitais para a decisão do presente recurso, cuja actual redacção foi introduzida na sequência da reforma processual de 1995/96.
No nº 2 diz-se que «o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514[2] e 665[3] e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.»
Depois, no nº 3 preceitua-se que «serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.»
Daqui resultou uma regulamentação em termos inovatórios da problemática da aquisição processual dos factos relevantes, tendo-se ampliado de forma significativa o leque dos factos que o tribunal pode tomar em conta na decisão, apesar de não terem sido alegados no momento processual adequado – a fase dos articulados.
Deste modo, estabelece-se que o tribunal pode tomar em conta oficiosamente os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (nº 2), prevendo-se também a possibilidade de se considerarem na decisão factos essenciais “complementares” ou “concretizadores” que, apesar de não terem sido alegados no momento processual idóneo, resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e após ser cumprido o princípio do contraditório (nº 3).
Acontece que neste segundo caso não ocorre verdadeira limitação ao princípio dispositivo, mas tão só ao princípio da preclusão, uma vez que a consideração judicial dos factos essenciais “complementares” ou “concretizadores” depende da expressa manifestação de vontade da parte interessada em deles se prevalecer.
Há que distinguir, então, entre factos essenciais e factos instrumentais.
Factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes.[4]
Factos instrumentais, por seu turno, destinam-se a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes, assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.[5]
Melhor concretizando, poder-se-à dizer que factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.[6]
Entendem as recorrentes que o requerimento inicial carece de factos que permitam concluir pela existência de um contrato de prestação de serviços e que a factualidade constante das alíneas C), E), H) e N) acima transcritas, porque não instrumental, mas sim essencial à procedência do pedido, necessitava de ser alegada e provada. Acrescentam ainda que, mesmo que referida na audiência de julgamento, a recorrida não manifestou vontade de se aproveitar de tal factualidade, motivo pelo qual ao ser considerada pela Mmª Juíza “a quo” na sentença proferida ocorreu violação do disposto no art. 264, nº 3 do Cód. do Proc. Civil.
Porém, não lhes assiste razão.
Lendo o requerimento de injunção, naturalmente sucinto, constata-se que a autora alegou o seguinte (fls. 2):
- é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de consultadoria imobiliária, cujos peritos se encontram credenciados pela CMVM para o exercício da actividade no âmbito de sociedades cotadas no mercado de valores mobiliários através do registo nº …../../…/…;
- as requeridas são sociedades comerciais vocacionadas para o exercício da actividade imobiliária;
- no âmbito das suas respectivas actividades societárias, a requerente prestou às requeridas, por contrapartida da obrigação solidária destas pagarem os respectivos preços, os serviços de avaliação de imóveis discriminados nas facturas … e …, ambas emitidas em 24.10.2008, no valor de €22.500,00;
- a requerente e as requeridas acordaram que o pagamento deste valor seria efectuado na data da emissão de tais facturas;
- contudo, apesar de ambas as requeridas sempre terem reconhecido a existência, certeza, liquidez, vencimento e exigibilidade do seu débito, desde então e até à presente data, nenhuma delas pagou à requerente o que quer que fosse.
Por seu lado, a ré “B………., SA”, em sede de oposição, alegou o seguinte (fls. 4):
- a requerente não prestou à oponente, no ano de 2008, quaisquer serviços, designadamente os constantes das facturas nºs … e …;
- a oponente nunca recepcionou tais facturas;
- nada deve à requerente.
Ora, da leitura destas peças processuais resulta que as mesmas contêm os factos que se mostram absolutamente indispensáveis à substanciação das situações jurídicas afirmadas pelas partes.
E centrando a nossa atenção no requerimento injuntivo, logo se constata que neste é alegada a factualidade que se revela essencial e decisiva para a procedência da acção. Com efeito, nele se alega que entre a autora e as rés existiu um contrato de prestação de serviços e que, na sequência deste, a primeira emitiu as facturas … e …, no valor de €22.500,00, as quais não foram pagas.
Acontece que os factos a que as rés se reportam nas suas alegações de recurso [alíneas C), E), H) e N)] - que, aliás, surgem nos autos por via da defesa feita pela própria ré “B………, SA”, na audiência de julgamento, a qual sustentou que o contrato de prestação de serviços consistente na avaliação dos imóveis foi celebrado entre a sociedade gestora de fundos “F………., Ldª” e o E………., pelo que nenhuma responsabilidade lhe poderia ser assacada no tocante ao preço devido pela avaliação dos imóveis – deverão ser encarados não como factos essenciais, mas sim como factos meramente instrumentais.
É que na linha do que se tem vindo a expor tal factualidade não surge como absolutamente indispensável à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes. Ajuda tão só a perceber a relação jurídica que se estabeleceu entre as partes, que se traduziu num contrato de prestação de serviços de avaliação imobiliária com vista à constituição de um fundo de investimento imobiliário, em que as rés, sendo necessária a intervenção de uma sociedade gestora de fundos imobiliários, escolheram, para tal efeito, a sociedade “ F………. – Ldª”.
Daí que tais factos tenham que ser havidos como instrumentais, uma vez que só indirectamente interessam à solução do pleito, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela verdade dos próprios factos fundamentadores do direito.
Reportando-se assim as alíneas referidas pelas recorrentes a factos instrumentais, que resultaram da instrução e discussão da causa, a Mmª Juíza “a quo” poderia tomá-los em consideração oficiosamente, como o fez, nos termos do art. 264, nº 2 do Cód. do Proc. Civil.
Por conseguinte, não ocorreu qualquer violação do princípio dispositivo e do princípio do contraditório e, designadamente, do preceituado no nº 3 do art. 264 do Cód. do Proc. Civil, razão pela qual, nesta parte, improcederá o recurso interposto pelas rés.
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II – A questão que seguidamente se irá analisar concerne à reapreciação da matéria de facto, se bem que a respectiva impugnação tenha sido feita pelas rés/recorrentes em termos que não se mostram os mais correctos.
De qualquer modo, da leitura do corpo das alegações, onde se referem com algum detalhe os depoimentos prestados pelas testemunhas K………., L………., G………. e M………., conjugados com as conclusões 16, 17 e 18, conclui-se que as recorrentes, apoiando-se nestes depoimentos, pretendem que a factualidade constante das alíneas C), E), H), N) e O) seja dada como não provada.
O art. 712 do Cód. do Proc. Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto” estabelece o seguinte no seu nº 1:
«1. A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690 – A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.»
Como já se disse atrás, é objectivo das recorrentes que a matéria fáctica contida nas alíneas C), E), H), N) e O) seja dada como não provada, passando-se aqui a transcrever a sua redacção:
C) - Na constituição do E………. é necessária a intervenção de uma sociedade gestora de fundos imobiliários, tendo as rés escolhido a “ F………., L.da”.
E) - Na concretização da constituição do E………. tornava-se necessário proceder a avaliações de terrenos tendo a sociedade “F………., Ldª” entregado a avaliação dos activos imobiliários à autora.
H) - Os terrenos avaliados iriam integrar o património do E………..
N) - O E……… não chegou a ser constituído tendo a licença da sua constituição caducado.
O) - Na sequência dos serviços de avaliação supra-aludidos a autora emitiu em nome da ré “C………, Ldª” e da ré “B………., SA” as facturas nºs … e …, respectivamente, ambas datadas de 24.10.2008 e com data de vencimento para 24-10-2008 no montante de € 22.500,00 cada, com o esclarecimento que uma e outra das facturas aludidas titulam a prestação dos mesmos serviços.
Procedemos assim à audição dos depoimentos acima indicados.
K………., que exerce a sua actividade profissional na sociedade “F………., Ldª”, disse que esta é uma sociedade gestora de fundos imobiliários. Trata dos processos burocráticos com vista à constituição de tais fundos. Neste caso, quem pretendia constituir o E………. eram as duas sociedades rés; a “F………., Ldª” limitava-se a tratar dos assuntos legais com vista à constituição do E………. e obtenção da respectiva licença a emitir pela CMVM. Previamente à constituição do F………. era necessário proceder a duas avaliações dos imóveis, tendo uma delas sido feita pela aqui autora (a outra foi-o pela “N……….”). Quanto à questão de saber quem é que paga estas avaliações preliminares, disse que tal pagamento é efectuado pelos próprios fundos de investimento imobiliário quando constituídos. Não tendo chegado a ser constituídos, como aqui sucedeu, o pagamento, nas situações em que tal se verificou, recaiu sobre os clientes que pretendiam constituir o E………. que, neste caso, seriam as empresas rés.
G………., sócio da autora, de que já foi gerente, disse que esta é uma sociedade que se dedica à avaliação de imóveis. Foram contactados pela sociedade gestora “F………., Ldª” a fim de realizarem avaliações de imóveis com vista à constituição do E……….. Os custos das avaliações são pagos pelo E………., através da sociedade gestora. Esclarece que sendo o dinheiro do E………. lá colocado pelos proponentes da operação, são estes, em última análise, que sempre pagam os custos das avaliações, quer o E………. seja constituído ou não. A sociedade gestora não paga as avaliações, actua tão só em representação dos proponentes do E……….. Esclareceu ainda que as rés sempre assumiram o pagamento das facturas relativas às avaliações efectuadas, tendo inclusive sido propostas várias formas de proceder ao seu pagamento. Aliás, só o malogro destas diligências fez com que a autora avançasse com esta acção.
M………., que presta serviços à autora há cerca de cinco anos, disse ter efectuado as avaliações referidas nos autos, no que foi acompanhado por H………. (sócio gerente da ré “C………., Ldª”).
L………., perito avaliador e sócio gerente da “N……….”, disse que foi contactado para efectuar as avaliações por parte da sociedade gestora “F………., Ldª”. O pagamento destas avaliações é feito pelo fundo de investimento imobiliário, uma vez constituído. Não se concretizando essa constituição, os serviços prestados pelos avaliadores deverão ser facturados às entidades proponentes do respectivo fundo imobiliário.
Ora, da análise de todos estes depoimentos, que acabaram de se sintetizar, conexionada com a apreciação da prova documental reunida nos autos, com destaque para as facturas juntas a fls. 211 e segs., somos levados a concluir que nenhuma razão existe para considerar como não provados os factos que foram vertidos nas alíneas C), E), H), N) e O).
Com efeito, só se poderia alterar a matéria de facto se ocorresse uma notória desconformidade dos factos assentes com os meios de prova produzidos. Contudo, na sequência do que se vem explanando, o que se constata é que tal desconformidade não ocorre. Antes pelo contrário, o que se verifica, após a reapreciação dos depoimentos testemunhais acima referidos e da sua conjugação com os elementos probatórios de natureza documental existentes nos autos, é a plena conformidade entre a prova produzida e o conteúdo das alíneas C), E), H), N) e O) da factualidade dada como assente.
Como tal, também neste segmento, improcederá o recurso interposto pelas rés.
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III – As rés/recorrentes insurgem-se igualmente contra a solução jurídica dada ao pleito pela 1ª Instância, por considerarem que os factos provados não permitem concluir pela existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre elas e a autora.
Também aqui entendemos que não lhes assiste razão, face à convincente argumentação explanada na sentença recorrida e que iremos seguir nas suas linhas essenciais.
Contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição – cfr. art. 1154 do Cód. Civil.
As modalidades do contrato de prestação de serviços que não sejam especialmente reguladas pela lei regem-se pelas disposições relativas ao contrato de mandato – cfr. art. 1156 do Cód. Civil.
Presume-se oneroso o contrato de prestação de serviços que tiver por objecto actos que o prestador de serviços pratique por profissão e quem contrata a prestação de serviços a título oneroso tem como uma das suas obrigações a de pagar, a quem os presta, a respectiva retribuição – cfr. arts. 1158 e 1167, al. b) do Cód. Civil.
Sucede que nos presentes autos o que se pretende saber é se as rés celebraram um contrato de prestação de serviços, tanto mais que a ré contestante se defendeu, em julgamento, sustentando que tal contrato foi celebrado entre a sociedade gestora de fundos (a “F……….., Ldª”) e o próprio E……….., nenhuma responsabilidade lhe podendo ser atribuída.
Do Regime Jurídico dos E………., na redacção que lhe foi dada pelo Dec. Lei nº 13/2005, de 7.1, resulta que estes «constituem patrimónios autónomos, pertencentes, no regime especial de comunhão regulado pelo presente diploma, a uma pluralidade de pessoas singulares ou colectivas designadas “participantes”, sem prejuízo do disposto no art. 48, que não respondem, em caso algum, pelas dívidas destes ou das entidades que, nos termos da lei, asseguram a sua gestão».
A administração destes fundos compete a uma sociedade gestora que tem como objecto principal a administração, em representação dos participantes, de um ou mais fundos de investimento imobiliário – cfr. art. 6 do mesmo diploma.
No caso “sub judice” foi autorizada, pela CMVM, a constituição do fundo, ao qual foi atribuída a designação de “E……….” – al. D).
No entanto, para a sua concretização tornava-se necessário proceder a avaliações de terrenos, tendo a sociedade “F………., Ldª”, escolhida pelas rés, entregado a avaliação dos activos imobiliários à autora – als. C) e E).
Contudo, pese embora tenha sido obtida autorização por parte da CMVM, o E………. não se viria a constituir, tendo caducado a respectiva licença nos termos do art. 20, nº 5 do Regime Jurídico dos E………. – al. N).
Coloca-se então a questão, face à não constituição do E………., de apurar quem é que deverá pagar os serviços de avaliação de imóveis que foram prestados pela autora: se a sociedade gestora do fundo ou se as rés, enquanto participantes desse mesmo fundo.
A sociedade gestora – a “F………., Ldª” -, com vista à constituição do fundo de investimento imobiliário aqui em causa, uma vez que para tal efeito era imprescindível proceder à avaliação de imóveis, encomendou este serviço à autora “D………., Ldª”.
Agiu, porém, por conta e no interesse das rés, participantes do fundo, ou, melhor dizendo, em sua representação.
Aliás, conforme flui da troca de correspondência descrita nas alíneas I), L) e M), as rés sabiam quem era a empresa que procedeu às avaliações, com a qual tiveram até contactos directos, designadamente através de H………..
Acresce que as rés ao atribuírem à “F………., Ldª” a gestão do E………. sabiam e não podiam ignorar que, entre as diligências essenciais à constituição desse fundo, se contava a avaliação de imóveis, tal como não podem ignorar que a licença que fora concedida entretanto caducou.
É assim de concluir que, apesar da autora ter sido contratada pela sociedade gestora “F………., Ldª”, o foi em representação das rés.
Ora, estatui o art. 258 do Cód. Civil que «o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.»
Consequentemente, os efeitos do negócio jurídico celebrado entre a autora e a “F………., Ldª”, actuando esta em representação das rés, produzem-se directamente na esfera jurídica desta última.
Por isso, tudo se passa como se o contrato de prestação de serviços relativo à avaliação dos imóveis, tivesse sido directamente celebrado entre a autora e as rés, daqui resultando a obrigação destas procederem ao pagamento do preço respectivo.
Deste modo, mostrando-se acertada a solução jurídica que foi dada ao pleito pela 1ª Instância, que por nós foi seguida, também nesta parte improcederá o recurso interposto pelas rés.
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IV – Na conclusão 15 as rés/recorrentes sustentam ainda a nulidade da sentença recorrida, por força do disposto no art. 668, nº 1, al. c) do Cód. do Proc. Civil.
Estabelece-se neste preceito que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.[7]
Sucede que basta ler a sentença recorrida e tudo o que neste acórdão se explanou no ponto III para se concluir, sem qualquer hesitação, que no caso presente não existe oposição entre os fundamentos e a decisão, razão pela qual não se verifica a nulidade a que alude o art. 668, nº 1, al. c) do Cód. do Proc. Civil.
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Sumário (art. 713, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- Factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes.
- Factos instrumentais, por seu turno, são os que interessam indirectamente à solução do pleito, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.
- De acordo com o disposto no art. 264, nº 2 do Cód. do Proc. Civil, o juiz, oficiosamente, pode considerar na decisão os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
- Os fundos de investimento imobiliário são administrados por uma sociedade gestora, que o faz em representação dos respectivos participantes.
- No caso do fundo de investimento imobiliário não se ter constituído por ter caducado a respectiva licença, a responsabilidade pelo pagamento dos serviços de avaliação de imóveis que foram prestados compete aos participantes no fundo, uma vez que a sociedade gestora, na celebração do respectivo contrato de prestação de serviços, actuou em representação daqueles participantes.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelas rés “B………., SA” e “C………., Ldª”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo das rés/recorrentes.

Porto, 3.11.2010
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Manuel Pinto dos Santos
João Manuel Araújo Ramos Lopes

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[1] Cfr. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373/4.
[2] Factos notórios e factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
[3] Factos relativos ao uso anormal do processo.
[4] Cfr. Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pág. 252.
[5] Cfr. Lopes do Rego, ob. cit., págs. 252/3.
[6] Cfr. Ac. STJ de 4.2.2003, p. 03B1987, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Lebre de Freitas e outros, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., pág. 704.