Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1457/12.2TJPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201211151457/12.2TJPRT-A.P1
Data do Acordão: 11/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No processo especial de revitalização criado pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, o juiz, ao proferir o despacho a que se refere a segunda parte da alínea a) do n.º 3 do art.º 17.º-C do CIRE, não tem que verificar a existência dos requisitos materiais de que depende o recurso a tal procedimento, nem o seu eventual abuso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº. 1457/12.2TJPRT – 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº. 20)
Des. Dr. Fernando Manuel Pinto de Almeida (1º Adjunto)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (2º Adjunto)

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

B…, casado no regime de separação de bens, residente na Rua …, …-.º-esqº, Porto, apresentou, em 05/09/2012, nos Juízos Cíveis do Porto-2º. Juízo, Processo Especial de Revitalização (PER), através do qual comunicou, ao abrigo dos artºs 1º., nº2, e 17º-C, do CIRE, a sua pretensão de iniciar negociações com os seus credores e formulou pedido de nomeação de administrador judicial provisório.

Alegou que é detentor de certa quantidade de acções da “C…”; esta detém a totalidade do capital social das sociedades “D…” e “E…”; e detém a maioria do capital social e dos votos da “F…” e “G…”.

Por sua vez, a “D…”, detém a totalidade do capital social da “H…” e da “I…”.

Preside ao Conselho de Administração de todas elas, que formam o “Grupo C…”, as quais contraíram vários financiamentos junto de 13 instituições financeiras para desenvolvimento dos seus negócios, hoje no valor de 84 milhões de euros, e que está avalizada pelo requerente.

Os activos delas desvalorizaram-se, mas são superiores ao passivo.

Todavia, a conjuntura económica gerou dificuldades de satisfazer responsabilidades de curto prazo, tudo agravado pelas dificuldades de aceder ao crédito bancário, o que determinou o cancelamento do serviço da dívida por parte do Grupo.

O próprio requerente, como avalista, também está em incumprimento e, apesar de ter património pessoal próprio não dispõe de liquidez nem de meios para cumprir as suas obrigações assim contraídas.

Todos pretendem estabelecer negociações para acordarem a sua revitalização, mas, dada a sua interdependência, pretendem delinear planos articulados em processo negocial global.

A “C…” já intentou um PER e as demais estão a fazê-lo.

Têm em vista, sob a égide de administrador comum, encetar aquela negociação global.

Juntou 13 documentos, entre os quais os referidos nas alíneas a) a c) e e) do nº 1 do artº 24, do CIRE.

No dia 07-09-2012, pelo Mº. Juiz titular do processo, foi proferida o seguinte despacho:

«Ao abrigo do art. 170 C nº 3, al. a), 2ª parte do CIRE como administrador (a) judicial provisório nomeio.
J…, …, …, …, Bloco ., sala ., ….-… Guimarães.
Notifique.
D.N., artº 17º C, nº 4, 37º e 38º do CIRE.
*
Na eventualidade de ter sido feita menção no requerimento inicial da existência de processos desta natureza, comunique aos mesmos o presente despacho, artº 17º-E, nº 1 e 6 do CIRE.
*
Decorrido o prazo previsto no artº 17º D, nº 5 do CIRE (sem prejuízo de prorrogação) sem que outra informação chegue ao processo, notifique o(a) Sr (a) administrador(a) judicial provisório (a) para os efeitos previstos no artº 17º G, nº 1 do CIRE.
Porto, d.s.»

O credor reclamante (fls. 56 e sgs.) K..., SA, em 3/10/2012, veio interpor recurso do despacho.

Culminou as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
A. O PER destina-se, apenas e só, aos casos em que o devedor não se encontra ainda em situação de insolvência.
B. A Jurisprudência é pacífica quanto à qualificação de um devedor como insolvente quando o mesmo estiver impossibilitado de cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações, independentemente de o activo ser, ou não, superior ao passivo.

C. Quando o devedor que pretende recorrer ao PER estiver em situação de insolvência actual, o juiz pode e deve repudiar tal conduta abusiva e não admitir o procedimento, pois este não tutela os interesses, nem os fins para que foi instituído.

D. Dito de outra forma, isto significa que o juiz ao proferir o despacho que nomeia o administrador judicial provisório e dá continuidade ao processo está também a fazer uma apreciação sobre os requisitos de admissibilidade do PER e a sancionar – mal ou bem – a sua verificação.

E. Esta apreciação liminar deve acontecer entre a apresentação do requerimento e a prolação do referido despacho a que alude a al. a), do n.º 3, do artigo 17.º-C.

F. Tal interpretação do regime do PER é, aliás, a única que se enquadra nos princípios enformadores do Direito Falimentar e do Direito Processual, e isto sob pena, como está bom de ver, de o regime do PER ser totalmente permeável ao seu uso abusivo por devedores insolventes.

Neste sentido,

G. Nestas situações, em que o devedor se encontra insolvente, o Tribunal não deve admitir o uso do PER pelo devedor.

H. No caso dos autos, o Tribunal a quo incumpriu o seu poder/dever de rejeitar o requerimento para instauração do PER apresentado pelo Senhor B…, com fundamento no uso abusivo do procedimento.

De facto,
I. O Senhor B… não é elegível para recorrer ao PER, na medida em que o mesmo se encontra em situação de insolvência actual, estando já verificada esta situação quando, em 7 de Setembro de 2012, apresentou o seu requerimento com vista à instauração do PER.

Em face do exposto,
J. Errou o Tribunal a quo ao não proferir despacho de rejeição do requerimento apresentado pelo devedor, com fundamento na não admissibilidade do uso deste procedimento pelo Senhor B…, por falta de preenchimento dos requisitos legais exigidos, pelo que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 17.º-A, 17.º-B, 17.º-C, 17.º-D e 17.º-E do CIRE.

Nestes termos,
K. Deve a decisão do Tribunal a quo que admitiu o recurso ao PER pelo Senhor B… e procedeu à nomeação de administrador judicial provisório ser revogada, e substituída por outra que rejeite o requerimento de instauração do PER apresentado pelo devedor, deste modo não admitindo o uso deste procedimento pelo mesmo, com base na falta de preenchimento dos requisitos legais exigidos.

Noutro passo,
L. O recurso ao PER por uma pessoa já insolvente é contrário ao interesse público, lesando-o.

M. É do interesse público manter na economia apenas os entes que cumpram pontualmente as suas obrigações e sanar as situações de impontualidade, sob pena de perturbação grave e generalizada da actividade económico-comercial.
N. Por isso, o PER não é uma opção para um devedor já insolvente: possibilitar a revitalização de um devedor já insolvente, num processo excessivamente informal e que, ao contrário do que acontece no processo de insolvência, não assegura o devido escrutínio a que devem ser submetidas quaisquer providências de recuperação, nem faculta as mesmas garantias, é tratar de forma leviana uma situação patológica e pôr em risco o equilíbrio do comércio jurídico e “o movimento normal da actividade económico-comercial”.

O. Mas, recurso ao PER por um devedor já insolvente, além de lesar o interesse público, lesa igualmente os interesses dos credores em geral, e o Recorrente em particular.
P. A evidência do prejuízo para os credores resulta clara do confronto entre o PER e o processo de insolvência a que o Devedor deveria ter-se submetido, na hipótese de vir a apresentar um plano de pagamentos, nos termos dos artigos 251.º e ss. do CIRE.

Concretamente:
Q. Caso o devedor tivesse apresentado um plano de pagamentos em insolvência, esse plano ficaria sujeito a um duplo escrutínio pelo julgador: antes da votação, aquando da apresentação, e depois da votação, aquando da homologação; o plano de recuperação aprovado no PER, por seu turno, só é apreciado depois da votação, aquando da homologação.

R. A maioria de aprovação do plano de pagamentos, em processo de insolvência, é de 2/3 do total dos créditos relacionados e abrangidos pelo plano; a maioria de aprovação do plano de recuperação, no PER, é de 2/3 dos votos emitidos, que podem, no limite, corresponder a 1/3 dos votos relacionados pelo devedor.

S. Em processo de insolvência, em caso de incumprimento do plano de pagamentos, a regra será a de que as moratórias e perdões concedidos pelos credores se extinguem; no PER, por seu turno, em caso de incumprimento do plano de recuperação, a regra será a de que as moratórias e perdões e concedidos pelos credores se mantêm.

T. Ao passo que o processo de insolvência é acompanhado e dirigido pelo juiz, que controla a legalidade do mesmo, o PER não tem um interlocutor junto dos serviços do Estado e nem sequer prevê o controlo pelo juiz de certos momentos-chave.

Assim,
U. No PER não há um controlo judicial de que o Devedor comunicou a todos seus credores o início do procedimento, sendo certo que os credores notificados não terão como saber se existem outros credores que devessem ser notificados e sendo igualmente certo que a ausência dessa comunicação pode permitir “forjar” uma maioria de aprovação do plano de recuperação.

V. A votação do plano de recuperação em PER não é sujeita ao escrutínio do juiz: os votos emitidos não são enviados para o Tribunal, que apenas terá acesso a um documento elaborado pelo administrador judicial com resultado da votação.

W. A apresentação ao PER, em detrimento da apresentação à insolvência, por um devedor já insolvente, em violação do disposto no artigo 17.º-A do CIRE, implica que o devedor insolvente se furte ao incidente de qualificação da insolvência e, bem assim, obsta à verificação dos efeitos de uma eventual insolvência culposa.

Em suma,
X. O confronto entre o regime do Plano de Pagamentos e do Plano de Recuperação em PER põe a descoberto a evidência de que o PER, por ter um pendor menos garantístico e sendo excessivamente informal, não acautelando devidamente a posição dos credores, não foi pensado para “solucionar” as situações patológicas de insolvência actual: o risco não se compadece com o informalismo e a desregulação pretendida com o PER.

Y. Pelo que o recurso ao PER por um devedor já insolvente é prejudicial para os credores colocando-os numa situação excessivamente desprotegida.»

E, por fim, disse: «deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão do Tribunal a quo que admitiu o recurso ao PER pelo Senhor B… e procedeu à nomeação de administrador judicial provisório, e substituída por outra que rejeite o requerimento de instauração do PER apresentado pelo devedor, deste modo não admitindo o uso deste procedimento pelo mesmo.»

Não havia contra-alegações.

Foi indeferido o requerimento de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata e em separado e com efeito devolutivo (fls. 40).

Remetidos os autos a esta Relação, após diligências instrutórias, em resultado das quais, conforme por nós solicitado, foi junta certidão com o despacho recorrido (então em falta) e informativa de que não foram produzidas contra-alegações, correram os Vistos legais.

Entretanto, já depois de inscrito o processo em Tabela, o Tribunal recorrido informou terem, afinal, sido apresentadas, tempestivamente, contra-alegações, pelo Requerente B…, e procedeu ao seu envio, as quais se encontram agora juntas antecedentemente[1].

Nelas se questiona a admissibilidade do recurso, contestam os argumentos da recorrente e se conclui pela improcedência.

Foi dispensada nova vista dos autos pelos Exmºs Snrs. Juízes-adjuntos, depois de obtida a respectiva concordância.

Cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Primeiramente, a da admissibilidade do recurso suscitada pelo recorrido nas suas contra-alegações.

Caso tal questão não seja atendida, importará, então, examinar as colocadas pelo recorrente, que se resumem a

Duas:

1ª No Processo Especial de Revitalização criado pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, o Juiz, na oportunidade referida na 2ª parte da alínea a), do nº 3, do artº 17º-C, mas antes de nomear administrador judicial provisório, deve, liminarmente, verificar os requisitos de que depende o recurso a tal procedimento?

2ª Não estão, neste caso, verificados tais requisitos, devendo o requerimento ser rejeitado?

III. FACTOS

Relevam os acima relatados, aqui se dando por reproduzido também o requerimento de apresentação, bem como os documentos com ele juntos.

IV. DIREITO

a) O despacho é recorrível.

É certo que inexiste, neste processo especial e, em geral, no de insolvência, previsão expressa onde tal recorribilidade assente (nem que a exclua). E nenhuma também que, ao contrário do invocado, mande aplicar o artº 42º, do CIRE, “com as necessárias adaptações”.

Tal norma, com efeito, refere-se à sentença que decrete a insolvência, decisão que não é análoga à do despacho aqui visado, na medida em que, neste, não se aprecia – como melhor abaixo se justificará –, em termos de mérito, a “situação económica difícil” nem a “situação de insolvência meramente iminente” (artºs 1º, nº 2, e 17º, do CIRE), enquanto fundamento ou pressuposto do “processo especial de revitalização”.

Quando muito, a equiparação faria sentido ou a analogia seria viável, mas por referência, isso sim, aos artºs 27º e 29º, nº 1, CIRE, uma vez que tal despacho, como se verá melhor, comporta um momento incontornável de apreciação liminar do procedimento, no âmbito do qual a respectiva decisão é inquestionavelmente sindicável por via de recurso, à semelhança, aliás, do que sucede no processo civil – artºs 234º-A, nºs 1 e 2, e 475º, nº2, CPC –, aliás de aplicação subsidiária (artº 17º, do CIRE).

Subsidiariedade que, contudo, no caso, melhor se conexiona com o disposto na alínea m), do nº 2, do artº 691º, do CPC.

Com efeito, apesar de correcta a afirmação do recorrido sobre a “absoluta inutilidade” em tal norma referida como condicionante da admissibilidade imediata do recurso, o certo é que, dada a específica natureza, estrutura e efeitos deste processo, a anulação de tudo o que houvesse sido “processado” depois do despacho e por efeito da impugnação procedente da decisão final (no caso, a de homologação ou recusa do plano de recuperação previstos no nº 5 do artº 17º-F, ou de encerramento do processo, conforme nºs 2 e 3, do artº 17º-G), jamais poderia repor-se a situação anterior ou evitar os seus efeitos, pelo que sempre haveria uma franja de irreparável inutilidade do recurso que fosse apenas interposto e julgado com o da decisão final – o mesmo é dizer, de utilidade com a impugnação imediata.

Com efeito, a “anulação de tudo” enquanto efeito possível a posteriori impeditivo ou injustificativo do recurso imediato, refere-se, cremos, ao processo e aos efeitos das decisões nele tomadas.

Ora, no caso, há toda uma actividade extrajudicial, gerada, desenvolvida e porventura concluída fora dele, decorrente da sua aceitação e nomeação de administrador, mas projectada na pessoa do devedor, do administrador, dos credores, por estes protagonizada sem tutela judicial e materializada nas negociações encetadas, mormente com a disponibilização e pagamento de inerentes meios (até periciais, como a lei prevê-artº 17º-D) que uma anulação a final não repararia, com prejuízo dos direitos e dos interesses daqueles afectados.

Além de que, como decorre dos artºs 17º-E, nºs 1 e 2, CIRE, há efeitos para o devedor e para outros processos e pessoas, a final irrecuperáveis.

Por isso, e porque mesmo que dúvidas subsistissem, sempre deveria operar o princípio da máxima recorribilidade, entendemos que o recurso foi bem admitido.

O despacho em causa não é de mero expediente (como se dirá a seguir) nem emana de mero poder discricionário (artº 156º, nº 4), pois não se limita a prover a prover ao andamento regular do processo (repercute-se e afecta interesses divergentes das partes convocadas) nem está confiado somente ao prudente arbítrio (pressupõe a verificação de requisitos legais). A recorribilidade não está, portanto, vedada por efeito do artº 679º, CPC, antes possibilitada pelos artºs 676º e 678º e demais normas aplicáveis.

Também não é correcto pretender, como faz o recorrido, que o recurso suscita questão não apreciada no despacho recorrido, pois se é verdade que ele não apreciou, em termos de mérito, a situação alegadamente já de insolvência sua (como devedor) nem o abuso do processo, implicitamente ele considerou verificados, pelo menos, os requisitos formais daquele, recebeu-o e deu-lhe andamento, contra o que se insurge o recorrente, pelas razões que esgrime e que, importa, então apreciar.

b) A Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011, de 25 de Outubro, tomada no âmbito do “Memorando de Entendimento” com a CE, o BCE e o FMI, aprovou os chamados “Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores”.

Tais princípios surgiram enquadrados noutras “medidas de salvação” destinadas àqueles, medidas estas balizadas, de um lado, pela consagração de um mecanismo puramente extrajudicial, a desenvolver sob os auspícios do IAPMEI, designado por SIREVE (Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial) que viria a ser consagrado pelo Decreto-Lei 178/2012, de 3 de Agosto, e, de outro, pela alteração do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Nessa sequência, o Governo aprovou, em 30/12/2011, a Proposta de Lei nº 39/XII com vista à alteração deste último e à concomitante instituição do chamado “processo especial de revitalização” (PER).

Como se explicita no texto justificativo da dita Resolução, aqueles Princípios são de adesão voluntária mas de observância naturalmente fundamental, porque determinante no seu sucesso, em casos de procedimento extrajudicial.

No caso do PER, que a Assembleia da República viria então a aprovar e a corporizar na Lei 16/2012, de 20 de Abril, buscando o seu espírito e olhando-se à sua forma, conclui-se, sem dificuldade, que tal processo, apesar de posto em juízo, conserva ainda uma natureza e feição de tipo marcadamente voluntário e extrajudicial.

Ainda assim, como sinal confirmativo de que não é esse o seu único modelo de inspiração e de que nele se introduziram já aspectos reveladores de algumas limitações à autonomia e vontade livre das partes e expressos numa tutela com matizes de “autoridade judicial”, previu-se no nº 10, do art 17º-D, que, durante as negociações, os intervenientes – devedor e credores – têm o dever de actuar de acordo com tais Princípios, contrapondo-se-lhe responsabilidade exigível em acção própria (nº 11).

Interessa notar que há duas grandes diferenças quanto aos pressupostos do SIREVE e do PER. Uma delas reside no facto de àquele, ao contrário deste, só poderem recorrer empresas. A outra, no de este estar reservado a devedores que se encontrem numa situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, enquanto que aquele contempla situação de insolvência actual (artº 2º, nº 1, do DL 178/2012, e artº 1º, nº2, do CIRE).

Mas também salientar que o vínculo a tais princípios, como sinal de confiança extrema nas partes e contrapartida da dispensa de controlo das autoridades perante quem corre o respectivo processo (seja o IAPMEI, seja o Tribunal), implica um “compromisso assumido entre o devedor e os credores envolvidos, e não um direito, e apenas deve ser iniciado quando os problemas financeiros do devedor possam ser ultrapassados e este possa, com forte probabilidade, manter-se em actividade após a conclusão do acordo”.

Tudo isso, aliado aos deveres de boa fé, cooperação activa na busca de solução viável e credível, dever de o devedor actuar com máximo respeito pelas perspectivas dos credores e com absoluta transparência, aponta para uma clara atribuição àqueles, aos protagonistas de tais procedimentos, do juízo de controlo recíproco mas decisivo sobre a verificação de tais pressupostos e de confiança naquele compromisso.

Logo para papel mínimo e residual das referidas autoridades.

A partir do normal conteúdo semântico da palavra “revitalização” colhe-se a ideia fundamental. O propósito não é ressuscitar o já insolvente, a pessoa impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas ou, no caso das colectivas, aquela cujo passivo seja manifestamente superior ao activo. É, sim, reanimar a que conserva ainda um sopro de vida, sendo necessário insuflar-lhe oxigénio indispensável para que se reactive e reerga.

Assumindo-se como objectivo primeiro, dada a situação do país, evitar a liquidação de patrimónios e consequente “desaparecimento de agentes económicos”, para proteger a economia, e visando o processo “propiciar a revitalização do devedor”, procurou-se através dele instituir um “mecanismo célere e eficaz”, mas compreensivo de “soluções eficientes”, destinado àqueles “que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em insolvência actual” ou, por outras palavras, que estejam “num momento de pré-insolvência”.

Nesse espírito, prevê-se uma “rápida homologação de acordos”, “celebrados extrajudicialmente”, mediante “tramitação bastante simplificada” e, naturalmente, nada atreita a amplo e profundo controlo judicial, maxime sobre a justeza do recurso ao processo e a bondade ou mérito da solução por via dele alcançada pelo intervenientes.

Foi assim que, nos termos do nº 2 acrescentado ao corpo primitivo do artº 1º, do CIRE, foi criado o novo “processo especial de revitalização” (PER), cuja instauração o devedor pode requerer ao tribunal, “estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente”.

Limitou-se, pois, claramente a esse “estado” – não há dúvida – tal possibilidade, enquanto que, para o de “insolvência actual”, fica reservado o SIREVE (artº 2º, nº1, do DL 178/12) ou o normal processo de insolvência previsto no CIRE.

Neste, contudo, caso seja o próprio devedor a apresentar-se à insolvência, equipara-se a “meramente iminente” à “actual” - artºs 3º, nº 4, e 28º.

Aspecto este, aliás, significativo: o devedor em estado de insolvência “meramente iminente”, pode, em liberdade, optar pelo PER ou pelo CIRE, uma vez que tal situação fundamenta ambas as hipóteses. Naturalmente deve alegá-la, quer para efeitos de satisfazer a fundamentação exigida no nº. 2, do artº 1º, do CIRE (sendo o próprio devedor a requerer deve indicar distintamente qual é a sua situação, nos termos da alínea a), do nº 2, artº 23º), quer para os efeitos previstos no artº 17º-C.

Neste caso, a manifestação de vontade perante o tribunal pressupõe a entrega de atestado assinado pelo requerente, e pelo menos, um dos seus credores, declarativo de que reúne as condições necessárias para a recuperação pretendida.

Note-se bem: basta um atestado meramente declarativo subscrito pelos interessados.

Quer, portanto, o juízo prévio de avaliação sobre o concreto estado do devedor quer o de ponderação do melhor caminho para se regenerar, conformidade dessa decisão à lei e adequação do processo requerido, surgem subtraídos à apreciação e controlo da autoridade.

Se a lei diz que basta o atestado, que mais pode exigir o Tribunal?

É assim porque, em coerência, tal esquema adequa-se e corresponde à auto-responsabilidade exigível ao devedor e harmoniza-se com os “princípios” que, como já visto, enformam o exercício ao seu direito de requerer a negociação. Com ele e com os fundamentais pressupostos se mostram adequadamente traçados os trâmites legais.

Com efeito, a por vezes materialmente ténue e processualmente complicada destrinça entre “situação económica difícil”, “situação de insolvência meramente iminente” ou “situação de insolvência actual” do devedor – traduzida esta na “impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, ou [caso das pessoas colectivas] na existência de um passivo manifestamente superior ao activo” (artº. 3º, nºs 1 e 2), ou, ainda, a tal equiparada a “eminente” em caso de apresentação pelo próprio devedor (artºs 3º, nº 4, e 28º) – dada a multiplicidade de factores ou circunstâncias reflectidas no iter da actividade económica do requerente e respectiva evolução –, não cabe, como é lógico, natural e assim se previu, no “despacho imediato” referido na alínea a), do nº 3, do artº 17º-C ou no do artº. 17º-I, nº1.

Tal pressuporia que fosse exigível no requerimento inicial a alegação da factualidade necessária, que com ele fosse oferecida prova bastante e, desse modo suscitado, perante a situação exposta, um juízo prévio minimamente sério de avaliação da sua pertinência e conformidade com o processo.

Até porque, à análise correcta da situação do devedor e à ponderação dialéctica da sua viabilidade económica não bastam critérios de índole estritamente financeira, dado o complexo de relações que, sobretudo nas empresas, se entrecruzam e confluem no seu giro.

Tal análise não cabe no “despacho imediato”, como era bom de ver para o legislador, até porque disso para tal foi alertado.

Na verdade, colhe-se do Parecer do Conselho Superior do Ministério Público, integrado como anexo documental do processo legislativo que decorreu na AR, ter sido considerado e notado como “demasiado curto” o prazo de “um dia útil” para o Juiz “decidir” – na pressuposição de que a tal despacho estivesse subjacente e tivesse sido querida uma “decisão”, pois, como nele se refere, “parece-nos vantajoso que o juiz tenha tempo suficiente para análise do pedido, ainda que mera análise preliminar e formal, de modo a poder despistar eventuais situações de abuso do procedimento ou de mera desconformidade do pedido com a lei” (página 5).

Vantagem que, contudo, o legislador desprezou, assim rejeitando a solução (prazo bastante) indispensável para a prosseguir, certamente mais preocupado com a velocidade do procedimento do que com a despistagem dos eventuais abusos, mormente os que sejam susceptíveis de eventualmente se repercutirem e lesarem interesses de natureza pública.

Não pode esquecer-se, a propósito de tal despacho, que até a nomeação do administrador judicial provisório, cometida ao juiz e submetida às regras dos artºs 32º a 34º, do CIRE, se quis condicionar à indicação pelos próprios credores (cfr. Parecer da CIP-Confederação Empresarial de Portugal, página 20).

É patente que o legislador claramente não pretendeu, apesar da salvaguardada intervenção judicial no PER, que, por via deste, se quisessem acautelar, muito menos tutelar, quiçá liminarmente, aquele tipo de interesses.

Nem, aliás, tem sido essa a via escolhida.

Como decorre, por exemplo, do preâmbulo do CIRE, sendo objectivo do processo de insolvência “a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores” e radicando no património do devedor a garantia comum dos créditos, é àqueles que “cumpre decidir quanto à melhor forma de efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado”, dependendo sempre da “estimativa dos credores” e assentando nela sempre a melhor forma de realização de tal interesse público.

Assim, entre a liquidação do património do insolvente e a recuperação da empresa (ou a protecção da pessoa singular que em tal situação caia), pretendeu-se no código, com reflexo em diversas soluções adoptadas quer de índole procedimental quer de índole substantiva, conferir “primazia … à vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos, em condições de igualdade quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral.

Prevalência, portanto, do controlo efectivo pelos credores, mesmo em vista do interesse público. Detrimento do controlo jurisdicional, reservado apenas a questões circunscritas. De onde resulta uma conveniente aparência de juridicidade e de presumida autoridade, mas que, no fundo, se limita a dar força à vontade daqueles e do administrador.

O que a recorrente chama de “finalidade publicista” do processo de insolvência não tem a dimensão que pressupõe e lhe interessava aqui esgrimir, nem a sua prossecução se projecta, com a força e amplitude suposta, na intervenção dos tribunais.

O interesse público, aliás, de carácter geral, ligado ao funcionamento da economia e protecção dos credores, que informa o processo de insolvência e cujo controlo é atribuído principalmente a estes, não é, de resto, muito diverso do que preside ao processo de revitalização, bem se compreendendo, portanto, que também neste, mais até do que naquele, o respectivo êxito lhes seja confiado.

Se assim é – se assim quer o legislador – já no processo de insolvência, mais se justifica que o seja – e que assim o tenha desejado – num processo como o PER, concebido e estruturado para uma fase antecedente e algo distante daquele estado consumado e em que, portanto, melhor se compreende a preponderância praticamente exclusiva da intervenção dos credores manifestada na negociação extrajudicial.

O interesse público radica, como se vê, na primazia da vontade dos credores. A esta e à sua manifestação se confia, quase em pleno, o despiste dos abusos prejudiciais para eles e para a saúde da economia, em especial na circunstância algo efémera deste processo (vejam-se os seus curtos prazos, mesmo para ser dado como findo, e como ele pode desembocar no de insolvência, caso se ultrapasse a sua duração máxima de três meses ou antes o devedor ou a maioria dos credores concluam não ser possível acordo e aquele esteja já – não apenas “em situação económica difícil” ou de “insolvência meramente iminente” – mas na de insolvência actual, conforme preconiza o nº 3 do artº 17º-G).

Curioso é notar que, para além da restrita intervenção do Juiz, não se previu, por exemplo, a intervenção no processo do Ministério Público, órgão ao qual, por excelência, cabe constitucional e estatutariamente defender o interesse público do Estado.

Nem para ele se traçou qualquer outra expressa finalidade que não seja a de permitir ao devedor exercitar a reconhecida faculdade de, por tal via, estabelecer negociações com os credores, para tal os chamando e “obrigando” a negociar, sabido como é que, apesar da sua eventual indiferença ou alheamento, poderão ficar vinculados a um plano no qual não participaram, desde que observados certos requisitos legais (artº 17º-F, nº 6).

É certo que tal “permissão” (artº 17º-A, nº1) depende de “comprovadamente” o devedor se encontrar numa das situações previstas no nº 2, do artº 1º, do CIRE.

Mas tal “comprova” fica-se por uma simples declaração escrita, datada e assinada, pelo pretendente e um seu credor, que ateste que ele reúne as condições necessárias para a sua recuperação. Nada mais é preciso, pelo que, em face disso, qualquer pretensa actividade judicial de verificação e controlo da “situação” material pressuposta – em “despacho imediato”, quase se diria “instantâneo”, note-se! – perde qualquer razão de ser e verdadeira utilidade.

Se o legislador confia ao devedor e seu credor a função de “atestarem” a existência das condições necessárias para a sua recuperação e nada mais lhes impõe para iniciar o processo senão a “manifestação de vontade” de “encetarem negociações conducentes à revitalização”, subtraindo até ao procedimento a tradicional forma de “requerimento”, que ora se basta na expressão legal significativa, com a “imediata” “comunicação” de que pretendem iniciá-las, e se, perante isso, “deve nomear, de imediato, por despacho, o administrador”, a sua margem de actuação fica praticamente reduzida – admitamo-lo, porque nem disso há certeza – a uma análise liminar, perfunctória e meramente formal quando muito do tipo, do nível e alcance da prevista no artº 27º, do CIRE, ou da dos artºs 234º, nº 4, 234º-A e 474º, do CPC, e com que qualquer operação dirigida a perscrutar a irrealidade do pedido, sua desconformidade aos proclamados fundamentos ou ao seu abuso dificilmente se compagina.

Tanto é assim que, de acordo com a alínea b), do nº 3, do artº 17º-C, e nº 1, in fine, do artº 17º-D, as cópias dos documentos elencados no nº 1, do artº 24º, do CIRE, são remetidas ao tribunal mas nem sequer a este destinadas – muito menos para análise pelo respectivo juiz! – pois “ficam patentes na secretaria para consulta dos credores durante todo o processo”, o que, aliás, se harmoniza com a preconizada e privilegiada negociação extrajudicial a cujos pressupostos, termos e desfecho o tribunal é alheio (cfr., quanto a isso, os nºs 8 e 9, do artº 17º-D), limitando-se a sua intervenção à decisão de impugnações de reclamações de créditos, a julgar a acção referida no nº. 11 do mesmo artigo, homologação ou recusa do plano (artº 17º-F) ou a decretar a insolvência após a conclusão do “processo negocial” sem a aprovação de qualquer plano de recuperação (artº 17º-G).

É verdade que, no artº 17º-E, nº 1, se alude a uma “decisão”, aí especificada como aquela “a que se refere a alínea a), do nº 3, do artigo 17º-C”.

Pode questionar-se, no entanto, se tal referência é feita para o despacho do juiz previsto na citada alínea ou se para a decisão tomada e comunicada pelo devedor de iniciar as negociações e também nela compreendida (tanto mais que, no nº 6, já se menciona novamente “despacho a que se refere a alínea a), do nº 3, do artigo 17º.-C” e não “decisão”).

Prevendo-se, aí, tal “decisão” como o facto gerador de impedimento à instauração de acções e causa de suspensão das pendentes, nos termos aí definidos, ele tanto pode ser referido ao despacho imediato de nomeação do administrador como, dada a automaticidade e simplicidade do processo, à manifestação em juízo da vontade do devedor.

Nesta hipótese, o pretenso significado que de tal terminologia se pretende extrair no sentido de que o “despacho” inicial comporta um momento de apreciação dos pressupostos do recurso a tal tipo de processo perde qualquer razão de ser, pois, afinal, não se lhe referirá a “decisão”, não havendo qualquer compatibilização a fazer por via interpretativa e com recurso àquele significado.

Naquela, a aparente incoerência também se dilui na desconsideração de que o termo encerre qualquer momento “decisivo”. Abalada como está, e cada vez mais, a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º, nº 3, C. Civil), aquele, no contexto, só pode ser entendido como “despacho”, como acto formal, desprovido de conteúdo material decisório (até porque nada, entretanto, foi requerido ao tribunal e nenhuma questão controversa existe para dirimir e que de uma operação decisória careça).

Quando muito, a “decisão” aludida não comportará mais do que uma perfunctória abordagem pelo juiz aos elementos do processo e verificação da sua regularidade. Só assim poderá ser entendida em harmonia com a natureza e finalidades com que aquele foi concebido e, especialmente, do tipo de intervenção nele exigida ao tribunal.

Assim, a terminologia usada no nº 2 – “caso o juiz nomeie administrador judicial provisório” – coaduna-se com aquela pequena margem de apreciação liminar que admitimos e na qual cabe – tem de caber! – a verificação de alguns requisitos absolutamente indispensáveis por sem eles não fazer sequer sentido a nomeação do administrador ou a notificação do despacho (como, por exemplo, a falta do “atestado” assinado).

Não mais. Por isso, não tem sentido a preocupação manifestada no Parecer da CIP, já referido, alicerçada no pressuposto de que a norma, face à sua redacção condicional ou hipotética, pode compreender a possibilidade de não nomeação de administrador pelo juiz, de tal modo que propôs a sua clarificação no sentido de esta deixar claro “se há ou não nomeação obrigatória do administrador judicial provisório”.

Essa pretensa necessidade não foi como tal reconhecida e, por isso, significativamente, não se acolheu a alteração proposta, antes se manteve a redacção do projecto.

É que, ressalvadas as hipóteses, fatalmente admissíveis, de ostensivo e incontornável indeferimento liminar, não existe a possibilidade contrária e temida, ou seja, a de o juiz não nomear administrador, designadamente porque apreciou o pressuposto material de que depende o processo e decidiu que ele não se verifica ou é invocado abusivamente e, por isso, não merece ser atendido e devem inviabilizar-se, sem mais, os actos subsequentes.

Aquele pressuposto é atestado, “comprovado”, pelo devedor e pelo credor ou credores que com ele assinem a declaração escrita, mas o controlo de mérito só tem lugar extrajudicialmente, pelos credores e no âmbito das negociações prosseguidas em tal sede, sob a orientação do administrador judicial provisório (nºs 8 e 9 do artº 17º-E), que apreciarão a bondade da pretensão, a lisura da conduta do devedor e a sua conformidade aos princípios a que é devida obediência (nºs 6 e 10), podendo, então sim, mas nos termos do nº. 11, desencadear-se acção de responsabilidade.

Sinal de que, como admitimos, alguma margem de apreciação se quis, todavia, ainda salvaguardar em tal despacho, poderá estar na circunstância de a entidade legiferante não ter aceitado a sua irrecorribilidade proposta no Parecer da Associação Portuguesa de Bancos (página 8), transformando-o assim em puramente discricionário ou de mero expediente.

Com efeito, para evitar, com a sua possível impugnação, o indesejado e até contraditório prolongamento do processo no tempo e a perda do seu efeito útil, sugeriu aquela entidade o aditamento de um novo número cinco ao artº 17º-C a consagrar a preconizada irrecorribilidade. E, em contrapartida – sem ponderar o efeito meramente devolutivo do eventual recurso como forma de obstar a tais contrariedades –, propôs também que, por alteração do artº 186º, do CIRE, “em caso de relevante desconformidade entre os créditos existentes e os declarados, a insolvência deverá presumir-se culposa, para efeitos de qualificação”.

Todavia, também isso foi rejeitado. E foi-o, com certeza, porque, embora sem se desejar e sem se prever uma apreciação e decisão liminar, ao legislador é impossível, de todo, evitar que o juiz se confronte com situações do tipo das que, revestindo-se daquela natureza e impondo uma tomada de posição, por vezes se colocam no momento do “despacho” inicial e a que, por implicarem algum espaço de possível controvérsia, não convém fechar as portas do recurso.

Em suma, através deste processo judicial e com a reduzida intervenção de juiz:

-promove-se ou potencia-se uma negociação inteiramente extrajudicial, “fora do tribunal” e quase fora do próprio processo, com “amplíssima liberdade”, originada e fundada na manifestação de vontade e consequente solicitação pelo devedor;

-assegura-se, para o efeito, o chamamento dos credores, os quais, se o fossem apenas mediante apelo exclusivo à sua participação livre e espontânea, não seria exequível, prevenindo-se e dissuadindo-se, assim, o seu eventual alheamento, e obrigando-se ao seu comprometimento, sob pena de, caso não cooperem, se virem a achar vinculados a um plano de recuperação em que não participaram (artº 17º-F);

-assegura-se também, por simples efeito do processo judicial, a suspensão generalizada de acções já intentadas e em curso (mesmo processos de insolvência em que esta ainda não tenha sido decretada) obstando à instauração de outras (de cobrança de dívidas), em contrapartida do impedimento também cominado ao devedor de praticar actos de especial relevo, de modo a, em tal interlúdio, assegurar a “necessária calma para reflexão e para a criação de um plano de viabilidade” (artº 17º-E, ºs 1, 2 e 6);

-garante-se o contraditório na reclamação de créditos e a apreciação e decisão jurisdicional das impugnações (artº 17º-D, nºs 2 e 3);

-como contrapartida da ampla liberdade e auto-responsabilidade, primeiro do devedor e, depois, do administrador, prevê-se a possibilidade de a violação de obrigações especialmente ligadas ao processo e causadora de prejuízos aos credores, ser apurada e julgada em processo autónomo (artº 17º-Dº, nº11);

-a intervenção judicial manifesta-se, ainda, na garantística homologação ou recusa do plano, seja o aprovado por unanimidade ou o aprovado com a maioria legalmente estabelecida, após negociações desencadeadas pelo processo ou já ocorridas antes dele e a culminarem no plano apresentado, com o importante efeito de tal decisão vincular todos os credores, ainda que não participantes nas negociações (artº. 17º-F ou 17º-I);

-no despacho a nomear administrador judicial provisório, seja no caso em que se parte para a negociação ou em que se chega a juízo já com acordo extrajudicial assinado pelo devedor e pela maioria de credores legalmente exigida (artº 17º-C, nº 3, alínea a) e 17º-I, nº2), o tribunal limita-se a viabilizar e assegurar as condições para o encontro de vontades das partes no sentido de se encontrar a solução revitalizadora;

-o Tribunal decreta a insolvência no caso de se frustrar o processo negocial e de, entretanto, o devedor já se encontrar nessa situação (artº. 17º-G, nº.3).

Descendo ao caso e ao recurso.

O despacho recorrido não considerou, nem deixou de considerar, se estavam preenchidos os pressupostos de que depende o recurso ao PER, maxime os atinentes à situação preconizada no nº 2, do artº 1º.

Não tinha que o fazer, como procurámos demonstrar.

Por tal omissão não pode ser criticado. Não se lhe deparando obstáculos evidentes de rejeição liminar, que não tem de positivamente afirmar, limitou-se a cumprir o dever – o único dever – estabelecido na lei: nomear, de imediato, o administrador judicial.

Nem se pode considerar que tenha, ainda que de modo implícito, apreciado erradamente (como diz a recorrente) os pressuposto do nº 2, do artº 1º, e do nº1, do artº 17º, do CIRE, e assim julgado verificada a “situação económica difícil” ou “situação de insolvência meramente iminente” contra o que do requerimento e documentos alegadamente resulta.

Essa verificação não está legalmente cometida ao Tribunal na fase daquele despacho liminar de nomeação, nem é compatível com os motivos, os termos e os fins do processo, que se concebeu e estruturou como simples, célere e rápido, pouco ou nada exigente em termos de “jurisdictio”.

Ele visa responder a um quadro social e económico carente de “produto acabado”, de resultados, potenciado por prolífera “legislación motorizada” ou “elefantíasis legislativa” (na expressão de certo autor castelhano, já com várias décadas mas cada vez mais actual) de modo a atalhar e prevenir o alastrar da epidemia que vai graçando e corroendo a economia e o país, em detrimento até ao máximo possível da “justiça”, e confiando à liberdade e à autonomia privada o congeminar de soluções baseados num substrato de consensualidade mínima, rápidas, eficazes, apenas sujeitas ao auto e recíproco controlo dos interessados.

Neste contexto, admite-se que, por ocasião, do despacho imediato de nomeação de administrador judicial provisório referido na parte final da alínea a), do nº 3, do artº 17º-C,do CIRE, haja alguma margem para um liminar juízo atinente aos requisitos do processo, do género até dos previstos no artº 234º-A ou 474º, do C. Processo Civil. Mas não ao ponto de apreciar a verificação, ou não, dos seus requisitos substantivos ou de indagar e detectar um possível abuso do procedimento.

Tanto mais que, num requerimento inicial com as exigências e formalidades previstas no artº 17º-C e em “despacho imediato” imposto na alínea a), do nº 3, não é de crer que se patenteiem ou descortinem tais situações, em regra ilíquidas e não aparentes, com a distinção e segurança necessária capaz de basear o repúdio do processo.

Como se lê em artigo publicado na folha do “L...” pela Srª. Advogada Drª. M..., “O regime do PER tem singularidades várias…”; o seu regime torna-o “num processo apetecível para devedores mal-intencionados”; “O expectável uso abusivo do PER é ainda mais preocupante…”. Ainda assim, “a lei apenas prevê que o juiz, perante a apresentação de um PER, deve despachar imediatamente a nomeação de um administrador judicial provisório, parecendo não lhe reconhecer a possibilidade de sindicação dos requisitos do PER…”.

Aliás, o Direito Processual, fruto da vida trepidante dos tempos que correm, cada vez mais se despe de formalismos e já quase prescindiu de apreciação liminar das pretensões formuladas em juízo, vedando mesmo, salvo casos contados, a intervenção, pelo legislador julgada indesejável e entorpecedora, do juiz.

Ao contrário, pois, do que alega a recorrente, a ausência de apreciação liminar harmoniza-se precisamente com tal rumo, hoje tão em voga.

Não tem, assim, qualquer base legal a concepção, para tal efeito, de um despacho liminar, entre a apresentação do requerimento e a prolação do despacho referido.

O legislador quis e concebeu um processo que não se compadece com esse “entretanto”. Feita a comunicação ao juiz, pelo devedor, de que pretende iniciar negociações, “deve este nomear, de imediato, por despacho, administrador judicial”.

A lei não pode ser lida sob o olhar dos desejos ou da conveniência parcial. Ela é clara e o tribunal deve-lhe obediência, independentemente da sua justeza ou moralidade (artº 8º, nº2, C. Civil). E por mais “absurda” que a recorrente considere a solução, a verdade é que ela corresponde a uma tendência geral, persistente e geralmente hoje aplaudida: muita legislação, pouca jurisdição!

A defesa do interesse público e o interesse dos credores com que a recorrente argumenta para sustentar a intervenção judicial, mediante despacho liminar, não estão contemplados no processo em si nem cometidas ao juiz, nos termos que preconiza.

As críticas que dirige ao PER e respectivo regime legal (excessivamente informal, facilitador, sem controlo) são de índole político-legislativa, têm a ver com a bondade ou maldade da opção tomada pelo respectivo poder. A sua natureza e o plano em que se situam não divergem muito das que, por exemplo, é vulgar agora dirigir ao regime de concessão de crédito que até há bem pouco tempo floresceu nas barbas das instituições às quais cabia travá-lo, que o sistema financeiro abraçou e cultivou e que, semelhantemente, lesaram o interesse público geral, como se está a ver. Não se constituem, portanto, tais críticas, em critério de interpretação normativa com influência jurisdicional.

O legislador deixa a ponderação e a avaliação dos perigos e receios suscitados por um tal processo para o devedor, administrador e credores, nos resultados os co-responsabilizando.

Concluindo-se, embora, que o regime do Processo de Insolvência, por exemplo, quanto aos planos de recuperação e de pagamentos, é diferente do do PER, e potencialmente mais prejudicial para os credores, menos garantístico, menos exigente, a verdade é que não compete aos tribunais sindicar, como já se disse, a bondade ou maldade, das decisões do legislador. Este, repete-se, confia mais aos credores do que ao tribunal as soluções potenciadas pelo processo e o seu controlo. O acompanhamento e direcção pelo juiz não tem, no processo de insolvência, o nível e intensidade que, mesmo por comparação com o PER, leve a concluir pela alegada indignidade deste, e num grau que justifique o pretendido controlo liminar.

De resto, se o credor manifesta a crença de que o devedor já estava insolvente e, apesar disso, abusivamente enveredou por este caminho, escondendo tal situação e invocando apenas a “situação económica difícil” ou a “insolvência meramente iminente”, também aquele já podia ter requerido o respectivo processo de insolvência (artº 20º, do CIRE).

Ainda que, contra tudo o acabado de expor se entendesse, que o despacho recorrido, implicitamente, julgou verificada uma “situação” justificativa da opção pelo processo de revitalização quando ela era já de “insolvência actual” e, portanto, o inviabilizava, não emerge com clareza, dos elementos disponíveis e numa apreciação perfunctória, que o tenha feito em erro de apreciação, muito menos que daqueles resulte a conduta abusiva alegada.

Certo que o devedor reconheceu ser avalista e fiador de uma dívida total do Grupo que ascende a 84 milhões de Euros, sendo a da recorrente de 8 milhões. Todavia, ele não diz (pelo contrário) que está concretamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º, nº1), nem no caso funciona a equiparação legal (nº 4 do mesmo artigo e artº 28º).

Nem ele o diz, claro, nem tal se retira dos factos alegados ou dos elementos documentais que junta.

Impressiona, à primeira vista, o valor global da dívida, tal como o da recorrente. Mas essa impressão desvanece-se pensando que os credores acreditaram – com certeza, muito e solidamente – na capacidade – julgada imensa – do requerente para lhes afiançar ou avalizar tamanha dívida.

Todavia, nem, para as pessoas singulares, releva, por si, o critério da inferioridade do activo em relação ao passivo (que não resulta evidente nem demonstrado, nesta fase, e cujos dados a própria recorrente assevera não serem fiáveis, sem justificar porquê), nem dos autos resulta, pelo menos por ora, uma clara e distinta inversão daquela anterior situação de elevado “crédito” e “capacidade” para uma de “insolvência actual”.

Não resulta para o Tribunal, nem parece ter resultado, antes deste processo, para os credores, uma vez que nenhuma notícia existe de algum deles ter requerido a insolvência ou que estivesse na eminência de o fazer.

Termos em que a apelação deve improceder.

Sumário (artº 713º, nº 7, CPC):

No Processo Especial de Revitalização criado pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, o Juiz, ao proferir o despacho – recorrível – a que se alude na segunda parte da alínea a), do nº 3, do artº 17º-C, não tem que verificar a existência dos requisitos materiais de que depende o recurso a tal procedimento, nem o seu eventual abuso.

V. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente -Tabela I-B.

Notifique.

Porto, 15 de Novembro de 2012
José Fernando Cardoso Amaral
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
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[1] Efectivamente, tendo a apelação sido recebida e mandada subir imediatamente e em separado, verifica-se que o respectivo traslado, cujo domínio, organização e instrução competem ao tribunal recorrido, foi prematuramente remetido, mas incompleto, e, depois, erradamente certificado, o que lamentavelmente perturbou a tramitação do processo nesta Relação.