Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1942/06.5TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA
CONTRATO-PROMESSA
DIREITOS
ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
VALIDADE DE UM ACTO FIDUCIÁRIO
Nº do Documento: RP201105101942/06.5TBMAI.P1
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Como verdadeiro negócio indirecto, não pode afirmar-se, à partida, lícito ou ilícito, o contrato de alienação fiduciária em garantia, ou a sua simples promessa, antes havendo de sujeitar-se ao casuístico juízo de mérito que recuse a validade a um acto fiduciário que colida com a Lei, a Moral ou a Natureza (art° 280° C.Civ.) — não pode extrair-se de um meio inadequado ao tipo uma ilicitude geral do negócio; é a ilicitude concreta do fim que descaracteriza a licitude do negócio-meio.
II - Neste sentido, em termos genéricos, concebe-se a figura da alienação em garantia, com base no princípio da liberdade contratual — art° 405° C.Civ. — ou com apoio no facto de a lei prever expressamente a hipótese de restrições obrigacionais ao direito de propriedade — art° 1306° n°1 C.Civ.
III - A dúvida sobre o montante que a fidúcia garante resolve-se favoravelmente ao devedor, podendo paralizar os efeitos da promessa de alienação em garantia, em função de determinados pagamentos provados, por parte do devedor, e mais a mais se o montante do pedido relacionado com a devolução do sinal em dobro atinge perto de € 100000, quantia que não se prova que se encontre em dívida, por parte do Réu, ao Autor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ●Rec. – 1942/06.5TBMAI.P1. Relator – Vieira e Cunha. Decisão de 1ª Instância de 3/3/2010.
Adjuntos – Des. Mª das Dores Eiró e Des. Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo comum declarativo e forma ordinária nº1942/06.5TBMAI, do 2º Juízo Cível da Comarca da Maia.
Autor – B….
Réus – C… e mulher D….

Pedido
1) Que seja declarado o incumprimento culposo do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes, a que se reporta o doc. nº 1, junto com a P.I., em virtude da impossibilidade de ser efectuada a prestação a que os RR. se obrigaram, por facto que não lhes é imputável.
2) Que sejam os RR. condenados a pagar ao Autor o dobro do valor por este prestado a título de sinal, ou seja, o valor de € 97.764,38, assim como o montante de juros de mora, calculados à taxa legal civil, que se vencerem após a citação dos RR. até efectivo e integral pagamento.

Tese do Autor
Em 12/1/98, os RR. prometeram vender ao Autor, e esta prometeu-lhe comprar, um prédio urbano destinado a habitação, sito no concelho da Maia, pelo preço de Esc. 10.000.000$00.
A título de sinal e princípio de pagamento, o Autor entregou aos RR. a quantia de Esc. 9.800.000$00, devendo a parte ainda em falta ser paga no momento da celebração da escritura, que deveria ser celebrada até 180 dias depois.
À revelia do Autor, os RR. transmitiram o prédio a terceiro, no ano de 2000.
Tese dos Réus
O contrato-promessa caducou por inacção do Autor, a quem competia a marcação da escritura.
O Autor quis apenas que o Réu garantisse, com aquele imóvel, um empréstimo que lhe tinha concedido, e este quis garantir o pagamento com aquele bem – para produzir iguais efeitos aos de um mútuo com hipoteca.
O valor real do imóvel é superior a € 250000.
O Autor recebeu, através do saque de cheques, toda a quantia que mutuou aos RR.
Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, a acção foi julgada improcedente, por não provada, por força da nulidade do contrato promessa invocado nos autos, e os Réus absolvidos do pedido.
O Autor foi condenado como litigante de má fé em multa, fixada em 4 UC´s, e em indemnização a favor dos RR., fixada em € 955, a título de compensação por honorários pagos e a pagar ao mandatário destes RR.

Conclusões do Recurso de Apelação do Autor (resenha)
1ª – Foi errado o julgamento da prova que originou as respostas dadas aos factos nºs 3 a 9 e 11 da Base Instrutória da causa, que devem ser alterados para “não provados”.
2ª – Verifica-se nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e o decidido – artº 668º nº1 al.c) C.P.Civ.
3ª – Os factos provados não suportam a figura jurídica da “declaração não séria” (artº 245º C.Civ.).
4ª – Os factos são também insuficientes para a respectiva integração na figura jurídica da simulação negocial – artºs 240ºss. C.Civ.
5ª – É ilógica a versão dos factos trazida aos autos pelos RR. no sentido da substituição do contrato promessa celebrado em 9/5/97 (o do prédio do Peso da Régua), pelo contrato celebrado em 12/1/98 (o do prédio da Maia), em cada um dos quais foi estabelecido um preço de Esc. 10.000.000$00, quando, na segunda data, 12/1/98, os RR. alegam que já havia sido paga ao Autor a quantia de Esc. 10.134.300$00, ou seja, mais que todo o capital mutuado, nada havendo, por isso, para garantir.
6ª – Por isso, o contrato dos autos nada tem a ver com a promessa anterior, nem visou esconder contratos de mútuo entre as partes.
7ª – As partes clausularam que a escritura de compra e venda só seria outorgada decorridos 180 dias após a data do contrato (12/1/98) porquanto se previu nas cláusulas 4ª e 6ª do contrato que, até tal prazo, os promitentes vendedores poderiam rescindir o contrato com entrega do valor singelo do sinal de 9.800 contos recebido.
8ª – Trata-se de uma cláusula de condição suspensiva dos efeitos do negócio – artº 270º C.Civ. – e não de uma condição resolutiva do negócio.
9ª – As partes não estabeleceram data limite para a outorga da escritura, tendo estabelecido na cláusula 5ª que a marcação da escritura incumbia aos promitentes compradores, com obrigação de notificação dos promitentes vendedores com um mínimo de 15 dias de antecedência.
10ª – O contrato promessa apenas não foi cumprido em virtude de os RR. terem vendido a prédio a terceiro, em data anterior à da notificação para a escritura, conforme provado em K) e L).
11ª – Mesmo mantendo-se inalterados os factos provados, os RR. devem ainda assim ser condenados, nos termos do artº 241º C.Civ. (simulação relativa), pois que sob o negócio de compra e venda existiu um mútuo de 10.000 contos, nulo por falta de forma (artº 1143º C.Civ.), nulidade que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artº 286º C.Civ.).
12ª – A declaração de nulidade (artº 289º C.Civ.), mesmo por via de declaração não séria, ou a declaração de enriquecimento sem causa (artº 473º C.Civ.) implicam a condenação dos RR. na restituição do valor mutuado – 10.000 contos – e juros respectivos, desde a data do contrato.
13ª – O Autor litigou com transparência e boa fé, não devendo ser também condenado por litigância de má fé.

Os Apelados produziram contra-alegações, nas quais, para além de pugnarem pela improcedência do recurso, invocam introdutoriamente que o Recorrente impugnou a matéria de facto dada por provada, mas não deu cumprimento ao disposto no artº 685º-B C.P.Civ., especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes do registo da gravação que impunham decisão diversa da decidida; tal vem a implicar a rejeição do recurso da matéria de facto, que arrasta consigo a matéria de direito dela dependente, e a demais, por não ter o recurso sido apresentado dentro do prazo legal.

Factos Apurados
1) Em 12/01/1998 foi celebrado entre o Autor e pelo menos o Réu-marido o acordo que consta de fls. 6 e 7 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, através do qual o Réu-marido declarou que prometia vender ao Autor, e este declarou que prometia comprar, livre de ónus e encargos, o prédio de rés-do-chão e andar com anexos e logradouro, destinado a habitação, sito no …, da freguesia de …, concelho da Maia, inscrito na matriz urbana sob o artigo 932 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº 3 687 (Alínea A)).
2) Nessa acordo, as partes declararam que o preço ajustado entre ambas era de € 49 879,78 (Esc. 10.000.000$00) (Alínea B)).
3) Desse preço, declararam que, a título de sinal e princípio de pagamento, o Autor tinha pago ao Réu a quantia de € 48.882,19 (Esc. 9.800.000$00), de que o Réu dava quitação (Alínea C)).
4) Declararam que o Autor se obrigava a pagar o preço em falta, ou seja, € 997,59 (Esc. 200.000$00) na data da celebração da escritura pública de compra e venda (Alínea D)).
5) As partes declararam ter estabelecido que a escritura pública de compra e venda seria celebrada até 180 dias após a data do contrato promessa, ou seja, até 11/07/1998, com possibilidade de prorrogação desde que com o consentimento do Autor (Alínea E)).
6) Declararam ainda, as partes, que a escritura pública seria marcada pelo Autor em dia, hora e cartório por ele eleito, com a obrigação de notificar o Réu para o efeito com 15 dias de antecedência, por qualquer meio (Alínea F)).
7) As partes clausularam a possibilidade de rescisão contratual por parte do Réu, através de carta registada com aviso de recepção, até 10 dias antes da data do termo do prazo da celebração do contrato promessa, ou seja, até 01/07/1998, com devolução ao Autor do valor singelo do sinal recebido (Alínea G)).
8) O direito supra descrito não foi exercido (Alínea H)).
9) A tradição para o Autor do prédio objecto do contrato promessa só ocorreria com a escritura pública de compra e venda (Alínea I)).
10) O Autor promoveu a notificação judicial avulsa dos Réus para a celebração da escritura pública do contrato prometido, notificação essa que foi efectivada em 06 e 09/05/2005, nos termos constantes do documento de fls. 65 a 68, cujo teor se dá por reproduzido (Alínea J)).
11) Por escritura pública lavrada em 07/06/2000 no Segundo Cartório Notarial do Porto, os Réus venderam a E… o prédio identificado em 1) (Alínea K)).
12) A operada transmissão foi feita sem o conhecimento do Autor e sem o seu consentimento prévio ou posterior (Alínea L)).
13) Nos princípios de Setembro de 1996 o Autor emprestou ao Réu Esc. 5.000.000$00 (Alínea M)).
14) Quinze dias após o primeiro empréstimo, o Autor concedeu ao Réu um novo empréstimo de Esc. 5.000.000$00 (Alínea N)).
15) Resposta revogada, consoante fundamentação infra (Item 3º).
16) Quiseram dar de garantia o prédio descrito na promessa quanto a empréstimo ou empréstimos de quantias monetárias concedido/concedidos pelo Autor ao Réu marido (Item 4º).
17) Autor e Réu marido, em momento anterior, formalizaram contrato promessa de compra e venda, referente a prédio sito no Peso da Régua, nos termos constantes do acordo junto a fls. 51 dos autos, datado de 09.05.1997, cujo teor se dá por reproduzido e que é objecto da acção que corre termos no processo 228/06.0TBPRG do Tribunal Judicial de Peso da Régua, em idêntico contexto que o dos presentes autos (Itens 5º e 6º).
18) Para pagamento de empréstimo ou empréstimos de quantias monetárias concedido/concedidos pelo Autor ao Réu marido e juros, o Réu marido entregou ao Autor os seguintes cheques:
a. Um cheque no valor de Esc. 533.300$00, com vencimento em 15.11.1996, do F…;
b. Cinco cheques no valor de Esc. 534.000$00 cada um, com vencimentos respectivamente em 10.01.1997, 10.03.1997, 10.05.1997, 10.07.1997 e 10.09.1997 do mesmo F…;
c. Oito cheques do G…: um no valor de Esc. 250.000$00, com vencimento em 04.12.1997; outro no valor de Esc. 263.000$00 com vencimento em 10.12.1997; outro no valor de Esc. 250.000$00 com vencimento em 04.01.1998; outro no valor de Esc. 263.000$00 com vencimento em 10.01.1998; outro no valor de Esc.250.000$00 com vencimento em 04.02.1998; outro no valor de Esc. 263.000$00 com vencimento em 10.02.1998; outro no valor de Esc. 250.000$00 com vencimento em 04.04.1998 e outro no valor de Esc. 263.000$00 com vencimento em 10.04.1998;
d. Dois cheques do F…: um no valor de Esc. 220.000$00, com vencimento em 17.06.1998, e outro no valor de
e. Esc. 1.000.000$00 com vencimento em 22.11.1998;
f. Cinco cheques do F… no valor de Esc. 440.000$00 cada e com vencimentos, respectivamente, em 30.11.1996, 30.01.1997, 28.02.1997, 30.03.1997 e 30.05.1997;
g. Seis cheques do F…, um no valor de Esc. 475.000$00, com vencimento em 14.06.1997; outro no valor de Esc. 715.000$00, com vencimento em 15.07.1997; outro no valor de Esc. 475.000$00, com vencimento em 14.08.1997; outro no valor de Esc. 475.000$00, com vencimento em 14.09.1997; outro no valor de Esc. 475.000$00, com vencimento em 14.10.1997 e outro no valor de Esc. 90.000$00, com vencimento em 09.10.1997;
h. Um cheque no valor de Esc. 1.000.000$00, com vencimento em 18.11.1997, do F…;
i. Um cheque no valor de Esc. 475.000$00, com vencimento em 14.04.1998, do G… e
j. Um cheque no valor de Esc. 120.000$00, com vencimento em 24.05.1998, do F… (Itens 7º e 8º).
19) O Autor sacou todos os cheques nas datas indicadas (Item 9º).
20) O valor real do imóvel referido em 1) é de pelo menos € 125.000,00 (Item 11º).

Fundamentos
O recurso do Autor coloca as seguintes questões:
- questão da reapreciação da matéria de facto fixada, designadamente as respostas dadas aos factos nºs 3 a 9 e 11 da Base Instrutória da causa, que devem ser alterados para “não provados”; assim, o contrato promessa apenas não foi cumprido em virtude de os RR. terem vendido a prédio a terceiro, em data anterior à da notificação para a escritura, conforme provado em K) e L);
- saber se, mesmo mantendo-se inalterados os factos provados, os RR. devem ainda assim ser condenados, nos termos do artº 241º C.Civ. (simulação relativa), pois que sob o negócio de compra e venda existiu um mútuo de 10.000 contos, nulo por falta de forma (artº 1143º C.Civ.), nulidade que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artº 286º C.Civ.);
- saber se o Autor litigou com transparência e boa fé, não devendo ser também condenado por litigância de má fé.
Incidentalmente, pronunciar-nos-emos sobre a validade ou a regularidade da impugnação da matéria de facto, tal como efectuada nas doutas alegações de recurso, questão levantada nas doutas contra-alegações, e, se for o caso, subsequentemente, pronunciar-nos-emos também sobre a tempestividade das alegações; ainda incidental e eventualmente, cumprirá pronunciarmo-nos sobre a nulidade da sentença recorrida, à luz do disposto no artº 668º nº1 al.c) C.P.Civ.
Passaremos a apreciar tais questões, ponto por ponto.
I
Nos termos do disposto no artº 690º-A C.P.Civ., na redacção aplicável aos presentes autos, e que resulta da alteração do D.-L. nº 183/2000 de 10 de Agosto, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve o Recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo, do registo ou da gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (nº1 al.b).
E acrescenta-se, no nº 2: “no caso previsto na al.b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2 do artº 522º-C”.
Ora, o artº 522º-C nº2 rege que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento”.
Volvido o tempo das rotações das cassetes áudio, a gravação digital tem conduzido a que as secções de processos identifiquem os minutos da gravação tomados por cada depoimento, uma vez que hoje é possível localizar temporalmente, com toda a exactidão, no conjunto do depoimento, qual foi o momento temporal em que a parte, a testemunha, o perito, etc., proferiram as afirmações de que o recorrente se pretende fazer valer.
O artº 522º-C nº2, na redacção de 2007, veio sublinhar que a referência em acta deve visar uma “identificação precisa e separada dos depoimentos”, precisando aliás aquilo que era já o conteúdo substancial do normativo, na redacção anterior.
A questão está em que, consultada a acta da audiência, verifica-se que não se procedeu a uma separação temporal dos depoimentos, conforme expresso no CD de gravação, bastando-se a acta em considerar, para todos os depoimentos colhidos em audiência, a menção “declarações que constam de suporte digital”.
Ora, não tinha o Recorrente condição de melhor cumprir o disposto no artº 690º-A nºs 1 al.b) e 2 C.P.Civ., inexistindo, como inexiste, qualquer outra referência na acta, em separado para cada depoimento, para lá da menção que atrás referimos.
Note-se que o Recorrente efectua uma longa transcrição dos dois depoimentos testemunhais em que se funda e efectua igualmente uma clara indicação de quais os pontos da matéria de facto que deveriam ter tido resposta contrária, por força dos aludidos depoimentos testemunhais transcritos.
Assim, a nulidade cometida em acta não poderia, obviamente, porque alheia à responsabilidade do Recorrente, traduzir-se em cerceamento do direito ao recurso, e designadamente ao recurso em sede de decisão sobre a matéria de facto.
É claro que o Recorrido invoca a falta de cumprimento das regras do artº 690º-A nº2, por parte do Recorrente, mas mais adequadamente deveria ter invocado a nulidade secundária, constante da acta de audiência de julgamento, nulidade essa que não é de conhecimento oficioso (artºs 201º nº1, 202º e 205º nº1 C.P.Civ.).
Houvesse-o feito e, obviamente, poderia encontrar-se em causa a elaboração da acta e as consequências respectivas nas alegações de recurso.
Não o fazendo, encontra-se sanada a nulidade invocada, tendo o Recorrente direito à reapreciação da prova gravada, nos termos do artº 690º-A nº1 al.b) C.P.Civ.
Do mesmo passo, torna-se inútil o conhecimento da questão relativa à tempestividade do recurso e que apenas poderia colher na procedência da invocada nulidade da impugnação das respostas à matéria de facto.
II
Passando então à nova apreciação da matéria de facto resultante das respostas aos quesitos formulados nos autos, para o que previamente ouvimos, na íntegra, os suportes CD relativos à audiência de julgamento.
O Recorrente Autor formula a pretensão de que, à matéria dos quesitos 3º a 9º e 11º seja dada a resposta “não provados”. Vejamos.
No quesito 3º perguntava-se se “as declarações expressas pelos contraentes Autor e Réu marido, no acordo referido em A), não correspondem à vontade real de um e de outro, já que Autor e Réu não quiseram comprar e vender”. Foi respondido “provado”.
Ora, aquilo que resulta abundantemente dos depoimentos da totalidade das testemunhas inquiridas é que a designada “promessa de compra e venda” aludida em A) constituía, para o Autor, uma garantia relativamente às quantias em dinheiro emprestadas por esse Autor ao Réu marido, cujo valor ou montante exactos, porém, as testemunhas desconheciam.
Isto posto, tal função de garantia não descaracteriza as vontades de Autor e Réu como características das posições que assumiram no contrato promessa, enquanto promitente vendedor (o Réu) e promitente comprador (o Autor); obviamente que, como “garantia” que se tratava, o accionamento da mesma rectius a celebração do contrato definitivo, por força da promessa, apenas ocorreria se o Réu não devolvesse ao Autor as quantias em dinheiro que este último lhe emprestara a ele Réu.
Todavia, trata-se de vontades manifestadas no sentido declarado da promessa de compra e venda.
Por isso, neste particular, tem razão o Recorrente quando exprime a pretensão de revogação da resposta dada, a ser substituída pela resposta “não provado”, que assim adoptamos nesta instância.
No quesito 4º perguntava-se se “(A. e R.) quiseram sim dar de garantia o prédio descrito na promessa, ou seja, quiseram celebrar promessa de um mútuo com hipoteca, para garantia de pagamento do empréstimo referido em M) e N)”. Respondeu-se: “provado apenas que quiseram dar de garantia o prédio descrito na promessa quanto a empréstimo ou empréstimos de quantias monetárias concedido/concedidos pelo Autor ao Réu marido”.
Conforme as razões adrede mencionadas, nada mais conforme ao conteúdo da prova produzida unanimemente pelas quatro testemunhas inquiridas em audiência. As partes não figuraram, no caso, a formalização de qualquer tipo contratual de mútuo, mesmo com hipoteca – o mútuo estava, para as partes, formalizado com a própria entrega do dinheiro e a entrega de cheques, em pagamento, por parte do Réu ao Autor. Por outro lado, a garantia traduzia-se em comprar e vender, acaso não existisse devolução do dinheiro mutuado, sendo que se ignora, do depoimento testemunhal, o exacto montante mutuado.
Confirmamos, desta forma, a resposta adoptada.
No quesito 5º perguntava-se se “A. e R. marido, como garantia do pagamento pontual da quantia mutuada e juros vencidos e vincendos, usaram a forma da promessa de compra e venda referente ao prédio sito no Peso da Régua, nos termos constantes do acordo, junto a fls. 51 dos autos, datado de 9/5/97, cujo teor se dá por reproduzido e que é objecto da acção que corre termos no processo nº 228/06.0TBPRG, do Tribunal Judicial de Peso da Régua, por entenderem representar tantas ou mais vantagens do que a escritura de mútuo com hipoteca, com menos custos, já que era mais cómodo e fácil de formalizar do que o documento notarial”; e no quesito 6º prosseguia-se “o qual foi, de comum acordo, entre A. e R. marido, substituído pelo contrato junto aos presentes autos, referido em A)”. Foi adoptada resposta em conjunto, do seguinte teor: “Provado apenas que Autor e Réu marido, em momento anterior, formalizaram contrato promessa de compra e venda, referente a prédio sito no Peso da Régua, nos termos constantes do acordo junto a fls. 51 dos autos, datado de 09.05.1997, cujo teor se dá por reproduzido e que é objecto da acção que corre termos no processo 228/06.0TBPRG do Tribunal Judicial de Peso da Régua, em idêntico contexto que o dos presentes autos”.
Se bem analisarmos, a parte não provada dos quesitos (e que abrange a totalidade do quesito 6º) prende-se com o facto de os contratos promessa relativos ao prédio da Régua (um deles) e o contrato promessa dos presentes autos (relativos a um prédio na Maia) se reportaram a garantia de uma idêntica quantia mutuada e, dessa forma, constituírem um deles a substituição do outro, isto é, o contrato dos autos (prédio da Maia) destinar-se-ia a substituir o contrato relativo ao prédio da Régua.
Ora, essa é matéria que não pode, efectivamente, resultar provada, pois que nenhuma testemunha logrou saber ao certo que quantia havia sido mutuada e, sobretudo, qual a relação do mútuo ou mútuos com a promessa ou promessas de compra e venda celebradas entre as partes.
O próprio Réu, em depoimento de parte, aludiu a que, na data constante da promessa dos presentes autos “já tinha parte da dívida paga” – não referenciou valores.
Desta forma, impõe-se a confirmação, aqui decidida, da resposta conjunta aos qq. 5º e 6º.
Os quesitos 7º e 8º foram formulados, mencionando concretos meios de pagamento (cheques), reportados aos empréstimos descritos em M) e N).
A resposta conjunta dada aos ditos quesitos aceita e confirma como provados tais pagamentos (ou entregas para pagamento), mas não os reporta aos empréstimos em concreto referenciados nos autos, designadamente em M) e N).
Uma tal resposta merece confirmação: em primeiro lugar, porque as testemunhas inquiridas nenhuma delas soube indicar valores concretos do total das quantias mutuadas, nem das quantias devolvidas pelo Réu marido, mas, por outro lado também, existe abundante prova documental, extraída de um processo que corre ou correu termos na comarca de Barcelos, na qual se discute, entre os também aqui Autor e Réu marido se algum deles possui débitos para com o outro, vindo invocados, por ambas as partes, valores transaccionados entre ambos de montante muito superior ao alegado em M) e N).
Razões de sobra para a confirmação, que aqui se decide, das respostas ou resposta conjunta aos qq. 7º e 8º.
No quesito 9º perguntava-se se “o Autor sacou todos os cheques nas datas indicadas e recebeu a totalidade do capital mutuado de 10.000.000$00 e juros”, tendo sido respondido restritivamente “provado apenas que o Réu sacou todos os cheques nas datas indicadas”.
Mais uma vez, sem qualquer relação com valores de mútuo, os cheques e documentos bancários de fls. 26ss., juntos com a Contestação, comprovam o conteúdo do quesito, na inexistência de qualquer meio de prova que os contradissesse.
Confirma-se, por igual, a resposta adoptada.
No quesito 11º perguntava-se se “o valor do imóvel referido em A) é superior a € 250000”. Respondeu-se: “provado apenas que o valor real do imóvel é de, pelo menos, € 125 000”.
Esse é valor aproximado de 25 mil ou 30 mil contos referenciado pela testemunha H…; note-se que, em depoimento de parte, o próprio Réu menciona, para o prédio, um valor de 30 mil contos. Nada a apontar à resposta adoptada, que se confirma.
II
A douta sentença recorrida entendeu que o acervo dos factos provados apontava para a produção, por banda dos contraentes da promessa, de uma declaração não séria ou de declarações não sérias recíprocas – artº 245º C.P.Civ.
Ora, tanto quanto as definições em direito civil no-lo permitem – omnis definitio in jure civile periculosa est – não nos é possível caracterizar a declaração produzida pelas partes como uma declaração meramente “cénica”, “jocosa” ou “didáctica”, cujo verdadeiro conteúdo não fosse por elas partes verdadeiramente querido, produzida sem intenção de enganar terceiros (como na simulação) e sem intenção de enganar o declaratário (como na reserva mental), como efectivamente não enganaram – cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral, II/218.[1]
Contudo, não se verifica na decisão recorrida a nulidade prevista na al.c) do nº1 do artº 668º C.P.Civ.
Tal nulidade só existe quando os fundamentos invocados pelo julgador devam conduzir logicamente a resultado oposto ao expresso na decisão (ut S.T.J. 22/1/98 cit. ou S.T.J. 26/1/95 Bol.446/296) – ora, a Mmª Julgadora entendeu que os efeitos da nulidade do negócio teriam que ter sido peticionados na acção, e não o foram; dessa forma, não só julgou a acção improcedente, como não decretou quaisquer efeitos da nulidade das declarações negociais, à luz do disposto no artº 289º nº1 C.Civ. Mal ou bem, não é esse o caminho que trilharemos, como se observará pela fundamentação infra.
III
Nas doutas alegações de recurso pugna-se pela verificação de uma hipótese de simulação relativa (artº 241º C.Civ.).
Todavia, debalde encontraremos nos factos provados o especial requisito da simulação, isto é, o intuito de enganar terceiros – artº 240º nº1 C.Civ. (e afirmamo-lo pese embora a opinião de Manuel de Andrade, que via nesses negócios uma quase forçosa simulação, porque evitava ao credor o procedimento judicial próprio para a venda de bens dados em garantia e o necessário prejuízo do devedor e de outros credores – Teoria Geral, II/178).
Também nos parece que nada no processo nos permite afirmar que as partes se não quiseram vincular ao regime jurídico da facti species em que acordaram (só em aparência), que assim não passaria de um negócio fingido.
O que as partes puseram em causa foram antes os motivos ou fins típicos da facti species contratual, utilizando um contrato promessa de compra e venda de um bem imóvel como uma fórmula de garantia de uma obrigação de devolução de uma determinada quantia em dinheiro mutuada.
A definição de “negócio indirecto” (pese embora não ter tido no nosso Código Civil o enfoque dogmático que merecia, facto que, por vezes, o faz passar despercebido) consta de M. de Andrade, Teoria Geral, II-179: “pode um negócio típico (venda, etc.) cujos efeitos são realmente queridos pelas partes ser concluído por um motivo ou por um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com a função característica (causa) desse tipo negocial e correspondente a outro negócio típico ou tipificável (doação, qualquer negócio de garantia creditória, etc.)”.
“O fim ulterior há-de ser indirecto em face do negócio adoptado, autónomo em face das respectivas consequências normais, mas derivar imediatamente da própria actuação do negócio”.
No negócio indirecto, o negócio – meio (aquele que é efectivamente realizado) não perde a tipicidade com a inserção nele de cláusulas aditadas pelas partes para o conduzir à funcionalidade económica do negócio – fim.
Desta forma, o negócio indirecto nada tem a ver com o negócio simulado, já que esse negócio indirecto corresponde efectivamente à vontade das partes.
Se corresponde à vontade das partes sujeitarem-se à disciplina jurídica do negócio que elegeram, obtendo empiricamente os efeitos jurídicos que pretendem, ainda que por via diversa da via típica, então naturalmente essa disciplina típica do contrato efectivamente celebrado deverá continuar a prevalecer, sob pena de se trair quer a lógica jurídica, quer a vontade das partes.
Consoante Orlando Carvalho, Bol. Fac. Direito, sup. X, pgs. 1 a 149, cit. in Ac.R.P. 5/6/97 Col.II/208, só a configuração do negócio indirecto como fraude à lei poderia, provado o animus nocendi, conduzir à invalidade do acto.
IV
Os autos demonstram assim a realização, entre as partes, de um negócio de promessa de alienação em garantia (a alienação do bem como negócio – meio, a garantia da obrigação como negócio – fim).
É discutida na doutrina a possibilidade da alienação em garantia.
Já expusemos em II a posição do Prof. Manuel de Andrade sobre esta matéria, vendo na alienação em garantia um negócio sempre ou quase sempre simulado.
O Prof. Galvão Telles (Manual dos Contratos em Geral, 2002, pg. 194) reprovava tal figura, por a considerar praticada necessariamente em fraude à lei, “representando, como representaria, um desvio a disposições limitativas, protectoras dos legítimos interesses do dono do objecto da garantia ou até de terceiros, em matéria de penhor ou hipoteca” – diga-se que o argumento de facto é idêntico ao de Manuel de Andrade, embora, onde aquele vê uma simulação, Galvão Telles veja uma fraude à lei, figura que, de facto, se pode aproximar em inúmeros casos do próprio negócio indirecto, tudo dependendo da imperatividade do negócio-fim, face ao negócio-meio.
Estas duas posições alinhavam com a posição tradicional seguida em direito português desde o Prof. Beleza dos Santos, A Simulação em Direito Civil, I/123 (1921), cit. in Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 1995, pg. 278.
Aquele Autor ilustrado concluía que o pacto fiduciário, constituindo cláusula primacial na determinação do acto jurídico, sem a qual nunca o acto de transmissão seria realizado, constituía pois um pacto nulo, acarretando toda a nulidade do estipulado. Beleza dos Santos inaugurou a invocação da causa/fim do negócio como verdadeiro impedimento à respectiva estipulação como meio, naturalmente em função de outros fins, no caso, fiduciários.
A principal oposição a este entendimento surge com Pais de Vasconcelos, op. e loc. cits., e Meneses Leitão, Garantias das Obrigações, 2ª ed., pg. 271.
Como verdadeiro negócio indirecto, o contrato fiduciário não pode afirmar-se, à partida, lícito ou ilícito, antes havendo de sujeitar-se ao juízo de mérito que, em relação a cada caso, recuse a validade a um acto fiduciário que colida com a Lei, a Moral ou a Natureza – não pode extrair-se de um meio inadequado ao tipo uma ilicitude geral do negócio; é antes a ilicitude concreta do fim que descaracteriza a licitude do negócio-meio.
A figura da alienação em garantia pode assim ser genericamente admitida, com base no princípio da liberdade contratual – artº 405º C.Civ. – ou com apoio no facto de a lei prever expressamente a hipótese de restrições obrigacionais ao direito de propriedade – artº 1306º nº1 C.Civ.
Note-se que outros Autores sempre admitiram a alienação fiduciária, desde que integrada, v.g., no âmbito de um mandato sem representação, por não existir entre as duas figuras (alienação em garantia e mandato sem representação) uma contradição entre os meios e os fins – neste sentido, Galvão Telles, op. cit., pg. 195, e Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, 1995, pgs. 325.
E note-se igualmente que Vaz Serra sempre admitiu o negócio fiduciário, desde que prosseguindo um “fim lícito e razoável” – ut Cessão de Créditos ou Outros Direitos, B.M.J. Especial – I – pgs. 172 – 174.
Como se depreende, alinhamos com esta posição que conjuga negócio indirecto com alienação em garantia, posição que é, hoje por hoje, da unanimidade da jurisprudência que consultámos do Supremo Tribunal de Justiça – assim, S.T.J. 28/3/06 Col.I/153 (Pinto Monteiro) e S.T.J. 16/3/2011, in www.dgsi.pt, pº nº 279/2002.E1.S1 (Lopes do Rego).
É sabido que devem ser considerados “contrários à lei não só os negócios que formalmente a ofendam (negócios contra legem), mas também quando se constata, por interpretação, que a lei quis impedir, de todo em todo, um certo resultado, os negócios que procuram contornar uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei expressamente previu e proibiu (negócios em fraude à lei)” – cf. Mota Pinto, Teoria Geral, pg. 433.
Não existe fraude à lei numa alienação em garantia, quando não se demonstra qualquer eventual prejuízo para demais credores, como no caso dos autos, ou qualquer eventual ultrapassagem maliciosa do princípio da tipicidade dos direitos reais – artº 1306º nº1 C.Civ.
V
O contrato promessa será assim válido?
Valeria, como contrato com eficácia meramente obrigacional, para o Réu marido, não já para a Ré mulher, que não se demonstra tê-lo assinado.
Por isso, deve considerar-se válida a promessa de venda de coisa alheia ou parcialmente alheia, com a inaplicabilidade ao caso do disposto no artº 1682º-A nº1 C.Civ. (veja-se, neste sentido, ex abundanti S.T.J. 25/11/03 Col.III/161 ou S.T.J. 26/10/98 Bol.390/404 e a doutrina aí citada), respondendo o promitente pelo incumprimento, ainda que a recusa se deva apenas à recusa do outro cônjuge em prestar o respectivo consentimento.
É de assinalar, igualmente, que no contrato promessa se presume que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou de princípio de pagamento (artº 441º C.Civ.) e que, no caso de incumprimento do promitente vendedor, tem aquele que constituiu o sinal a faculdade de exigir o dobro do que prestou (artº 442º nº2 C.Civ.).
Nos autos, precisamente, o pedido quantifica-se no dobro do sinal prestado, ou seja, perto de € 100000.
Só que, e esse é o ponto crucial para a decisão do pedido, dos exactos empréstimos alegados e provados, todos eles se demonstrou terem sido pagos – als. M) e N) e respostas aos quesitos 7º e 8º.
Dir-se-á que, das respostas aos quesitos, dimana que não existe certeza sobre o exacto montante mutuado pelo Autor ao Réu marido – só que essa incerteza beneficia o Réu, por dever considerar-se ónus de prova do Autor (artº 342º nº1 C.Civ.), já que, na incerteza, se mostra injustificada qualquer espécie de garantia de fidúcia que permanecesse incumprida, por banda do solvens.
De resto, sem a correcta caracterização do crédito em causa (do Autor) não se conhece o teor ou o montante da obrigação a solver pelo Réu, isto é, da obrigação garantida pela promessa e, dessa forma, também não se pode dizer preenchida a condição da garantia de fidúcia do contrato, neste exacto momento em que o contrato promessa é trazido a juízo, e designadamente se essa garantia de fidúcia atinge o montante peticionado de perto de € 100000, ou outro inferior.
Por isso mesmo, por não se saber se o Autor tinha um concreto jus à devolução de quaisquer quantias por ele próprio mutuadas ao Réu marido, também se não poderiam extrair quaisquer consequências da impossibilidade de cumprimento do contrato promessa, em virtude de uma venda efectuada a terceiro, no ano de 2000, tendo por objecto o imóvel prometido ao Autor.
VI
Resta conhecer da questão da condenação do Autor como litigante de má fé.
Sem perder de vista a norma legal, nos termos do disposto no artº 456º nº2 C.P.Civ., diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou b) tiver alterado a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa.
Não se demonstrou qualquer espécie de litigância de má fé, designadamente por banda da parte que decai, uma vez que nos encontrámos sempre no âmbito da análise das causas e consequências do incumprimento de um contrato promessa antes celebrado, análise essa, de teor quase exclusivamente juscivilístico, que opunha as partes.
Os autos demonstram tão só uma divergência relativa a débitos recíprocos, divergência que, a final, não se provou que existisse.
Por isso, inexistem sinais de que qualquer das partes tenha litigado dolosamente, contra verdades adquiridas e delas próprias conhecidas, ou violado os deveres de probidade e boa fé processual, com dolo ou mesmo até fazendo uso de temeridade (no sentido da locução da norma – “que não devia ignorar”).
Defenderam-se diversas interpretações factuais e jurídicas. Tão só.
Desta forma impõe-se a revogação da condenação do Autor como litigante de má fé.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – No domínio da redacção de 2000 do artº 690º-A C.P.Civ., nada há que censurar à parte que indicar os depoimentos, sem alusão às menções do artº 522º-C nº2 C.P.Civ., se tais menções não constam da acta de julgamento, sem prejuízo da possibilidade de qualquer das partes invocar a nulidade secundária, constante da acta de audiência de julgamento, nulidade essa que não é de conhecimento oficioso (artºs 201º nº1, 202º e 205º nº1 C.P.Civ.).
II – Se o que as partes puseram em causa foram os motivos ou fins típicos da facti species contratual de contrato promessa de compra e venda de bem imóvel, utilizando um tal contrato promessa como uma fórmula de garantia de uma obrigação de devolução de uma determinada quantia em dinheiro mutuada, encontramo-nos perante uma variante de “negócio indirecto”.
III – Como verdadeiro negócio indirecto, o contrato de alienação fiduciária em garantia, ou a sua simples promessa, não pode afirmar-se, à partida, lícito ou ilícito, antes havendo de sujeitar-se ao casuístico juízo de mérito que recuse a validade a um acto fiduciário que colida com a Lei, a Moral ou a Natureza (artº 280º C.Civ.) – não pode extrair-se de um meio inadequado ao tipo uma ilicitude geral do negócio; é a ilicitude concreta do fim que descaracteriza a licitude do negócio-meio.
IV – Neste sentido, em termos genéricos, concebe-se a figura da alienação em garantia, com base no princípio da liberdade contratual – artº 405º C.Civ. – ou com apoio no facto de a lei prever expressamente a hipótese de restrições obrigacionais ao direito de propriedade – artº 1306º nº1 C.Civ.
V – A dúvida sobre o montante que a fidúcia garante resolve-se favoravelmente ao devedor, podendo paralizar os efeitos da promessa de alienação em garantia, em função de determinados pagamentos provados, por parte do devedor, e mais a mais se o montante do pedido relacionado com a devolução do sinal em dobro atinge perto de € 100000, quantia que não se prova que se encontre em dívida, por parte do Réu, ao Autor.
VI - Inexistem sinais de que qualquer das partes tenha litigado dolosamente, contra verdades adquiridas e delas próprias conhecidas, ou violado os deveres de probidade e boa fé processual, com dolo ou mesmo até fazendo uso de temeridade (no sentido da locução da norma – “que não devia ignorar”), se as partes apenas defenderam diversas interpretações factuais e jurídicas, nenhuma delas tendo definitivamente resultado “provada” ou “não provada”.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar parcialmente procedente, por provado, o recurso de apelação interposto pelo Autor e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o mesmo Autor como litigante de má fé, em multa e indemnização.
No mais, confirmar o dispositivo recorrido.
Custas a cargo de Apelante e Apelados, na proporção de vencido.

Porto, 10/V/2011
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa
______________
[1] Na declaração não séria, o declarante emite uma vontade, mas sem ânimo de se obrigar e na base de que o destinatário da declaração lhe conferirá o verdadeiro sentido: falta de seriedade (Díez-Picazo, A. Gullón, Sistema, I/490).
Nestas condições, a declaração não origina qualquer efeito jurídico – artº 245º nº1 C. Civ. – pelo que se encontra a declaração inquinada de rigorosa nulidade, com a exclusão de se produzirem efeitos laterais legais de natureza negocial (Horster, op. cit., § 912, M. Andrade, op. e loc. cits. e S.T.J. 9/11/99 Bol.491/238).