Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
996/08.4TTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: SERVIÇO DOMÉSTICO
JUSTA CAUSA
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
Nº do Documento: RP20110221996/08.4TTPRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - No contrato de trabalho de serviço doméstico, o despedimento promovido pelo empregador não está sujeito ao cumprimento da formalidade de instauração de prévio procedimento disciplinar.
II - No entanto, ocorrendo justa causa – quer esta seja indicada pelo empregador, quer seja invocada pelo trabalhador – devem ser referidos, por escrito, os factos e circunstâncias que fundamentam a rescisão ou o despedimento.
III - A redução a escrito dos motivos que integram a justa causa constitui uma formalidade ad substantiam.
IV - Não satisfaz tal exigência de formalidade a mensagem escrita enviada para telemóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 996/08.4TTPRT.P1
Relator: M. Fernanda Soares - 890
Adjuntos: Dr. Machado da Silva - 1416
Dr. Ferreira da Costa - 1324

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
B…, com o patrocínio do M.P., instaurou no Tribunal do Trabalho do Porto acção de impugnação de despedimento contra C… e mulher D… pedindo seja declarado o despedimento da Autora insubsistente e os Réus condenados a) a pagar-lhe a indemnização no montante global de € 4.260,00 por força do despedimento de que foi alvo e independentemente da procedência ou não deste pedido b) a pagar-lhe a quantia de € 617,40 referente às férias subsídios de férias e de natal do ano de 2004, € 4.686,00 referente às férias, subsídios de férias e de natal dos anos de 2005, 2006 e 2007 (subsídio de natal) e vencidos a 1.1.2005, 1.1.2006, 1.1.2007 e 1.1.2008 (férias e subsídio de férias), € 106,50 referente às férias, subsídios de férias e de natal pelo trabalho prestado no ano de 2008, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal.
A Autora alega, em síntese, ter sido admitida em 1.2.2004 para trabalhar ao serviço dos Réus exercendo as funções de empregada doméstica, às segundas, quartas e sextas-feiras e mediante a retribuição mensal que no ano de 2008 era de € 426,00. Acontece que no dia 4.2.2008 a Ré mulher enviou uma mensagem para o telemóvel da Autora, na qual dizia o seguinte: resolva com a seguradora a sua baixa porque o seu seguro já foi anulado e a B… não vem para a minha casa devido à sua doença e abusou da minha confiança, fazendo uma consulta sem minha ordem, acho que isso foi o seu limite. A referida mensagem configura um despedimento insubsistente por não baseado em factos que constituam justa causa e porque não foram referidos por escrito os factos e as circunstâncias que o fundamentaram.
Os Réus contestaram defendendo a licitude do despedimento e reconhecendo dever à Autora a quantia de € 270,00, concluindo quanto ao mais pela improcedência da acção.
Proferido o despacho saneador, procedeu-se a julgamento, consignou-se a matéria dada como provada e não provada e foi proferida sentença a absolver os Réus do pedido relativo a indemnização por alegado despedimento ilícito e a condenar os Réus a pagarem à Autora a quantia global de € 1.266,70.
A Autora veio recorrer da sentença na parte em que absolveu os Réus, pedindo a sua substituição por acórdão que julgue a acção procedente quanto ao pedido de indemnização por despedimento ilícito, concluindo do seguinte modo:
1. O despedimento da Autora efectuado por mensagem escrita enviada para o telemóvel pelos Réus não reúne os requisitos de forma escrita exigida pelo artigo 29º, nº3 do DL 235/92 de 24.10.
2. A mensagem de telemóvel não reúne os requisitos de documento particular uma vez que não pode ser assinado pela entidade que emite o documento.
3. De acordo com os factos provados não foram indicados quais os factos e circunstâncias que fundamentam o despedimento.
4. O facto de a Autora se ter dirigido ao hospital E…, S.A., não se sabe se para consulta, tratamento ou outro qualquer motivo, assim desobedecendo à ordem dada pelos Réus que sempre que se dirigisse a um hospital deveria informar previamente, não pode ser considerado como justa causa de despedimento.
5. Essa ordem é manifestamente ilegítima pois viola o direito à reserva da intimidade da vida privada – artigo 16º do C. do Trabalho de 2003.
6. O despedimento efectuado pelos Réus deve ser declarado ilícito e devem os mesmos ser condenados a pagar à Autora uma indemnização por despedimento de um mês por cada ano de antiguidade ou fracção.
7. Devem ainda os Réus ser condenados a pagar à Autora os juros de mora à taxa legal não só quanto à indemnização, mas também sobre a quantia de € 1.266,70 em que foram condenados.
O então relator proferiu decisão sumária julgando improcedente o recurso.
A Autora veio requerer fosse proferido acórdão.
Os autos foram redistribuídos e colhidos os vistos cumpre decidir.
* * *
II
Matéria dada como provada e a ter em conta na decisão do recurso.
1. A Autora B… foi contratada verbalmente pela Ré mulher, em 1.2.2004, para as funções de empregada doméstica, o que fazia sob as ordens, direcção e fiscalização dos Réus.
2. A Autora trabalhava em casa dos Réus, uma vez por semana, às sextas-feiras, durante cinco horas.
3. A Autora tinha como funções a limpeza semanal da casa dos Réus.
4. Foi acordado entre a Autora e os Réus que estes lhe pagariam a retribuição horária de cinco euros.
5. Os Réus contrataram seguro de acidentes de trabalho para pessoal doméstico em 2.2.2004, através da apólice nºAT…….., no regime de pagamento à hora.
6. Os Réus vivem num apartamento tipologia T3 e o seu agregado familiar é constituído por três pessoas, os Réus e um filho adolescente.
7. A Autora prestava serviços domésticos noutras casas.
8. A Autora sofreu um acidente de trabalho em 29.1.2007.
9. A Autora começou a faltar sucessivamente e a apresentar baixas médicas por alegados acidentes de trabalho sofridos ao serviço dos Réus.
10.Perante esses «sucessivos acidentes» domésticos na casa dos Réus, a Ré mulher solicitou à Autora que, antes de fazer qualquer consulta, a informasse previamente.
11.A 28.1.2008, a Autora deslocou-se ao E1…, S.A., E2…, sem dar qualquer conhecimento antecipado aos Réus.
12.A Autora enviou uma mensagem de telemóvel para a Ré mulher, dias depois da referida ida àquele hospital, a informar que se encontrava de baixa médica.
13.Em virtude de a Autora se ter dirigido ao referido hospital sem ter dado prévio conhecimento à Ré mulher, esta comunicou à Autora, por escrito, através de mensagem escrita enviada para o telemóvel dela, que prescindia dos seus serviços por quebra da relação de confiança e por desobediência a ordens dadas pela entidade patronal.
14.Não foram pagas à Autora as retribuições referentes a férias, subsídios de férias e de natal, relativos aos anos de 2004 a 2008.
* * *
III
Questões a apreciar.
1. Se a mensagem escrita remetida por telemóvel preenche os requisitos exigidos pelo artigo 29º, nº2 do DL235/92 de 24.10.
2. Se da matéria de facto dada como provada não resultam quais os factos e circunstâncias que fundamentaram o despedimento.
3. Se no caso se verifica a justa causa de despedimento.
4. Da condenação em juros.
* * *
IV
Se a mensagem escrita remetida por telemóvel pela Ré mulher para o telemóvel da Autora preenche a formalidade exigida pelo artigo 29º, nº2 do DL 235/92 de 24.10.
Relativamente a tal questão diz-se na sentença recorrida o seguinte: (…) “A lei não especifica o concreto modo por que há-se manifestar-se o escrito em que é comunicado o despedimento; apenas exige que sejam comunicados de modo expresso e inequívoco os factos e fundamentos que suportam a rescisão em causa. Ora, actualmente, a utilização do serviço de mensagens escritas (SMS) é frequente e comum (até nos próprios serviços do Estado), a par do correio-e, por exemplo. A própria Autora, aliás, utilizou justamente o SMS para dar conhecimento à Ré mulher que se tinha dirigido ao E… e que se encontrava de baixa médica (ponto12). Por isso, pode e deve considerar-se que a utilização de mensagem escrita é assimilável e equivalente ao documento escrito tradicional, em papel, pelo que, também nesta vertente formal, não se acham razões para pôr em causa a legalidade do despedimento da Autora” (…).
A apelante refere que a formalidade exigida pelo DL 235/92 de 24.10 é «ad substanciam» e como tal só pode ser substituída por outro meio de prova de força probatória superior (artigos 364º, nº1 e 373º, nº1, ambos do C. Civil), o que não é o caso. Vejamos então.
Sob a epígrafe «Rescisão com justa causa», prescreve o artigo 29º do DL 235/92 de 24.10 que “ 1. Constitui justa causa de rescisão qualquer facto ou circunstância que impossibilite a manutenção, atenta a natureza especial da relação em causa, do contrato de serviço doméstico. 2. Ocorrendo justa causa, qualquer das partes pode pôr imediatamente termo ao contrato. 3. No momento da rescisão do contrato devem ser referidos pela parte que o rescinde, expressa e inequivocamente, por escrito, os factos e circunstâncias que a fundamentem” (…).
Ao contrário do regime estabelecido para os contratos de trabalho em geral, no contrato de trabalho de serviço doméstico o despedimento promovido pelo empregador não está sujeito ao cumprimento da formalidade de instauração de prévio procedimento disciplinar (nº2 da citada disposição legal e artigo 429º, al. a) do C. do Trabalho de 2003, este último vigente à data da cessação do contrato de trabalho).
No entanto, e ocorrendo justa causa – quer esta seja invocada pelo empregador quer seja invocada pelo trabalhador – deve ser referido, por escrito, os factos e circunstâncias que fundamentam a rescisão/o despedimento.
Com efeito, o legislador considerou que se não é exigível, atendendo às características especiais do contrato de trabalho de serviço doméstico, a instauração de processo disciplinar, ao menos, deve ser indicado, por escrito, os motivos que integram a justa causa. E compreende-se que assim seja pois sem a referência expressa aos motivos que sustentam o despedimento com invocação de justa causa, o trabalhador ficaria impossibilitado de os impugnar judicialmente (artigo 31º, nº1 do DL 235/92 de 24.10).
Somos tentados a concluir que a exigência legal de referência expressa e inequívoca, por escrito, aos factos e circunstâncias que fundamentam a rescisão do contrato de trabalho de serviço doméstico equivale, no fundo, à decisão final proferida pelo empregador no caso de micro empresas (prescreve neste particular o nº3 do artigo 418º do C. do Trabalho de 2003 que “a decisão do despedimento deve ser fundamentada com discriminação dos factos imputados, sendo-lhe comunicada por escrito”). Por outras palavras: já que o empregador não está obrigado a observar o procedimento a que alude o artigo 441º e seguintes do C. do Trabalho de 2003, ao menos, e por razões de certeza e segurança jurídicas, deve proferir decisão escrita com indicação dos fundamentos do despedimento.
E exigindo o legislador «escrito» onde conste os fundamentos da rescisão com alegação de justa causa, será tal formalidade ad substantiam ou ad probationem?
Segundo o entendimento do Professor M. Domingues de Andrade, as formalidades ad substantiam “são as exigidas sob pena de nulidade do negócio. Sem elas não é válido o negócio. A sua falta é de todo irremediável” (…). As formalidades ad probationem “são as impostas, e não de modo absoluto, apenas para a prova do negócio. Sem elas o negócio não é propriamente nulo; só que a sua prova será mais custosa de fazer” (…) – Teoria Geral da Relação Jurídica, volume 2, 7ªreimpressão, página 145.
Igualmente o Professor Anselmo de Castro ensina que “nos documentos «ad substantiam» é vedada a sua substituição por outro meio de prova, ou documento que não seja de força probatória superior – artigo 364, nº1. É então função do documento assegurar à parte, plena consciência do acto que vai praticar e a estabilidade da relação jurídica respectiva; - daí a sua insubstitubilidade. Nos documentos «ad probationem», diversamente, é admitida a sua substituição «por confissão expressa judicial ou extra judicial»” (…) “Compreende-se então já a possibilidade da sua substituição, dado não estar já em causa a validade do acto, mas apenas a sua prova” (…) “A natureza do documento ad probationem há-de resultar claramente da lei” (…) “Só, pois, face à norma reguladora da relação litigiosa, e não através de meras considerações gerais, poderá a qualificação ser feita, devendo na dúvida haver-se o documento como documento ad substantiam” (…) – Direito Processual Civil Declaratório, volume 3, página 320/321.
Posto isto, podemos agora responder à pergunta inicialmente formulada. Considerámos que no caso se trata de uma formalidade ad substantiam.
Na verdade, e se a indicação dos motivos para fundamentar a rescisão com justa causa tem que ser escrita – equivalente à decisão final do artigo 418º, nº3 do C. do Trabalho de 2003 – tal só pode significar que sem essa formalidade, e no que respeita apenas ao empregador, a rescisão é ilícita (seria nula se outra consequência a lei não prescrevesse – artigo 220º do C. Civil).
A estas razões acresce o facto de o artigo 29º, nº3 do DL 235/92 de 24.10 não expressar, de modo claro, que o escrito é apenas exigível para prova da declaração de rescisão e nada mais – artigo 364º, nº2 do C. Civil. Aliás, o teor do referido artigo leva-nos precisamente a concluir o contrário, na medida em que aí se refere que o escrito serve essencialmente para indicar os motivos/causas da rescisão/despedimento com invocação de justa causa.
E se o escrito exigido pelo artigo 29º, nº3 do DL 235/92 de 24.10 se traduz numa formalidade ad substantiam, tal significa que o mesmo não pode ser substituído por qualquer outro meio de prova, nomeadamente por mensagem escrita dirigida para o telemóvel da trabalhadora (artigo 364º, nº1 do C. Civil).
Em suma: não tendo o empregador observado a formalidade prevista no artigo 29º, nº3 do DL 235/92, remetendo à Autora escrito contendo os motivos para a rescisão do contrato de trabalho com justa causa, ter-se-á de concluir que a mensagem escrita que lhe foi enviada configura um despedimento ilícito nos termos do artigo 31º nº1 do DL 235/92, com referência ao disposto no artigo 430º, nº2 al. c) do C. do Trabalho de 2003.
Em face da ilicitude do despedimento tem a Autora direito a receber a indemnização no montante de € 400,00 (€ 100,00 x 4 anos, sendo a antiguidade reportada entre 1.2.2004 até Janeiro de 2008), a que acresce os juros de mora à taxa de 4% ao ano, a contar da data da cessação do contrato de trabalho e até integral pagamento.
E em face da conclusão a que se chegou fica prejudicado o conhecimento das questões indicadas no § III do presente acórdão sob os números 2 e 3
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V
Da condenação em juros de mora.
A Autora refere que o Mmo. Juiz a quo não condenou os Réus nos juros de mora não obstante tal pedido ter sido formulado na petição inicial.
A situação descrita integra o vício nulidade da sentença previsto no artigo 668º, nº1 al. d), 1ªparte, do C. P. Civil.
A recorrente não arguiu a nulidade da sentença e muito menos o fez nos termos prescritos pelo artigo 77º, nº1 do C. P. Trabalho.
Assim, não pode este Tribunal conhecer de tal questão.
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Termos em que se acorda, em conferência, em substituir a decisão sumária pelo presente acórdão e em consequência revogar a sentença recorrida – na parte em que absolveu os Réus C… e D… do pedido de indemnização por despedimento ilícito – e se condena estes Réus a pagarem à Autora, a esse título, a quantia de € 400,00 acrescida dos juros à taxa de 4% ao ano, a contar da data da cessação do contrato de trabalho e até integral pagamento. No mais confirma-se a sentença recorrida.
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Custas da apelação a cargo dos Réus.
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Porto, 21.2.2011
Maria Fernanda Pereira Soares
José Carlos Dinis Machado da Silva
Manuel Joaquim Ferreira da Costa