Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4109/08.4TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: ARRENDAMENTO
PLURALIDADE DE FINS
PREDOMINÂNCIA DA ACTIVIDADE COMERCIAL
TRANSMISSÃO DO DIREITO AO ARRENDAMENTO
COMUNICAÇÃO AO SENHORIO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
RELEVÂNCIA DA COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RP201206124109/08.4TJVNF.P1
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- O relacionamento contratual a valorizar, atentos os desenvolvimentos que ao longo da sua vigência lhe foram sendo inseridos pelas partes contratantes, consubstancia-se num único contrato de arrendamento, com destino ao exercício do comércio e à habitação - um declaratário normalmente diligente, sagaz e inteligente, colocado na posição do real declaratário, deduziria do declarado na transacção a que se refere o facto provado com o número 8°, que os contratantes se reconheciam reciprocamente vinculados por um único e uno contrato de arrendamento, para habitação e comércio.
II- Da factualidade envolvente do relacionamento contratual conclui-se: ï) que não foi em vista de satisfazer as necessidades habitacionais do agregado familiar do arrendatário que foi negociada a finalidade habitacional do arrendamento, e ii) que a função habitacional estava preordenada ao exercício da actividade comercial.
III- Do referido circunstancialismo conclui-se pela prevalência da finalidade comercial sobre a finalidade habitacional, e pela subordinação desta àquela — o que implica que o contrato seja regulado pelo regime do arrendamento comercial (arrendamento não habitacional).
IV- Provado que os réus apelantes B... e C..., desde o ano de 1990, vinham ajudando o seu pai, primitivo arrendatário, contratando com fornecedores de cafés, de bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade de café, cuidando e guardando o local, atendendo clientes do estabelecimento, servindo cafés e bebidas e confeccionando e servindo refeições e/ou petiscos, deve concluir-se terem eles provado os factos integradores da excepção prevista no n° l do art 58° da Lei 6/2006 ao princípio da não transmissibilidade do arrendamento por morte do arrendatário — a exploração, em comum com o arrendatário, há mais de 3 anos, de estabelecimento a funcionar no local arrendado, pois que integram o conceito de 'exploração comum' as situações em que o sucessor colabora e/ou participa, activa e efectivamente, com o arrendatário, na actividade comercial desenvolvida no estabelecimento.
V- O não cumprimento da comunicação exigida no n° 2 do art. 58° da Lei 6/2006 não constitui requisito legal do direito à transmissão nem é motivo para extinção de tal direito à transmissão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4109/08.4TJVNF.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Desembargadora Maria de Jesus Pereira
Desembargador Henrique Araújo
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto.
RELATÓRIO
*
Apelantes: B… e C… (co-réus).
Apelada: D… (autora).
Juízos de Competência Cível de Vila Nova de Famalicão – 4º Juízo Cível.
*
D… intentou a presente acção com processo sumário demandando os réus B…, E…, F… e C…, pedindo:
- se declare a caducidade dos contratos de arrendamento que tinham por objecto imóvel que identifica logo no primeiro artigo da petição, e em que era arrendatário G…;
- se condenem os réus a reconhecer-lhe o direito de propriedade e a restituir-lhe o imóvel que se encontram a ocupar, fazendo a sua entrega livre e devoluta de pessoas e coisas;
- se condenem os réus a pagar-lhe uma indemnização mensal de 100,00€ pela ocupação indevida do imóvel, desde 1/08/2008 até à sua entrega livre e devoluta de pessoas e coisas.
Como fundamento da pretensão alega, em síntese, ser exclusiva e plena proprietária de prédio urbano que identifica, sendo que em 11/12/1964, entre o seu falecido marido e G… foi outorgado contrato de arrendamento comercial em que aquele deu a este de arrendamento o rés do chão e cave daquele prédio com a finalidade de nele ser exercida a actividade de comércio de vinhos, análogos, café, chá, chocolate, leite e outras bebidas. Mais alega que, em 01/03/1974, o seu marido deu de arrendamento ao mesmo G… o r/chão centro do imóvel em questão, para habitação, e que já em 20/11/1978 foi celebrado um contrato de transacção entre o senhorio e o arrendatário, no qual foi acordado o aumento para 2.350$00 mensais da renda correspondente à parte comercial, mantendo-se a renda de 650$00 para a parte habitacional. Continua a autora alegando que no dia 03/04/2008 faleceu, no estado de viúvo, o arrendatário G…, não deixando cônjuge sobrevivo nem filhos menores de 26 anos, sendo que nenhum dos descendentes do falecido inquilino, ou outrem, lhe comunicou o óbito nem qualquer outro facto relacionado com o arrendamento. Conclui a autora que tais contratos de arrendamento caducaram nos termos do disposto no art. 1051.º alínea d) do Código Civil, pelo que os réus se encontram a ocupar e utilizar o local, quer na parte habitacional quer na parte destinada ao estabelecimento de venda de bebidas, ilicitamente, causando-lhe prejuízo (impedindo-a de dispor do gozo e fruição do imóvel, designadamente arrendando-o), que computa em 100,00€ mensais, correspondente ao valor pelo qual o mesmo poderia ser arrendado.

Contestaram os réus, sustentando não haver caducidade do contrato de arrendamento (argumentam que o contrato era único, cujo objecto principal sempre foi o do exercício do comércio), pois que desde Outubro de 1990 passaram a explorar, em comum com o seu pai (o arrendatário) o estabelecimento comercial instalado no local, tendo comunicado à autora, aquando do falecimento do arrendatário (seu pai) a vontade de continuar a exploração do estabelecimento. Terminam pela improcedência da acção com a sua consequente absolvição dos pedidos.

Saneado o processo e organizada a base instrutória, realizou-se o julgamento e decidida a matéria controvertida foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e, em consequência, i) declarou a autora como dona e legítima proprietária do imóvel identificado na petição inicial, ii) declarou caducos os contratos de arrendamento celebrados entre o falecido marido da autora e o G…, iii) condenou os réus a restituírem à autora o prédio em causa, livre e desimpedido de pessoas e bens e, iiii) condenou os réus, solidariamente, a pagarem à autora uma indemnização de 50,00€ (cinquenta euros) mensais, desde 1/08/2008 até entrega efectiva do imóvel (descontados os montantes que os réus vêm depositando em nome da autora).

Desta decisão apelam os réus B… e C…, concluindo as suas alegações pela formulação das seguintes conclusões:
I- A sentença proferida pelo Mmº Juiz do tribunal ‘a quo’ considerou erroneamente ter ocorrido a caducidade dos contratos de arrendamento celebrados entre H… e G… – pai dos ora recorrentes –, referentes ao prédio urbano sito na Rua …, nº .., em …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 75/131296 e inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 554, da freguesia de …, constituído por casa de habitação e comércio de cave e rés do chão.
II- Considerou fundamentalmente não se ter provado que os réus – ora recorrentes – explorassem conjuntamente com o pai o estabelecimento comercial instalado no local arrendado – regime de excepção à caducidade previsto no artigo 58º, nº 1 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.
III- Todavia, a prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento permitiu aos ora recorrentes B… e C… provarem os factos alegados, mais concretamente, que estes, desde Outubro de 1990 - na qualidade de filhos e sucessores do arrendatário G… – passaram a explorar em comum com aquele o referido estabelecimento comercial a funcionar no local arrendado.
IV- A prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento permitiu aos ora recorrentes B… e C… provarem os factos alegados, mais concretamente, que se tratou sempre de um único contrato de arrendamento cujo objectivo principal e fundamental foi, assim como é, o exercício do comércio.
V- A matéria de facto dada como não provada na resposta aos quesitos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 17º, 18º, 20º e 21º encontra-se em contradição com a prova produzida em audiência de julgamento, assim como com a resposta dada aos outros quesitos e com os fundamentos da sentença proferida – desde já se consignando expressamente serem estes os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados para efeitos de alteração pelo tribunal ad quem, nos termos do art. 685-B e 712º, nº 1 do CPC.
VI- Trata-se de um erro notório na apreciação da prova, vício que se verifica ‘quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum’.
VII- Não pode, por conseguinte, subsistir a sentença de que se recorre, pelo que cumpre conhecer do mérito da causa em substituição (art. 715º do C.P.C.), e nessa conformidade, dar como provados os factos alegados em 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 17º, 18º, 20º e 21º da base instrutória.
VIII- A matéria de direito encontra-se erroneamente aplicada ao caso sub judice, uma vez que o tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação do conceito de ‘exploração em comum’ previsto no artigo 58º, nº 1 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.
IX- Efectivamente, o artigo 58º da supra mencionada lei, subordinada à epígrafe «Transmissão por morte no arrendamento para fins não habitacionais», estabelece, no seu nº 1, que o ‘arrendamento para fins não habitacionais termina com a morte do arrendatário, salvo existindo sucessor que, há mais de três anos, explore, em comum com o arrendatário primitivo, estabelecimento a funcionar no local’.
X- No caso concreto, o próprio tribunal a quo reconheceu, pelo menos, que são os recorrentes B… e C… quem tem vindo a trabalhar no estabelecimento existente no locado (‘Apenas os réus B… e C…, pelo menos desde 1990, atendem clientes do estabelecimento, servem cafés e bebidas, confeccionam e servem refeições e/ou petiscos’ sic).
XI- Em face do exposto, deve o tribunal ad quem concluir que por óbito do arrendatário transmitiu-se o contrato de arrendamento para os ora recorrentes, uma vez que estes lograram provar a matéria da excepção.
XII- Deve também o tribunal ad quem considerar ter inexistido qualquer alegação ou prova de factos consubstanciadores do direito da recorrida a receber uma indemnização no valor de 50,00€ (cinquenta euros) mensais, desde 1/08/2008 até à entrega efectiva do prédio.
XIII- A douta decisão do tribunal a quo viola, assim, os artigos 358º, nº 1 e 4 e nº 3 do art. 1028º do C.C, 655º, nº 1 do C.P.C. e artigo 58º, nº 1 da Lei 6/2006, de 27/02.
XIV- Com a observância das mencionadas normas, concluirá o tribuna ad quem pela nulidade da decisão e pela sua substituição por outra, repondo-se assim a legalidade, justiça e igualdade do nosso estado de direito democrático.

Contra-alegou a apelada defendendo a improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida, invocando desde logo não terem os apelantes dado cumprimento ao disposto no art. 685º-B do C.P.C., quanto ao recurso sobre a matéria de facto, alegando também não terem os réus logrado provar que explorassem em comum com o seu pai (arrendatário primitivo), há mais de três anos, o estabelecimento comercial e ainda que não fizeram a comunicação aludida no art. 58º, nº 2 da Lei 6/2006 (comunicação de que pretendiam continuar a exploração do estabelecimento).
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Delimitação do objecto do recurso – questões a apreciar.

Das conclusões dos apelantes (por estas se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 685-A, nº 1, do C.P.C.) extraem-se as seguintes questões:
- a decisão da matéria de facto, apurando se ela deve ou não ser alterada, como pretendido pelos apelantes;
- caducidade da relação arrendatícia (por morte do primitivo arrendatário) ou transmissão do arrendamento, nos termos do art. 58º da Lei 6/2006, de 27/02;
- indemnização (respectivo montante mensal) arbitrada pela ocupação do imóvel.
*
FUNDAMENTAÇÃO
*
Fundamentação de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1º- A autora é a exclusiva e plena proprietária de um imóvel constituído por um prédio urbano sito na Rua …, nº .., em …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 75/131296 e inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 554, da freguesia de …, constituído por casa de habitação e comércio de cave e rés do chão, com o valor patrimonial de 9.691,73€ – A.
2º- A propriedade exclusiva do referido imóvel adveio-lhe por partilha judicial realizada por óbito de seu marido H…, encontrando-se a propriedade registada a seu favor pela inscrição G-2 resultante da Ap. 16/121201 –B.
3º- Anteriormente à aquisição pelas partilhas acima referidas, o prédio era propriedade do casal constituído pela aqui autora e seu marido, o referido H…, casados no regime de comunhão geral de bens, em primeiras e únicas núpcias de ambos – C.
4º- O prédio veio à propriedade do referido H… há mais de 30 ou 40 anos por doação verbal dos seus falecidos pais I… e J…, por consequência sem título aquisitivo, pelo que foi necessário justificar a propriedade por escritura de justificação notarial, o que foi feito em 24/10/1996, sendo em seguida registada a propriedade – D.
5º- Encontra-se a aqui autora na posse do imóvel referido desde há mais de 30 ou 40 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e de forma ininterrupta, na convicção de que o prédio lhe pertence, pagando as contribuições e impostos relativos ao prédio – E.
6º- Em 11/12/1964 o falecido marido da aqui autora, H…, celebrou com G…, por escritura pública realizada na secretaria notarial de Vila Nova de Famalicão, um contrato de arrendamento comercial em que deu de arrendamento a este o rés do chão e cave do prédio referido em 1, com a finalidade de nele ser exercida a actividade de comércio de vinhos, análogos, café, chá, chocolate, leite e outras bebidas – F.
7º- O contrato teve o seu início em 01/01/1965 e foi celebrado pelo prazo de um ano prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo, sendo o montante de renda anual, inicial, de 1.800$00 (mil oitocentos escudos) – G.
8º- Em 20/11/1978 foi celebrado um contrato de transacção entre o senhorio H… (aí identificado como primeiro outorgante) e o arrendatário G… (aí identificado como segundo outorgante), com o seguinte teor:
O primeiro outorgante é dono e legítimo possuidor de um prédio urbano sito da dita freguesia do …, no …, que está arrendado ao segundo outorgante para habitação e comércio com renda mensal de esc. 900$00 desde Agosto de 1978.
Considerando que o mesmo prédio se encontra em mau estado de conservação, o primeiro outorgante senhorio compromete-se a realizar obras no mesmo, nas seguintes condições: 1.- O telhado e respectivos caibros e cumes serão reparados de modo a que deixe de chover dentro de casa, como vem sucedendo no momento presente; esclarece-se que, na reparação do telhado, será necessário substituir a maior parte das telhas. 2.- As portas serão todas substituídas por outras novas, sendo duas com caixilhos de alumínio, uma será de madeira e três serão de ferro (a chapa de ferro irá até ao meio da porta; depois, o caixilho será em ferro a enquadrar vidro martelado). 3.- Estas obras deverão ser realizadas até ao dia 1 de Janeiro de 1979, salvo motivo de força maior relacionado com o tempo. 4.- A partir de 1 de Janeiro de 1979 a renda será de esc. 2.350$00 (dois mil trezentos e cinquenta escudos) mensais, para a parte comercial, sendo certo que se manterá a renda de esc. 650$00 (seiscentos e cinquenta escudos) mensais para a parte habitada pelo segundo outorgante; ambas serão pagas na residência do senhorio, no mês a que disserem respeito. 5.- O segundo outorgante suspenderá a actualização ora convencionada se e enquanto as obras não estiverem prontas. – H[1].
9º- No dia 02/04/2008 faleceu, no estado de viúvo, G… – I.
10º- G… não deixou filhos menores de 26 anos – J.
11º- Os réus encontram-se a ocupar e utilizar o prédio identificado em 1, quer na parte habitacional quer na parte destinada a estabelecimento de venda de bebidas, recusando-se a fazer a sua entrega à aqui autora – K.
12º- Por escritura pública de habilitação, celebrada em 12/06/2008, foi declarado por B… que sucederam a G… os seguintes filhos: B…, K…, L…, C…, M…, N…, O…, P…, Q…, F… e S… – L.
13º- A autora recebeu as rendas dos meses de Abril, Maio, Junho e Julho de 2008 – M.
14º- Os réus procederam ao depósito da renda mensal dos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009, no valor de 43,75€, na T…, agência da … – N.
15º- A autora, através do seu mandatário, enviou, três cartas registadas ao réu B…, datadas, respectivamente, de 30/07/2008, 09/06/2008 e 08/07/2008, conforme cópias de fls. 31 a 34, 86 a 89, cujo teor se dá aqui por reproduzido – O.
16º- Em data não concretamente apurada, mas anterior a 01/03/1974, H… cedeu a G…, verbalmente, o uso e a fruição, para habitação, do r/c centro do imóvel em questão – 1º.
17º- Sendo a renda estipulada no montante mensal de 650$00 (seiscentos e cinquenta escudos) – 2º.
18º- A autora teve conhecimento do óbito de G… – 4º.
19º- A composição das divisões do rés-do-chão e cave permanece inalterada desde a data referida em 6 – 6º.
20º- Relativamente ao arrendamento referido em 6, mantêm-se as divisões na cave onde funcionavam a petisqueira e a sala de jantar – 7º.
21º- Relativamente ao arrendamento referido em 6, mantêm-se no r/c as divisões referentes ao café – 8º.
22º- No tempo em que o G… explorava o café as referidas divisões intercomunicavam, na cave, com a adega e, no r/c, com a sala de jantar – 9º e 10º.
23º- O falecido pai dos réus pernoitava juntamente com a falecida mulher e filhos na zona habitacional do imóvel em questão – 12º.
24º- Os termos do acordo referido em 8 não foram cumpridos nem pelo falecido marido da autora nem por esta – 15º.
25º- Foi o G… quem efectuou, em 1993, as obras constantes desse acordo – 16º.
26º- Os réus B… e C…, pelo menos desde 1990, atendem clientes do estabelecimento, servem cafés e bebidas, confeccionam e servem refeições e/ou petiscos – 19º.
27º- Os recibos correspondentes às rendas mencionadas em 13 foram emitidos em nome de G… – 22º.
28º- A partir de Agosto de 2008 a autora passou a recusar o recebimento de qualquer renda – 23º.
*
Fundamentação de direito

A- Da impugnação da matéria de facto
Impugnam os apelantes a decisão da matéria de facto, considerando incorrectamente julgados os factos vazados na base instrutória sob os números 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 17º, 18º, 20º e 21º, entendendo que os mesmos se devem ter por integralmente provados.

Defende a apelada que o recurso deve ser rejeitado na vertente da impugnação da matéria de facto, por não terem os apelantes dado integral cumprimento aos ónus impostos no art. 685º-B do C.P.C. ao recorrente que impugna a matéria de facto.
Considerando o conjunto das alegações – as conclusões e a respectiva motivação – tem de concluir-se que os apelantes cumprem tais ónus, pois não só especificam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, mencionando o diverso sentido em que se impõe decidir quanto a cada um deles, por referência ao que foi julgado provado na decisão recorrida (indicam o sentido das respostas a dar, em substituição das proferidas), como fundamentam as razões da discordância, individualizando os concretos meios probatórios em que se funda a impugnação, sendo certo que, baseando-se a impugnação em depoimentos gravados, indicam com exactidão as passagens da gravação em que se fundam.
Não existem assim razões para rejeição do recurso na vertente da impugnação da matéria de facto por não terem os apelantes cumprido os ónus impostos nos arts. 712º e 685º-B do C.P.C..

Pretendem desde logo os apelantes a alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto no sentido de se considerar provada a matéria vazada, além de outros, nos números 13º, 14º e 17º da base instrutória (julgados não provados).
A tais números da base instrutória foi dada a seguinte redacção:
13º- Tratou-se de um único contrato de arrendamento cujo objectivo principal e fundamental foi, assim como é, o exercício do comércio?
14º- Os quartos e/ou habitações que existem no local arrendado sempre estiveram subordinados à actividade comercial que no mesmo é exercida?
17º- Desde Outubro de 1990 que os ora réus passaram a explorar em comum com G… o referido estabelecimento comercial a funcionar no local?
Nenhum destes números da base instrutória contém matéria de facto, susceptível de figurar na fundamentação de facto da decisão.
Inquestionável que só os factos produtores ou desencadeadores do efeito jurídico pretendido pela parte podem ter assento na fundamentação de facto da decisão.
Factos são as ocorrências concretas da vida real (bem como o estado, a qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas – o sexo ou idade das pessoas, a área de certo prédio, a altitude de um local), respeitem eles aos acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem) ou antes aos eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo[2].
Constituem ainda matéria de facto os juízos de facto, enquanto realidade empírica integradora de pressupostos de facto de certas normas e não do cerne do juízo de valor legal, como é o caso dos juízos periciais de facto (a percentagem da diminuição da capacidade de trabalho provocada por determinada lesão sofrida em consequência de acidente)[3].
Diversamente, constituem meros juízos conclusivos as alegações adjectivantes que não sejam susceptíveis de permitir a percepção da realidade concreta a valorizar juridicamente, porque se não traduzem em qualquer realidade concreta integradora dos pressupostos normativos, representando não mais que juízos subjectivos, emanados da relatividade valorativa da parte que os alega.
Sabe-se que a destrinça entre facto e direito se mostra por vezes difícil, não sendo ‘fácil (ou possível) estabelecer uma cisão perfeita entre questões de facto e questões de direito’, pelo que mais do que ‘encontrar um critério universal que estabeleça a distinção entre estes dois campos’ importará distinguir casuisticamente consoante as necessidades de resolução dos problemas que em concreto se suscitarem no âmbito do processo[4].
Casos há em que as alegações da parte nos articulados podem qualificar-se, sem dificuldade, como matéria de direito (a alegação de que o ‘evento lesivo ocorreu por culpa grave e exclusiva, do demandado’, que o a outra parte ‘violou culposamente o contrato, não o cumpriu ou cumpriu defeituosamente’), ou como matéria de facto (v.g., alegação de que determinado terreno tem x metros quadrados, que a abertura feita em parede de edifício situada a menos de 1,5 metros do terreno vizinho tem determinadas e concretas dimensões e se situa a determinada altura do solo), mas já se suscitam dúvidas quando são utilizadas (alegadas) expressões que têm, simultaneamente, um sentido técnico-jurídico, de onde a lei retira determinados efeitos, e um significado vulgar e corrente, facilmente captado pelas pessoas comuns (arrendamento, renda, empréstimo, preço, etc.)[5].
Assim, tem de recorrer-se ao objecto da acção para apurar se tais alegações devem considerar-se matéria de facto ou matéria de direito. Na verdade, a linha ‘divisória entre o facto e o direito não têm carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes’[6].
Se o objecto da acção residir no significado daquelas expressões (arrendamento, preço, etc.), estaremos perante matéria de direito; pelo contrário, tratar-se-á de matéria de facto se o objecto da acção não depender da resposta exacta a tais afirmações feitas no articulado, que devem ser tidas então no seu significado vulgar e corrente e não já no seu sentido técnico-jurídico. Como refere Anselmo de Castro[7], devem considerar-se alegações de factos ‘os juízos que contenham a subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido’, que ‘contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como «pagar», «emprestar», «vender», «arrendar», «dar em penhor», etc.’, podendo figurar, ‘nesses próprios termos, devendo tomar-se no sentido corrente ou comum, ou no próprio sentido em que a lei os tome, quando coincidente, desde que as partes não disputem sobre eles’.
Fora da matéria de facto situam-se os juízos conclusivos aferidos em atenção a determinada valoração normativa – os que encerram em si um juízo de valor, uma apreciação que é resultado de uma análise crítica efectuada sobre determinada realidade, por referência a uma valoração jurídica (excesso de velocidade, culpa, etc.).
Na presente acção esgrime a autora a caducidade da relação arrendatícia (que alega ser constituída por dois distintos e autónomos contratos de arrendamento, com objectos e finalidades diferentes) com fundamento no óbito do arrendatário, excepcionando os réus a transmissão do arrendamento (invocando existir apenas um arrendamento com pluralidade de fins, sendo o fim principal o comercial e o fim habitacional o subordinado), pois há mais de três anos exploravam em comum com o seu pai (o arrendatário) o estabelecimento instalado no local arrendado.
Fácil, pois, concluir, atento o objecto da causa (melhor, em face da matéria de excepção invocada pelos réus) que a matéria constante dos números 13º, 14º e 17º da base instrutória não traduz qualquer realidade factual, mas antes matéria conclusiva, que encerra juízos de valor normativo, dependentes da interpretação jurídica de preceitos e conceitos legais.
Efectivamente, será em face das declarações negociais emitidas pelas partes (senhorio e arrendatário), dos actos por elas praticados como sua execução e de todos os elementos atendíveis para a interpretação e integração negocial que se deverá concluir, na fundamentação jurídica da decisão (aplicando o direito), se estamos ou não em face de um único contrato de arrendamento e, nesse caso, se um dos fins está ou não subordinado ao outro – designadamente se o fim principal do contrato é o exercício da actividade comercial e se lhe está subordinado o fim habitacional.
Por isso, considerando o objecto da presente acção, tem de concluir-se que a matéria vazada nos números 13º e 14º da base instrutória contém matéria conclusiva e de direito.
A mesma conclusão vale para o número 17ºda base instrutória.
Questão nuclear na presente acção é a de apurar se a relação arrendatícia terminou com a morte do arrendatário ou antes, como excepcionam os réus, se esta se lhes transmitiu pela circunstância de, sendo sucessores do arrendatário, explorarem em comum com ele, há mais de três anos, o estabelecimento comercial existente no local.
Traduzindo a ‘exploração em comum’ do estabelecimento um conceito estritamente jurídico, de cuja apreciação depende a sorte da acção, está ele situado fora da matéria de facto.
Assim, por se não tratar de matéria de facto (mas antes de matéria conclusiva de direito), não pode esta Relação (nem podia a primeira instância) responder a tais números (13º, 14º e 17º) da base instrutória – aliás, por essa razão, não deveriam ter sido tais factos incluídos na base instrutória, já que também nesta só a matéria de facto pode ser vazada.

Insurgem-se os apelantes contra a decisão proferida pela 1ª instância quanto ao facto incluído na base instrutória sob o número 12º, ao qual foi dada a seguinte redacção: ‘12º- O falecido pai dos réus ali pernoitava com a falecida mulher e filhos que os ajudavam no negócio?’
Tal quesito mereceu da 1ª instância a seguinte resposta: ‘Provado apenas que o falecido pai dos réus pernoitava juntamente com a falecida mulher e filhos na zona habitacional do imóvel em questão’.
Os apelantes censuram a decisão da 1ª instância por entenderem que a parte final do referido quesito (a parte em que se alude à ajuda no negócio prestada ao arrendatário, pai dos réus, pelas pessoas referidos no quesito) deve também ter-se por provada, invocando, desde logo, que essa matéria foi confessada pela autora no seu depoimento de parte.
Assiste inteira razão aos apelantes.
Em cumprimento do disposto no art. 563º do C.P.C., e terminado o depoimento prestado pela autora, ficou a constar na acta da audiência que esta, relativamente ao facto 12º da base instrutória, admitiu que ‘a partir de certa data, que não soube concretizar, o falecido, pai dos réus, ali passou a pernoitar juntamente com a falecida mulher e filhos que o ajudavam no negócio, mas que nessa altura foi feito verbalmente um arrendamento para habitarem os quartos do rés-do-chão centro’.
Evidencia-se, assim, a necessidade de modificar a decisão da matéria de facto quanto a tal matéria, nos termos do art. 712º, nº 1, b), do C.P.C., já que os elementos fornecidos pelo processo impõem decisão diversa insusceptível de ser destruída por outras provas – a confissão tem valor probatório pleno, tendo a decisão recorrida desatendido tal declaração confessória.
Admitiu a autora a veracidade da matéria objecto da impugnação – ou seja, que a falecida mulher e os filhos do arrendatário que no local residiam o ajudavam no negócio.
Porque confessada tal matéria, não poderia ela sequer tido sido respondida (art. 646º, nº 4 do C.P.C.), devendo ter sido incluída na fundamentação de facto da sentença, nos termos do disposto no art. 659º, nº 3 do C.P.C..
Assim sendo (art. 712º, nº 1, b), 713º, nº 2 e 659º, nº 3 do C.P.C.), deve a referida matéria ser considerada provada, passando o facto acima elencado sob o número 23º a ter a seguinte redacção: ‘O falecido pai dos réus pernoitava na zona habitacional do imóvel em questão juntamente com a falecida mulher e filhos que os ajudavam no negócio’.

Impugnam também os apelantes a decisão da primeira instância quanto aos números 7º, 8º, 9º e 10º da base instrutória, sustentando que a matéria neles vazada deve ser considerada integralmente provada, ao contrário do que decidiu a primeira instância, que a considerou tão só parcialmente provada.
A redacção de tais quesitos era a seguinte:
7º- Mantêm-se na cave as divisões onde funciona a adega, a petisqueira e sala de jantar?
8º- Mantêm-se no rés-do-chão as divisões correspondentes ao café, cozinha, quartos e sala de jantar?
9º- Sempre foi esta a constituição das divisões interiores do local integralmente arrendado ao pai dos réus?
10º- As referidas divisões sempre intercomunicaram entre si, atenta a existência de portas entre as mesmas?
A decisão recorrida julgou provada, quanto a eles, a matéria elencada nos números 20º a 22º da fundamentação de facto deste acórdão.
Os apelantes baseiam a sua discordância quanto ao decidido quer em depoimentos testemunhais que identificam, quer no depoimento de parte da recorrida, quer na inspecção ao local.
Analisada a decisão recorrida, constata-se que a propósito da matéria em questão, o tribunal, para formar a sua convicção, valorizou não só a prova testemunhal como também a inspecção ao local.
Efectivamente, discorrendo a propósito da convicção formada sobre a composição física do objecto mediato (objecto stricto sensu) da relação contratual, a decisão recorrida alude ao observado na inspecção ao local (referindo ter sido ‘possível observar que havia uma certa semelhança e harmonia nas portas existentes que separavam o café da sala de jantar habitacional e as portas que separavam essa sala de jantar e as restantes divisões da zona habitacional o que inculca a ideia de que tais portas são pelo menos contemporâneas entre si’), observação essa que entendeu ter sido confirmada pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelos réus (unânimes ao afirmar que a comunicação entre as duas partes sempre existira).
Conclui-se assim que a decisão da primeira instância fundou a sua convicção não só na prova testemunhal como também na inspecção ao local que efectuou, deferindo pretensão das partes nesse sentido.
Todavia, efectuada a inspecção, não foi observado o preceituado no art. 615º do C.P.C., não sendo lavrado auto que documentasse o que na diligência foi pelo tribunal constatado com relevo para a apreciação da matéria controvertida, não sendo exaradas em acta as conclusões tidas por pertinentes (cfr. acta de 21/09/2010).
Em consequência de tal omissão (que seria susceptível de integrar nulidade secundária prevista no nº 1 do art. 201º do C.P.C., a arguir pelas partes no próprio acto, face ao disposto no art. 205º, nº 1, 1ª parte do C.P.C. – o que não aconteceu, estando por isso este tribunal impedido de a conhecer e declarar, já que não se trata de nulidade de oficioso conhecimento), não tem esta Relação disponíveis para apreciação todos os elementos probatórios em que a primeira instância fundou a decisão relativamente a tais impugnados factos.
Arredada fica, pois, a possibilidade da Relação alterar a decisão da matéria de facto a propósito de tais quesitos, à luz do art. 712º, nº 1, a) do C.P.C. – não constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto.
A necessidade de reduzir a auto as observações colhidas na inspecção judicial justifica-se precisamente para permitir que a Relação exerça os seus poderes de controle sobre a decisão da matéria de facto, conferidos pelo art. 712º do C.P.C..
Não sendo arguida pela parte interessada a irregularidade resultante de tal omissão – não registo, em acta ou auto, dos elementos úteis e relevantes para o exame e decisão da matéria de facto da causa –, não poderá a relação conhecer da nulidade, restando-lhe tão só o poder de, nos termos do art. 712º, nº 4, 1ª parte do C.P.C., anular, oficiosamente, a decisão proferida pela 1ª instância com vista à repetição de tal meio de prova, quando reconhecer que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência, é deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto.
Porém, a anulação da decisão só se justificará se e quando a matéria impugnada for essencial e determinante para a decisão de mérito, ou melhor, nos casos em que só com a modificação na matéria de facto que o recorrente pretende ver levada a cabo possa a decisão de mérito ser alterada em sentido favorável ao recorrente.
No caso dos autos, porém, tal não ocorre, já que como melhor se exporá, a matéria de facto já apurada é suficiente para que se aprecie e decida do mérito da causa no sentido pretendido pelos apelantes – e em vista da qual (decisão a si favorável) impugnaram tais pontos da matéria de facto.
O litígio que opõe apelantes e apelada circunscreve-se a apurar da transmissão para os primeiros de contrato de arrendamento em que era arrendatário o seu progenitor, entretanto falecido, à luz do preceituado no art. 58º, nº 1 da Lei 6/2006, de 27/02 (o óbito do pai dos apelantes ocorreu em Abril de 2008).
A apelada baseia as suas pretensões na caducidade, determinada pela morte do arrendatário, da relação arrendatícia, que alega ser integrada por dois distintos contratos de arrendamento: um, celebrado em escritura pública de Dezembro de 1964, que teve por objecto a cave e rés-do-chão de imóvel, com a finalidade de aí ser exercida a actividade de comércio de vinhos, análogos, café, chá, chocolate e outras bebidas; outro, verbalmente celebrado em 1974, que teve por objecto o rés-do-chão centro do referido imóvel, com destino a habitação.
Os apelantes contrapõem estar em causa um único contrato de arrendamento, cuja finalidade principal e fundamental foi – e é – o exercício do comércio, estando sempre subordinados à actividade comercial os quartos e/ou habitações existentes no local, mais sustentando ter-se-lhes transmitido o arrendamento, por serem sucessores do falecido arrendatário primitivo, explorando em comum com este, há mais de três anos, o estabelecimento a funcionar no local.
Face a este objecto do processo, a primeira questão a apreciar é de apurar se senhorio e arrendatário estavam vinculados por dois contratos de arrendamento ou antes por um só, com pluralidade de fins e, neste caso, se uma das finalidades estava ou não subordinada à outra.
Esta questão apresenta-se como preliminar lógico quanto à segunda – só apreciada e decidida esta primeira questão se poderá decidir da caducidade da relação arrendatícia.
A matéria subjacente aos quesitos 7º, 8º, 9º e 10º não tem qualquer relevo para a apreciação da segunda questão – isto é, para apreciar da transmissão da relação arrendatícia para os réus, sucessores do arrendatário.
A sua relevância respeitaria tão só à primeira questão – apreciar se senhorio e arrendatário estavam vinculados por dois contratos de arrendamento ou antes por um só, com pluralidade de fins e, neste caso, se uma das finalidades estava ou não subordinada à outra.
Porém, para apreciar e decidir esta questão (e no sentido propugnado pelos apelantes) entende o tribunal serem suficientes os factos já apurados, designadamente os elencados nos números 6º, 7º, 8º, 12º, 16º, 17º e 23º da fundamentação de facto deste acórdão, como adiante se verá.
Face ao exposto, está este tribunal impedido de apreciar, nos termos do art. 712º, nº 1, a) do C.P.C., da impugnação da decisão da primeira instância quanto aos factos 7º, 8º, 9º e 10º da base instrutória, sendo certo que também se não justifica anular a decisão recorrida, nos termos do art. 712º, nº 4, 1ª parte do C.P.C., em vista da repetição da inspecção ao local.

Apreciando agora da impugnação deduzida pelos apelantes aos quesitos 11º, 18º, 20º e 21º da base instrutória.
Baseiam-se os apelantes, quanto a este segmento da sua apelação, no disposto na alínea a) do nº 1 e nº 2 do art. 712º do C.P.C., sustentando que os elementos probatórios produzidos nos autos impõem se julgue a matéria em causa como integralmente provada.
Como resulta do art. 712º, nº 1, a) do C.P.C., a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B do C.P.C., a decisão com base neles proferida (sendo certo que, neste último caso, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos de facto impugnados).
Quanto a este segmento da impugnação constam do processo todos os elementos em que se baseou o despacho que na primeira instância respondeu à matéria controvertida – os documentos juntos aos autos e os depoimentos (de parte e testemunhais) prestados em audiência de discussão e julgamento, registados em suporte sonoro.
A impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância.
Pretende-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos nos autos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório – melhor, se tais elementos probatórios permitem afirmar, de forma racionalmente fundada (com base nas regras comuns da lógica, da experiência e do bom senso), a veracidade da realidade alegada.
Os poderes do Tribunal da Relação quando à modificabilidade da decisão de facto, nos termos do art. 712º, nº 1, a) e 2 do C.P.C., não podem ser restritivamente circunscritos à simples apreciação do juízo valorativo efectuado pelo julgador a quo, ou seja, ao apuramento da razoabilidade da convicção formada pelo juiz da primeira instância.
Efectivamente, os poderes de alteração da matéria de facto conferidos pelo art. 712º do C.P.C. ao Tribunal da Relação não se restringem aos casos de flagrante desconformidade entre a convicção formada pelo tribunal de 1ª instância e os elementos probatórios disponíveis do processo. Fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, deve a Relação fazer uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas, alterando a decisão casa adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção[8].
A análise crítica dos elementos probatórios (em ordem à justificação racional da decisão – elemento verdadeiramente estruturante e legitimador desta) consiste na sua apreciação e valorização tanto individual como conjugada (na sua relacionação reversiva – teste de compatibilidade entre uns e outros) à luz das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida.
A decisão da matéria de facto assenta numa convicação objectivável e motivável, a que a se acede por via da razão, alicerçada em elementos de lógica e bom senso. Trata-se de um processo de análise de todos os elementos probatórios cujo produto final há-de ser o resultado da sua valorização e compatibilização lógica e racional. Aprecia-se não só a valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios (da consistência, coerência e verosimilhança de cada um dos referidos elementos, tomado individualmente, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida) mas também a sua valia extrínseca (da conjugação e compatibilidade entre todos eles).
As provas (art. 342º do C.C.) têm por função a demonstração da realidade dos factos. Através delas não se busca criar no espírito do julgador a certeza absoluta da realidade dos ‘factos’ – ‘se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça’[9], o que implica que à justiça é suficiente um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida.
A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto ‘não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)[10]’.

Feitos estes considerandos, importa sindicar a decisão da primeira instância quanto aos factos impugnados, averiguando se as respostas foram proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório (averiguação que tem de obedecer a essas mesmas regras e princípios).
Os quesitos cujas respostas são impugnadas pelos apelantes (na parte agora em apreciação) foram vazados na base instrutória com a seguinte redacção:
11º- O arrendamento referido em F sempre englobou as divisões correspondentes aos quartos?
18º- São os réus quem, desde essa data, contratam com os fornecedores de café, bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade do café?
20º- São os réus quem, desde essa data, guardam e cuidam do local arrendado?
21º- Aquando do falecimento do pai dos réus, estes de imediato, aquando das condolências prestadas pela autora junto dos réus, comunicaram à autora a vontade de continuar a exploração do estabelecimento?
O teor da alínea F dos factos assentes é o que se mostra vazado no número 6 da fundamentação de facto desta decisão.
Todos estes quesitos foram julgados não provadas pela decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, defendendo os apelantes que eles devem ser julgados provados, considerando a prova produzida (depoimento de parte da recorrida e depoimentos testemunhais que especificam).
Os depoimentos prestados em audiência podem ser resumidos nos seguintes termos (e deixamos consignado que procedemos à integral audição da prova produzida em audiência de discussão e julgamento):
- o réu B…, no seu depoimento de parte, afirmou que quando os seus pais iniciaram a exploração do estabelecimento, logo ocuparam o imóvel, seja na parte em que era exercida a actividade comercial, seja quanto à parte habitacional; que em 1990, por ocasião da festa do seu 65º aniversário, o seu pai comunicou aos filhos que eles deveriam continuar a exploração do estabelecimento (ele estava cansado), o que foi feito; que não comunicaram à autora formalmente o falecimento do seu pai nem lhe disseram que iam continuar a exploração do estabelecimento, por terem entendido que não era necessário – a autora esteve presente no velório, a apresentar condolências;
- o réu N…, no seu depoimento de parte, referiu que logo em 65 os seus pais e irmãos (que ajudavam no negócio) foram morar no imóvel; afirmou não ter sido necessário comunicar o óbito do seu pai à autora, pois esta esteve no funeral, admitindo que não lhe comunicaram que queriam continuar a explorar o estabelecimento;
- o réu F… afirmou nunca ter morado no imóvel; referiu que a autora esteve presente no funeral do seu pai, admitindo desconhecer que à autora tenham comunicado o propósito de continuarem com a exploração do estabelecimento;
- a ré C… começou por afirmar que logo em 1965 os seus pais foram morar para o local com o filho mais velho, que os ajudava e lá também trabalhava; adiantou também que trabalha no estabelecimento desde 1990 (altura em que os seus pais entenderam que seriam os filhos que tinham de dar continuidade ao negócio); adiantou, por fim, ter entendido não ser necessário fazer qualquer comunicação à autora, pois esta esteve presente no funeral, apresentando condolências;
- a autora D… afirmou que, em 1965, quando se iniciou o arrendamento do espaço destinado ao estabelecimento, a parte habitacional estava arrendada a outro inquilino; só algum tempo depois (que não precisou, aceitando que foi pouco tempo depois) é que foi ‘acertada’, verbalmente, a ‘casa’, mantendo que primeiro foi feito o ‘arrendamento do café’ e depois, verbalmente, o da casa; referiu ter estado presente no velório do arrendatário, pai dos réus, apresentando condolências, afirmando que nessa altura não falaram de negócios, até porque esse não era o momento apropriado;
- a testemunha U…, irmão da autora, afirmou ter explorado o estabelecimento antes do pai dos réus; que na altura em que explorava o estabelecimento, a habitação contígua estava arrendada a outro inquilino; que o pai dos réus, quando começou a explorar o estabelecimento, morava noutro local (ao pé da testemunha), não sabendo a testemunha precisar em que momento foi o pai dos réus morar na habitação contígua ao estabelecimento;
- o V…, genro da autora, referiu que o pai dos réus já explorava o café antes dele, depoente, ir para a tropa (Janeiro de 1966), sendo certo que ainda aí não habitava – ou seja, afirmou que o pai dos réus começou a explorar o café e só uns tempos mais tarde é que passou a habitar a casa; que em 1965 ainda a habitação contígua ao estabelecimento estaria, segundo se recorda, a ser habitada por outro inquilino (‘W…); que o B… e a irmã (querendo referir-se à C…) ajudavam o pai na gestão do estabelecimento; que não teve conhecimento que os filhos do arrendatário tenham comunicado que pretendiam continuar a explorar o estabelecimento;
- o X… referiu habitar a cerca de 200 metros do prédio objecto dos autos, no qual está instalado o estabelecimento de café; afirmou conhecer o estabelecimento desde momento anterior a ele ter passado a ser explorado pelo pai dos réus; que quando o pai dos réus começou a explorar o estabelecimento, o prédio tinha ainda dois ‘caseiros’ habitacionais, sendo que quem morava na habitação contígua ao café era uma pessoa conhecida por ‘W1…’; pensa que em 1965 o ‘W1…’ ainda lá habitava; que o pai dos réus primeiro iniciou a exploração do café e só mais tarde é que foi morar para a habitação contígua;
- o Y…, filho da autora, referiu recordar-se do momento em que o pai dos réus iniciou a exploração do café, altura em que a casa contígua ainda estava arrendada a outro inquilino; que a sua mãe o informou de que os filhos do falecido arrendatário não lhe comunicaram (oralmente ou pró escrito) que pretendiam continuar com o negócio;
- Z…, inquilina da autora (reside em habitação contígua à que vinha sendo ocupada pelos pais dos réus, contígua ao estabelecimento), nascida em 1927, referiu ter ido viver para o local logo após o seu casamento (caso com pouco mais de vinte anos); o seu depoimento, acentuadamente marcado por dificuldades de memória (que reconheceu, atribuindo o facto à sua idade), resumiu-se à afirmação de que o pai dos réus explorou o estabelecimento e dormia no local, afirmando também que o B… e a C… tomaram conta do negócio (ainda em vida do pai) – sendo certo que afirmou não se lembrar se o pai dos réus passou ou não a residir no local logo que passou a explorar o estabelecimento;
- o AB… (nascido em 1951) afirmou-se frequentador do estabelecimento (frequentador quase diário, até há cerca de 30 anos atrás); admitiu não saber se os pais dos réus sempre ocuparam a parte habitacional, afirmando porém que tal sempre aconteceu desde que se lembra; afirmou também que nos últimos tempos de vida o pai dos réus já não geria o estabelecimento, sendo os réus B… e C… quem cuidavam do negócio;
- AC… (65 anos) afirmou ter assistido no estabelecimento comercial em questão às transmissões dos jogos de futebol do campeonato do mundo de futebol de 1966; cerca do ano de 1990, o B… e a C… passaram a tomar conta do estabelecimento;
- AD…, também ele afirmou que em 1966 assistiu no estabelecimento á transmissão televisiva dos jogos de futebol do campeonato do mundo de futebol; referiu que depois da morte do pai dos réus, o B… e a C… continuaram a exploração do negócio, sendo certo que já antes assim acontecia – o pai dos réus pediu aos filhos que tomassem conta do negócio (estava cansado e depois também adoeceu); que o B… tomava conta do estabelecimento, ajudando o pai, apesar de também ter tido uma papelaria (até porque tinha um empregado na papelaria);
- AE… (67 anos), afirmou-se cliente do estabelecimento desde Novembro de 1966, altura em que voltou do Ultramar; o Sr. G…, que explorava o estabelecimento, tinha muitos filhos, e lá só ficavam os que o ajudavam no negócio; referiu também que o B… teve de ajudar o pai, por este estar cansado e doente; afirmou que o B… tinha uma papelaria, mas tinha lá um empregado;
- AF… (marido da ré C…, com casou em 1977), afirmou ser frequentador do estabelecimento desde que o mesmo passou a ser explorado pelo Sr. G… (o seu falecido sogro); referiu também que desde o início a casa esteve incluída; adiantou que a C…, desde que casou, sempre trabalhou no café; que até à morte do seu sogro, era ele que mandava – aquilo era do pai, mas os filhos tomaram conta (o seu sogro dizia que estava cansado, saturado e que tinham de ser os filhos a continuar o negócio); a partir de 1990 foi o B… a tomar conta do negócio (tinha uma papelaria, mas tinha lá um empregado);
- AG…, cunhado dos réus (casado com irmã destes), afirmou que no local só habitavam (dormiam) os pais dos réus e o B… (era este que os ajudava no negócio), pois os restantes filhos habitavam noutro local; referiu que no 65º aniversário do seu sogro este reuniu os filhos e comunicou-lhes que estava cansado e que pretendia que fossem eles a continuar o negócio, passando então a partir daí, o B… e a C… (juntamente com o pai) a dar continuidade à exploração do estabelecimento; que apesar do seu sogro se não desligar do negócio, passou a não fazer nada (era o patrão), sendo a C… (que tratava das comidas) e o B… (tratava de fornecedores e da clientela) quem cuidava do negócio; que até à morte do seu sogro, este era ‘o dono e senhor’, sendo o B… e a C… os ‘seus braços direitos’, gerindo o negócio; referiu também que pouco tempo após o falecimento do seu sogro a sua esposa lhe disse que o B… conversara com a senhoria e que esta teria afirmado que tudo continuaria na mesma;
- M… (50 anos), irmão dos réus, afirmou nunca ter habitado no local, mas antes em casa arrendada pelo seu pai para si e para os seus irmãos; quem começou a morar no café com os pais foi o B… (não sabendo precisar em que momento); que os seus pais (há cerca de vinte anos) comunicaram aos filhos que teriam de ser eles a seguir com o negócio, sendo que a partir daí o B… e a C… ficaram a tomar conta do estabelecimento (o seu pai não ‘passou’ o negócio; apenas quis que os filhos ficassem a tomar conta dele); não se lembra de que tenham falado com a senhoria sobre a continuação do negócio, após o falecimento do seu pai (sabe apenas que a senhoria esteve no velório do seu pai);
- O… (46 anos), irmão dos réus, afirmou que no 65º aniversário do seu pai, os seus pais comunicaram aos filhos que precisavam de descansar e que teriam de ser eles a continuar a exploração do estabelecimento; que desde então o B… e a C… ficaram a tomar conta do estabelecimento; o B… tinha uma papelaria, mas tinha lá um empregado; afirmou que a senhoria foi ao funeral do seu pai e que passados uns dias, em conversa com o B…, este lhe afirmou que já tinha conversado com a senhoria e que continuava tudo ‘como estava’).

Uma primeira e pacífica conclusão que se impõe retirar de todos estes elementos probatórios é a de que só podia ser negativa a resposta ao facto 21º da base instrutória. Desde logo, os próprios réus admitiram nos seus depoimentos de parte (e tal foi feito expressamente constar da acta da audiência, no termo dos respectivos depoimentos, em obediência ao disposto no art. 563º do C.P.C.) que nenhum dos descendentes do G… comunicou formalmente à autora o seu óbito, pois o entenderam desnecessário por esta ter estado presente no velório. Tais depoimentos são por si só suficientes para se afirmar que nenhum dos sucessores do arrendatário, aquando das condolências prestadas por ocasião do funeral, tenha efectuado uma tal comunicação à autora – se tal tivesse ocorrido, certamente que nos respectivos depoimentos de parte não teriam os réus admitido não ter feito a comunicação do óbito à autora por a entenderem desnecessária, e teriam antes mencionado as circunstâncias de uma tal comunicação.
Manifestamente insuficientes para demonstrar a veracidade do facto quesitado no número 21º da base instrutória são os depoimentos das testemunhas AG… e O… – ambos depoimentos indirectos, baseados no que teria dito o réu B… (sendo certo que este admitiu, no seu depoimento, ter entendido não ser necessário comunicar à senhoria que iriam continuar a exploração do estabelecimento, pois ela estivera presente no velório).
Cumpre, assim, reconhecer o acerto da decisão recorrida ao julgar não provado o quesito 21º da base instrutória.
Também são insuficientes os elementos probatórios produzidos nos autos para se concluir, com a segurança necessária – com o grau de probabilidade bastante para as necessidades práticas da vida – pela veracidade da matéria quesitada no número 11º da base instrutória.
Importa desde logo ponderar que as testemunhas arroladas pelos autores não demonstraram conhecimentos precisos e peremptórios susceptíveis de permitir ao tribunal alicerçar fundada conclusão positiva sobre tal matéria. Efectivamente, a testemunha Z…, que reside em habitação contígua à que vinha sendo ocupada pelos pais dos réus desde momento anterior a estes terem iniciado a exploração do estabelecimento, não forneceu elementos que permitam ao tribunal formar convicção positiva sobre a realidade quesitada (afirmou não se lembrar se os pais dos réus passaram, ou não, a residir no local logo que começaram a explorar o estabelecimento, não se lembrando também se no local existia ou não outro inquilino habitacional); o AB… afirmou também não saber se os pais dos réus sempre ocuparam a parte habitacional, afirmando tão só que tal aconteceu desde que se lembra – o que não é relevante, considerando que nasceu em 1951, tendo 14 anos quando os pais dos réus passaram a explorar o estabelecimento; as testemunhas AC…, AD… e AE… não revelaram, a este propósito, qualquer conhecimento (resultando tão só do depoimento da última que já em Novembro de 1966 os pais dos réus residiam no local); o AF…, marido da ré C…, limitou-se a afirmar que a parte habitacional estava incluída no contrato de arrendamento desde o início (sem que, porém, tivesse adiantado qualquer especificada e concretizada razão de ciência para tal afirmação); o AG…, cunhado dos réus, referiu que no local só habitavam os pais dos réus e o B…, que os ajudava no negócio, habitando os restantes filhos dos réus noutro local (sendo certo que não se referiu ao momento em que os pais dos réus começaram a habitar no local); o M…, irmão dos réus, afirmou nunca ter habitado no local, mas antes em casa arrendada pelo seu pai para si e para os seus irmãos, referindo que quem habitou no prédio com os pais foi o B…, não sabendo precisar em que momento tal começou; por fim, o O…, também irmão dos réus, nada revelou saber a este propósito.
Ademais da ténue consistência e relevância destes depoimentos para se concluir pela veracidade do facto controvertido em causa, urge também realçar a afirmação da autora, que adiantou que no momento em que os pais do réu tomaram de arrendamento o espaço destinado à exploração do café ainda o espaço contíguo, destinado a habitação, era ocupado por um outro inquilino, sendo que só algum tempo depois foi esse espaço cedido aos réus para habitação, depoimento este corroborado por testemunhas por si arroladas, designadamente pelas testemunhas U…, seu irmão – que afirmou que os pais dos réus, quando começaram a explorar o estabelecimento, residiam ainda noutro local, ao pé do local onde ele, depoente, também habitava, sendo que só mais tarde foram residir para a habitação contígua ao estabelecimento –, V…, seu genro – referiu que os pais dos réus passaram a explorar o estabelecimento antes do depoente ir prestar serviço militar, em Janeiro de 1966, sendo certo que então ainda aí não residiam, pois a habitação contígua ainda estaria a ser habitada por uma outra pessoa (que identificou pela alcunha - ‘W1…’) –, o Y…, seu filho – referiu recordar-se do momento em que o pai dos réus iniciou a exploração do café, altura em que a casa contígua ainda estava arrendada a outro inquilino – e o X… – que reside a cerca de 200 metros do estabelecimento e afirmou que no momento em que os pais dos réus iniciaram a exploração do estabelecimento ainda a habitação contígua era habitada por outro inquilino (que identificou também pela alcunha - ‘W1…’).
A valorização crítica de todos estes elementos probatórios (e considerando que a escritura pública de arrendamento outorgada em Dezembro de 1964 se circunscreve ao arrendamento do espaço destinado ao exercício da actividade comercial) não permite que o tribunal conclua, com a necessária e exigível segurança, que os pais dos réus passaram a habitar no local simultaneamente ao início da exploração do estabelecimento (e assim que desde o início a relação arrendatícia tenha também englobado a parte habitacional) – não só tal realidade foi contrariada pela prova arrolada pela autora (e por esta, no seu depoimento de parte), como também a prova arrolada pelos réus a tal propósito se mostrou manifestamente insuficiente.
Resta apreciar da impugnação dos quesitos 18º e 20 da base instrutória.
Relativamente a tal matéria, pode afirmar-se ter sido uniforme a prova testemunhal produzida em audiência no sentido de que os réus B… e C… passaram a ajudar os seus pais na exploração do estabelecimento – todas as testemunhas arroladas pelos réus o afirmaram e tal não foi minimamente posto em causa pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela autora (uma delas, aliás – V…, genro da autora –, até o corroborou). Dos referidos depoimentos conclui-se que os réus B… e C… substituíram os pais em tudo o que respeitava à vida do estabelecimento – apesar dos pais se não terem alheado do negócio, certo é que foram os réus que passaram a assumir, ajudando os seus pais, as tarefas necessárias à continuação do negócio.
Explicaram as testemunhas que no sexagésimo quinto aniversário do pai dos réus (em 1990), este (bem como a sua esposa) comunicou aos filhos o seu cansaço, pretendendo que fossem os filhos a dar continuidade ao negócio, o que foi assumido então pelo B… e pela C…. Fizeram as testemunhas questão de sublinhar e frisar não ter existido uma alienação do negócio dos pais para os filhos, pois o que ocorreu foi tão só que a actividade necessária á prossecução do negócio (negócio que continuava a pertencer aos pais) passou a ser exercida pelos filhos.
Com base em tais depoimentos pode concluir-se, com inteira segurança, face às necessidades práticas da vida e às circunstâncias do caso (os motivos que levaram a que passassem a ajudar os seus pais), que a actividade e labor exercido pelos réus B… e C… se não circunscrevia ao simples atendimento dos clientes e à confecção das refeições e petiscos servidos (o que resulta provado, considerando a resposta ao facto controvertido com o número 26º), antes se estendendo a todas as tarefas necessárias e imprescindíveis à continuação do negócio (se o pai dos réus estava cansado do exercício da actividade e solicitou a ajuda aos filhos, certamente que com o decorrer do tempo tal cansaço se foi acentuando, com o consequente progressivo abandono, por sua parte, do maior número de tarefas).
Permitem assim os elementos probatórios produzidos nos autos julgar provado que os réus B… e C…, desde 1990, em conjunto com o G…, seu pai, e ajudando-o, contratam com fornecedores de cafés, de bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade de café, e cuidam e guardam o local.
A tal conclusão não obsta a prova documental produzida nos autos, designadamente as declarações fiscais apresentadas pelos réus B… e C…, das quais consta terem recebido rendimentos de trabalho por conta de outrem pagos pelo seu pai ou sequer a circunstância do estabelecimento ser actualmente propriedade da herança aberta por óbito daquele. Efectivamente, é conforme às regras da experiência da vida e da normalidade das coisas que ajudando, a tempo inteiro, os seus pais na exploração do estabelecimento, os referidos réus fossem por isso pecuniariamente compensados.
Por isso, tem de reconhecer-se, neste particular aspecto, razão aos apelantes, devendo considerar-se provado, no que aos quesitos 18º e 20º concerne, que desde 1990 os réus B… e C… ajudam o G…, contratando com fornecedores de cafés, de bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade de café, cuidando e guardando o local.

Atento o exposto, procede parcialmente o recurso na vertente da impugnação da decisão da matéria de facto, passando a ter de considerar-se provada a matéria de facto acima exposta na fundamentação com as seguintes alterações:
- no facto 23º da fundamentação de facto ficará a constar: ‘O falecido pai dos réus pernoitava na zona habitacional do imóvel em questão juntamente com a falecida mulher e filhos que os ajudavam no negócio’;
- adita-se um outro facto à matéria provada, com o número 26º-A (a inserir entre os factos 26º e 27º), com a seguinte redacção: ‘Desde 1990 os réus B… e C… ajudam o G…, contratando com fornecedores de cafés, de bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade de café, cuidando e guardando o local’.

B- Do mérito da causa

A apreciação do mérito do litígio que opõe as partes demanda, preliminarmente, se apure se a relação arrendatícia que está na base do litígio é composta por dois distintos contratos de arrendamento, um com finalidade comercial e outro com finalidade habitacional, ou antes por um único contrato de arrendamento, com pluralidade de fins (e, neste caso, apreciar se um deles é principal e o outro subordinado).
Poderia concluir-se, numa análise perfunctória da matéria de facto, considerando os factos com os números 6º, 16º e 17º, serem dois distintos contratos os que vinculavam a autora e o pai dos réus: um contrato de arrendamento destinado ao exercício da actividade comercial, outorgado em 1964, e um outro contrato, destinado a habitação, celebrado em data não concretamente apurada anterior a 1974.
Porém, numa apreciação mais minuciosa e detalhada da matéria de facto descortina-se que as partes vieram a construir e solidificar um relacionamento não compatível com aquela duplicidade contratual que os factos provados com os números 6º, 16º e 17º inculcam.
Na verdade (veja-se o facto provado com o número 8º), em 1978, na plenitude da sua vinculação contratual, as partes outorgaram uma transacção na qual começaram por referir que o prédio que identificaram (o prédio objecto da presente acção, que incluída a parte que era ocupada pelo estabelecimento e bem assim a parte que era ocupada para habitação) estava arrendado ao pai dos réus para habitação e comércio, mediante a renda mensal de 900$00. Depois, reconhecendo o mau estado de conservação do imóvel, comprometeu-se o senhorio à realização de obras no prédio, aí especificadas, acordando as partes num aumento da retribuição a partir de Janeiro de 1979, apenas para a parte comercial (que passaria para 2.350$00), mantendo o valor de 650$00 para a parte habitada pelo pai dos réus.
Apurando do verdadeiro significado e alcance de tais declarações produzidas pelas partes, através de actividade interpretativa, e aplicando a doutrina da impressão do destinatário (art. 236º do C.C.), conclui-se que estas, regulando aspectos concernentes ao seu relacionamento contratual, tiveram por pressuposto um único e uno arrendamento – um único arrendamento para habitação e comércio, sendo o gozo proporcionado pelo senhorio retribuído com a renda de 900$00.
Atente-se nos seguintes aspectos: em primeiro lugar, referem as partes que o imóvel estava arrendado para habitação e comércio, pela renda mensal de 900$00; depois, ao regular o aumento da retribuição, as partes não se referem a rendas de dois arrendamentos, mas antes à renda relativa à parte comercial e à renda relativa à parte habitada pelo arrendatário.
Um declaratário normalmente diligente, sagaz e inteligente, colocado na posição do real declaratário, deduziria do assim declarado que as partes se reconheciam reciprocamente vinculadas por um único e uno contrato de arrendamento, para habitação e comércio – no mínimo, que pelo menos a partir daí, o seu relacionamento contratual se circunscrevia a um único contrato de arrendamento, para habitação e comércio.
Divergimos, assim, da sentença recorrida, pois consideramos que o relacionamento contratual que importa valorizar juridicamente, atentos os desenvolvimentos que ao longo da sua vigência lhe foram sendo inseridos pelas partes, se consubstancia num único contrato de arrendamento, com destino ao exercício do comércio e à habitação.
Arrendamento com pluralidade de fins, pois, situação prevista e disciplinada pelo art. 1028º do C.C..
A matéria de facto permite considerar que, no caso dos autos, a finalidade habitacional estava subordinada à finalidade comercial (prevalecendo por isso o regime legal correspondente a este fim principal, nos termos do nº 3 do art. 1028º do C.C.).
A prevalência duma finalidade em relação à outra tanto pode resultar da expressa convenção das partes como pode ser inferida das circunstâncias de facto que envolvem o negócio[11].
No caso dos autos, é a factualidade envolvente do relacionamento contratual que permite concluir ser o exercício da actividade comercial a finalidade principal, estando-lhe subordinada a finalidade habitacional. Ponderando que o arrendatário tinha mais do que uma dezena de filhos (sucederam-lhe onze filhos, como resulta do facto provado com o número 12º) e que no local só habitava ele, a esposa e os filhos que os ajudavam no negócio (facto provado com o número 23º), impõe-se uma dupla conclusão: i) não foi certamente em vista de satisfazer as necessidades habitacionais do agregado familiar do pai dos réus que foi negociada a finalidade habitacional do arrendamento – tivesse sido a finalidade a alcançar com o negócio a de permitir ao pai dos réus instalar a residência do seu agregado familiar, certamente que aí residiriam todos os seus filhos, não apenas aqueles que o ajudavam no negócio; ii) habitava no local quem trabalhava no negócio, o que traduz um significativo ligâme ou conexão – tal acontecia em ordem ao exercício da actividade comercial, ou seja, a habitação no local era preordenada ao negócio levado a cabo no local.
Conclui-se deste circunstancialismo pela prevalência da finalidade comercial sobre a finalidade habitacional, e pela subordinação desta àquela – o que implica que o contrato seja regulado pelo regime do arrendamento comercial (arrendamento não habitacional).

Apreciada esta primeira questão, importa agora afrontar a questão da caducidade do arrendamento – a apreciar de acordo com o disposto no art. 58º da Lei 6/2006, de 27/02, pois que aos contratos de arrendamento existentes à data da entrada em vigor desta lei se aplica o regime desta norma transitória, tanto para contratos de arrendamento não habitacional celebrados antes do DL 257/95, de 30/09, como para contratos celebrados depois deste diploma (arts. 26º, nº 1 e 2, 27º e 28º da referida Lei).

O regime transitório previsto no art. 58º, nº 1, da Lei 6/2006 afasta-se da regra da sucessibilidade hereditária estabelecida quer na lei anterior (art. 112º do R.A.U.), quer na lei vigente (art. 1113º, nº 1 do C.C.), estabelecendo ao invés o princípio da não transmissibilidade do arrendamento por morte do arrendatário, com um ‘pronta excepção: a de existir um sucessor que «há mais de três anos, explore em comum, com o arrendatário primitivo, estabelecimento a funcionar no local»’[12].
Só quem tenha a qualidade de herdeiro e, cumulativamente, explore o estabelecimento, em comum, há mais de três anos, com o arrendatário primitivo, ingressará no direito de arrendamento do espaço arrendado – trata-se de exigência (nova em relação à lei anterior, e não requerida na lei actualmente vigente) com a qual se teve em vista o louvável propósito de ‘restringir a sucessão dos arrendamentos não habitacionais, mitigando de alguma forma a vetustez em que a maior parte deles caíram’[13] ou, dito de outro modo, de ‘acelerar a cessação dos arrendamentos comerciais e equiparados anteriores ao NRAU’, limitando os casos de transmissão por morte da posição do arrendatário[14].
O conceito normativo de ‘exploração em comum’ não se circunscreve a qualquer posição derivada de anterior locação do estabelecimento, consistindo antes numa ‘colaboração ou participação na actividade a que está afectado o estabelecimento, não envolvendo a titularidade dele’; basta uma participação efectiva, com o arrendatário, na exploração do estabelecimento[15].
Preenchem o conceito as situações em que o sucessor trabalhe no estabelecimento instalado no locado, ‘independentemente da natureza do vínculo que o liga a esse estabelecimento’[16]. Sendo o objectivo da norma permitir a continuação da actividade económica por parte de quem tenha aptidão e conhecimentos na área e seja sucessor do primitivo arrendatário, abrangem-se na sua previsão múltiplas situações, ‘incluindo a existência de um vínculo laboral entre o arrendatário e o seu sucessor’[17].
Seguro concluir que a lei não exige uma contitularidade do estabelecimento – aliás, como salienta Pinto Furtado[18], quem for contitular do estabelecimento já será co-arrendatário. Basta-se a lei com uma efectiva participação ou colaboração do sucessor com o arrendatário no exercício da actividade económica levada a cabo no estabelecimento.
No caso dos autos, face à matéria provada, impõe-se considerar que os réus B… e C…, sucessores do primitivo arrendatário (pois que seus filhos e habilitados sucessores), exploravam em comum com ele, há mais de três anos, relativamente à data do seu óbito, o estabelecimento comercial instalado no local arrendado.
Na verdade, resulta provado que desde 1990 os réus B… e C… vinham ajudando o seu pai, primitivo arrendatário, contratando com fornecedores de cafés, de bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade de café, cuidando e guardando o local, atendendo clientes do estabelecimento, servindo cafés e bebidas e confeccionando e servindo refeições e/ou petiscos.
Estes factos permitem afirmar que os referidos réus, sucessores do primitivo arrendatário, desde há mais de três (com referência à data da morte deste, em 2008) vinham colaborando e/ou participando na actividade comercial desenvolvida no estabelecimento instalado e a funcionar no local arrendado – participavam, activa e efectivamente, com o arrendatário, na exploração do estabelecimento.
Verifica-se assim terem os réus B… e C… provado factos integradores da excepção prevista no art. 58º, nº 1 da Lei 6/2006 ao princípio da não transmissibilidade do arrendamento por morte do arrendatário – exploravam, em comum com o arrendatário (e dele eram sucessores), desde há mais de três anos, com referência ao óbito deste, o estabelecimento a funcionar no local.
Importa agora, face às precedentes considerações, apreciar da relevância e consequências da falta ou omissão da comunicação exigida no nº 2 do art. 58º da Lei 6/2006.
Não desconhecemos que se defende que a referida comunicação constitui um requisito ‘formal’ para a transmissão do arrendamento, ou seja, que ‘a transmissão por morte da posição de arrendatário apenas se verifica quando o sucessor explore, há mais de 3 anos, em comum com o arrendatário primitivo, estabelecimento a funcionar o no locado e comunique, nos 3 meses posteriores à morte do arrendatário, a vontade de continuar a exploração’[19].
Não concordamos, salvo o devido respeito, com tal posição.
Em primeiro lugar, porque pensamos que o dever de comunicação não é estabelecido no nº 2 do art. 58º da Lei 6/2006 quer em atenção à regra da caducidade (em consequência da morte do arrendatário) dos arrendamentos não habitacionais pré-existentes ao NRAU, quer em respeito às razões justificadoras da excepção a tal regime regra. A intenção de restringir a sucessão dos arrendamentos (de acelerar a cessação dos arrendamentos comerciais e equiparados) anteriores ao NRAU é integralmente alcançada com a instituição da regra da caducidade; por sua vez, o propósito de permitir que o sucessor do arrendatário que com ele já vinha colaborando e participando na exploração do estabelecimento possa continuar tal exploração, justifica a excepção. À consecução destes objectivos e propósitos é alheio o instituído dever de comunicação estabelecido no nº 2 do mesmo artigo – este dever em nada contribui para alcançar os propósitos visados com a instituição da regra da caducidade do arrendamento ou com o estabelecimento da limitada e apertada excepção a tal regra.
Depois, porque se o legislador tivesse pretendido fazer depender a existência do direito do sucessor à transmissão do cumprimento do dever de comunicação estabelecido no nº 2 do art. 58º da Lei 6/2006 (além dos requisitos substantivos aludidos no nº 1), certamente não teria deixado de o expressar de forma clara, inequívoca e peremptória.
A regra, transitória, da não transmissibilidade do arrendamento não habitacional nos casos de morte do arrendatário constitui um corte com a regra pretérita e uma solução sem continuidade no regime actualmente vigente.
Na interpretação do preceito em causa tem de considerar-se que o legislador estava consciente de que a solução transitória encontrada se afastava da nossa tradição legislativa na matéria e que não tem continuidade no regime vigente, e que, por isso, regulou a hipótese com apurado cuidado.
Por isso entendemos dever qualificar-se a exigência prevista no nº 2 do art. 58º da Lei 6/2006 como um dever jurídico e não já como um ónus jurídico. São distintos os conceitos: enquanto o ónus se traduz na imposição jurídica de proceder de certo modo para conseguir uma vantagem própria ou, pelo menos, evitar uma desvantagem ou a perda de um direito, o dever jurídico consiste na necessidade, imposta pelo ordenamento jurídico, de observância de determinados comportamentos com vista a salvaguardar interesses alheios.
Tivesse o legislador pretendido fazer depender o direito à transmissão do arrendamento da referida comunicação, não se teria limitado a estabelecer um dever jurídico, antes teria instituído um ónus sobre o sucessor com direito à transmissão – teria, vistas as coisas, imposto (de forma clara, inequívoca e indiscutível) a comunicação em causa como forma de conseguir o direito à transmissão (como constitutiva do direito – co-causa da sua aquisição) ou, pelo menos, como modo de evitar a perda de tal direito à transmissão (como impeditiva da perda do direito).
Limitou-se, porém, o legislador a instituir, singelamente, um dever de comunicação.
Tal como é legalmente delineada, tal imposição não pode considerar-se como constitutiva do direito à transmissão – note-se que o dever instituído no nº 2 do preceito em análise se dirige ao sucessor com ‘direito à transmissão’, o que se pressupõe que tal imposição só existe em relação a quem já for titular, na sua esfera jurídica, do referido direito (e por isso temos por segura a conclusão de que os factos constitutivos do direito em questão são exclusivamente os estabelecidos no nº 1 do normativo).
Depois, ponderando o silêncio da lei quanto às consequências do seu incumprimento, não pode considerar-se que só com tal comunicação o titular (o sucessor) impeça a perda do direito à transmissão – reconhecendo ao sucessor o direito à transmissão nas situações previstas no nº 1 do preceito, não teria o legislador deixado de cominar, expressa e explicitamente, a falta de comunicação prevista no nº 2 com a extinção do direito, caso essa tivesse sido a sua intenção.
Concluímos, assim, que o não cumprimento da comunicação exigida no nº 2 do art. 58º da Lei 6/2006 não constitui requisito legal do direito à transmissão nem é motivo para extinção de tal direito à transmissão.

Do exposto resulta dever reconhecer-se aos apelantes o direito à transmissão do direito ao arrendamento, o que implica concluir pela improcedência do pedido de declaração de caducidade formulado pela apelada e também, como consequência, pela improcedência do pedido indemnizatório – este fundava-se na ocupação indevida do imóvel, o que deve ser arredado, pois que tais réus ocupam o imóvel em razão de se lhes ter transmitido, nos termos do art. 58º, nº 1 da Lei 6/2006, o direito ao arrendamento, e por isso, subsistindo o arrendamento, mantêm eles o direito ao gozo da ‘res’ objecto do contrato.
Apurada a improcedência do pedido indemnizatório, fica prejudicada (arts. 713º, nº 2 e 660º, nº 2 do C.P.C.) a apreciação da questão suscitada pelos apelantes quanto ao montante da indemnização arbitrada.

Sintetizando os argumentos, em jeito de sumário:
I- O relacionamento contratual a valorizar, atentos os desenvolvimentos que ao longo da sua vigência lhe foram sendo inseridos pelas partes contratantes, consubstancia-se num único contrato de arrendamento, com destino ao exercício do comércio e à habitação – um declaratário normalmente diligente, sagaz e inteligente, colocado na posição do real declaratário, deduziria do declarado na transacção a que se refere o facto provado com o número 8º, que os contratantes se reconheciam reciprocamente vinculados por um único e uno contrato de arrendamento, para habitação e comércio.
II- Da factualidade envolvente do relacionamento contratual conclui-se: i) que não foi em vista de satisfazer as necessidades habitacionais do agregado familiar do arrendatário que foi negociada a finalidade habitacional do arrendamento, e ii) que a função habitacional estava preordenada ao exercício da actividade comercial.
III- Do referido circunstancialismo conclui-se pela prevalência da finalidade comercial sobre a finalidade habitacional, e pela subordinação desta àquela – o que implica que o contrato seja regulado pelo regime do arrendamento comercial (arrendamento não habitacional).
IV- Provado que os réus apelantes B… e C…, desde o ano de 1990, vinham ajudando o seu pai, primitivo arrendatário, contratando com fornecedores de cafés, de bebidas, géneros alimentares e produtos, bens ou serviços afins necessários para a actividade de café, cuidando e guardando o local, atendendo clientes do estabelecimento, servindo cafés e bebidas e confeccionando e servindo refeições e/ou petiscos, deve concluir-se terem eles provado os factos integradores da excepção prevista no nº 1 do art. 58º da Lei 6/2006 ao princípio da não transmissibilidade do arrendamento por morte do arrendatário – a exploração, em comum com o arrendatário, há mais de 3 anos, de estabelecimento a funcionar no local arrendado, pois que integram o conceito de ‘exploração comum’ as situações em que o sucessor colabora e/ou participa, activa e efectivamente, com o arrendatário, na actividade comercial desenvolvida no estabelecimento.
V- O não cumprimento da comunicação exigida no nº 2 do art. 58º da Lei 6/2006 não constitui requisito legal do direito à transmissão nem é motivo para extinção de tal direito à transmissão.
*
DECISÃO
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, absolvendo os réus dos pedidos formulados (salvo quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre o imóvel em causa – nessa parte a decisão não foi impugnada).
Custas (da acção e da apelação) pela apelada.
*
Porto, 12/06/2012
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Maria de Jesus Pereira
Henrique Luís de Brito Araújo
________________
[1] Reproduz-se o teor do documento junto com a petição inicial (documento não impugnado).
[2] A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 406 e 407.
[3] Autores e obra citados na nota anterior, pp. 408 e 409.
[4] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, p. 195 e 196.
[5] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 196.
[6] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 1982, p. 270.
[7] Obra citada, p. 269.
[8] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286; Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); Acs. do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
[9] A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
[10] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 191.
[11] Ac. R. Coimbra de 17/11/1992, in CJ, Ano XVII, tomo V, p. 54.
[12] Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, Volume II, 4ª edição, pp. 626/627.
[13] Autor e obra citados na nota anterior, p. 627.
[14] Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, Quid Juris, 2ª reimpressão, pp. 264/265.
[15] Pinto Furtado, obra citada, p. 627/628.
[16] Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 1ª edição, p. 123.
[17] Maria Olinda Garcia, Arrendamentos para comércio, 2006, p. 74.
[18] Obra citada, p. 627, nota 35.
[19] Assim, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, obra e local citados, citando também, no mesmo sentido, Cunha de Sá e Leonor Coutinho, Arrendamento Urbano, 2006, p. 205.