Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3784/09.7TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
REPRESENTAÇÃO DA HERANÇA
ILEGITIMIDADE
CASO JULGADO
BASE INSTRUTÓRIA
PROVA DOCUMENTAL
INTERPRETAÇÃO
PRAZO DE CUMPRIMENTO
TRANSMISSÃO POR MORTE
Nº do Documento: RP201401093784/09.7TBVCD.P1
Data do Acordão: 01/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A acção destinada a obter a execução específica de uma promessa de compra e venda celebrada em vida pelo de cujus (promitente-comprador) e um filho (promitente-vendedor) pode ser instaurada pelos demais herdeiros contra o herdeiro promitente, independentemente da autorização deste e sem a necessidade ou possibilidade de este intervir conjuntamente com os demais herdeiros do lado activo da lide.
II - Tendo-se declarado no contrato-promessa que o preço ficava quase totalmente pago, com excepção apenas de um valor insignificante, pode entender-se que a acção se integra ainda no conceito de administração ordinária podendo ser instaurada apenas pelo cabeça de casal.
III - À herança já aceite mas ainda indivisa são aplicáveis as disposições das sociedades civis, pelo que as decisões do conjunto dos herdeiros são tomadas por maioria formada não em resultado do número de herdeiros mas das respectivas participações na herança.
IV - Aplica-se ainda por analogia o regime jurídico das pessoas colectivas, designadamente o artigo 176.º do CC por virtude do qual o herdeiro que é simultaneamente promitente incumpridor não pode participar na decisão da herança de o accionar para obter o cumprimento da promessa.
V - Não existe excepção de caso julgado entre uma acção de reivindicação em que a defesa invoca o contrato-promessa apenas para sustentar que tem a posse do bem e isso impede a restituição deste ao seu proprietário e uma acção de execução específica do contrato-promessa instaurada pelo promitente-comprador que decaiu naquela defesa na anterior acção.
VI - Mantém-se inteiramente válido o entendimento de que a condensação da matéria de facto constitui somente uma selecção da matéria alegada em função das soluções plausíveis de direito, que não é definitiva e tem natureza puramente instrumental em relação aos fins do processo, pelo que não forma caso julgado.
VII - O documento particular cuja autoria for reconhecida faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor e dos factos compreendidos na declaração que forem contrários aos interesses do declarante, salvo se for arguida e demonstrada a falsidade do documento.
VIII - Deve ser considerada não escrita a resposta do tribunal sobre matéria de facto que se encontrava plenamente provada por documento particular reconhecido e cuja falsidade não foi sequer arguida.
IX - As partes podem não fixar o prazo para o cumprimento da obrigação, fixá-lo por referência a um acontecimento futuro e externo ao contrato, ou remeter a sua fixação para qualquer delas, sem que o vínculo jurídico à obrigação seja, por isso, menor ou fique afastado.
X - A cláusula do contrato-promessa segundo a qual o contrato prometido será celebrado quando o promitente-comprador o deseje só aparentemente é uma cláusula cum voluerit a favor do credor, uma vez que a natureza jurídica do contrato-promessa e a sua qualidade de fonte específica de obrigações em sentido técnico não é compatível com cláusulas que permitam a um dos contraentes, arbitrariamente, libertar-se das consequências do não cumprimento da promessa.
XI - A posição de promitente-comprador de um imóvel num contrato-promessa celebrado em vida pelo de cujus e no qual se declarou paga a quase totalidade do preço integra a herança aberta por óbito daquele.
XII - A circunstância de após a celebração da promessa o promitente-comprador ter passado a dispor do bem objecto desta como sua habitação impede que o contrato-promessa possa ser interpretado, na falta de disposição contratual expressa, como contrato intuitu personae.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 3784/09.7TBVCD.P1 [Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, residente em Guimarães, instaurou no Tribunal Judicial de Vila do Conde acção judicial contra C…, residente em Guimarães, pedindo a condenação do réu no seguinte:
A) Seja declarado o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo R. promitente vendedor por facto só a si imputável e tal falta deste suprida mediante sentença, nos termos do artigo 830º do Código Civil que efective o contrato prometido, onde o R. seja condenado a ver transferida para a herança aberta por óbito do marido da A. a plena propriedade da fracção “AL” supra identificada, devendo ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso,
b) ou, subsidiariamente, se tal não for possível, ser o R. condenado nos termos do nº 2 do art. 442º do CC no pagamento da quantia pecuniária referente à diferença entre o preço fixado no contrato promessa e o actual valor do prédio, acrescido da quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento a liquidar em execução de sentença mas nunca inferior a Eur 249.995,01€;
c) Seja declarado que desde Junho de 1997 o casal formado pela A. e seu falecido marido tem a casa de férias (dormem, descansam, fazem as refeições, convivem com amigos, recebem a correspondência, etc) na fracção referida e pagam as quotas mensais do condomínio exercendo assim, sobre tais fracções e desde aquela data uma posse pública, pacífica, continuada e de boa fé, na convicção segura de que são os únicos e exclusivos possuidores desde a data referida e simultaneamente de que sobre o dito imóvel têm o “animus” de virem a tornar-se proprietários.
d) Seja o R. condenado a reconhecer que a A. goza do direito de retenção sobre a fracção "AL” identificada no item 3 deste articulado.
Para o efeito, alegou, em resumo, que é cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu marido, D…, sendo ao mesmo tempo meeira e herdeira do património que constitui a herança deste. Por contrato promessa celebrado em 30.06.1997 o réu prometeu vender ao marido da autora, que o prometeu comprar, um prédio urbano, tendo a quase totalidade do preço (€37.404,85) sido pago no momento da celebração do contrato, ficando apenas por pagar a quantia de €4,98, o que seria feito no momento da escritura de compra e venda, a realizar logo que o promitente comprador o pretendesse. Ainda antes da formalização daquele contrato promessa, as chaves do prédio foram entregues à autora e seu marido, os quais, desde então, se encontram na posse do mesmo, aí tendo mantido a sua casa de férias e dela usufruindo de forma pacífica, pública, de boa fé e continuada. A autora, na qualidade de cabeça de casal, exigiu o cumprimento do contrato promessa, tendo notificado judicialmente o réu para comparecer na data e local designados para a realização da escritura pública de compra e venda, tendo este recusado outorgar a escritura. Face a tal recusa, pretende a autora que o tribunal emita em substituição do réu a declaração negocial em falta. Caso tal não seja possível, pede a diferença entre o preço acordado e o valor actual da fracção, acrescida da quantia entregue a título de sinal, alegando que o prédio tem actualmente o valor de €250.000,00.
A acção foi contestada, pugnando-se pela improcedência total do pedido, mediante a alegação de que se verifica a excepção de caso julgado formado pela decisão final da acção com o n.º 3663/05.7TBVCD, na qual o aqui réu pediu a condenação da ora autora a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio e a consequente restituição do mesmo, acção na qual a ora autora deduziu contestação dizendo ter sido ela própria quem emprestou ao autor o dinheiro necessário à compra do prédio, o que terá estado na origem do contrato-promessa ora invocado, sendo que essa acção foi julgada procedente, declarando-se o aqui réu proprietário do prédio e condenando-se a aqui autora a reconhecer esse direito e a devolver o prédio. Mais arguiu a ilegitimidade da autora e impugnou ainda o alegado na petição inicial, dizendo que o contrato-promessa foi celebrado apenas como forma de antecipação das partilhas dos bens do casal com os filhos e que tal contrato visava apenas garantir a possibilidade de fazer reverter tal transmissão do prédio durante a vida do falecido marido da autora, nunca tendo sido por si recebida qualquer quantia a título de sinal nem se tendo comprometido perante a autora e seu marido a transmitir a propriedade do imóvel.
Foi proferido despacho de convite à autora para reformular a petição, alterar o pedido e provocar a intervenção principal da co-herdeira E…, convite que a autora aceitou reformulando a petição inicial e o pedido, cuja redacção final é já aquela a que acima já se faz referência, e chamando à acção a co-herdeira, a qual foi citada e limitou-se a juntar procuração aos autos.
Depois foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade e parcialmente procedente a excepção de caso julgado, tendo o réu sido absolvido da instância quanto ao pedido de condenação a reconhecer ser a autora possuidora do prédio – supra alínea c) – absolvido do pedido relativo ao direito de retenção – supra alínea d) –.
No tocante aos pedidos que restava decidir – supra alíneas a) e b) – a acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença julgando a acção: “… parcialmente procedente por provada e, consequentemente:
a) declaro incumprido pelo réu (…) o contrato promessa celebrado entre si e D… em 30 de Junho de 1997;
b) em substituição do réu (…), e em execução específica do contrato-promessa celebrado em 30 de Junho de 1997, declaro vendida à herança aberta por óbito de D… a fracção autónoma AL (…) descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º 01894/19931125 - Vila do Conde, inscrita na matriz urbana respectiva sob o artigo 6888 AL, pelo preço de (…) 37.409,84€, que deverá ser entregue ao réu (…).”
Do assim decidido, interpuseram recurso de apelação ambas as partes.

As alegações do recurso do réu terminam com as seguintes conclusões:
1ª- Na precedente acção a que os autos se referem (… proc. n.º 3663/05.7TBVCD, do 3º Juízo Cível deste tribunal), tramitada entre as mesmas partes da presente, o aí Autor – aqui R. – reivindicou a propriedade de uma fracção autónoma sita na cidade de Vila do Conde, tendo a aí R., ora A., contestado com o argumento de que tal fracção pertencia à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido, que ela representava e que, de qualquer modo, era legitimamente usufruída pela ora A., uma vez que o R. celebrara com o A. da referida herança um contrato-promessa de venda dessa fracção, tendo recebido a quase totalidade do preço, e não cumprira o contrato.
2ª- Nessa anterior acção, foi produzida decisão transitada em julgado que julgou procedente o pedido de entrega da fracção e recusou à A., na invocada qualidade de cabeça-de-casal da herança, quaisquer direitos emergentes do referido contrato-promessa, porque com esse contrato o pai do aí A., aqui R., apenas visou “garantir a possibilidade de no futuro dispor em seu benefício do imóvel, fazendo-o regressar ao seu património”.
3ª – Na presente acção, a aqui A. “ressuscita” o referido contrato-promessa, exigindo o seu cumprimento para a herança, nos termos do art. 830º, n.º 1 do Código Civil, tendo obtido sentença – de que se recorre – que julgou procedente o pedido.
4ª – Na contestação desta acção, o aqui recorrente alegou, o que agora reitera, que mercê da anterior decisão ocorria caso julgado impeditivo de repronúncia do tribunal sobre a questão, porquanto o caso julgado abrange o que foi objecto de controvérsia, mas também tudo aquilo que as partes tinham o ónus de trazer à colação, na precedente acção, nomeadamente todos os meios de defesa possíveis, devendo, a A., no caso, ter deduzido na 1ª acção, ainda que incidentalmente, e para a hipótese de a sua tese improceder, reconvenção pedindo aí a transmissão da fracção nos termos agora requeridos.
5ª – Em sede de despacho saneador foi essa excepção julgada improcedente nessa parte sem que aí fosse encarada sequer a questão do efeito impositivo do caso julgado, com o que o recorrente se não conforma.
6ª – Com efeito, erradamente, se decidiu já que o caso julgado não apenas “preclude todos os meios de defesa” (Manuel de Andrade, apud J. A. dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 174) como, na sua extensão, abarca “todo o objecto da causa” (Ac. STJ de 24/11/77 in BMJ 271, 172).
7ª – Como vem sendo decidido, aliás, são abrangidos pela força do caso julgado os factos que estão “coenvolvidos na pretensão do autor e cuja verificação é necessária, mas não suficiente para a procedência da mesma”, única solução compatível com a “economia processual, o prestígio das instituições judiciárias e a estabilidade e certeza das relações jurídicas” (cfr. Ac. STJ de 10/07/97 in Col. Jurisp. STJ V, II, 165).
8ª – É que, “estando o Réu obrigado a deduzir toda a sua defesa (…) na contestação, de tal princípio da preclusão, conjugado com o princípio da preclusão da sentença e da extensão e da força do caso julgado resulta que aquele mesmo Réu não pode propor uma acção, repondo os mesmos factos e argumentos (…) nem invocar novos factos nem novos fundamentos que pudesse, devesse, tivesse a obrigação de deduzir “aquando da contestação”” (cfr. acórdão da Relação do Porto de 02/04/98 in www.dgsi.pt).
9ª – Assim, o despacho saneador recorrido violou manifestamente o direito, designadamente o estatuído pelos artigos 497º, 498º e 673º, do Código de Processo Civil, pelo que não pode manter-se.
10ª – Sem prescindir, a A. formula agora de novo o pedido de à herança aberta por óbito de seu marido (herança representada por ela e 2 filhos um dos quais o Réu) ser reconhecido o direito de, nos termos do artº. 830º nº 1 do Código Civil, adquirir a referida fracção autónoma pertencente ao Réu, ou seja, a um dos herdeiros que não está representado do lado activo, surgindo na acção, por força do incidente de intervenção principal provocada, apenas acompanhada de outro dos seus filhos, pretendendo, no entanto, alegar, ainda assim, representar a herança e que esta pode por essa forma exercer os seus direitos.
11ª- Porém, a herança salvo se jacente, mesmo ao demandar um herdeiro, só pode estar representada se o for por todos os herdeiros (e no caso não está), devendo a decisão de demandar um herdeiro ser tomada em reunião colegial, pelo que a A. no caso, não provocou os mecanismos necessários para assegurar a representação da herança, não podendo assim, em nome dela demandar o Réu (cfr. os artigos 2046º do Código Civil, o artº 6º al. c) do C. P. Civil e os artigos 1404º, 1407º e 985º do Código Civil), o que acarreta não apenas a ilegitimidade não suprida da A. como a falta de personalidade judiciária da herança.
12ª- Sem prescindir, a sentença recorrida julgou a acção procedente, por enquadrada nos pressupostos do art. 830º, n.º 1 do Código Civil (obrigação de celebrar um contrato e não cumprimento da promessa, sem que ao pedido se oponha a natureza da obrigação assumida, tendo o R. recusado a celebração da escritura definitiva), não o podendo fazer porque do probatório resultou que “ao outorgar o contrato-promessa (…) o marido da A. pretendeu assegurar a possibilidade de, querendo, e podendo, fazer reverter para si a transmissão do prédio, o que era do conhecimento do R.” (facto G)) e que, por isso, “o R. não recebeu de seu pai qualquer importância, nem este queria pagar-lha” (facto I)), factos estes que bastavam para excluir a possibilidade de aplicação do n.,º 1 do art. 830º do Código Civil, só compatível com um contrato em que existisse uma pura e simples vontade de vender e de comprar e um puro e simples propósito de pagar e receber um preço.
13ª – O R., de facto, contestara a acção alegando, entre o mais, que o referido contrato promessa de compra e venda, celebrado entre ele e seu pai, não visava uma efectiva promessa de compra e venda, tanto assim que não fora pago ou recebido qualquer preço, mas, porque seu pai desse modo antecipava as partilhas dos bens do casal com os filhos, utilizando aquele contrato promessa - e igual expediente em relação a todo o património imobiliário que adquiriu como garantia de, se mais tarde o entendesse necessário, poder fazer reverter a transmissão para si e enquanto fosse vivo, se tivesse futura necessidade de vender o prédio, que, na verdade, fora adquirido pelo Réu com dinheiro do pai.
14ª – O descrito circunstancialismo é quanto basta para o R. poder afirmar, como afirmou, para explicar a não subscrição da escritura de venda, que nesta nem a herança estava devidamente representada, nem o negócio previsto correspondia ao que fora acordado entre as partes, assim legitimando a recusa da outorga da escritura, o que igualmente exclui a aplicação do art. 830º, n.º 1, só possível se ocorresse imotivada recusa de outorga da escritura.
15ª – Por outro lado, e sem prescindir, assente como está, que a A. notificou o R. para comparecer num notário e celebrar a escritura de venda correspondente ao referido contrato promessa, e aí declarou que o preço devido foi pago “com dinheiro da herança” (isto é com dinheiro existente após o óbito de seu marido) é claro que tinha de se ter por provado - por confissão - que o autor da herança nada pagara em sua vida e, por outro lado, manifesto é ainda que não podia ser exigido ao Réu que subscrevesse tal escritura, por total incumprimento do promitente comprador, já que essas afirmações eram falsas, não tendo ele recebido antes nem depois do óbito do pai, qualquer valor.
16ª – Ainda sem prescindir, demonstrado como está que o autor da sucessão nunca manifestou em vida qualquer propósito de exigir ao Réu o cumprimento do contrato, não se vê como a Autora, cabeça-de-casal da herança aberta por seu óbito, pretende representá-lo no exercício de um pretenso direito que ele nunca quis exercer, e que a herança nunca resolveu exercer.
17ª – O facto referido na conclusão precedente, conjugado ainda com os factos igualmente provados de, nos termos do mesmo contrato, o R. ter prometido vender o imóvel nele referido “ao seu pai, ou à pessoa ou pessoas que este vier a indicar”, e com a matéria respondida nos factos G) e I) (que o autor da herança quis reservar para si “ a possibilidade de, querendo, e podendo, fazer reverter a transmissão do prédio, do qual não pagou qualquer importância, nem jamais quis pagar”), demonstram que a dita obrigação, porque tinha esse conteúdo, não era transmissível a outrem, mesmo à herança ilíquida e indivisa aberta por seu óbito, já que estamos no domínio de obrigações e reservas de carácter eminentemente pessoal, rigorosamente intuitu personae, sem carácter patrimonial, pois nela não se encontram envolvidos quaisquer interesses dessa ordem que à herança incumbisse preservar ou reivindicar.
18ª – Acresce ainda quanto à natureza das obrigações recíprocas referidas na conclusão precedente que importa considerar que dos factos provados resulta que as obrigações assumidas através do contrato-promessa, quer pelo R., quer por seu pai, o autor da herança tinham carácter pessoalíssimo entre ambos, (arts. 2024º e 2025º do Código Civil), pelo que só é concebível a transmissibilidade para a herança dos correspondentes direitos e deveres se for configurável “uma relação de verdadeira identidade entre as relações anteriormente encabeçadas na pessoa falecida e aquelas de que passa a ser titular o seu sucessor” só se admitindo a transmissão de direitos desde que a sua identidade se não alterar “pela simples circunstância de mudarem de titular” (cfr. Pires de Lima, A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, reimpressão, pág. 1 e seguintes).
19ª – São consideradas obrigações intuitu personae, e por isso, intransmissíveis por morte, aquelas que são assumidas em negócios realizados em atenção às qualidades pessoais de um dos sujeitos, como no caso sucede, uma vez que se tratam de relações entre pai e filho, que ambos cumpririam, mesmo sem pagamento de qualquer preço, no âmbito do contrato celebrado.
20ª – De resto, a competência do cabeça-de-casal para a cobrança de dívidas activas da herança está estritamente limitada nos termos do art. 2089º do Código Civil: o cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança, apenas quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente. (cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 04/07/1975, in BMJ, 251-200 e Oliveira Ascensão, Sucessões, 1980, 452).
Termos em que (…) deve ser revogado o despacho saneador, na parte em que julgou inverificada a excepção do caso julgado, e, bem assim, a sentença recorrida, e a acção ser julgada improcedente por não provada por manifesta falta de fundamento (…).

A autora respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado, apresentando as seguintes conclusões:
“I- (…) II- O Réu/Recorrente na sua Contestação invocou a excepção do caso julgado formado na acção de revindicação junta aos autos de fls. 106, o que insiste no presente recurso. Tal acção correu termos sob o n.º 3663/05.7TBVCD, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde, na qual pedia o Autor aqui Réu C… que a Réu aqui A. B… fosse condenada a reconhecer a propriedade da fracção autónoma “AL” e a restituir essa fracção ao Autor livre e devoluta de pessoas e bens.
III- Nessa acção foi proferida sentença que reconheceu o A. como proprietário da fracção, mas absolveu a Ré do pedido de restituição, por se entender que ela tinha a posse do imóvel por via do acordo autónomo e paralelo ao contrato-promessa, pelo qual o A. transferira para o seu pai promitente-comprador e para a aí Ré sua mãe a posse da fracção. Em sede de recurso para este Tribunal da Relação do Porto, alterou-se a decisão sobre a matéria de facto, sendo que, o que aí ficou provado - que desde o ano da celebração do contrato promessa, em 1997, o pai do Autor e Ré permaneceram na fracção, nela instalando e mantendo a casa de morada de família - não foi para este Tribunal suficiente, para se concluir que a aí Ré logrou provar factos constitutivos da sua posse ou detenção legitimada e duradoura oponível ao reconhecido direito de propriedade do aí Autor.
IV- Ora, a aqui Recorrida nos presentes autos, na Réplica logo pugnou que fosse imediatamente julgada improcedente tal excepção do caso julgado, pelos fundamentos aí melhor aduzidos e que se reitera, tendo o Tribunal “a quo”, no despacho saneador, julgado parcialmente procedente a mesma, no sentido de verificar apenas e só quanto ao pedido formulado na alínea b)- relativo à posse do imóvel por parte do casal constituído pela A. e o seu falecido marido absolvendo em consequência o Réu de tal pedido. Mas quanto aos restantes pedidos formulados na alínea a), em tal despacho a 1ª instância foi peremptória e determinada em julgar improcedente tal excepção do caso julgado.
V-E, tal é a liquidez e transparência da argumentação fáctica e jurídica expandida nesse despacho, que aqui Apelada dá o mesmo por integralmente reproduzido, pois ao contrário do que refere o Recorrente, o mesmo não merece qualquer censura, revelando elevado esforço crítico, na apreciação da excepção do caso julgado, quer na sua função negativa quer na sua função positiva, julgando a não verificação de tal excepção, nos termos supra referidos.
VI- Assim, não há qualquer dúvida que atenta as pretensões deduzidas na precedente acção, estamos aí perante uma acção de reivindicação que como decorre do artigo 1311º do Código Civil a mesma comporta dois pedidos concomitantes e cumulativos: em primeiro lugar, e desde logo, um pedido de reconhecimento do direito real por parte daquele que possui ou detém a coisa; em segundo lugar a, o pedido da entrega da coisa objecto daquele direito. Ora, nesses autos, quanto ao primeiro pedido, demonstrado que ficou o registo de propriedade da referida fracção a favor do autor, o mesmo beneficiou da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre a mesma, presunção essa que não foi afastada pela Ré.
VII- E, para obstar ao segundo pedido “restituição”, a aí Ré, alegou que em 30/06/1997 o autor assumiu para com o seu pai a promessa de lhe vender essa mesma fracção, pelo preço global de 7.500.000$00, tendo dele recebido por compensação das quantias que, para a compra, ela e o pai lhe tinham adiantado, a quantia de 7.499.000$00, sendo que é nessa qualidade que o casal, sempre estiveram desde 1997 na posse e uso do imóvel, na qual instalaram e sempre mantiveram a sua casa de férias, tratando-o como exclusivamente sua, nela fazendo obras que entendessem, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, designadamente do autor, situação que se manteve, após o falecimento do pai do autor, agora na qualidade de cabeça-de-casal.
VIII- Assim, a questão essencial a dirimir nessa acção, foi se a aí Ré tinha a posse do imóvel que lhe permitisse evitar a restituição do mesmo. A primeira instância reconheceu a legitimidade da posse da aí Ré sobre a fracção, contudo, o Tribunal da Relação, com alteração à matéria de facto, entendeu que, o que ficou provado não foi suficiente para se concluir que a Ré tivesse uma posse ou detenção legitimada e duradoura oponível ao reconhecido direito de propriedade do aí Autor e que lhe permitisse negar a restituição da fracção.
IX- Ora, sem qualquer dúvida a aí Ré invocou na sua defesa, para obstar à restituição do imóvel, entre outros factos, a realização do contrato promessa de compra e venda, dos quais resultaria que a mesma tinha a posse do imóvel que lhe legitimasse tal recusa. E, foi nessa perspectiva que tal contrato, conjugado com toda a factualidade invocada, nomeadamente da entrada imediata do casal na posse da fracção, foi ajuizado nesses autos, ou seja, se a aí Ré deveria ser considerada como verdadeira e própria possuidora da fracção. Questão essa da posse do imóvel que, foi aí decidida, já transitada em julgado.
X- Pelo que, é completamente falso o vertido pelo Recorrente nas suas conclusões de que essa decisão transitada em julgado, recusou à Autora quaisquer direitos emergentes do referido contrato. Ora, continua o Ré/Recorrente a deturpar o que verdadeiramente aí foi decidido, ou seja, que, do mesmo e da restante factualidade, não resultaram provados factos constitutivos dessa verdadeira posse por parte da aí Ré que lhe permitisse evitar a restituição do imóvel. E, nada mais aí é apreciado quanto ao contrato-promessa de compra e venda, muito menos a sua validade e eficácia como agora defende o Réu.
XI- Pelo que, a aqui Autora, herdeira e cabeça de casal do promitente-comprador, em face do incumprimento por parte do promitente vendedor, que notificado judicialmente do dia e hora para a celebração da escritura, não obstante ter comparecido se recusou a celebrá-la (o que ocorreu já depois da acção anterior) veio intentar a presente acção pedindo que seja suprida tal falta mediante sentença, nos termos do artigo 830º do Código Civil, que efective o contrato prometido.
XII- Assim, resulta evidente que nestas duas acções, ainda que se entenda que existe identidade de sujeitos, NÃO HÁ IDENTIDADE DE PEDIDOS NEM DE CAUSA DE PEDIR. Os pedidos são totalmente distintos, com acções de diferente natureza - n.º 3 do artigo 581º do Novo Código de Processo Civil - (corresponde ao artigo 498º do anterior C.P.C): - Na acção precedente, temos uma acção de natureza real, a de reivindicação, com os pedidos de reconhecimento do direito de propriedade sobre uma certa coisa e consequente restituição dela (art. 1311.º CC); - nos presentes autos uma acção de natureza obrigacional a emergente de contrato promessa, seja a execução específica ou a indemnização pelo aumento de valor, tudo previsto no n.º 2 do art. 442.º do CC.
XIII- E, Diferentes são, como não podia deixar de ser, as causas de pedir - n.º 4 do artigo 581º do Novo Código de Processo Civil - (corresponde ao artigo 498º do anterior C.P.C):- na acção precedente, os factos constitutivos do direito real que se invoca; - nos presentes autos, acção baseada em contrato, cujo núcleo essencial da causa de pedir é constituído pela celebração de certo contrato e a sua violação.
XIV- Não ocorre, pois, caso julgado entre a acção já definitivamente julgada e esta em curso. Veja-se a este propósito o que decidiu o Acórdão do STJ de 4.3.2008, no P.º 08A272, em situação idêntica à dos presentes autos «Na 1ª acção (de reivindicação) a causa de pedir foi o alegado direito real da Autora – art. 1311º do Código Civil – que invocou a sua qualidade de dona do imóvel e a ocupação abusiva do ora Autor. O pedido foi o da restituição. Na acção que originou este recurso, a causa de pedir é o incumprimento do contrato - promessa e o pedido principal a sua execução específica, visando a prolação de sentença que supra a declaração negocial, com vista à celebração do contrato prometido de compra e venda, (…). Tendo procedido a acção de reivindicação, o caso julgado que aí se formou, por ser diversa a causa de pedir de agora e o pedido, não abrange a pretensão exercida na acção 132/2002, que originou o recurso em apreciação.»
XV- E, ao contrário do que refere o Recorrente, de que o Tribunal “a quo” não atendeu à questão da “autoridade do caso julgado”, o mesmo não só atendeu, como apreciou e julgou o mesmo inexistente.
XVI- “Pois o caso julgado da decisão também possui um valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada". Excluída está, desde logo, a situação contraditória (...) como, além disso, "está igualmente afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada" MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, obra citada, p. 579.» Em suma, “o caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada, exigindo-se que os Tribunais respeitem ou acatem a decisão, não a julgando de novo.”.
XVII- E, ainda se dirá, quanto à prova de uns factos numa e noutra acção «A problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente». (Nestes sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.3.2010, no Processo 690/09.9.YFLSB.)
XVIII- Mas, ainda quanto à questão do caso julgado na sua função positiva, a chamada força ou autoridade reflexa do caso julgado também pressupõe, tal como a excepção do caso julgado, a tríplice identidade prevista no artigo 498.º do Código de Processo Civil. Pois como ensinava o Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pp. 92/93, que não é possível criar duas figuras distintas – o caso julgado excepção e a autoridade do caso julgado –, pelo que está errado quem entenda que “o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art. 502º. (…) «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».
XIX- E, sem prescindir, ainda que se entenda que autoridade do caso julgado poderá funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, o mesmo pressupõe que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida, ou seja, proíbe-se a contradição da decisão transitada.
XX- Donde, quanto à matéria constante do pedido formulado em a) da presente acção, não verifica de todo tal excepção, nem na sua função negativa, nem na sua função positiva, como douta e subidamente foi decidido pelo Tribunal “a quo” no despacho saneador, o qual se deverá manter.
XXI- Pois, quanto a esta segunda função, da “autoridade do caso julgado”, o direito de propriedade que foi reconhecido ao aí A. na pretérita acção não foi discutido nem contrariado nos presentes autos, bem pelo contrário, reconhecido esse direito, o aqui Réu foi demandado na qualidade de promitente vendedor e proprietário da fracção, face ao incumprimento por parte deste do aludido contrato promessa, pedindo-se que o Tribunal se substituta ao faltoso, emitindo a declaração negocial em falta nos termos do artigo 830, n.º 1 do Código Civil.
XXII- Também, pretende o Apelante inviabilizar os presentes autos com recurso ao expediente da falta de personalidade judiciária da herança. O Recorrente insiste em confundir a personalidade judiciária das partes e a sua legitimidade. Pois, no caso decidendo quem intentou a acção, não foi a dita herança já aceite e ainda não partilhada, mas a Autora, por si como herdeira do seu falecido marido e à qual se juntou a Interveniente, cuja legitimidade decorre do facto de ser também herdeira do autor da herança, as quais como é óbvio têm personalidade judiciária que decorre da sua personalidade jurídica (Artigo 11º do Novo Código de Processo Civil que corresponde ao artigo 5º, n.º 2 do anterior C.P.C).
XXIII- Na verdade o Réu para atingir o seu objectivo, subverte o que está aqui em causa para chegar à conclusão que os herdeiros estão inibidos de fazer valer os seus direitos na herança. Aliás, a aceitar-se o peregrino entendimento que o Réu/Recorrente faz do artigo 2091º do Código Civil, estaria encontrado o caminho para impedir um herdeiro de accionar quaisquer outros que atentassem ao património da herança.
XXIV- Assim, com a Intervenção da Herdeira E…, estão na acção todos os herdeiros que, como da habilitação herdeiros documentada a fls., se vê são a viúva, o filho C…, ora Réu e a interveniente filha E…. Cumprido está o disposto no artigo 2091º do Código Civil, podendo todos os herdeiros discutir os direitos emergentes do contrato promessa, cujos direitos do promitente-comprador se transmitiram para os sucessores, nos termos do artigo 412º do Código Civil.
XXV- Se fosse como quer o Réu/Recorrente, jamais a herança podia fazer cumprir um contrato em que fosse parte ou interessado um herdeiro, para tal bastando que esse contra-herdeiro não quisesse intervir na acção, assim se frustrando os direitos dos demais herdeiros.
XXVI- Ora, como refere o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/03/2010, proferido no 121/08.01 TBANS.C1, no caso, “(…) Ocorrendo a intervenção do co-herdeiro como R. está assegurada, por um lado a participação no processo desse interessado na relação material controvertida,…conforme exige o n.º 1 do artigo 28 do C.P.C.. da mesma forma, por outro lado a decisão a proferir produz, relativamente ao co-herdeiro destinatário da pretensão….(na qualidade de R.) o seu efeito útil normal (n.º 2 do artigo 28º C.P.C.)”. (Neste sentido também veja-se o acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, 13/06/2013 proferido no processo n.º 360/09.8 TCGMR.G1, 1ª Secção Cível, no qual se discute também a execução especifica de um outro contrato-promessa realizado nas mesmas circunstâncias da dos presentes, entre o falecido marido da Autora e a sua filha, aqui Interveniente).
XXVII- Pelo que, a primeira instância já se pronunciou e bem sobre esta questão no douto despacho saneador, o qual não merece qualquer censura, decisão essa que se deve manter, face à completa inexistência de tais excepções, gozando as partes de plena personalidade judiciária e legitimidade.
XXVIII- Mais, o Recorrente, critica e analisa as respostas aos quesitos dada pelo Tribunal “a quo”, referindo que a decisão se esqueceu de certos documentos, impugnando a interpretação que Tribunal fez dessa prova documental, pretendendo, alterar a fundamentação de facto da sentença recorrida, com a inclusão de factos que para além de não terem sido dados como provados nem sequer fazem parte da matéria controvertida, nomeadamente quanto ao incumprimento do contrato promessa e a intenção subjacente à realização do mesmo, esquecendo e ignorando o Apelante que o presente recurso se limita apenas e só à matéria de direito e não à matéria de facto, conforme expressamente refere no seu requerimento de interposição de recurso.
XXIX- E, conforme defende o Tribunal da Relação de Lisboa de 16/01/2007, Processo 9428/2006-1, in Dgsi.net, “Tendo o Recorrente especificado no seu requerimento de interposição de recurso, de forma bem expressa, quais as matérias de que pretendia recorrer, não pode em sede de alegações e respectivas conclusões vir ampliar o objecto de recurso antes já por si definido e ser objecto de conhecimento por parte do Tribunal da Relação”.
XXX- Pelo que, as alegações e conclusões do Recorrente quanto a tais questões, por extravasarem a matéria de direito, sobre que recai o presente recurso, sempre com o devido respeito por opinião diversa, não podem nem devem ser apreciadas, por ser legalmente inadmissível.
XXXI- Mas sem prescindir, o Réu neste último ponto das suas alegações enumera quatro questões, insinuando que as mesmas não foram apreciadas e julgadas na sentença recorrida, o que não corresponde mais uma vez à verdade. Assim, quanto à 1ª questão se “o R. tinha subscrito algum contrato a que devesse cumprimento, conforme o seu clausulado? O Tribunal “a quo” foi peremptório e afirmativo na sentença produzida, referindo que “o réu reconheceu que efectivamente o mesmo foi assinado por si e pelo falecido marido da autora, seu pai(…) Conforme resulta da resposta à matéria de facto, o réu não logrou fazer a prova do que alegava. Aos quesitos 3.º e 4.º o tribunal respondeu restritivamente, não dando como provado que o pai do réu tivesse intenção de fazer partilhas em vida, mas apenas que celebrou o contrato promessa para garantir que poderia a todo o tempo fazer o prédio ingressar no seu património, o que era do conhecimento do réu. (…) Analisando os factos provados, conclui-se, pois, que está demonstrada a existência do contrato promessa cuja execução específica é pretendida pela autora com esta acção, não tendo o réu logrado demonstrar qualquer facto que pusesse em causa a sua validade.
XXXII- No que concerne à 2ª e 3ª questão, se o Recorrente “tinha, incumpriu esse contrato? Se incumpriu, tinha razões para o fazer?. Ora, também quanto a estas questões, a sentença recorrida é afirmativa, que, “Está demonstrado, portanto, o cumprimento por parte da autora da obrigação que sobre si impendia (enquanto cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu marido) por força do estipulado no contrato (a marcação da escritura), não havendo dúvidas também quanto à recusa de cumprimento pelo réu da obrigação que assumiu nesse mesmo contrato promessa.”
XXXIII- Por último, quanto à 4ª questão colocada pelo Apelante se “A A. terá para si ou para a herança que diz representar alguns dos direitos que reivindica?”. Desde logo, importa referir que esta questão intencionalmente não está bem formulada atenta a acção causa. Pois a aqui Autora, na qualidade herdeira do promitente-comprador, com a presente acção pretende é que seja emitida a declaração negocial do faltoso, promitente-vendedor, sendo que a sua legitimidade, atenta a intervenção de todos os herdeiros do falecido nos presentes autos, conforme supra se demonstrou, está plenamente assegurada. E, também quanto a esta questão, a sentença recorrida foi peremptória em referir que o Réu não logrou fazer prova do que alegou, factos esses que a provar impediriam, o exercício do direito invocado pela Autora. Pelo que, atenta a matéria de facto provada, nomeadamente a existência do contrato promessa e a recusa do seu cumprimento por parte do Réu, assiste-lhe plenamente o direito de exigir a execução específica do contrato promessa.
XXXIV- Pelo que, só podia o Tribunal recorrido, concluir que tendo sido celebrado contrato promessa que não foi cumprido pelo Réu, não havendo convenção em contrário e tal não se opondo à natureza da obrigação, deve este Tribunal substituir-se ao Réu na emissão da sua declaração negocial, nos termos do disposto no artigo 830º, n.º 1 do Código Civil.
XXXV- Ainda, perante o incumprimento do contrato promessa em causa por parte do Réu, a Autora procedeu à notificação judicial avulsa daquele, através da qual ao mesmo foi comunicado a data e local para a realização da escritura -(Factualidade que consta da alínea D) da matéria provada na sentença). E, não obstante ter comparecido no Cartório onde seria outorgada a escritura, o Réu recusou a sua outorga, tendo afirmado “que a herança não se encontrava devidamente representada e ainda que assim não entendesse que o negócio jurídico previsto na minuta de escritura pública de compra e venda que lhe foi apresentada, não correspondia ao negócio acordado”. (Factualidade que consta da alínea E) da matéria provada na sentença)
XXXVI- O Ré/Recorrente faz agora nas suas alegações alusão a tal minuta de escritura de compra e venda, desvirtuando e descontextualizando todo o teor e conteúdo dessa minuta, afirmando-se pasme-se que na mesma se “pretendia que a Ré declarasse vender o referido imóvel à herança aberta por óbito de seu pai, pelo preço de 199.519,15€!!!, que ela, vendedora, já recebera, bem como que a aquisição foi efectuada com o dinheiro da herança”. Ora, nada disto é o que verdadeiramente consta de tal minuta, que não passa disso mesmo, uma minuta, mas Ré insiste neste seu estratagema de pegar num documento e retirar-lhe as partes que lhe interessa, para dessa forma lhe dar outro sentido, que nada tem a ver com o mesmo.
XXXVII- Na verdade, para cumprimento de vários contratos promessa entre os quais o dos presentes autos, o que consta de tal minuta é que Ré/Recorrente aí vendedora declarava nessa escritura de compra e venda que se destinava a cumprir os mesmos, que do preço total de 274.538,34€ já se encontrava paga na data do óbito do autor da herança, ou seja, aquando da realização dos contratos promessa a quantia de 274.528,34€, sendo pago naquela data o remanescente do preço, no montante de 10,00€, importância de que dava a quitação.
XXXVIII- Mais se declarando que tal aquisição realizada naquele momento, ou seja, o preço restante de 10,00€, foi pago com dinheiro da herança, pois todo o outro já se encontrava pago na data do óbito do autor da herança, porque o foi no momento da celebração dos contratos-promessa, muito tempo antes do falecimento do marido da autora e pai da ré.
XXXIX- Isto sim corresponde ao conteúdo que consta da minuta de compra e venda, que por sua vez tem inteira correspondência com toda realidade ocorrida e que se encontra provado nos autos.
XL- Mais, o Tribunal “a quo” deu como provado as validades das declarações aí contidas no contrato promessa de compra e venda, nomeadamente a vinculação de ambas as partes à promessa contratada, de compra e venda do imóvel, o preço acordado para essa prometida venda, nada provando em contrário o Réu/Recorrente, nomeadamente, que o contrato-promessa de compra e venda celebrado não visava a efectiva promessa de compra e venda, porque o seu pai desse modo visava antecipar as partilhas dos bens do casal com os filhos, e que o pai não lhe quis prometer comprar (factualidade não provada-quesitos 3º e 6º).
XLI- E, sem prescindir, da alteração à matéria de facto pugnada pela aqui Recorrida, aí Recorrente no seu recurso para este Tribunal, de que deverá ser alterada, no sentido de que o Réu recebeu do seu pai a quantia declarada no contrato promessa, importância de que deu a respectiva quitação, sempre se dirá que o promitente-vendedor nunca invocou ou se recusou celebrar o contrato definitivo por falta do pagamento de tal quantia, só recusando a sua outorga com outros fundamentos, que constam da matéria provada. Aliás, também, nem sequer nos presentes autos, invocou tal excepção de falta de pagamento do preço como fundamento para o não cumprimento do contrato ajuizado, mas sim que não cumpria porque o objectivo com a sua outorga foi o de anteciparem as partilhas (matéria não provada).
XLII- Também, o Tribunal da Relação de Guimarães, no já referido Acórdão de 13/06/2011, proferido no processo n.º 360/09.8 TCGMR.G1, 1ª Secção Cível, quanto a este ponto do incumprimento do contrato promessa por parte do promitente vendedor, refere expressamente que, “em face dos factos dados como provados, não restam dúvidas que a Ré incumpriu com o contrato-promessa que outorgou com o seu falecido pai, pois que, interpelada para outorgar a escritura de compra e venda prometida nos termos acordados, recusou-se a fazê-lo, sem fundamento válido, já, que a principal razão - negócio previsto na minuta de escritura de compra e venda do imóvel em causa, não correspondia ao acordado pelas partes -não está demonstrada, sendo certo que quanto à representação da herança estavam presentes todos os herdeiros do promitente comprador.”Acrescentando que “De qualquer modo é inequívoco o incumprimento, culposo, por parte da Ré, que se presume nos termos do artigo 799º do Código Civil, sendo irrelevante para efeitos de execução especifica que tal incumprimento revista um incumprimento definitivo ou apenas mora. Nestes termos, entendemos que a pretendida execução específica tem de proceder….”
XLIII- O mesmo se diga, quanto aos presentes autos, nos quais igualmente é inequívoco e ficou provado o incumprimento culposo por parte do Réu/Recorrente, nada obstando pois ao procedimento do pedido de execução especifica, que o Tribunal “a quo” e bem declarou.
XLIV- Ainda, o Réu/Recorrente nas suas alegações invoca mais uma questão nova para o não cumprimento do contrato promessa, referindo que: «a obrigação que assumira com o seu pai era uma obrigação pessoal perante este, um pacto pessoalíssimo entre ambos, através do qual apenas o pai queria reservar o direito, de um dia, mais tarde, eventualmente, querendo, exigir o cumprimento e até escolher a pessoa do promitente-comprador. A afirmação colhe plena justificação no texto do indicado contrato, e não foi minimamente posta em crise pelo depoimento de qualquer testemunha: “(…) promete vender ao seu pai, ou à pessoa ou pessoas que este vier a indicar (…)”É clara a declaração do Ré: ele não diz que promete vender ao promitente-comprador, quem quer que ele seja: ele promete vender ao seu pai ou a quem este vier a designar.” (Página 26 das alegações) “…tratando-se de relações de natureza patrimonial, na sua essência, entre pai e filho, porque o texto do contrato alude à relação de parentesco de ambos». (Página 31 das alegações)
XLV- Ora, pergunta-se onde estão estas expressões???? em qual texto do contrato??? caso é para dizer estará a ré a falar do mesmo contrato-promessa do ajuizado nos presentes autos???? certamente que não!!!. pois o mesmo não contém essas expressões, não constando desse documento em momento algum qualquer referência à relação familiar. Aliás, da sua leitura e análise nunca se saberia que os outorgantes tem qualquer relação de parentesco, pois no mesmo sempre se refere a “primeiro outorgante” ou “promitente/vendedor” e “segundo outorgante” ou “promitente/comprador”, aferindo-se pois que o seu pai quis bem separar as “águas”, sendo as obrigações aí assumidas tudo menos pessoais.
XLVI- Mas, mais uma vez o Recorrente aqui em sede de recurso, que versa apenas e só sobre a matéria de direito, ignora por completo a factualidade provada e não provada em sede de 1ª instância, pretendendo alterar nomeadamente esta ultima, com recurso as expressões falsas que não estão no contrato promessa. Pois, esquece-se que resultou provado, que com tal contrato-promessa, o aí promitente-comprador, marido da Autora, pretendeu garantir que a todo o tempo poderia fazer o prédio ingressar no seu património. O que como evidente só podia fazer com o cumprimento do contrato promessa. Não tendo o Réu logrado provar o contrário, ou seja, que o seu pai não quis prometer comprar o que quer que fosse (matéria não provada do quesito 6), insiste aqui em sede de recurso, em tal afirmação referindo que “ é clara a posição do seu pai: ele não quer que o contrato seja cumprido”, com recurso a um texto do contrato promessa, intencionalmente alterado por si!!!.
XLVII- E, a conduta processual do Réu/Recorrente com a invocação desta nova questão, reveste-se de enorme gravidade, pois faz afirmações quanto a expressões que supostamente constariam do contrato promessa de compra, QUE SÃO TOTALMENTE FALSAS!!!! , bastando uma mera e simples leitura de tal documento para se aferir dessa tamanha falsidade.
XLVIII- E, não estamos aqui perante qualquer erro, muito menos colossal, mas sim uma mentira essa sim colossal por parte da ré/recorrente, com o intuito claro de enganar este tribunal!!! esta conduta do réu/recorrente de falsear e alterar o conteúdo de um documento que se encontra nos autos, com a pretensão de alterar a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, é altamente censurável, fazendo também dos meios processuais, aqui em sede de alegações, um uso altamente reprovável actuando com dolo, sendo claro e evidente que litiga com má-fé nos presentes autos.
XLIX- Pois, dispõe n.º 2 do artigo 542º do Novo C.P.C., que age como litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, omitir gravemente o dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável.
L- Nos presentes autos, o comportamento do recorrente nas suas alegações quanto à questão em apreço, preenche, com dolo directo e manifesto, todos esses actos descritos nesse normativo legal, pelo que não poderá deixar de ser apreciado e julgado aqui em sede de recurso, devendo em consequência ser o Réu/Recorrente nos termos do disposto no art. 542º nº 1 do Novo C.P.C. ser condenado em multa e indemnização por litigância de má fé, em montante que se julgar mais adequado atenta a gravidade da sua conduta, de valor nunca inferior a 5.000,00€.
LI- Donde, assentando tal questão da Ré numa factualidade inexistente e falsa, inexiste pois qualquer fundamentação para a mesma, a qual não merece sequer apreciação. Assim, os direitos e obrigações assumidas pelos outorgantes no contrato-promessa ajuizado, conforme toda a factualidade apurada e provada em primeira instância, são claramente de natureza patrimonial, pelo que, em face do falecimento do promitente-comprador, transmitem-se aos seus sucessores, nos termos do n.º 1 do artigo 412º do Código Civil.
TERMOS EM QUE (…) deve ser negado provimento ao presente recurso, nas matérias em que o mesmo põe em crise o douto despacho saneador e a sentença recolhida, julgando-se o mesmo improcedente, bem como atenta a gravidade da conduta processual do Réu/Recorrente aqui em sede de recurso deverá o mesmo ser condenada como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor nunca inferior a 5.000,00 €, tudo com as consequências legais.”

No seu recurso, a autora termina as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I- Vem o presente recurso interposto da douta Sentença, apenas e só na parte que julgou que nenhum valor foi pago pelo falecido marido da Autora ao réu a titulo de sinal e principio de pagamento do preço conforme o declarado e acordado no âmbito do contrato promessa de compra e venda em apreço nos presentes autos.
II- E, com a decisão final também aqui se impugna o despacho proferido em audiência de Julgamento pelo Tribunal “a quo” em 07/03/2013, que admitiu a alteração da formulação do quesito 6) da Base Instrutória, aditando-lhe outros factos que já se encontravam plenamente provados e constantes da matéria assente, como melhor se demonstrará.
III- Previamente, deverá ser rectificada a sentença produzida, quando na sua fundamentação dá como provado na alínea C) que “com data 30 de Junho de 1997 o R. C… e seu falecido pai rubricaram e subscreveram o documento copiado a fs. 27 e 28 com o seguinte teor(…)”
IV- Pois, tal redacção corresponde ao que constava do despacho saneador, na sua alínea C) da Matéria Assente, sobre o qual recaiu reclamação da aqui Recorrente/Autora, no qual se pugnou pela rectificação de tal alínea, requerendo que a mesma no seu primeiro parágrafo passa-se a ter a seguinte redacção “Com data de 30 de Junho de 1997 o R. C… e o seu falecido pai rubricaram e o subscreveram o documento a fls. 27/28 do seguinte teor: …”
V- Reclamação esta que foi deferida por despacho proferido em 17/09/2012 (Ref.: ref.: 5033711), mas que por sua vez na sentença produzida, na alínea C) dos factos provados, por manifesto lapso de escrita, não consta tal formulação que doutamente foi ordenada pela Exma. Julgadora.
VI- Assim, ainda que se admita, pela sua manifesta evidência, como possível a correcção de tal lapso pelo Tribunal “a quo” antes da subida do presente recurso a este mais alto Tribunal, se requer atento o preceituado no artigo 614º do Novo CPC, por ocorrer lapso manifesto e evidente, aqui a intervenção correctora e assertiva destes julgadores, se a mesma não for realizada em 1ª instância, procedendo-se à rectificação da alínea C) dos factos provados da sentença, passando a mesma ter a formulação que consta do Ponto IV das presentes conclusões.
VII- Ora, quanto ao despacho proferido em 07/03/2013, o mesmo admitiu a alteração do quesito 6) da base instrutória, aditando-lhe outros factos, passando a ter o seguinte teor: “O pai não quis prometer comprar ao Réu o que quer que fosse, não tendo o réu recebido qualquer importância, nem tendo este querido pagar-lhe? Salvo o devido respeito por diferente opinião que é muito, não podia o tribunal recorrido o ter feito, por ser legalmente inadmissível.
VIII- Isto porque, em 23/11/2011 foi proferido despacho saneador (ref.: 4504478) do qual resultaram ASSENTES, entres outros factos (com a correcção ordenada no despacho proferido em 17/09/2012) os constantes da alínea C) “Com data de 30 de Junho de 1997 o R. C… e seu falecido pai rubricaram e subscreveram o documento a fs. 27/28 com o seguinte teor: - CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA:(…) Que sendo, como é, ele primeiro outorgante - promitente/vendedor - dono e legítimo possuidor da identificada fracção autónoma, a promete vender, completamente livres e desembaraçados de quaisquer ónus ou encargos, ao segundo outorgante, promitente/comprador - ou à pessoa ou pessoas que o mesmo vier a designar - pelo preço de 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos), preço este do qual, antes deste acto, já receberam a quantia de 7.499,000$00 (sete milhões quatrocentos e noventa e nove mil escudos), montante este de que o promitente/vendedor lhe dá a competente quitação. (…) Por ambos os aqui outorgantes é declarado que se adstringem às estipulações deste contrato e aqui atribuem às suas declarações dele constantes a eficácia do cumprimento específico prevista no art.º 830° do Código Civil. (documento de fls. 27/28)”
IX- O Réu devidamente notificado do despacho saneador não apresentou qualquer reclamação. Sendo que, em plena audiência de julgamento realizada em 07/03/2013, o Réu sem invocar qualquer facto novo, refere apenas que deve ser aditado um novo quesito, com a matéria do artigo 51º da Contestação, com a seguinte redacção “o Réu não recebeu de seu pai qualquer importância, aliás o seu pai não quis pagar-lhe, nem seu pai se comprometeu com ele a comprar o que quer que fosse”
X- Perante tal requerimento, foi dada a palavra ao Ilustre Mandatário da Autora, o qual com os fundamentos aí melhor aduzidos pugnou pela não admissão da reclamação efectuada e a alteração solicitada.
XI- Mas, o Tribunal “a quo” no referido despacho aqui sob censura atendeu à pretensão do Réu, deferindo a requerida alteração ao quesito 6º, passando o mesmo a ter o seguinte teor: O pai não quis prometer comprar ao Réu o que quer que fosse, não tendo o réu recebido de seu pai qualquer importância, nem tendo este querido pagar-lhe?
XII- Com tal despacho, o Tribunal recorrido deferiu a inclusão na Base Instrutória de um facto que já se encontrava plenamente provado e que em consequência constava do alínea C) do Matéria Assente, segunda a qual com data de 30/06/1997 o Réu e o seu falecido pai rubricaram e assinaram o documento, contrato promessa de compra e venda, no qual o primeiro outorgante - promitente vendedor (aqui Réu) declarou ser dono e legitimo possuidor da referida fracção autónoma, a qual prometeu vender, completamente livres e desembaraçados de quaisquer ónus ou encargos, ao segundo, promitente comprador - ou à pessoa ou pessoas que o mesmo vier a designar - pelo preço de 7.500.000$00, preço este do qual, antes deste acto já recebera a quantia de 7.499.000$00, montante este que o promitente vendedor deu a competente quitação. (declarações do Réu que constam do contrato promessa de fls. 27/28- documento que o Réu confessa expressamente na sua contestação que subscreveu - cfr. item 42 da contestação).
XIII- Pelo que, se por um lado andou bem o Tribunal “ a quo” aquando da prolação do despacho saneador, incluindo toda a factualidade e declarações que constam dessa contrato promessa, nomeadamente que o Réu antes deste acto recebeu a quantia de 7.499.000$00, na Matéria Assente, não podia como é óbvio incluir à posteriori no questionário que o Réu não recebeu do seu pai qualquer quantia, como depois o despacho aqui sob censura vem a fazê-lo.
XIV- E, tal factualidade faz parte da Matéria Assente porque consta de um documento que tem força probatória plena.
XV- Mais, quanto ao valor probatório desse documento «contrato-promessa» , não podemos deixar de referir o que a este respeito entendeu, e bem, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, nos autos que correram termos sob o n.º 479/09.5 TCGMR-A.G1, em que acordaram em 29/03/2011 os Exmos. Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível, que “No que respeita à força probatória material do documento, uma vez provada a autoria da assinatura, fica plenamente provado que o signatário emitiu todas as declarações dele constantes que sejam atribuídas e respeitem a factos que lhe sejam desfavoráveis, sem prejuízo de poder arguir e provar a sua falsidade - artigo 376º, 1º e 2º. Mas, no caso dos autos, tendo a ré reconhecido, no artigo 22º da contestação, que subscreveu o documento em causa, face a uma fotocópia integral do seu teor, sem ter feito quaisquer reservas (não alegou a sua viciação ou falsidade material), não parece curial que viesse depois a arguir a sua falsidade – cfr. o art. 546º, 3, do CPC. Nesta conformidade, a factualidade constante da alínea a) da matéria de facto assente está insofismavelmente provada”.
XVI- Mais, esse Tribunal, foi absolutamente positivo e determinado no posterior esclarecimento, referindo que “Nesta conformidade, impõe-se concluir que, enquanto na sequência do despacho recorrido iria ser objecto de prova a questão de saber se o documento (contrato-promessa de compra e venda) não correspondia ao original, com a revogação desse despacho, em sede de recurso, esse questão ficou ultrapassada, ficando assente, sob a alínea A), que: Em 22- 12-1988, a ré e D… haviam subscrito o documento intitulado contrato-promessa de compra e venda, cuja fotocópia consta de fls. 22 a 24 dos autos. E, com isto, ficou adquirido que a ré outorgou nesse documento, ficando plenamente provado que emitiu todas as declarações dele constantes que lhe são atribuídas, na medida em que respeitem a factos que lhe sejam desfavoráveis. (…) Quanto à inclusão na matéria de facto dada como provada do conteúdo do documento denominado contrato-promessa de compra e venda, ficou muito claro no acórdão que a ré não impugnou validamente o documento em causa e que o mesmo, apesar de ser uma fotocópia, tem o valor probatório do original, pelo que a consequência normal era considerar assente a factualidade que ele comprova” (SIC com sublinhados e evidenciações nossas), tudo conforme se pode aferir da Decisão/Acórdão proferido em 10/05/2011 em resposta ao esclarecimento suscitado pela aí Ré/Apelada.
XVII- Assim, na verdade, dúvidas não restam que o contrato promessa em causa, documento particular assinado pelo autor, que não foi objecto de impugnação nos termos dos artigos 374º e 375º do Código Civil, nem arguida e provada a sua falsidade, faz prova plena em relação às declarações atribuídas ao seu autor, ficando assim, plenamente provado que o autor proferiu essas declarações (artigo 376º do Código Civil )- Neste sentido o Ac. do STJ de 07/05/2009, processo 090664 em www.dgsi.pt/jstj.
XVIII- Ora, não tendo o Réu invocado a falsidade de tal documento, aceitando repete-se na sua Contestação que subscreveu o mesmo (item 42º) e estando reconhecida a autoria do documento, este faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor e que lhe sejam desfavoráveis, considerando-se provadas nos termos gerais da confissão.
XIX- Assim, atento ao que ficou dito, o Tribunal “a quo” perante factos plenamente provados por documento «contrato-promessa de compra e venda», deu como assente na alínea C) a factualidade declarada em tal documento, entre as quais de que o Réu antes daquele acto recebeu a quantia de Esc. 7.499.000$00, montante que deu a competente quitação, o que está insofismavelmente provada.
XX- A qual não constituindo matéria de facto controvertida, o Tribunal recorrido e bem aquando da prolação do despacho saneador não a incluiu na Base Instrutória, nem o podia fazer no despacho aqui sob censura.
XXI- Pois só pode ser incluída na Base Instrutória a matéria de facto relevante para a decisão da causa que deva considerar-se controvertida (n.º 1 do artigo 511º do C.P.C.). Não obedece esse requisito a matéria de facto que tenha sido objecto de confissão das partes, a qual deve, antes ser
XXII- Assim, tal despacho, proferido em 07/03/2013 ao decidir alterar o conteúdo, aditando-lhe outros factos ao ponto 6) à Base Instrutória (não tendo o R. recebido do seu pai qualquer importância, nem tendo este querido pagar-lhe?), violou por um lado o previsto no artigo n.º 1 do artigo 511º do C.P.C. (artigo à data em vigor), porque tal factualidade não constitui matéria controvertida, mas sim factualidade já assente, e por outro lado as normas que regulam o valor probatório material dos documentos particulares e das declarações nele inseridas (artigos 374º, 375º e 376º do Código Civil).
XXIII- Donde, deve tal despacho ser revogado e substituído por outro que indefira a alteração do quesito 6) , por tal factualidade que foi aí aditada não constituir matéria controvertida, mas sim assente, e como tal constante já da alínea C), segundo o qual, o Réu declarou, entre outros, que já recebera, antes daquele acto, a quantia de Esc. 7.499.000$00, por estar plenamente provado, visto que é contrário aos interesses do declarante (Réu) e está compreendido nas declarações inseridas nesse documento «contrato-promessa ».
XXIV- E, em consequência estando provado que o Réu recebeu a quantia estipulada e declarada no contrato promessa de compra e venda, na sentença produzida o tribunal “a quo” não poderia dar como provada a factualidade constante da alínea I) da fundamentação de facto, revogando-se a mesma quanto a esse ponto, com as consequências legais daí decorrentes.
XXV- Sem prescindir, da impugnação do despacho referido no ponto anterior, e das consequências decorrentes se tal impugnação for julgada procedente, como estamos certos que ocorrerá, vem o presente recurso interposto da, douta Sentença apenas e só conforme já se referiu na parte que julgou que nenhum valor foi pago pelo falecido marido da Autora ao réu a titulo de sinal e principio de pagamento do preço conforme o declarado no contrato promessa de compra e venda em apreço nos presentes autos, definindo-se o seu objecto por ver revogada tal decisão e substituída por outra que julgue provado que tal valor foi pago ao Réu conforme o declarado no contrato promessa.
XXVI- E, revogado deve ser igualmente o despacho proferido pelo Tribunal “a quo”, em 24/04/2013 (5482896) no qual foi ordenado à A. que demonstrasse a consignação em depósito da quantia de 37.409, 89€ nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 850º, n.º 5º do Código Civil.
XXVII- O que a Autora fez por requerimento apresentado 30/05/2013 (Ref.13564494), mas sim prescindir aí expressamente do direito recurso quanto à matéria de facto e direito atenta a decisão final que viesse a proferir, o que pelo presente recurso se impugna quanto a tal ponto, uma vez que com tal decisão se vê a Autora obrigada a pagar novamente o que o seu falecido marido já pagou por efeito do contrato promessa de compra e venda, do qual o réu deu plena quitação, o que é jurídica e moralmente inaceitável.
XXVIII- Em consequência, versa o recurso sobre TRÊS aspectos essenciais em que a douta Sentença em crise decidiu incorrectamente e que dizem respeito à parte em que fixou matéria de facto com recurso a tese de interpretação que não tem acolhimento no depoimento de qualquer testemunhas, nem nos depoimentos de parte (A. e Interveniente) e muito menos no vertido no contrato objecto dos autos e em que se permitiu admitir a prova testemunhal para efeito de infirmar o teor de um contrato, quando tal prova não é admissível e ainda para hipótese de mero raciocínio académico, aceitar-se tal prova como admissível, não existe prova que concorra e infirme o valor probatório do contrato promessa.
XXIX- Toda a sustentação factual relevante para a decisão que aqui se impugna assenta no pretenso facto de não ter sido pago ao Réu, promitente vendedora, o preço referido no contrato promessa e referente ao imóvel prometido vender.
XXX- Pois, o Tribunal “a quo” contrariando a factualidade já assente deu como “Não Provado” quesito 1º “No âmbito do contrato dito em C), o R. na qualidade de promitente vendedor, recebeu o valor de Esc.: 7.499.000$00 corresponde a € 37.404,85?” e parcialmente provado o já referido quesito 6º, de que o réu não recebeu do seu pai qualquer importância, nem este quis pagar-lha, concluindo-se na sentença produzida e aqui sob censura, na sua alínea I) a prova de tal facto.
XXXI- Factualidade que consta da alínea I) da fundamentação de facto da sentença, que salvo o devido respeito que por simples definição é muito, para além de ser incoerente com a restante factualidade provada, faz avaliação incorrecta da prova produzida e das respostas obtidas pela simples razão que desenquadra dos depoimentos e dos factos a simples resposta, mistificando o conceito de preço mas, sobretudo, faz interpretação tão restrita das respostas das testemunhas e sua adequação ao contrato que desvirtua todo o contexto em que o mesmo foi realizado.
XXXII- E, tal factualidade de que o Réu não recebeu qualquer quantia no âmbito do referido contrato refere o Tribunal “a quo” no despacho de resposta à matéria de facto proferido em 20/03/2013, refere que a mesma resultou dos depoimentos de parte da Autora e da Interveniente, o que salvo o respeito que por definição é muito não se verifique, resultando dos mesmos, claramente o contrário.
XXXIII- Na verdade, desde logo do depoimento da Autora não se vislumbra qualquer confissão de tal factualidade de que o Réu não recebeu a quantia referida no contrato promessa de compra e venda. Pelo contrário, resulta do seu depoimento que o Réu pagou o preço do apartamento objecto do contrato promessa, com dinheiro do casal constituído pelos seus pais, tanto mais que à data ainda estava a estudar e não tinha dinheiro. O preço foi pago ao vendedor (empreiteiro) em nome do filho, pelo que confirmou a autora sem qualquer reserva a instância do seu mandatário, que a declaração confessatória de quitação constante do contrato promessa, significa que, com o pagamento efectuado ao empreiteiro/vendedor, ficou pago ao Réu a quantia ali referida. E, mais, esclareceu a A., que após essa compra e venda em que o Réu outorgou como comprador, foi celebrado o contrato promessa de compra e venda do dito apartamento por seu falecido marido para garantir a recolocação do mesmo no seu património. Declaração confessatória da A. quanto ao pagamento do preço/sinal, que confirma a declaração do Réu que consta do contrato promessa quando este expressamente refere que promete vender pelo preço de 7.500.000$00, preço do qual, antes daquele acto (ou seja aquando da celebração da escritura de compra e venda que ocorrera antes), já recebera a quantia de 7.499.000$00.
XXXIV- Também do depoimento da Interveniente E…, se apresenta inquinado de enormes contradições e incoerências, fugindo a mesma claramente à verdade, o que se levou, diga-se e bem, o Tribunal “a quo” a não valorar as suas declarações de que os pais ao comprarem os imóveis e colocá-los no seu nome e do seu irmão pretenderam realizar partilhas antecipadas, o que é completamente falso conforme resultou e se aferiu da demais prova realizada.
XXXV- Mas o seu depoimento também contém inúmeras incoerências quanto ao pagamento do preço, pois a instância do Meritíssimo Juiz quando o mesmo questiona “não tem dúvidas que o seu pai entregou o dinheiro ao seu irmão para comprar esta casa?” responde que “sim”, para logo de seguida referir que o seu pai não entregava o dinheiro ao seu irmão, que entregava o dinheiro ao empreiteiro para depois ficar o prédio em nome do seu irmão.
XXXVI- Mais, afirma a mesma que o dinheiro nunca foi entregue em mãos ao seu irmão, pois era entregue directamente a quem o vendia. Contudo, logo a seguir questionada pelo mandatário da Autora se esteve presente no momento da escritura a mesma expressamente refere que não, pelo que tais declarações quanto aos pagamentos realizados relativos à escritura de compra e venda e ao contrato promessa de compra e venda, a quem foram entregues as quantias, nada presenciou a depoente, pelo que o seu conhecimento quanto a essa factualidade é indirecto, não devendo ser valorado, muito menos como foi pelo Tribunal “a quo”.
XXXVII- Mas, de tal depoimento resulta que a mesma não tem dúvidas que foi o seu pai quem pagou o preço do apartamento em nome do seu irmão, pois era sempre assim que acontecia, ou seja ela própria questionada quanto ao contrato promessa e à quantia aí declarada recebida pelo seu irmão, (ainda que não tenha presenciado) acaba por referir que foi entregue ao empreiteiro para pagamento do preço da compra e venda.
XXXVIII- Para além dos depoimentos de parte o Tribunal “a quo” fundamenta a resposta negativa ao quesito 1 e parcial positivo do quesito 6, ainda no depoimento da testemunha G…, construtor e vendedor do imóvel, pelo facto do mesmo ter referido claramente que o negócio foi feito pelo marido da Autora e ter sido este quem lhe pagou o preço. Referindo o Tribunal “a quo” no despacho de resposta à matéria de facto de 20/03/2013 “que seria de todo ilógico que o marido da autora pagasse o preço e ainda por cima fosse depois pagar outra quantia ao seu filho a titulo de sinal pela prometida compra do mesmo apartamento”. Na verdade é realmente ilógico!!!!, porque nada tinha que pagar novamente o marido da autora ao Réu, o qual já tinha recebido antes, conforme declarou no contrato promessa, por via do pagamento efectuado na compra e venda ao empreiteiro/vendedor da fracção.
XXXIX- Assim, tal despacho que aqui também se impugna, e posterior sentença produzida, sempre com devido respeito que definição é muito, fazem uma errada interpretação desses depoimentos em que fundamenta a respostas dadas aos quesitos 1 e 6, pois dos mesmos resulta, sem qualquer mínima mácula de dúvida que o pai do Réu fez o pagamento dos 7.499.000$00 declarado no contrato promessa relativo à fracção que prometeu comprar, pela entrega antes em seu nome do preço ao empreiteiro que o construiu e vendeu.
XL- A resposta dada aos quesitos 1 e 6 com consequente factualidade provada na alínea I) está completamente em contradição com a realidade dos factos e com os depoimentos que foram prestados quanto ao contexto em que foi celebrado tal contrato promessa, e com as declarações constantes desse mesmo contrato, em consequência da interpretação altamente restritiva e mistificadora que se faz da definição do preço.
XLI- É possível que o pagamento da quantia referida no contrato promessa ocorra por via do cumprimento e satisfação anterior de uma obrigação que correspondia ao promitente vendedor, sendo esse o entendimento normal e comum que os declaratários, “minimamente diligentes e sagazes”, retirariam das suas declarações e comportamento contratual quando celebraram o contrato promessa e muito particularmente declararam que “promete vender ao segundo pelo preço de sete mil e quinhentos contos, preço este do qual, antes deste acto, já recebera a quantia sete mil quatrocentos e noventa e nove contos, montante este que o promitente/vendedor lhe dá a competente quitação (…) que se adstringem às estipulações deste contrato ”.
XLII- Aceitar-se o entendimento da douta sentença recorrida, colocava o promitente-comprador na posição de, agindo de boa fé, ficar à mercê do promitente-vendedor que se locupletaria, sem qualquer fundamento para tal, com o valor de quase sete mil e quinhentos contos.
XLIII- Ora, sendo aceite pelas partes que foram os pais quem pagaram o preço relativo à compra do apartamento em nome do Réu, o que resulta de todos os depoimentos colhidos em audiência de julgamento, neles se incluindo a própria Interveniente E… e demais testemunhas do Réu, não se pode aceitar a resposta do Tribunal “ a quo” que a aquele não recebeu do seu pai qualquer quantia.
XLIV- Pois, no momento da celebração do contrato, o promitente-comprador já havia pago antes os sete mil quatrocentos e noventa e nove contos por ter sido ele quem, na escritura pagou o preço ao vendedor em nome do comprador aqui R. e promitente-vendedor do contrato promessa.
XLV- A congregação dos depoimentos quer das partes quer das testemunhas relativa à toda a factualidade do negócio em causa e sua adequação à formulação dos quesitos referidos só pode conduzir às respostas do 1º “PROVADO” 6º “NÃO PROVADO” a dar aos mesmos, pois efectivamente o Réu recebeu a importância declarada no acordo referido em C), alterando-se a resposta dada pelo Exmo. Senhor Doutor Juiz “a quo”.
XLVI- Mais, não pode deixar de se estranhar a decisão da resposta a tais quesitos quando comparado com tudo quanto foi referido no douto Despacho de resposta aos quesitos, onde, com clarividência liminar o Exmo. Senhor Doutor Juiz “a quo” parecia entender todo o circunstancialismo dos factos, dando como provado, sem a mínima dúvida, que os pais não pretenderam antecipar as partilhas e que tal contrato-promessa se destinava a garantir que a transmissão do prédio fosse revertida para os pais.
XLVII- E, também na própria sentença produzida, resulta a existência e validade de tal contrato e das declarações contidas no mesmo, referindo a mesma que “resulta que temos como demonstrada a existência do contrato junto a fls. 27 e 28. Face ao teor das suas cláusulas, não restam dúvidas quanto a constituir tal contrato um contrato promessa de compra e venda, nos termos definidos pelo artigo 410º do Código Civil, n.º 1 do Código Civil. (…)” “(…) a validade das declarações contidas no contrato promessa era mesmo essencial para cumprir aquela intenção - só com a vinculação de ambas as partes à promessa contratada ficaria garantida a possibilidade de fazer o prédio entrar no património do falecido marido da autora. Analisado os factos provados, conclui-se, pois que está demonstrada a existência do contrato promessa cuja execução específica é pretendida pela autora com esta acção, não tendo o réu logrado demonstrar qualquer facto que pusesse em causa a sua validade.”
XLVIII- Pois, estando dado como provado que tal documento se destinava a garantir que a transmissão fosse revertida, como poderiam os pais reaver o património? Através da execução específica do contrato-promessa, como a Autora/Apelante pretende com estes autos.
XLIX- Mas, não obstante atribuir valor a tal documento, num “ápices”, ignorando por completo as declarações emitidas de boa-fé pelos contratantes do contrato promessa, permite que uma das partes “dê o dito por não dito”, alterando o teor do negócio, que fica sem qualquer valor.
L- Com efeito a resposta dada aos quesitos em análise liberta em absoluto os 7 mil e 499 contos já pagos, ficando o promitente-comprador sem qualquer hipótese de os reclamar apesar de ter entregue aquela quantia e de os declarantes do contrato assumirem que ele já o havia feito, declarando expressamente o Réu no contrato que já recebera antes daquele acto.
LI- Assim, o entendimento e seguimento perfilhado no despacho de resposta aos quesitos supra transcrito e a própria sentença posteriormente produzida, no qual o Tribunal “ a quo” não tem dúvidas que jamais a Autora e seu marido quiserem antecipar as partilhas e que o contrato-promessa se destinava a garantir que a transmissão fosse revertida, atribuindo-lhe esse valor, só pode determinar a alteração das respostas aos quesitos 1 para “provado”, e 6 para “não provado”, pois é inaceitável a posterior interpretação restritiva do conceito de preço, completamente descontextualizada, que retira o valor que tal despacho e a própria sentença já havia atribuído ao mesmo.
LII- Convém ainda aqui referir que, conforme resultou dos vários depoimentos das testemunhas e das próprias declarações da A., esta teve que intentar várias acções exigindo aos seus filhos o cumprimento dos contratos promessa de compra e venda para salvaguarda do património do dissolvido casal, em face das acções de reivindicação intentadas pelos seus filhos que tem por objecto esses imóveis que pertencem à herança, a casa de morada de família e a casa de férias, esta ultima a que se reporta o contrato promessa de compra e venda cuja execução se pretende nos presentes autos.
LIII- E, não podemos deixar aqui de referir no presente recurso à decisão proferida na acção reivindicação que teve por objecto a casa de morada de família da aqui A., intentada pela sua filha, E…, contra a sua mãe, aqui A., B…, que correu termos sob o n.º 1075/05.1TCGMR, na 1ª Vara, das Varas de Competência Mista de Guimarães, já transitada em julgado, cujas decisão no que concerne ao pagamento do preço/sinal é bem diferente da proferida pelo Tribunal “a quo” nos presentes autos. Acção na qual a filha peticiona que se condene a mãe a reconhecer-lhe a o direito sobre tal imóvel (e outros bens) e a restituir-lhe os mesmos completamente livres e devolutos de pessoas e bens, ou seja, que a mãe seja despejada da sua casa, foi julgada totalmente improcedente.
LIV- Decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 19/01/2012 no acórdão proferido pela 1ª Secção Cível, no qual o mesmo refere expressamente que a sentença do Tribunal “a quo” não merece censura.
LV- Ora, esse Tribunal deu como provado, entre outros, e para o que aqui nos interessa, que no âmbito do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a filha e o falecido pai, a promitente vendedora recebeu o valor aí declarado, por compensação das quantias que os seus pais tinham adiantado para o pagamento da aquisição.
LVI- O Tribunal da Relação confirmou toda essa factualidade, acrescentando “que o falecido pai da autora pretendeu garantir que os bens lhe pertenciam, a ele e ao casal por si formado pela Ré. Só assim se pode entender-se o documento de fls. 60 (denominado contrato-promessa) em que se refere o pagamento de praticamente a totalidade do preço.”
LVII- Acrescentando que não existe contradição nas respostas dadas aos quesitos 20º, 21º e 22º considerados provados, referindo que “As respostas à matéria de facto visam traduzir uma realidade fáctica, devendo ser interpretadas nesse sentido. O que pretende traduzir nas respostas dadas é que a quantia de Esc.: 11.499.000$00 que a autora declara no contrato-promessa ter recebido, o foi por via do pagamento efectuado das fracções por parte do falecido pai, promitente-comprador no aludido contrato, o que respeita rigorosamente o que se passou. ”
LVIII- Ora, perante um contrato promessa exactamente igual ao dos presentes autos, aquele Tribunal não teve qualquer dúvida na sua interpretação, nomeadamente no que concerne ao pagamento do preço, atendendo ao contexto factual em que foi realizado, e não como o fez o Tribunal “ a quo” com sentença aqui sob censura, que ignorou todas as circunstâncias em que o mesmo foi realizado, limitando-se a uma inaceitável interpretação altamente restritiva do pagamento do preço.
LIX- E, tal acórdão do Tribunal da Relação quanto a essa factualidade foi totalmente confirmado pelo Supremo Tribunal Justiça no acórdão proferido 07/02/2013 pela 7ª Secção (Revista) desse Tribunal, já transitado em julgado, no qual o mesmo conclui que face ao exposto, tem-se como assente, para todos os legais efeitos, a matéria de facto, tal como foi definida pelo Tribunal da Relação.
LX- Assim, tal interpretação de toda a realidade fáctica, diga-se aceite pelas partes, de que foram os pais do réu que pagaram a compra da fracção, e que foi realizado contrato promessa de compra e venda sobre o mesmo imóvel, em que o promitente vendedor declara ter recebido a quantia de 7.499.00$00, antes daquele acto, por via do pagamento da fracção efectuado pelo seu pai, só poderá conduzir também a alteração da resposta aos quesitos 1) para “provado” e 6) para “não provado”.
LXI- E, em consequência tendo o réu recebido a quantia declarada no contrato promessa de compra e venda deve ser revogado o despacho de 16/05/2013 que ordenou a consignação em depósito à A. de tal quantia, bem como ser revogada a sentença produzida na parte em que deu como provada que o Réu não recebeu do seu pai qualquer importância, nem este lhe quis pagar-lha.
LXII- Também a douta sentença recorrida desrespeitou o que vem consignado no art. 393, n.ºs1 e 2 do Código Civil ao admitir prova Testemunhal para infirmar o teor do contrato, não cabendo a menor dúvida que estando conferindo ao documento força probatória plena, não pode o mesmo ser contrariado por depoimento testemunhal.
LXIII- Neste sentido, o Supremo Tribunal da Justiça, foi peremptório em idêntica situação ao decidir que “ ora, semelhante decisão é insusceptível de censura por parte do tribunal de revista, visto que acatou por inteiro as regras conjugadas dos art.ºs 347º, 376º, nºs 1 e 2, e 393º, nºs 1 e 2, do CC, que regulam a força probatória material dos documentos particulares. Com efeito, o facto em apreço – pagamento do sinal no valor de 1.750 contos por parte do autor – tinha de ser considerado, como foi, plenamente provado, visto que, sendo contrário aos interesses dos declarantes (os réus), está compreendido nas declarações inseridas nos dois referidos documentos (cuja autoria não foi questionada); por outro lado é também exacto que, como resulta das normas substantivas citadas, a prova legal plena assim obtida não poderia ser contrariada pela prova testemunhal que a 1ª instância indevidamente valorou, uma vez que o ponto de facto em apreço não foi dado como adquirido em resultado da simples interpretação do contexto dos dois documentos, única situação em que a prova por testemunhas seria admissível (cfr. nº3 do art.º 393º). Acórdão proferido pelo STJ em 17/04/2007 in www.dgsi.pt.
LXIV- Pois, permitir-se que perante um contrato reduzido a escrito, reconhecido e aceite pelos signatários como válido e com força plena total do ponto de vista probatório o mesmo possa ser destruído por depoimento de testemunhas que, como se viu supra, nem sequer infirmaram o que lá está declarado, é destruir toda a certeza e confiança jurídica dos declaratários ao outorgarem tais documentos.
LXV- Dessa forma ao entender como entendeu a douta sentença recorrida violou frontalmente o preceituado nos referidos preceitos legais do Código Civil pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue, sem recurso aos depoimentos que versaram sobre as declarações constantes do contrato-promessa, nomeadamente quanto ao pagamento do preço/sinal ao promitente vendedor, cuja declaração deste está incluída em contrato escrito com força probatória plena, dando-se como provada tal factualidade.
LXVI-E, ainda para hipótese de mero raciocínio académico, a admitir-se tal prova, como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/1997 “é admissível prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º e 379º do Código Civil quando haja um principio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar, ou quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, ou se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova”.
LXVII- Afigura-se pois que nos presentes autos, conforme supra se expôs, não existe qualquer confissão ou outro qualquer documento que possa concorrer com a já analisada prova documental (contrato promessa de compra e venda) de modo a infirmar o seu valor probatório e a permitir a produção de prova testemunhal da qual também não resulta muito pelo contrário, a prova do facto constante do quesito 6).
LXVIII- Pelo que, só se poderá concluir, que tal documento faz prova plena do facto contido na declaração confessória do Réu, no sentido de dar quitação do recebimento, pelo promitente vendedor, da dita quantia.
LXIX-E, em consequência, deve dar-se como “PROVADO” o quesito 1) e como “NÃO PROVADO” o quesito 6), revogando-se o despacho proferido em 16/05/2013 que ordenou o depósito do preço/sinal, bem como a sentença na parte em que deu como provado que o Réu não recebeu do seu pai qualquer importância, nem este quis pagar-lha (Alínea I) dos factos provados.
Termos em que … deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se o mesmo procedente e, em consequência:
1) Rectificar a redacção da alínea C) dos factos provados da sentença, por ocorrer lapso manifesto e evidente, passando a mesma ter a seguinte formulação: Com data de 30 de Junho de 1997 o R. C… e o seu falecido pai rubricaram e o subscreveram o documento a fls. 27 e 28 com o seguinte teor: …”
2) Revogar-se o despacho proferido pelo Tribunal “a quo” em 07/03/2013 e substituído por outro que indefira a alteração do quesito 6) da Base Instrutória.
3) Sem prescindir, alterar as respostas dos quesitos 1) para “provado” 6) para “não provado”, revogando-se em consequência o despacho do Tribunal “a quo” de 24/04/2013 (5482896) que ordenou a consignação em depósito da quantia de 37.409, 89€, bem como a alínea I) da sentença produzida …”
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a resolver:
Devidamente interpretadas e colocadas na correcta sequência lógica, as conclusões das alegações dos recursos colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
● Se a autora é parte legítima;
● Se a herança está devidamente representada em juízo;
● Se ocorre a excepção de caso julgado entre a presente acção e a anterior acção que correu termos entre as partes tendo por objecto o imóvel também objecto do contrato-promessa;
● Se, não ocorrendo a excepção do caso julgado, estamos perante uma situação de autoridade de caso julgado;
● Se está plenamente provado por documento que o réu recebeu o sinal que no contrato declarou ter recebido;
● Se a base instrutória podia ter sido alterada no tocante ao facto controvertido n.º 6;
● Se a decisão da matéria de facto relativa aos factos controvertidos nos. 1 e 6 deve ser alterada;
● Se o direito do promitente-comprador se extinguiu por morte deste;
● Se a acção deve ser julgada improcedente por o cumprimento da promessa não ser exigível ao réu;
● Na hipótese de a acção dever proceder, qual o preço que a autora deve pagar ao ré.
● Se o réu litiga de má fé na instância de recurso.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A) A autora é herdeira e cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu marido, D…, falecido em 07/11/2003 e com última morada na rua …, n.º …, ..º direito, freguesia …, concelho de Guimarães, sendo seus únicos herdeiros a autora viúva e os filhos C…, aqui réu, e a interveniente E… - cópia da habilitação de herdeiros junta a fls. 21/22, que aqui se dá por integralmente reproduzida;
B) O réu é dono da fracção autónoma AL, correspondente ao 3.º andar esquerdo, destinado a habitação, Tipo 3, sito no Bloco . do …, … ou do …, na cidade de Vila do Conde, à qual pertence uma garagem na cave do prédio identificada pelas letras AL do Bloco ., descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º 01894/19931125 - Vila do Conde, inscrita na matriz urbana respectiva sob o artigo 6888 AL – documento de fls. 23 a 26;
C) Com data de 30 de Junho de 1997 o réu C… e seu falecido pai rubricaram e subscreveram o documento[1] de fls. 27 e 28, com o seguinte teor:
“Contrato promessa de compra e venda:
Contrato promessa de compra e venda que entre si fazem, por um lado e como primeiro outorgante - promitente/vendedor – C…, solteiro, maior, proprietário, residente na Rua …, … - .° Dto., da freguesia …, deste concelho de Guimarães e, por outro lado e como segundo outorgante - promitente/comprador – D…, casado no regime da comunhão de adquiridos com B…, residente na Rua …, … - .° Dto., da freguesia … também deste concelho de Guimarães:
PRIMEIRO: - Diz o primeiro outorgante - promitente/vendedor - que é dono e legítimo possuidor da fracção autónoma designada pelas letras "AL" correspondente ao terceiro andar, esquerdo, para habitação, do tipo "T-TRÊS", com a área de cento e quarenta e oito metros quadrados e garagem na cave, com área de trinta e oito metros quadrados, identificada pelas letras "AL", do Bloco ., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado …, sito no … ou …, da cidade de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho, sob o número zero mil oitocentos e noventa e quatro, da freguesia de Vila do Conde, com o título constituído do dito regime registado na mesma conservatória pela inscrição F-dois e inscrito no artigo 6888 da matriz urbana respectiva.
SEGUNDO: Que sendo, como é, ele primeiro outorgante - promitente/vendedor - dono e legítimo possuidor da identificada fracção autónoma, a promete vender, completamente livres e desembaraçados de quaisquer ónus ou encargos, ao segundo outorgante, promitente/comprador - ou à pessoa ou pessoas que o mesmo vier a designar - pelo preço de 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos), preço este do qual, antes deste acto, já receberam a quantia de 7.499,000$00 (sete milhões quatrocentos e noventa e nove mil escudos), montante este de que o promitente/vendedor lhe dá a competente quitação.
TERCEIRO: O remanescente do preço ainda em divida, ou seja, a quantia de 1.000$00 (mil escudos), será pago ao primeiro outorgante no acto da escritura definitiva de que este contrato é promessa, escritura essa a outorgar na Secretaria Notarial desta cidade de Guimarães logo que o aqui segundo outorgante - ou a pessoa que o mesmo vier a designar o deseje, bastando, para o efeito, o envio de um simples postal registado, com a antecedência mínima de dez dias em relação à data aprazada para a outorga da mesma escritura.
QUARTO: - Óbvio é que as despesas da escritura e respectivas sisas serão da responsabilidade do aqui segundo outorgante, promitente/comprador como, de resto, é de Lei.
QUINTO: - Pelo segundo outorgante – promitente/comprador - é dito que aceita o supra clausulado e, nomeadamente, a quitação que lhe foi dada pela primeira, promitente/vendedor, em relação à quantia que lhe entregou.
SEXTO: - Por ambos os aqui outorgantes é declarado que se adstringem às estipulações deste contrato e aqui atribuem às suas declarações dele constantes a eficácia do cumprimento específico prevista no art.º 830° do CÓDIGO CIVIL.
Por ser verdade mandamos dactilografar o presente contrato que, depois de lido, vai por todos ser assinado. GUIMARÃES, 30 de Junho de 1997.”
D) A autora, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido e pai dos requeridos E… e C…, requereu e obteve a notificação judicial avulsa dos identificados filhos e herdeiros de que marcou o dia 1 de Março de 2006, pelas 10 horas, no Cartório Notarial do Notário F…, sito na …, Bloco .., ., na freguesia …, Guimarães para as escrituras das prometidas vendas ao falecido pai, designadamente, quanto ao filho C…, da fracção AL referida em A);
E) Não obstante ter comparecido no Cartório onde seria outorgada a escritura, o réu recusou a sua outorga, tendo afirmado, como a sua irmã, “que a herança não se encontrava devidamente representada e ainda que assim não se entendesse que o negócio jurídico previsto na minuta de escritura pública de compra e venda que lhes foi apresentada, não correspondia ao negócio acordado entre as partes”.
F) O valor comercial da fracção AL ronda os €180.000,00 (cento e oitenta mil euros).
G) Ao outorgar o contrato promessa referido em C), o marido da autora pretendeu assegurar a possibilidade de, querendo e podendo, fazer reverter para si a transmissão do prédio, o que era do conhecimento do réu.
H) Tudo com consentimento e anuência da autora.
I) O réu não recebeu do seu pai qualquer importância, nem este quis pagar-lha.[2]

IV. O Direito:
São diversas e de vária índole as decisões impugnadas pelos recorrentes e as questões colocadas pelos mesmos. Em função do seu enquadramento sistemático e da prejudicialidade que poderão gerar para o conhecimento das demais, afigura-se-nos adequado que a abordagem dos recursos e a respectiva decisão seja feita não pela ordem com que foram apresentados mas pela seguinte ordem:
a] excepção da ilegitimidade da autora e da falta de representação da herança demandante;
b] excepção do caso julgado ou da autoridade do caso julgado;
c] legalidade da alteração da base instrutória e aditamento de novos factos;
d] impugnação da decisão da matéria de facto;
e] mérito jurídico da sentença na parte em que julgou a acção procedente;
f] mérito jurídico da sentença na parte em que decidiu que o preço de €37.409,84 está por pagar e dever ser entregue ao réu através do depósito efectuado nos autos por determinação do tribunal.
Avancemos na sua análise.

a] excepção da ilegitimidade da autora e da falta de representação da herança demandante
Na petição inicial a autora apresentou-se a demandar “por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de D…”. Ao formular o pedido de execução específica do contrato-promessa, a autora concluiu no sentido de ser proferida sentença que declare “transferida para a herança … quanto a metade e para a própria autora quanto à sua meação”.
Na contestação o réu defendeu que a autora é “parte ilegítima” pois que enquanto cabeça de casal da herança nada pode pedir para si, como se a partilha já estivesse feita, mas também nada pode pedir para a herança porque o acto que pretende exercer não é de mera administração, mas de aquisição, e apenas pode ser praticado conjuntamente por todos os herdeiros.
Após a réplica da autora que refutou essa defesa do réu, foi proferido despacho convidando a autora a aperfeiçoar a petição inicial no tocante à especificação da qualidade em que demanda e ao pedido e a provocar a intervenção da terceira pessoa (a filha) que além dela e do réu (o filho) constituem o conjunto dos herdeiros da herança aberta por óbito do promitente-comprador (seu marido).
Para fundamentar esse convite, após longas transcrições de uma obra doutrinária e de três Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, argumentou-se o seguinte:
“…a A. não pode apresentar-se a litigar, ao mesmo tempo, como cabeça de casal da herança em que é meeira e herdeira e em nome próprio, pedindo para si metade da fracção prometida comprar pelo seu falecido marido… Também não pode a A. apresentar-se, na qualidade de cabeça de casal, a requerer a execução específica do contrato-promessa, pois a aquisição de imóvel prometido vender não é acto de administração, antes é acto de aquisição que, nos termos do n.º 1 do art. 2091º do CC, exige a intervenção de todos os herdeiros em litisconsórcio necessário. É claro que o R. não pode ocupar, simultaneamente, a posição de co-autor, ao lado da mãe, e a de Réu. Mas deve a A. intervir na qualidade de herdeira de seu defunto marido … e fazer intervir a outra herdeira …”
A autora acedeu a este pedido e, para além de provocar a intervenção de terceiro, que foi admitida e concretizada, na petição inicial aperfeiçoada que apresentou passou a apresentar-se exclusivamente “na qualidade de herdeira da herança aberta” por óbito do seu marido. E na formulação do pedido passou a reclamar apenas, por efeito da sentença a proferir, a transferência do bem objecto da promessa “para a herança aberta por óbito” do seu marido.
Perante esta alteração da configuração da acção, o réu veio reiterar a invocação “da ilegitimidade da herança, que não deliberou instaurar a acção, nem pode estar representada porque um dos seus elementos está a ser demandado”, e a autora reiterou a resposta que em sede de réplica ofereceu a essa alegação do réu.
No despacho saneador que se seguiu decidiu-se que as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas. “De facto, depois da intervenção da herdeira … E…, estão na acção todos os herdeiros que … são a viúva, aqui A., o filho C…, ora R. e a interveniente filha … E…. Cumprido está o disposto no art. 2091.º do CC, podendo todos os herdeiros discutir os direitos emergentes do contrato promessa cujos direitos do promitente-comprador se transmitiram para os seus sucessores, nos termos do art. 412.º do CC.”
O réu torna a esta questão no recurso da sentença final. Em conformidade com o regime previsto no artigo 691.º do Código de Processo Civil, em vigor à data da prolação do despacho saneador, esse recurso só podia ser interposto agora mesmo, com o recurso da sentença final, nos termos do n.º 3 do citado preceito, por não estar em causa nenhuma das decisões referidas no n.º 2 do preceito que tinham de ser objecto de recurso imediato, sob pena de transitarem em julgado.
Defende o recorrente que o tribunal, “ao não resolver que a herança não tinha personalidade judiciária, nem estava devidamente representada”, deixou de pronunciar-se sobre a questão que deveria ter apreciado, cometendo a nulidade do artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Todavia, esta afirmação não está em conformidade com o que os autos revelam.
No despacho saneador o tribunal decidiu que as partes têm personalidade judiciária e legitimidade. E fê-lo depois de no anterior despacho de convite ao aperfeiçoamento explicar o seu entendimento sobre quem devia estar na acção a demandar e em que termos. Portanto, o tribunal não deixou de se pronunciar sobre a questão da personalidade judiciária e da legitimidade activas e, inclusivamente, de fazer com que a configuração do processo obedecesse à sua leitura de tais pressupostos processuais. Logo, não cometeu a nulidade de omissão de pronúncia. O mais que o recorrente pode defender é que a decisão devia ser diferente, mas isso prende-se já com o mérito da decisão e dos respectivos argumentos, não com a falta dela ou com qualquer omissão decorrente dessa falta.
Passando então à análise do mérito desta questão, o primeiro aspecto que urge ser elucidado é do que estamos mesmo a falar: de falta de personalidade judiciária, de falta de legitimidade ou de irregularidade de representação.
Se a demandante é a pessoa singular que dá pelo nome de B…, é evidente que ela possui personalidade judiciária já que a qualidade de pessoa humana viva lhe atribui personalidade jurídica (susceptibilidade de ser titular de direitos) e esta lhe confere personalidade judiciária (susceptibilidade de demandar ou ser demandada em juízo), sendo que a sua maioridade e a ausência de notícia de que esteja decretada em relação à mesma qualquer incapacidade, lhe possibilita estar em juízo por si mesma e sem necessidade de representante. Nessa situação, o que se poderia questionar é se a autora tem legitimidade para demandar o réu, uma vez que ela não interveio no contrato-promessa que dá causa de pedir à acção.
Mas se a demandante é afinal a herança aberta por óbito de D… afigura-se-nos que já não se poderá questionar se esta tem legitimidade, por nos parecer manifesto que tendo o de cujus celebrado em vida um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel e permanecendo esse contrato, no momento da abertura da herança, por cumprir ou por resolver, a herança é, obviamente, titular da relação material controvertida constituída por essa relação contratual, possuindo manifesto interesse jurídico em demandar a outra parte no contrato, independentemente da viabilidade da sua pretensão (que reporta já ao mérito, não aos pressupostos processuais da lide). Nessa situação, o que se poderá questionar, então, é se a herança possui, como tal, personalidade judiciária e, possuindo-a, se encontra regularmente representada em juízo.
Como vimos, inicialmente a autora apresentou-se a demandar “por si”, ou seja, no exercício de um direito próprio e em nome próprio, enquanto titular do direito que pretendia exercer, e ainda na “qualidade de herdeira”.
Ora, só se tem a qualidade de herdeiro entre o momento da abertura da herança (até esse momento é-se presumível herdeiro) e o momento do seu repúdio (por renúncia ao direito) ou da sua partilha (por especificação em bens concretos do direito hereditário na universalidade do acervo), sendo certo que para evitar qualquer hiato no domínio e posse dos bens que pertenciam ao falecido estas duas situações retrotraem os seus efeitos ao momento da abertura da sucessão e, portanto, tudo passa como se a transmissão (no caso da partilha) ou não transmissão (no caso do repúdio) dos bens do de cujus para os herdeiros (ou aqueles que tinha essa posição jurídica) se operasse instantaneamente no momento da abertura da herança. Após a partilha, o herdeiro passa a ser titular de um direito próprio sobre os bens herdados que integraram o respectivo quinhão hereditário (artigo 2119.º do Código Civil), relativamente aos quais passa a exercer direitos não na qualidade de herdeiro, mas a título e em nome próprio. Portanto, quando a autora afirma litigar “na qualidade de herdeira” está a pretender que a sua posição na lide visa o exercício ou a defesa de direitos da herança aberta e indivisa (ainda por partilhar).
Sucede que, uma vez aberta, a herança pode ser jacente ou já não o ser. Diz-se jacente a herança que ainda não foi aceite nem declarada vaga para o Estado (artigo 2046.º do Código Civil). Uma vez aceite (por qualquer dos herdeiros, pois não existe uma obrigação de aceitação simultânea para todos os herdeiros) a herança deixa de ser jacente, mas não é por isso que se extingue, ela só se extingue com a respectiva liquidação e partilha.
A lei preocupa-se com o património do de cujus e com o vazio criado pela morte deste. Por isso, da mesma forma que dispõe que a aceitação, o repúdio e a partilha retrotraem os seus efeitos à data da abertura da sucessão, dispõe sobre a administração da herança. E aí distingue consoante a herança ainda está jacente ou já não está jacente.
Na primeira situação, exactamente porque ainda nenhum dos sucessores chamados aceitou a herança, para evitar a perda ou deterioração dos bens prevê a nomeação de um curador da herança (artigo 2048.º do Código Civil) e consente mesmo que qualquer sucessor chamado à herança que ainda não a tenha aceitado nem repudiado possa providenciar pela administração dos bens, ainda que não seja sua intenção aceitá-la ou queira repudiá-la (artigo 2047.º do Código Civil). Nessa situação, exactamente porque ainda ninguém se apresentou a aceitar a herança, a lei confere inclusivamente à herança jacente personalidade judiciária. A razão percebe-se pelo teor do próprio artigo 6.º, alínea a), do Código de Processo Civil (hoje o artigo 12.º) que refere a “herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado”. O que justifica essa extensão de personalidade judiciária à herança é precisamente o facto de o seu titular ainda não se encontrar determinado, o que apenas sucederá com a aceitação, e, portanto, este ainda não se poder apresentar como titular do interesse material em discussão e assumir a posição de parte no processo.
É preciso anotar, no entanto, que o artigo 6.º representa uma extensão da personalidade judiciária a quem não tem personalidade jurídica. Quando atribui personalidade judiciária à herança jacente, a lei fá-lo porque de outra forma, não tendo ainda personalidade jurídica, a herança jacente não era susceptível de ser parte. Mas isso não significa, e é aqui que se dá a primeira falha da argumentação do recorrente, que por prever apenas a herança jacente, a lei pretenda afirmar que a herança já aceite e que deixou, como tal, de ser jacente, não possua também personalidade judiciária[3]. A norma estende a personalidade a quem não a tinha, não a retira a quem a tenha por mera decorrência da sua própria personalidade ou estatuto jurídico.
Aliás, quando o recorrente se esforça por defender que neste caso teria de se proceder previamente como disposto no regime das sociedades civis, esquece que o artigo 6.º do Código de Processo Civil (hoje o artigo 12.º) também estende a personalidade judiciária às sociedades civis, pelo que por essa via nunca poderíamos estar a falar em falta de personalidade judiciária da demandante, mas quando muito a questionar a sua representação em juízo.
A herança constitui como sabemos um património autónomo, uma universalidade de coisas e direitos. E sobre ela incidem encargos específicos indicados nos artigos 2068.º e 20170.º do Código Civil que são próprios da herança e não dos herdeiros, no sentido de que a responsabilidade pelo seu cumprimento recai sobre a massa patrimonial que constitui a herança e não sobre o património dos herdeiros. Como refere Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, II, 2.ª edição, pág. 109, “pelos encargos da herança é directamente responsável, nos termos dos artigos 2068.º e 2069.º do Código Civil, a massa patrimonial que constitui a herança (…). Esta tónica objectivista na determinação da responsabilidade pelos encargos da herança é um reflexo da autonomia patrimonial da herança e do seu carácter de universalidade de direitos. O que é sobretudo patente no caso da herança indivisa, em que se está perante um património autónomo directamente responsável (art. 2097.º do CCiv) e em que os herdeiros apenas têm de intervir como contitulares desse património (art. 2091.º do CCiv)”.
Para zelar por este património autónomo, uma vez aceite a herança, a lei distingue os actos de administração dos demais actos. Relativamente aos actos de administração, a actuação em representação da herança cabe ao cabeça de casal. Para esses actos este dispõe de poderes próprios de representação, embora naturalmente não discricionários na medida em que está obrigado a prestar contas e a sua actuação encontra-se subordinada ao critério da conveniência para os interesses da herança (artigos 2070.º, 2087.º e 2093.º do Código Civil). Para todos os demais actos que não sejam de administração, os direitos relativos à herança já não podem ser exercido apenas pelo cabeça de casal, nessa qualidade e, portanto, em representação da herança, e têm antes de ser exercidos, conjuntamente, por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (artigo 2078.º do Código Civil). A única excepção é constituída pela acção de petição de herança que nos termos do artigo 2078.º do Código Civil pode ser instaurada por qualquer dos herdeiros, separadamente.
Cabe perguntar se a presente acção tem a configuração de acção de petição de herança, caso em que podia ser instaurada por qualquer dos herdeiros isoladamente, ou está compreendida no âmbito dos actos de administração, caso em que podia ser instaurada pelo herdeiro que tem a qualidade de cabeça de casal, como sucede em qualquer dos casos com a demandante (cônjuge-viúvo).
Acção de petição de herança não é porque o âmbito desta encontra-se definido no artigo 2075.º do Código Civil e nele não parece caber a presente acção. Segundo este normativo a causa de pedir da acção de petição de herança é o reconhecimento da qualidade de herdeiro do demandante, sendo a restituição dos bens da herança, enquanto universalidade, pelo terceiro demandado mera consequência do reconhecimento dessa qualidade, excepto se o terceiro demonstrar que adquiriu a título oneroso e de boa fé qualquer direito sobre os bens reclamados.
É óbvio que o peticionante não necessita de pedir a restituição de exactamente todos os bens da herança, na medida em que a detenção pelo terceiro pode recair apenas sobre parte deles, da mesma forma que o herdeiro também pode desconhecer a existência de outros bens da herança outros para além daqueles cuja restituição pede. Todavia, mesmo que incida sobre um único bem dos diversos que compõem a herança, a acção de petição de herança continua a distinguir-se da acção de reivindicação por versar sobre a universalidade da herança e ter como causa de pedir a sucessão mortis causa (cf. Capelo Sousa, loc. cit., pág. 41, nota 598).
Ora na presente acção não está em causa a qualidade de herdeiro da autora, nem essa qualidade foi questionada em momento algum pelo demandado, porque também ele é herdeiro, são mãe e filho, herdeiros do falecido, marido e pai de ambos, respectivamente. E também não está em causa que o bem a entregar faça parte da herança, porque está implícito no pedido de execução específica do contrato-promessa que o bem é do promitente-vendedor e que só através da sentença a proferir na acção o mesmo será transmitido (passando a pertencer-lhe) ao adquirente (a herança). Por conseguinte, não seria ao abrigo do disposto no artigo 2078.º do Código Civil que a herdeira do falecido promitente-comprador poderia instaurar esta acção.
No que concerne ao conceito de actos de administração, os que podem ser realizados apenas pelo cabeça de casal sem intervenção conjunta dos restantes herdeiros, deve referir-se que estamos perante um conceito normativo que não se encontra definido legalmente em termos genéricos. A lei não faculta uma noção de actos de administração ordinária, limita-se a indicar casos de actos que o cabeça de casal pode praticar por si mesmo e que, como tal, revelam que para a lei são concretização do conceito de administração ordinária (entre outros, cf. os artigos 2088.º, 2089.º, 2090.º do Código Civil).
Para Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, 1983, vol. II, pág. 61, são actos de administração ordinária “os que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas certas operações – arrojadas e ao mesmo tempo perigosas –que podem ser de alta vantagem, mas que podem ocasionar graves prejuízos para o património administrado. Ao mero administrador são proibidos os grandes voos, as manobras audaciosas, que podem trazer lucros excepcionais mas também podem levar a perdas catastróficas. É doutrina pacífica que entra na mera administração tudo quanto diga respeito: 1) a prover à conservação dos bens administrados; 2) a promover a sua frutificação normal. Por outro lado é seguro também que não pertencem à mera administração – sendo actos de disposição – os negócios que alterem a própria substância do património administrado, que importem a substituição de uns bens por outros, que afectem, numa palavra, o capital administrado, pondo-o em risco, por importarem um novo e diverso investimento desse capital. Por ex.: vender os prédios que constituem o capital confiado ao administrador para dar qualquer outra aplicação ao respectivo preço; comprar prédios com dinheiro que faça parte do mesmo capital ”[4].
No caso existe um pormenor que a nosso ver faz toda a diferença do ponto de vista da interpretação e aplicação da lei ao caso concreto. Referimo-nos à circunstância de no contrato-promessa que constitui a causa de pedir o promitente-comprador e o promitente-vendedor declararem que se encontra já paga a quase totalidade do preço, sendo o valor residual perfeitamente insignificante (dos €37.409,84 que são o preço fixado, declarou-se pago o valor de €37.404,85, relegando-se para o momento da escritura o pagamento do valor irrisório de €4,99), numa manifestação exuberante de que para os promitentes, na prática, não haveria de facto mais qualquer contrapartida a suportar pela transmissão do direito de propriedade.
O que está em causa na decisão da instauração da acção não é saber se se justifica adquirir o imóvel para a herança mediante o pagamento de €37.409,84, mas sim saber se se justifica evitar perder a quantia de €37.404,85 entregue por conta do preço, pagando apenas mais €4,99 para fazer ingressar na herança património imobiliário que há 15 anos tinha o valor de €37.409,84 (foi comprado por esse preço).
Portanto, a tónica não deve ser colocada no custo do imóvel que se pretende que a herança adquira e na relação custo-benefício para a herança de um tal encargo (a compra e venda), mas na necessidade que a herança tem de pedir a execução específica do contrato-promessa para evitar perder definitivamente um valor significativo despendido em vida pelo de cujus para compra de um imóvel que ainda não se concretizou. Do que se trata é ainda de optar pela única via possível para conservar e frutificar o direito contratual de promitente-comprador de algo cujo preço já se pagou praticamente por inteiro e sem o que se perde a quantia e se acaba sem o bem cujo preço aquela se destinava a pagar (evita-se um prejuízo obtendo a vantagem correspectiva).
Neste contexto, afigura-se-nos perfeitamente aceitável considerar que a instauração da acção pela cabeça de casal constitui mesmo um acto de administração ordinária, um acto que se insere ainda no âmbito da actuação de mera administração uma vez que tem como escopo e critério ainda e apenas a conservação e frutificação normal dos bens (incluindo direitos) administrados[5]. A ser assim, como entendemos, a cabeça de casal podia perfeitamente, ao abrigo do artigo 2079.º do Código Civil, instaurar a presente acção, invocando essa qualidade e, portanto, actuando em representação da herança ilíquida e indivisa, por si só, sem necessidade da intervenção da outra herdeira determinada em 1.ª instância.
Mas não se entendendo assim, nem por isso a questão ficaria resolvida, sem mais, em sentido negativo, como preconiza o recorrente, fazendo apelo ao artigo 2091.º do Código Civil.
O conflito a que a acção responde está subjectivamente delimitado aos próprios herdeiros do falecido promitente-comprador. As partes possíveis da acção são em qualquer circunstância os herdeiros daquele e a contenda resulta precisamente do facto de existir entre o herdeiro que ocupa a posição de promitente-vendedor e a herança um manifesto conflito de interesses.
Este herdeiro não tem qualquer interesse na execução específica do contrato-promessa porque se esta não for pedida conserva como sua a quantia recebida para princípio de pagamento e mantém a propriedade exclusiva do imóvel. Ao invés, se a execução específica for decretada conserva, é certo, a quantia, mas perde a propriedade total do imóvel e passa a ter sobre ele (rectius: sobre o conjunto que ele passa a integrar) apenas uma quota hereditária, sendo que a autora, além da quota hereditária na herança, possui ainda a sua própria meação nos bens deixados pelo de cujus. A acção não acarreta por isso qualquer vantagem para o réu, antes é-lhe desvantajosa. Daí que se lhe fosse autorizado decidir sobre a instauração da acção a sua opção tendesse a ser negativa.
Afigura-se-nos absolutamente claro que a ordem jurídica não pode consentir este impasse, melhor dizendo, que o réu possa impor à herança, invocando a sua qualidade de herdeiro, uma decisão que é contrária aos interesses da herança, em seu benefício exclusivamente pessoal, mas em prejuízo dos demais herdeiros!
Qualquer solução que possa impedir a autora e os demais herdeiros de instaurar a acção sem obter a concordância do réu ou só porque o réu assim quer, traduzir-se-á num flagrante abuso de direito – por exceder manifestamente o fim social do direito dos herdeiros, pensado para preservar o direito hereditário, não para o prejudicar – e numa solução claramente inconstitucional por cercear intolerável e desproporcionadamente o direito da autora de acesso à justiça para defesa da sua meação nos bens comuns e dos seus direitos hereditários.
Parece, no entanto, que não é necessário ir tão longe porque, como normalmente sucede, a ordem jurídica fornece soluções adequadas. A primeira delas, curiosamente, é avançada pelo próprio recorrente e consiste na via da aplicação ao conjunto dos herdeiros da herança indivisa, com vista ao exercício dos direitos que apenas possam ser exercidos por todos conjuntamente, o regime da compropriedade e das sociedades civis por aplicação do disposto no artigo 1404.º, que manda aplicar, com as necessárias adaptações, as regras da compropriedade à comunhão de quaisquer outros direitos, e no artigo 1407.º, ambos do Código Civil, que manda aplicar aos contitulares, com as necessárias adaptações, o disposto sobre a tomada de decisões nas sociedades civis.
Segundo dispõe o artigo 985.º do Código Civil, nas sociedades civis, havendo divergência entre os sócios sobre a prática de determinados actos que contendem com o objecto e o património afecto à sociedade, a decisão é tomada por maioria. Essa maioria, no entanto, não é tomada por cabeça, em função do número de sócios, mas antes em função das respectivas entradas como resulta do disposto nos artigos 983.º e 992.º do mesmo diploma.
Sendo assim, aplicando com as necessárias adaptações este regime ao direito dos herdeiros na herança indivisa, somos obrigados a levar em conta o quinhão de cada um dos herdeiros no acervo hereditário que está em causa no acto a praticar. A autora B… tem nesse acervo o direito à meação e ainda o direito hereditário enquanto cônjuge sobrevivo. Consta da habilitação de herdeiros junta a folhas 21 e seguintes que o de cujus faleceu sem deixar testamento ou qualquer disposição de última vontade. Assim, no acervo hereditário, o cônjuge sobrevivo tem um direito correspondente a ½ (a sua meação) e mais 1/3 (artigo 2139.º do Código Civil), o que perfaz afinal uma quota superior ao conjunto das quotas de todos os demais herdeiros.
Em resultado disso, segue-se, por esta via, que a decisão da autora de instaurar a acção podia perfeitamente ser tomada pela mesma e vincula os demais herdeiros. Só falta aqui o processo deliberativo, mas, como é óbvio, estando em causa a aplicação de um determinado regime com as necessárias adaptações, e inexistindo norma que imponha um processo formal de deliberação, não se vê que daí advenha qualquer obstáculo à legitimidade da decisão da autora.
Outra via possível passa pela aplicação analógica ao conjunto dos herdeiros, no que toca à herança, do regime das associações, com fundamento no disposto no artigo 157.º do Código Civil que determina a aplicação das disposições do capítulo relativo às pessoas colectivas também às sociedades civis, quando a analogia das situações o justifique.
No regime jurídico das pessoas colectivas definido no Código Civil conta-se precisamente o artigo 176.º que prescreve que nas associações “o associado não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes”. Esta norma apresenta a solução para as situações em que entre o associado (ou um seu familiar) e a associação existe um conflito de interesses (de um lado o interesse da associação, ou seja, o interesse colectivo, e, do outro, o interesse particular do associado, existindo entre eles oposição e incompatibilidade), solução essa que consiste em o associado não poder votar as decisões relativas às matérias em que existe esse conflito.
Trata-se, cremos bem, de uma situação perfeitamente análoga à que nos ocupa nos autos e na qual é manifesto o conflito de interesses entre o réu e a herança, o que, na falta de uma previsão específica ao nível do direito sucessório, justifica a aplicação analógica desta solução ao referido conflito de interesses. A aplicação da mesma conduz ao desfecho de a decisão da autora de instaurar a acção contra o réu, igualmente herdeiro, não carecer de obter a concordância deste, bastando a decisão dos restantes herdeiros, isto é, a própria autora e a herdeira feita intervir nos autos ao lado da autora. Por conseguinte, estavam reunidos os requisitos necessários para a instauração de uma acção com a configuração da presente, por iniciativa (decisão) da autora, invocando a sua qualidade de herdeira, ou seja, pretendendo exercer direitos e interesses da herança já não jacente mas ainda indivisa.
Coisa diversa é saber se a herdeira que instaurou a acção tinha poderes de representação da herança. Resultando do artigo 2091.º do Código Civil que determinados direitos devem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, parece que a solução seria a de exigir que na acção que tenha por objecto um desses direitos a herança seja representada por todos os herdeiros. Aponta nesse sentido o artigo 22.º do Código de Processo Civil.
Sucede que por força da intervenção principal da outra herdeira, estão na acção todos os herdeiros. Dois do lado activo e um do lado passivo, sendo que este herdeiro encontra-se deste lado da lide por residir nele também a qualidade de único titular da relação material controvertida, pelo lado passivo, único interessado em contradizer, única pessoa que pode ficar prejudicada pela procedência da acção. Esta exclusividade do réu na posição passiva na lide, faz com que não possa ser outro o demandado, que ele e só ele tenha de ocupar a posição de réu. Então, como ninguém pode ser simultaneamente autor e réu e este concreto réu não pode deixar de o ser, só podemos mesmo concluir que basta a presença no lado activo da lide da totalidade dos restantes herdeiros, que é o que aqui sucede. A tese preconizada pelo réu de que não podendo deixar de ser réu e não podendo, por isso, estar também na posição de autor, ninguém sem ele podia instaurar a acção, é obviamente indefensável, pois significaria que uma mera questão de forma impediria em absoluto o exercício judicial de um direito legítimo, o que constitui um absurdo jurídico que o réu, com um mínimo de seriedade, não pode deixar de reconhecer.
Milita nesse sentido também o argumento do conflito de interesses, que referimos no tocante à tomada da decisão, não fazendo qualquer sentido que alguém esteja impedido de votar uma decisão mas deva, ainda assim, ser chamado a exercer a representação na acção destinada a exercer judicialmente o conteúdo da decisão. Este argumento encontra, aliás, manifestação no n.º 2 do artigo 21.º do Código de Processo Civil ao nível da representação das pessoas colectivas, o qual pode ser visto como uma emanação de um princípio geral de direito processual de que numa acção judicial não pode actuar como representante de uma entidade colectiva quem com ela estiver em conflito de interesses.
Concluímos assim, que no tocante às partes e à sua representação em juízo a instância não enferma de qualquer vício ou irregularidade que impedisse a instauração da acção ou o seu prosseguimento, tal como se encontra configurada e após a intervenção principal activa da terceira herdeira, para conhecimento do mérito. Improcedem assim as conclusões das alegações de recurso do réu sobre esta questão jurídica.

b] excepção do caso julgado ou da autoridade do caso julgado:
Anteriormente à presente acção e tendo por objecto o mesmo imóvel que é objecto dos pedidos desta, correu termos uma outra acção que recebeu o n.º 3663/05.7TBVCD, cuja decisão coube a este Tribunal da Relação do Porto e à mesma secção, embora a outro colectivo.
Essa acção foi instaurada pelo aqui réu C… contra a sua mãe B…, não na qualidade de herdeira, mas por si própria. Nela, alegou que é proprietário do imóvel por o ter comprado por escritura pública e efectuado o registo predial do respectivo direito, além de se encontrar na posse pública e pacifica do mesmo. E alegou que a mãe, “sem título, ilícita e não consentidamente” está a ocupar o imóvel. Terminou pedindo que a ré fosse condenada a reconhecer o seu direito de propriedade e a restituir o imóvel, livre de pessoas e bens, ao autor.
Estávamos, pois, como foi afirmado pela 1.ª instância na respectiva sentença e pelo Tribunal da Relação do Porto no respectivo Acórdão, perante uma típica acção de reivindicação, em que ao lado da invocação de uma forma válida de aquisição do direito real se invocava a detenção do bem por terceiro, sem título válido que o consentisse, e em que se deduzia a pretensão do reconhecimento do direito real e da entrega do bem pelo detentor ilegítimo.
A ré contestou a acção defendendo ser legítima possuidora do imóvel e não estar por isso obrigada a entregar o imóvel ao autor. Para fundamentar essa posição, aceitou que o autor comprou o imóvel, mas o dinheiro foi-lhe emprestado na totalidade pelos pais que pagaram o preço à vendedora, razão pela qual celebraram depois o contrato-promessa que vem de novo à ribalta na presente acção, na sequência do qual, desde 1977, o casal passou a estar na posse do imóvel, aí instalando a casa de férias da família, tratando, cuidado e conservando o imóvel de forma pública e pacífica, posição que desde a morte do pai vem sendo exercida pela ré na qualidade de cabeça de casal.
A defesa da ré consistiu, portanto, na invocação de um justo título para a detenção do imóvel, de um direito de gozo do imóvel – o direito emergente da posse – que, na tese da ré, prevalecia sobre o direito de propriedade e impedia o efeito de sequela que é próprio deste. Esta posição fez vencimento na 1.ª instância, tendo-se entendido que a posição do promitente-comprador e da mulher se havia convertido numa situação de verdadeira posse, obstando ao dever de entrega do imóvel ao proprietário. Mas nesta Relação foi entendido que “os factos apurados e que agora são relevantes não permitem de todo concluir que a ré deva ser considerada como verdadeira e própria possuidora” do imóvel e, como tal, não estavam “verificados os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil e que por isso a restituição do imóvel ao autor não pode deixar de ser aqui ordenada”.
Resulta claro deste relato que na anterior acção o que se discutiu foi somente se o autor era titular do direito de propriedade do imóvel, pedido que foi naturalmente decretado porque a ré não o impugnou (porventura mal, face à natureza fiduciária do negócio de aquisição ou à aquisição por interposta pessoa que estava latente na sua defesa). E discutiu-se também se a ré tinha ou não a posse do imóvel, melhor dizendo, tinha em relação ao imóvel um poder de facto e se esse poder de facto podia ser qualificado como posse legítima com a virtualidade jurídica de impedir o direito do proprietário à entrega do imóvel.
Resulta também claro que na anterior acção não se discutiu nem a validade, nem o cumprimento do contrato-promessa, tal como não se apreciou o conteúdo de qualquer das suas cláusulas. E tal não ocorreu, pura e simplesmente, não só porque nenhuma das partes colocou qualquer questão a esse respeito (nomeadamente o autor, na réplica à defesa da ré) e nenhuma questão de conhecimento oficioso foi detectada, como também porque as mesmas não tinham qualquer relevância para o conhecimento do objecto estrito da acção, tendo a acção podido ser decidida totalmente à margem de questões com essa origem.
Tendo decaído na anterior acção e vendo-se obrigada por força do aí decidido a entregar o imóvel ao autor, veio a ali ré instaurar a presente acção.
Deixemos de lado os pedidos que foram objecto de decisão no despacho saneador no sentido da absolvição da instância [pedido da alínea c) supra] ou do pedido [pedido da alínea d) supra], uma vez que em relação a estes o réu obteve vencimento e, portanto, deles não podia sequer recorrer, como não recorre, e a autora que deles decaiu não recorreu, uma vez que o contexto proporcionado pela sua formulação não é necessário para decidir a excepção que nos ocupa. Centremos a atenção apenas nos pedidos que subsistem por decidir. E antes de o fazer recorde-se que, também nesta parte, o recurso do despacho saneador não podia ser interposto logo após a prolação do saneador, de imediato, mas apenas agora com o recurso da decisão final.
Com a acção, a autora pretende obter a execução específica do contrato-promessa. Para o efeito, alega que o falecido marido celebrou com o réu o contrato-promessa que junta e que na qualidade de herdeira tem o direito de exigir o cumprimento da promessa. Mais alega que instou o promitente-vendedor a outorgar a escritura de compra e venda e que este se nega à sua celebração, tornando necessária a substituição da sua declaração por sentença judicial.
O réu defende-se sustentando, no que aqui interessa, que “tem todos os motivos para recusar” a celebração da compra e venda, alegando que o contrato-promessa foi celebrado como forma de antecipação das partilhas dos bens do casal com os filhos e que tal contrato visava apenas garantir a possibilidade de fazer reverter tal transmissão do prédio durante a vida do falecido marido da autora, nunca tendo sido por si recebida qualquer quantia a título de sinal nem se tendo comprometido perante a autora e seu marido a transmitir a propriedade do imóvel.
Em função desta configuração da acção, é possível afirmar que o que se discute agora já não é se o autor é proprietário (isso foi decidido na anterior acção, sem impugnação da ré, e, coerentemente, está subentendido na posição que esta assume na presente acção como autora), nem tão pouco (quanto aos pedidos que restam) se na sequência do contrato-promessa, a ré, melhor dizendo, a herança, tem uma situação de verdadeira posse do imóvel.
O que se discute na acção é se o contrato-promessa é válido, é susceptível de execução específica e estão reunidos os requisitos para esta poder ser decretada. Nenhuma destas questões foi apreciada ou tinha de o ser na anterior acção, na medida em que nenhuma delas constituía um pressuposto jurídico do que ali havia para decidir e/ou das questões que essas decisões implicavam.
E isso pela óbvia razão de que a posse é uma situação de facto (o corpus ou exercício de poderes de facto sobre uma coisa) acompanhada de um determinada convicção (o animus ou convicção de se ser titular do direito correspondente), pelo que a questão da eventual invalidade do contrato-promessa em nada prejudicava a caracterização da detenção da coisa pelo promitente-comprador como de verdadeira posse. Aliás, para poderem surgir na anterior acção, essas questões teriam de ser alegadas pelo ali autor em sede de resposta à contestação, o que não ocorreu.
Deste relato emerge de modo cristalino, pensamos, que entre as duas acções de forma alguma se verifica a excepção do caso julgado ou deve ser reflectida qualquer consequência em virtude da chamada autoridade do caso julgado ou princípio da preclusão, sendo completamente debalde que o recorrente esgrime, em termos puramente abstractos, em sentido contrário.
É manifesto que entre ambas as acções não existe nem identidade de pedidos (reivindicação versus execução específica de um contrato-promessa), nem identidade de causas de pedir (direito – real - de propriedade versus direito – obrigacional - ao cumprimento do contrato-promessa), sendo questionável até que haja sequer identidade de sujeitos, atenta a sua qualidade jurídica que é a que releva. No primeiro caso defrontavam-se o proprietário e o detentor, no segundo defrontam-se o promitente-comprador e o promitente-vendedor, pelo que sendo embora as mesmas as pessoas físicas[6], não é a mesma a sua qualidade jurídica.
Da mesma forma que não houve nenhuma questão que tenha sido decidida ou devesse tê-lo sido na anterior acção, ou que seja inerente à decisão aí proferida, em termos de se poder afirmar que sem a tomada de posição sobre essa questão esta decisão não subsistiria ou teria de ser outra, cuja abordagem assuma agora natureza de questão decidenda e possa assim fazer funcionar a autoridade de caso julgado[7].
Finalmente é para nós igualmente óbvio que o direito (ou a afirmação do direito, no sentido da demonstração de se ser titular desse direito de modo válido) que aqui se pretende exercer não tinha a virtualidade de impedir o efeito jurídico pretendido pelo autor da anterior acção (reconhecimento da propriedade e entrega do bem). Pelo contrário, como já vimos, está implícito no pedido de execução específica o reconhecimento de que o bem prometido ainda pertence a quem prometeu vendê-lo.
Nessa medida, a invocação do direito à execução específica não constituía um possível meio de defesa que a aqui autora pudesse ter exercido na anterior acção e cuja invocação posterior tivesse por isso ficado precludida. Aliás, a então ré afirmou expressamente na sua contestação que em função da atitude do autor iria depois instaurar a acção de execução específica para obter a transmissão do imóvel do autor para a herança, independentemente da defesa da posse que nessa acção estava a encetar.
Em suma, improcedem também as conclusões do recurso do réu no sentido de estar verificada a excepção do caso julgado e/ou da autoridade de caso julgado e/ou da preclusão por efeito do trânsito em julgado da anterior acção.
c] legalidade da alteração da base instrutória e aditamento de novos factos:
Prosseguindo nas decisões proferidas ao longo do processo, coube depois à autora insurgir-se contra o decidido na audiência de julgamento (sessão de 7.3.2013; folhas 349) no tocante à alteração da base instrutória com aditamento de um novo facto controvertido. Trata-se de novo de uma decisão que apenas pode ser objecto de impugnação agora com o recurso da decisão final (artigo 691.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, hoje o 644.º).
Na petição inicial, a autora alegou que o réu, conforme declarou no próprio contrato, no âmbito do contrato-promessa e na qualidade de promitente-vendedor, recebeu a quantia de 7.499.000$00 de que deu quitação no contrato. O réu, no último artigo da contestação, alegou o seguinte: “O réu não recebeu de seu pai qualquer importância – que, aliás, seu pai não quis pagar-lhe – nem se comprometeu com ele a transmitir-lhe a propriedade do imóvel, como certo é que o pai não quis prometer comprar-lhe o que quer que fosse”.
Aquando da selecção da matéria de facto, o tribunal, depois de reproduzir na alínea c] da matéria de facto assente o teor integral do contrato, incluiu na base instrutória os seguintes factos controvertidos:
No âmbito do contrato dito em C, o R., na qualidade de promitente vendedor, recebeu o valor de Esc: 7.499.000$00 correspondente a € 37.404, 85? [1]
O pai não quis prometer comprar ao R. o que quer que fosse? [6]
No decurso da audiência de julgamento, a requerimento do réu, parcialmente deferido, o Mmo. Juiz decidiu pela alteração do último facto controvertido, dando-lhe a seguinte nova redacção:
O pai não quis prometer comprar ao réu o que quer que fosse, não tendo o réu recebido de seu pai qualquer importância, nem tendo este querido pagar-lha? [6]
Como se observa com facilidade, em resultado desta alteração passou a estar na matéria assente que o réu e o seu pai subscreveram o contrato-promessa no qual foi declarado pelo promitente-vendedor já “ter recebido” por conta do preço do imóvel a quantia de 7.499,000$00, montante de que “dá a competente quitação”. E passaram a estar na matéria controvertida dois factos distintos inquirindo, no artigo 1.º, se “o réu recebeu”- facto positivo -, e, no artigo 6.º, se o réu “não recebeu” – facto negativo - a quantia que no contrato declarou ter recebido.
A selecção da matéria de facto não é, em circunstância alguma, um acto decisório, que decida o que releva e, pela negativa, o que não releva para o conhecimento do mérito da causa, limites que apenas provêem dos articulados das partes e da sua iniciativa de alegação. Daí que constitua doutrina e jurisprudência absolutamente pacíficas o entendimento de que a condensação da matéria de facto constitui somente uma peça processual de selecção da matéria alegada em função das soluções plausíveis de direito, que não é definitiva e tem natureza puramente instrumental em relação aos fins do processo, pelo que não forma caso julgado.
Na vigência do anterior Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu mesmo o Assento nº 14/94, que actualmente tem o valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), no qual decidiu que mesmo que não tenha havido reclamações nem sido impugnado o despacho que as decidiu, a especificação pode ser sempre alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio. Este entendimento manteve-se absolutamente válido até ao Decreto-Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho[8], conforme reiteradamente repetiu o Supremo Tribunal de Justiça[9], e alicerça-se na necessidade de dar prevalência a razões de substância e proporcionar condições para a resolução substancial dos litígios e a tutela judicial efectiva[10].
Por outro lado, na data em que foi realizada a sessão da audiência onde foi alterada a base instrutória, a alínea f) do artigo 650.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, conferia especialmente ao juiz que presidia à audiência o poder de providenciar pela ampliação da base instrutória. O Mmo. Juiz “a quo” tinha por isso inequivocamente competência para ordenar a ampliação que ordenou, uma vez que a mesma recaiu sobre um facto expressamente alegado pelo réu na contestação.
Não restando assim dúvidas de que a selecção da matéria de facto podia ser alterada e que o Mmo. Juiz “a quo” podia ter determinando essa alteração no uso dos seus poderes de condução da audiência, o que se pode questionar é se a alteração introduzida corresponde realmente ao que resulta dos autos.
A resposta depende do que se entenda sobre o valor probatório do documento junto aos autos que contém o contrato-promessa. Na verdade, na matéria assente devem ser incluídos apenas os factos que se mostram já plenamente provados e na base instrutória somente os factos que sendo relevantes para o julgamento da acção se mostram ainda carecidos de prova.
À data, dispunha efectivamente o n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil que se têm “por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”, razão pela qual esses factos nunca devem ser incluídos na peça que contém os factos a provar na fase de instrução.
Também o n.º 3 do artigo 659.º dispunha que “na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados”, o que revela que os factos provados por documento não devem estar compreendidos nos que vão ser submetidos a julgamento e, bem assim, que os mesmos devem ser tidos em consideração na sentença ainda que não tenham sido especificados, como deviam.
Diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto (artigo 362.º do Código Civil), como é o caso de um papel onde se desenharam caracteres da linguagem escrita para expressar declarações de vontade dos respectivos subscritores. O documento é autêntico quando foi exarado, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; e é particular em todas as demais situações (artigo 363.º).
Uma vez que são diferentes as formas como são exarados e distintos os graus de segurança quanto ao teor do que se faz constar do documento, os documentos têm forças probatórias diferenciadas. No caso dos documentos autênticos a força probatória plena está associada ao que foi praticado ou percepcionado pela autoridade ou oficial público que o lavrou. No caso dos documentos particulares a força probatória depende da atitude que a parte a quem o documento é imputado toma perante este quando é apresentado em juízo como meio de prova.
Nos termos do artigo 374.º do Código Civil a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas, pela parte contra quem o documento é apresentado.
O artigo 376.º estabelece por sua vez no n.º 1 que o documento particular cuja autoria seja reconhecida, designadamente porque não foi impugnada, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. E no n.º 2 acrescenta que os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Aplicando estes dados legais aos autos, temos que tendo a autora junto o contrato-promessa que se mostra assinado pelo réu e onde lhe são imputadas determinadas declarações de vontade, e não tendo o réu impugnado o documento, alegado que a assinatura do mesmo não seja sua ou arguido a falsidade do documento, este documento passou a fazer prova plena não apenas das declarações contidas no documento, mas também dos factos compreendidos nas declarações que são contrários aos seus interesse na acção, designadamente, o facto de ter recebido a quantia que declarou ter recebido e de que declarou dar quitação[11].
É certo que a prova plena não é uma prova absolutamente inultrapassável ou insusceptível de ser contrariada[12]. Pelo contrário, o artigo 347.º do Código Civil consente expressamente que a prova legal plena possa ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.
Todavia, o preceito logo ressalva a existência de outras restrições especialmente determinadas na lei à possibilidade de se provar que o facto afinal não é verdadeiro. Entre essas restrições conta-se precisamente o artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil que estabelece que o afastamento da força probatória dos documentos particulares cuja autoria tenha sido reconhecida só pode ter lugar mediante arguição e prova da falsidade do documento.
Esse incidente encontrava-se à data previsto e regulado nos artigos 544.º e 546.º do Código de Processo Civil (hoje 444.º e 446.º), não se confundindo com a mera alegação de um facto oposto ao que resulta do documento, que foi aquilo que o réu se limitou a fazer no último artigo da sua contestação ao alegar que não recebeu o que no documento declarou que recebeu (como se no documento não tivesse declarado o contrário e não houvesse que explicar a natureza e génese dessa contradição). Por consequência, não tendo o réu arguido a falsidade do documento, tem de se considerar que o mesmo faz prova plena das declarações que lhe são imputadas no documento e dos factos contidos nessas declarações que lhe são desfavoráveis, não podendo essa força probatória ser mais contrariada nos presentes autos.
Não obsta a este entendimento o facto de o artigo 394.º do Código Civil prescrever que é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares cuja autoria foi reconhecida, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
Este preceito, que parece admitir outros meios de prova que não a prova testemunhal e que frequentemente é interpretado de forma restritiva[13], admitindo-se apesar dele a prova por testemunhas quando existe já um princípio de prova escrita do facto a provar, tem o seu campo de aplicação restrito aos factos que não estejam cobertos pela força probatória plena dos documentos, uma vez que se tal suceder, como demonstrámos, o afastamento do valor da prova plena só é possível mediante a dedução e prova da falsidade do documento[14]. No fundo é a mesma razão de ser que justifica o n.º 2 do artigo 393.º do mesmo diploma, segundo o qual também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
Resulta assim demonstrado que afinal nem o facto controvertido n.º 1, nem o facto controvertido n.º 6, este na parte aditada na audiência de julgamento, deviam ter sido elaborados uma vez que a matéria do recebimento da quantia mencionada no contrato-promessa estava plenamente provada e que a demonstração de que esse facto não é verdadeiro não era mais possível no processo por não ter sido deduzido o incidente da falsidade desse documento. Perante isso, procede o recurso no tocante à eliminação do aditamento introduzido no facto controvertido n.º 6, o que importa a eliminação total da resposta dada pelo Mmo. Juiz “a quo” uma vez que a parte restante do facto que vinha do despacho saneador foi julgada não provada.
Refira-se que por opção do recorrente o objecto do recurso do despacho de selecção da matéria de facto é constituído apenas pela eliminação do aditamento ao facto controvertido n.º 6, pelo que não cabe na apreciação daquele despacho retirar consequências do vício que se apontou também ao facto controvertido n.º 1, o que se fará em momento oportuno.

d] impugnação da decisão da matéria de facto:
O réu recorreu apenas sobre a matéria de direito, mas a autora recorreu também da decisão da matéria de facto, impugnando a decisão relativa aos factos controvertidos nos. 1 e 6.
Resulta já do que foi afirmado a propósito do recurso do despacho de selecção da matéria de facto carecida de prova que a decisão da 1.ª instância relativa a estes factos não pode subsistir.
No tocante ao facto controvertido n.º 6 a questão da resposta a dar-lhe encontra-se mesmo já prejudicada uma vez que em virtude da procedência daquele recurso, o facto controvertido (na parte impugnada e única que foi julgada provada em 1.ª instância) acabou por ser eliminado da base instrutória.
No que concerne ao facto controvertido n.º 1, como também se assinalou, a respectiva matéria encontra-se afinal plenamente provada por documento particular cuja autoria e assinatura foi reconhecida e cuja falsidade não foi sequer suscitada. Daí que essa matéria não devesse ter sido levada à base instrutória. Tendo-o sido, apesar disso, deve agora considerar-se, sem mais, não escrita a respectiva resposta, por aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil (cujo regime consta hoje, com algumas modificações mas mantendo o sentido, no n.º 4 do artigo 607.º).
Com efeito, a decisão deve utilizar como fundamentos de facto todos os factos adquiridos ao longo da acção. E estes são, nos termos do artigo 659º, nº 3 (hoje 607.º), os seguintes: os factos alegados por uma parte e não impugnados pela parte contrária e que, como tal, se consideram admitidos por acordo (mesmo que não tenham sido considerados assentes[15]); os factos plenamente provados por documentos juntos ao processo; os factos provados por confissão reduzida a escrito; os factos julgados provados pelo tribunal após a audiência final; os factos que resultam do exame crítico das provas, isto é, aqueles que podem ser inferidos, por presunção judicial ou legal, dos factos provados; os factos notórios e os de conhecimento oficioso.
E isso continua a ser assim mesmo que o tribunal de 1.ª instância tenha dado resposta a algum facto ao arrepio da prova plena de que o mesmo já beneficiava, indo em sentido contrário ao que resultaria da especificação do facto. Escrevem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 429, que havendo oposição entre o conteúdo da especificação e as respostas dadas ao questionário pelo colectivo, deve, em princípio, dar-se prevalência à especificação, por assentar em elementos dotados de força probatória especial (confissão, acordo das partes ou documento) e considerar-se não escrita a resposta do colectivo (art. 646º, nº 4, do CPC)[16].
Por conseguinte, independentemente do resultados dos meios de prova produzidos e exactamente porque estes não podiam mesmo ter sido produzidos, deve declarar-se não escrita a resposta (de não provado) dada ao facto controvertido n.º 1, subsistindo por inteiro o teor das declarações constantes do contrato-promessa inserido nos factos assentes, e ficando assim prejudicada a análise dos meios de prova que serviram de motivação da decisão impugnada.
Em suma: dos factos a considerar para efeitos do conhecimento do mérito é excluída a matéria da alínea I (por via da exclusão do facto controvertido); quanto ao facto que foi levado ao artigo 1.º da base instrutória e cuja resposta foi negativa, declara-se não escrita essa resposta, sem necessidade, no entanto, de a substituir por uma resposta positiva uma vez que por estar provido de prova plena esse facto não podia sequer ser incluído na base instrutória e o tribunal só poderia responder aos artigos desta, e ainda porque, de todo o modo, tal facto já resulta da alínea C), onde se dá como reproduzido o contrato e as respectivas cláusulas.

e] mérito jurídico da sentença na parte em que julgou a acção procedente:
O réu insurge-se contra a aplicação que foi feita pelo Mmo. Juiz “a quo” do direito aos factos, sustentando que “independentemente da matéria de facto que foi fixada” e “fosse qual fosse a decisão da matéria de facto” a acção tinha de ser julgada improcedente.
No discurso argumentativo do recorrente detectam-se as seguintes ideias em função das quais ele defende essa solução: o réu não está obrigado vinculado ao cumprimento do contrato; o réu não incumpriu culposamente o contrato; o direito emergente do contrato para o falecido pai do réu tinha natureza exclusivamente pessoal pelo que se extinguiu com a morte daquele.
Para além destas questões, em sede de apreciação do mérito o recorrente repristina a questão dos poderes da autora e da interveniente para em nome da herança exigir o cumprimento do contrato-promessa, questão que já atrás ficou analisada e decidida no sentido afirmativo.
Refira-se que pese embora o tribunal seja livre na aplicação do direito aos factos, a parte não pode usar o recurso para suscitar questões que não suscitou anteriormente nos autos, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, visto que o recurso, no nosso sistema de recursos em processo civil, não tem por objecto a reapreciação generalizada ou in totum da decisão recorrida mas somente a reapreciação dos pontos que nela foram apreciados ou deviam tê-lo sido e que foram seleccionados pelo recorrente nas conclusões das suas alegações de recurso.
Ora na contestação o réu defendeu-se apenas, para além da matéria das excepções já tratadas neste Acórdão, sustentando que o contrato promessa apenas foi celebrado como forma de antecipação das partilhas dos bens do casal com os filhos e visava apenas garantir a possibilidade de fazer reverter tal transmissão do prédio durante a vida do falecido marido da autora, nunca tendo sido por si recebida qualquer quantia a título de sinal, nem se tendo comprometido perante a autora e seu marido a transmitir a propriedade do imóvel.
A primeira questão é, portanto, se o contrato que constitui a causa de pedir é um verdadeiro contrato, no sentido de dele emergirem para as partes direitos e obrigações juridicamente vinculativas. Cremos que não podem existir quaisquer dúvidas a esse respeito. O documento que titula o que se designa por contrato contém declarações de vontade de duas pessoas singulares que se vinculam reciprocamente a determinados actos jurídicos, ou seja, emitem declarações de vontade destinadas a produzir na esfera jurídica de cada um deles direitos e obrigações de conteúdo jurídico. É por conseguinte um contrato.
Não vindo imputada ao contrato nem se vislumbrando no mesmo qualquer invalidade de conhecimento oficioso, é evidente que o mesmo produz efeitos jurídicos válidos, podendo ser exigido judicialmente o seu cumprimento ou as consequências do seu incumprimento (artigos 397.º, 405.º, 406.º, 762.º, 798.º do Código Civil). Aliás os únicos factos alegados pelo réu para tentar demonstrar que a vontade negocial real não foi propriamente a consignada no contrato (partilha antecipada; promessa para vigorar apenas em vida do promitente comprador) foram julgados não provados e o réu conformou-se com essa decisão, pelo que para efeitos da presente acção se tornou definitivo que o contrato-promessa foi celebrado e tem a validade e efeitos que emergem do respectivo documento, uma vez que as respectivas partes estão vinculadas pelo contrato a cumpri-lo pontualmente, isto é, cumprirem ponto por ponto todas as obrigações assumidas no contrato.
Esta conclusão altera-se por ter ficado provado que “ao outorgar o contrato promessa o marido da autora pretendeu assegurar a possibilidade de, querendo e podendo, fazer reverter para si a transmissão do prédio[17], o que era do conhecimento do réu”? A resposta é manifestamente negativa. O efeito de um contrato-promessa é, na verdade, a obrigação de celebrar no futuro o contrato prometido, pelo que sendo este um contrato translativo da propriedade, a intenção do promitente-adquirente só pode ser a de no futuro, caso isso corresponda à sua vontade, se tornar titular do direito real que o contrato prometido lhe proporcionará. Não há aqui absolutamente nada de estranho ou que brigue com a natureza e regime do contrato-promessa.
Quando as partes optam por celebrar por ora apenas um contrato-promessa em vez do contrato prometido é exactamente porque ou não têm ainda reunidas as condições para o celebrar de imediato, ou porque entendem relegar para momento posterior a conveniência da celebração do mesmo ou porque decidem salvaguardar o direito de se arrependerem suportando as consequências do não cumprimento da promessa, mas evitando os efeitos do negócio prometido. Por conseguinte, o objectivo último da celebração do contrato-promessa está sempre relegado para futuro e tem implícita quer a vinculação imediata a uma obrigação em sentido técnico-jurídico (a obrigação de emitir a declaração negocial correspondente ao negócio prometido) quer a possibilidade do arrependimento quando ao desiderato final que o contrato definitivo proporcionaria.
Essa conclusão também não se alteraria mesmo que ficasse demonstrado que ao contrário do que consta do contrato-promessa nenhum sinal tinha sido entregue. Isto porque nos termos do artigo 410.º do Código Civil não faz parte dos elementos caracterizadores do contrato-promessa a estipulação e/ou entrega da qualquer sinal ou pagamento a título de antecipação ou princípio de pagamento da contrapartida. Normalmente o contrato-promessa prevê um sinal[18], até porque este representa um elemento importantíssimo para a definição das consequências do eventual incumprimento, mas para se poder falar em contrato-promessa não é, de forma alguma obrigatório que isso suceda.
De todo o modo, como foi largamente justificado, a questão do sinal não se coloca mais porque está demonstrado, em conformidade com o que consta do contrato, que o sinal foi entregue ao promitente-vendedor.
Defende o recorrente que não incumpriu o contrato porque embora tenha sido de facto convocado para outorgar a escritura pública do contrato prometido, a minuta da escritura pública que lhe foi pedido para subscrever não correspondia ao negócio acordado entre as partes. Esta alegação foi feita na contestação, mas nessa altura o réu não concretizou em que aspectos radicava essa diferença entre a escritura a celebrar e a escritura prometida celebrar. Só agora nas alegações de recurso essa alegação é concretizada, através da especificação de que a diferença se situava ao nível do valor alegadamente já pago e da circunstância de se mencionar que esse alegado pagamento teve lugar com dinheiro da herança.
Uma vez que rigorosamente estamos perante aspectos só agora suscitados e nessa medida perante “questões novas” poderíamos recusar tratar desta questão nesta sede. Todavia, uma vez que em devido tempo, conforme era possível, também não foi feito o convite ao aperfeiçoamento da contestação para concretizar a alegação manifestamente deficiente, iremos abordar a questão.
A questão do sinal encontra-se já perfeitamente tratada, não havendo aí qualquer divergência entre a minuta proposta e a obrigação resultante da promessa feita. A questão de o dinheiro ser da herança é uma falsa questão, chamada à colação apenas em desespero de causa. Na verdade o dinheiro não era da herança porque o contrato-promessa foi celebrado em vida do promitente-comprador e a quantia entregue pelo próprio na altura. No entanto, a indicação não estava totalmente errada, necessitava apenas de alguma interpretação. O que essa expressão visava significar, e nesse sentido é aceitável, é que o direito à quantia entregue aquando da celebração do contrato-promessa se transmitiu para a herança e daí que indo a compra prometida ser feita para a herança e sendo, portanto, obrigação desta – e não de qualquer dos seus herdeiros em particular – pagar o preço, o valor antes entregue pelo de cujus se considerava como fazendo parte integrante da herança.
De todo o modo, estamos perante um aspecto absolutamente acessório do contrato, exterior mesmo à compra e venda, e que atenta a qualidade de herdeiro do próprio réu apenas o beneficiava, pelo que a invocação deste aspecto para obstar à celebração da escritura, sem se afirmar sequer disposto a celebrar a escritura se ela fosse expurgada desse aspecto marginal, é claramente ofensiva das regras da boa fé a que as partes estão vinculadas no âmbito da sua relação negocial e mais intensamente em sede de cumprimento das suas obrigações (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que de forma alguma pode ser acolhida como fundamento válido de recusa do réu à celebração da escritura. Por conseguinte, tem de se concluir que essa sua recusa importa o incumprimento do contrato-promessa e legitima o promitente-adquirente a accionar o direito à execução específica do contrato, expressamente ressalvado no próprio contrato.
Defende ainda o recorrente que o direito do seu falecido pai emergente do contrato se extinguiu por morte deste, não passando a fazer parte da herança, uma vez que estávamos perante um direito exclusivamente pessoal.
Para sustentar esta tese o recorrente treslê o texto do contrato, sustentando que nele não se afirma o que dele consta e vice-versa, ao ponto de levar a recorrida a defender que o recorrente litiga de má fé.
Recordemos o que consta do contrato:
“… ele primeiro outorgante - promitente/vendedor - dono e legítimo possuidor da identificada fracção autónoma, a promete vender, completamente livres e desembaraçados de quaisquer ónus ou encargos, ao segundo outorgante, promitente/comprador - ou à pessoa ou pessoas que o mesmo vier a designar - pelo preço de 7.500.000$00 (…), preço este do qual, antes deste acto, já receberam a quantia de 7.499,000$00 (…), montante este de que o promitente/vendedor lhe dá a competente quitação” – cláusula 2.ª
“O remanescente do preço (…) será pago ao primeiro outorgante no acto da escritura definitiva (…) a outorgar (…) logo que o aqui segundo outorgante – ou a pessoa que o mesmo vier a designar o deseje, bastando, para o efeito, o envio de um simples postal registado, com a antecedência mínima de dez dias (…)” – cláusula 3.ª …”
Pretender ler aqui, como sustenta o recorrente, que prometeu vender o imóvel não ao promitente-comprador, quem quer que este seja, mas apenas ao seu pai ou a quem este vier a designar, é, no mínimo, um esforço absolutamente insensato.
Não se trata apenas de que o pai e o promitente-comprador são a mesma e única pessoa e, portanto, não ser possível fazer a promessa a um sem a fazer ao outro. Não se trata, ainda de num contrato-promessa com duas partes as obrigações de uma terem sempre a outra parte como titular do direito correspondente. Trata-se de que o texto do contrato é absolutamente claro e inequívoco, não consentindo qualquer dúvida sobre quem é o destinatário da promessa de venda feita pelo recorrente: o segundo outorgante e promitente-comprador, em qualquer caso o pai do recorrente.
O facto de a marcação da escritura ter sido deixada ao cuidado do promitente-comprador e na dependência da vontade (desejo) deste também não suscita qualquer objecção, por ser perfeitamente legítimo que as partes se vinculem a obrigações sem fixar o respectivo prazo ou deixando a fixação deste ao credor ou mesmo ao devedor (artigos 777.º e 778.º do Código Civil). O mais que se pode afirmar é que as obrigações emergentes do contrato-promessa exigem, pela sua própria natureza ou pelas circunstâncias que o rodeiam, o estabelecimento de um prazo para poderem ser exigidas por qualquer das partes, pelo que se estas não tiverem acordado num prazo, nem por isso podem exigir de imediato da outra o seu cumprimento, carecendo antes de obter a fixação judicial do prazo a observar[19].
Como referiu Cabral de Moncada[20], in Lições de Direito Civil, 4.ª Edição revista, 1995, pág. 693, a propósito das situações em que o prazo foi deixado na dependência da vontade do credor, é perfeitamente admissível “o “termo” potestativo, correspondente ao conceito da condição do mesmo género. Isto é: o termo tanto pode ficar assinalado num contrato com referência a um acontecimento ou data objectivamente determinados (chamemos-lhe causal), como pode ser deixado à vontade e arbítrio de qualquer das partes, inclusivamente do devedor; o vínculo jurídico existe neste último caso independentemente da vontade do obrigado, dependendo apenas deste a fixação do termo”.
Dispõe o artigo 778.º, n.º 2, do Código Civil, que prevê a chamada cláusula cum voluerit, que se o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, só dos seus herdeiros tem o credor o direito de exigir que satisfaçam a prestação. Trata-se de uma disposição apenas aplicável quando o prazo for deixado ao cuidado do devedor, não, quando como aqui sucede, o prazo for deixado ao cuidado do credor (o promitente-comprador é credor da celebração da escritura pelo promitente-vendedor). Para essa situação vale sim o disposto no n.º 3 do artigo 777.º do Código Civil, segundo o qual se a determinação do prazo for deixada ao credor e este não usar da faculdade que lhe foi concedida, compete ao tribunal fixar o prazo se o devedor o requerer a fim de poder cumprir o contrato ou se libertar da sua obrigação.
De todo o modo, nem num caso (cláusula cum voluerit a favor do devedor) nem no outro (cláusula cum voluerit a favor do credor), a falta de determinação do prazo pela parte ao critério da qual isso foi deixado impede a constituição válida da obrigação ou conduz à extinção da obrigação. O que sucede é apenas que a obrigação só pode ser exigida depois da morte do devedor que não determinou o prazo ou após a fixação judicial do prazo não determinado pelo credor que tinha a faculdade de o fazer[21]. Isso mesmo foi acentuado por Brandão Proença, in Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, 2.ª edição, 1996, pág. 114, defendendo que nas hipóteses em que se estipula que o contrato definitivo será celebrado “logo que o promitente-comprador comunique o dia, hora e local”, embora, prima facie, pareça estarmos perante uma cláusula cum voluerit, “sob pena de ficar abalada a eficácia vinculativa da promessa e se dar cobertura ao livre-arbítrio do promitente-vendedor, mantendo-se indefinidamente inerte, há que interpretar a convenção no sentido de uma simples cláusula que lhe outorga a iniciativa da fixação do prazo, considerando-se inadimplente se mantiver uma atitude omissiva durante um lapso de tempo intolerável, mas tendo a contraparte, na ausência, ou independentemente desse comportamento concludente, a possibilidade de recorrer ao tribunal”[22].
Assinala-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.12.2011[23] (Henrique Antunes), in www.dgsi.pt, que suscitam especiais dificuldades “os casos em que o prazo do cumprimento é convencionado no contexto de uma cláusula cum putuerit, como são, por exemplo, as cláusulas em que convencione que o contrato definitivo será celebrado quando o promitente-comprador estiver em boa situação financeira ou quando o promitente-vendedor puder arranjar a documentação necessária” ou “após a conclusão da obra”, valendo o mesmo, acrescentamos nós, para as cláusulas cum voluerit de que são exemplo as cláusulas em que se estabelece que o contrato prometido será celebrado quando o promitente vendedor ou comprador o desejar, o entender, o decidir. Como ali se explica “mesmo em tal caso, sob pena de ficar definitivamente comprometida a eficácia vinculativa da promessa – e se dar cobertura à discricionariedade do promitente, que impediria, ad infinitum, através da sua inércia, o cumprimento[24] – a convenção deve ser interpretada no sentido de uma simples cláusula que lhe outorga a iniciativa da fixação do prazo, tendo, porém, a contraparte, a possibilidade de promover a fixação do prazo para o cumprimento. A mesma solução vale, de resto, pelas mesmas razões materiais, para o caso de à convenção ser atribuída a natureza de cláusula cum voluerit – como sucede com a estipulação de que o contrato definitivo será celebrado quando um dos promitentes o deseje – ou de cláusula simultaneamente cum putuerit e cum voluerit. Uma coisa é exacta: cláusulas desta espécie resolvem-se na fixação de um prazo incerto, dado que não é antecipadamente seguro, i.e., ao tempo da celebração da promessa, o momento em que o contrato definitivo prometido deverá ser concluído”.
Também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.04.1994 (Eduardo Baptista), in www.dgsi.pt se recorda que o contrato-promessa é um contrato sinalagmático e oneroso, o qual, como os demais contratos, deve ser celebrado, interpretado e cumprido de harmonia com as regras da boa fé contratual, concluindo-se que por esse motivo “segundo as regras da boa fé contratual e ressalvado o caso de isso resultar claramente da vontade das partes, um contrato sinalagmático oneroso não deve ser interpretado de modo a afastar a eficácia vinculativa das obrigações assumidas, tornando-o fonte de obrigações "cum voluerit" para uma das partes, permitindo a esta ficar indefinidamente inerte e a outra sujeita ao seu livre arbítrio, esvaziando completamente a consistência prática e económica dos direitos da contraparte, atraiçoando os fins económicos e sociais que ela previra ao contratar”[25].
Por todas estas razões, somos a entender que não é porque a determinação do tempo da celebração do contrato prometido foi no caso deixada ao critério da vontade ou desejo do promitente-comprador que a obrigação do promitente-vendedor passou a ter menor valor jurídico ou a ser menos exigível. De todo o modo, como quer que seja, a herança está colocada na posição do promitente-comprador e, como tal apresta-se a concretizar a vontade do promitente-comprador. Daí que a verdadeira questão que se possa colocar é apenas a de saber se a posição do promitente-comprador no contrato-promessa faz parte do acervo hereditário, caso em que evidentemente a herança pode exercer os direitos decorrentes dessa posição. É essa questão que cabe apreciar agora.
O artigo 2024.º do Código Civil dispõe que a sucessão é o chamamento de uma ou mais pessoas à “titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida” e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam. Acrescenta o artigo 2025.º que não constituem objecto de sucessão as “relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei” e ainda os “direitos renunciáveis” à data da morte do seu titular quando ele manifeste essa vontade.
Escreveu Capelo de Sousa, in Direito das Sucessões, 2.ª edição, volume I, pág. 275 e segs. que “cabe desfazer o equívoco … de que só os bens patrimoniais são transmissíveis sucessoriamente. Na verdade, são objecto de vocação ou devolução sucessória todas as relações jurídicas ou todas as coisas … não exceptuadas por lei … nomeadamente, para além dos bens patrimoniais, certos direitos pessoais e, no lado passivo das relações jurídicas, as obrigações e as dívidas. (…) há certos direitos pessoais de natureza civil ou processual, que não visam a satisfação de necessidades económicas e que não são avaliáveis pecuniariamente, os quais são objecto de devolução sucessória. (…) Por outro, sucede-se não apenas em bens ou direitos, mas também em obrigações e em dívidas.”
De acordo com o artigo 2025.º a intransmissibilidade das relações jurídicas por morte do seu titular dá-se em três situações específicas. A primeira é a inereditabilidade natural que se reporta aos direitos ou obrigações que se extinguem por virtude da sua própria natureza e que abrange os direitos e vinculações pessoais, por exemplo os inerentes ao poder paternal. Depois encontramos a inereditabilidade negocial que é a que decorre da vontade do autor da sucessão, relativamente aos direitos de que ele pode dispor livremente e em relação aos quais ele decide renunciar, requisito necessário para que não se verifique a sua transmissibilidade. Finalmente deparamo-nos com a inereditabilidade que resulta directamente da própria lei, como é o caso do direito de aceitação da proposta de contrato (artigo 231.º, n.º 2). Fora dessas situações os direitos e obrigações que tenham conteúdo patrimonial são transmissíveis. Para usar a expressão de Galvão Telles, in “Direito das Sucessões”, 1980, pág. 60, “os direitos ou obrigações pessoais são, em regra, intransmissíveis enquanto que nos patrimoniais a regra é a transmissibilidade”[26].
No que respeita aos direitos e obrigações emergentes do contrato-promessa existe uma norma específica a regular a situação. O artigo 412.º do Código Civil dispõe com efeito que “os direitos e obrigações resultantes do contrato-promessa, que não sejam exclusivamente pessoais, transmitem-se aos sucessores das partes”[27] –[28] –[29].
A ressalva contida nesta norma à transmissibilidade dos direitos das partes no contrato-promessa reporta-se naturalmente às situações em que a promessa tem intuitu personae, isto é, as situações em que a promessa está ligada às qualidades pessoais das partes de modo que se possa afirmar que só aquela pessoa em concreto se obrigou a contratar ou só a prestação daquela pessoa em concreto tem interesse para o credor.
Sucede que dificilmente se pode antever essa possibilidade num puro contrato-promessa de compra e venda em que o objecto da promessa é o bem a alienar e isso em nada está relacionado com as qualidades da pessoa dos promitentes ou depende delas.
No caso concreto não vislumbramos absolutamente nada que revele que à decisão de celebrar o contrato tenha presidido alguma intenção intuitu personae. É certo que se trata de um contrato entre pai e filho, mas não é por haver entre as partes uma relação familiar que a contratação passa a ter subjacente um intuitu personae. De todo o modo, o âmbito dos sujeitos agora envolvidos na concretização do negócio prometido continua a situar-se no âmbito da mesma família e entre pais e filhos.
Por outro lado, no contrato declara-se pago praticamente todo o preço, o que é um indício claro de uma intenção manifesta na concretização do negócio, fazendo crer que o interesse se situava no bem e não nos sujeitos da promessa ou nas suas qualidades, quaisquer que elas fossem e que também não vêm referidas nos autos.
Depois temos que tal como ficou decidido na anterior acção (o que está documentado por certidão junta aos autos e aqui pode como tal ser atendido uma vez que formou caso julgado entre as partes), após a celebração do contrato o promitente-comprador passou a utilizar regularmente o imóvel aí instalando uma residência familiar.
Este facto revela, fora de qualquer dúvida, que na prática quem verdadeiramente dispunha da coisa objecto da promessa era o promitente-comprador que pagou todo o preço e deixou a celebração do contrato prometido na dependência da sua exclusiva vontade, assegurando inclusivamente o direito à execução específica, promitente este que recorreu ao contrato-promessa com o objectivo de manter formalmente em nome do proprietário registado a titularidade do imóvel, mas que a todo o momento podia concretizar a transmissão do imóvel para si. Não estando demonstrado qual foi efectivamente a intenção subjacente a essa actuação jurídica (o recorrente referiu-se a uma intenção de partilha em vida, mas não a provou), de forma alguma é possível entender que a mesma tem inerente um intuitu personae que excluísse este contrato-promessa da transmissão sucessória.
Podemos, pois concluir que o contrato-promessa em apreço é um contrato no verdadeiro sentido do termo e gerou obrigações em sentido técnico-jurídico, as quais, por falecimento do promitente-comprador, passaram a caber à herança indivisa, assistindo-lhe o direito de exigir a execução específica do contrato uma vez que o promitente-vendedor interpelado para celebrar a escritura pública de compra e venda se recusou a fazê-lo sem possuir motivo válido e bastante para o efeito, incorrendo em incumprimento da sua prestação passível de ser objecto de execução específica.

f] mérito jurídico da sentença na parte em que decidiu que o preço de €37.409,84 está por pagar e dever ser entregue ao réu através do depósito efectuado nos autos por determinação do tribunal:
A resolução desta questão dependia do que se viesse a decidir sobre os factos relativos ao pagamento. Estando agora assente que parte do preço foi paga aquando da celebração do contrato-promessa, o promitente-comprador só tem naturalmente de efectuar o pagamento da parte remanescente.
Nessa medida, a decisão recorrida que ordenou o depósito e a sentença têm de ser alteradas na parte em que determinam o prévio depósito e a posterior entrega ao réu da totalidade do preço do imóvel, o qual deve ser reduzido ao valor remanescente que no contrato-promessa é declarado dever ser pago no acto da escritura (ou seja: €4,99), devolvendo-se à autora o excesso depositado nos autos para efeitos do artigo 830.º, n.º 5, do Código Civil.

Da má fé do réu na lide do recurso:
Na resposta às alegações de recurso do réu/recorrente, a autora defende que ele litiga no recurso de má fé, devendo ser condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor nunca inferior a €5.000,00. Tudo isso porque o réu sustenta que o contrato-promessa tem um conteúdo que bem sabe não corresponder à verdade.
Conforme se assinalou no momento próprio, a postura do réu na lide em defesa da sua posição está longe de ser a mais correcta e de possuir a lisura que é exigível no tocante à citação e transcrição quer do Acórdão que suscitou a excepção do caso julgado quer do contrato-promessa que constitui a causa de pedir. Tratando-se de documentos escritos o réu não podia deixar de ter a consciência de que dessa forma estava a adulterar o texto que neles está escrito e de pretender com isso conduzir o tribunal para a interpretação enviesada para servir os seus objectivos.
Na nossa opinião, contudo, este comportamento do réu não passa de um acto falhado, absolutamente condenado ao insucesso, uma vez que o tribunal tinha o Acórdão e o contrato-promessa inteiramente à sua disposição nos autos e não podia deixar de o interpretar correctamente, lendo o que neles está efectivamente escrito.
Só por essa razão, entendemos que o comportamento do réu não chega sequer a ter a virtualidade de criar o risco de qualquer das consequências previstas no actual artigo 542.º do Código de Processo Civil e em função das quais o legislador caracterizou a lide da parte como de má fé. O que significa que não podemos concluir que o réu litigue de facto de má fé no seu recurso e aplicar-lhe a sanção legal correspondente, motivo pelo qual se desatende o pedido da recorrida.

V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar os recursos do seguinte modo:
A] recursos do réu: totalmente improcedentes;
B] recursos da autora: 1) recurso do despacho de alteração da base instrutória: procedente; 2) recurso da matéria de facto: prejudicado; 3) recurso da sentença: procedente:
Em consequência do provimento parcial das apelações da autora, decidem:
i) alterar a matéria de facto no sentido assinalado no decurso deste Acórdão;
ii) alterar as decisões recorridas na parte em que se ordenou primeiro o depósito pela autora e depois a entrega ao réu C… da quantia de €37.409,84 (tinta e sete mil, quatrocentos e nove euros e oitenta e quatro cêntimos) para pagamento do preço do imóvel, substituindo esse valor pelo valor de €4,99 (quatro euros e noventa e nove cêntimos) correspondente ao remanescente do preço que se encontra por pagar;
iii) confirmar a sentença recorrida no restante;
iv) ordenar a devolução à autora do valor depositado nos autos que exceda o montante de €4,98 que deverá ser pago ao réu.

Custas da acção e dos recursos pelo réu.
*
Porto, 9 de Janeiro de 2014.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto 107)
José Amaral
Teles de Menezes
______________
[1] Na sentença cometeu-se um manifesto lapso de escrita de transcrever o texto do despacho saneador sem atentar que o mesmo tinha sido objecto de uma reclamação que foi deferida no tocante à eliminação da menção de que o documento de folhas 27 e 28 era uma mera cópia do contrato-promessa, quando se trata do original. Este aspecto foi agora objecto de um pedido de rectificação da própria sentença que também não foi apreciado em 1.ª instância. Todavia, porque se trata de um mero lapso de escrita, afigura-se-nos podermos sem mais rectificar o lapso sem necessidade de baixa dos autos à 1.ª instância para esse efeito. Assim, a redacção que se faz constar é a redacção que resulta da eliminação do lapso.
[2] Redacção provisória uma vez que este facto se encontra compreendido no recurso de duas decisões distintas a apreciar oportunamente.
[3] Com isto, não se afirma que a herança aceite tem personalidade judiciária (questão que depende do estatuto jurídico da herança aceite tal como ele é configurado nas normas do Código Civil e que motiva alguma controvérsia jurídica), afirma-se apenas que não é por o artigo 6.º do Código de Processo Civil se referir apenas à herança jacente que se pode concluir que a herança aceite não tem, necessariamente, personalidade judiciária.
[4] No mesmo sentido cf. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, pág. 406 e seg., acentuando a ideia de que “a distinção não assenta na natureza jurídica dos actos mas nos riscos ou na importância patrimonial dos mesmos”. Ainda Heinrich Horster, in A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, pág. 431, associando os actos de mera administração aos actos “que correspondem a uma gestão patrimonial limitada, comedida e prudente”.
[5] Não seria assim evidentemente se o preço estivesse todo por pagar, caso em que a decisão de optar ou não pela execução específica da promessa implicaria a herança ter de despender agora esse montante (e eventualmente de o obter previamente caso o não tivesse), o que deve entender-se só poderia ser decidido pelo conjunto dos herdeiros ou pela maioria deles, havendo divergência de opiniões.
[6] O que nem sequer é rigorosamente assim. Com efeito, na primeira acção o autor não demandou a herança aberta por óbito de seu pai, demandou a mãe sem afirmar que o fazia na qualidade de cabeça de casal, imputando a violação do seu direito de propriedade à mãe, por si própria, e não à herança. Já nesta acção quem demanda é a herança, melhor dizendo, o conjunto dos herdeiros e actuando nessa qualidade.
[7] Não fica bem (e lamenta-se) ao recorrente transcrever, na folha 11 das suas alegações, uma afirmação do Acórdão deste Tribunal proferido na anterior acção acrescentando-lhe que daí resulta que a Relação procedeu “detalhadamente à análise dos direitos … em relação ao contrato-promessa”, “concluindo que este … não assegura qualquer direito”, quando bem sabe que a Relação apenas analisou a questão da posse, a única que tinha de apreciar e que se justificava apreciar, não se tendo pronunciado sobre nenhum “direito” emergente do contrato-promessa, designadamente o direito à execução específica, seja na parte transcrita sem em qualquer outra parte do Acórdão.
[8] Devendo agora ser revisitado face à extinção da figura da base instrutória e à sua substituição pela criativa figura do “enunciado dos temas da prova” (artigo 596.º do novo Código de Processo Civil).
[9] Por todos os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2001, de 25.03.2004 ou de 03.02.2005, in www.dgsi.pt. Na doutrina, cf. Carlos Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, 2004, Volume I, pág. 446 e 447.
[10] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.01.2013, in www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido o Acórdão, citado pela recorrente, do Supremo Tribunal de Justiça de 17.04.2007 (Nuno Cameira), in www.dgsi.pt, a propósito de uma situação em tudo similar à dos autos em que estava em causa um contrato-promessa onde o promitente declarava ter recebido o sinal, vindo depois alegar no processo que não o recebeu.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, em comentário ao artigo 346.º do Código Civil, 4.ª edição revista, pág. 310, referem, quanto à força vinculativa das provas, que os autores distinguem entre provas bastantes (as que admitem contraprova: art. 346.º), provas plenas (as que apenas cedem perante prova do contrário: arts. 358.º e 371.º) e as provas pleníssimas (que não admitem mesmo prova do contrário).
[13] Aceita-se, desde logo, que esta limitação não se estende a qualquer outro elemento do contrato escrito, como o fim ou motivo do negócio, nem se refere à prova dos vícios da vontade ou da divergência entre a vontade e a declaração como o erro, o dolo ou a coacção. E aceita-se que a prova testemunhal já é admissível quando haja circunstâncias que tornem verosímil a convenção que se quer demonstrar, quando esteja em jogo um interesse público que deva prevalecer sobre o das partes – vg provar a ilicitude do contrato dissimulado – ou quando, no caso concreto, haja já um princípio de prova que torne verosímil o que se pretende demonstrar, levando a que a convicção do tribunal já esteja parcialmente formada e a prova testemunhal sirva apenas para esclarecer alguns aspectos necessários para completar o juízo de convicção – cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 18.05.99, in Colectânea de Jurisprudência, III, pág. 102, e de 02.07.09, in www.dgsi.pt, e da Relação de Coimbra de 13.11.12, in www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., anotação ao artigo 394.º.
[15] Cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 22.3.1994 e de 06.12.1994, in Boletim do Ministério da Justiça, 435, pág. 917, e 442, pág. 272, respectivamente, e Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo civil, pág. 22.
[16] No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.89, in Boletim do Ministério da Justiça, 390, pág. 377, de 26.10.2004 e de 24.11.2011, ambos in www.dgsi.pt.
[17] Diga-se que este facto exige alguma interpretação. Não resulta dos autos que o promitente-vendedor se tenha tornado proprietário do imóvel objecto da promessa por o ter antes comprado a quem depois se tornou seu promitente-comprador; pelo contrário, o imóvel foi adquirido a um terceiro em relação ao contrato-promessa. Por essa razão, a expressão “reverter a transmissão” que vem da alegação do réu – e assim foi levada à base instrutória e depois à decisão – e pode dar a impressão de querer dizer “anular uma anterior transmissão em sentido inverso”, não pode afinal significar mais do que “transmitir para o promitente-adquirente”, o que constitui precisamente o objecto típico de uma promessa de compra e venda.
[18] Nos termos do artigo 440.º do Código Civil o sinal é a entrega, no momento da celebração do contrato ou em momento posterior, por um dos contraentes ao outro, de coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito e desde que as partes lhe atribuam o carácter de sinal, estipulação esta que só não é necessária no contrato-promessa de compra e venda uma vez que neste, nos termos do artigo 441.º, se presume que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento. O sinal é, portanto, uma convenção ou cláusula de um contrato, não obrigatória nem necessária para a sua qualificação jurídica, podendo assumir ela mesmo a natureza de autêntico negócio acessório de outro negócio jurídico no qual vai desempenhar uma função regulatória e indemnizatória. Cf. Ana Prata, in O contrato-promessa e o seu regime civil, Almedina, pág. 744, nota 1723.
[19] Neste sentido cf. Ana Prata, loc. cit. pág. 633.
[20] Citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-06-2012 (Alberto Ruço), in www.dgsi.pt.
[21] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.10.2007, in www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.84, in Boletim do Ministério da Justiça nº 333, pág. 518.
[22] Citando-o concordantemente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03.02.2005 (Rui Vouga), nota 34.
[23] Ainda, do mesmo relator, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.02.2012 e de 20.11.2012.
[24] Nesse sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.11.1990 (Dionísio de Pinho), in www.dgsi.pt referindo-se ao “natural equilíbrio das prestações a considerar nos termos do artigo 237 do Código Civil”.
[25] No mesmo sentido cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.01.92, in Colectânea de Jurisprudência, 1992, tomo 1, pág. 142, e de 06.07.1989, in Colectânea de Jurisprudência, 1989, tomo IV, p. 113.
[26] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de Porto, 10.07.2013 (Oliveira Abreu), in www.dgsi.pt, onde com este fundamento se defende que por ter conteúdo patrimonial a obrigação de prestar contas pelo falecido também é transmissível, passando esse dever a integrar a herança.
[27] Reportando-se a este preceito, Ana Prata, loc. cit., pág. 592, nota 1377, dá conta de que já na vigência do Código Civil de 1867 “se entendia que os direitos e obrigações emergentes da promessa, tendo natureza patrimonial, se transmitiam sucessoriamente: v. J. Pinto Loureiro, Contrato-promessa …, op. e loc. cit., pág. 101; Revista dos Tribunais, Anotação, ano 71.º, n.º 1660, op. e loc. cit., pág. 113. A Jurisprudência, se bem que não pacífica, também comportava uma corrente no sentido da transmissibilidade…”.
[28] Também Dias Marques, in Noções Elementares de Direito Civil, pág. 139, defende que “os direitos e obrigações que para os promitentes advêm da celebração do contrato-promessa obedecem aos princípios gerais que regulam a transmissão dos créditos e das dívidas, quer se trate de sucessão mortis causa (artigo 412.º-1) quer inter vivos (artigo 412.º-2)”.
[29] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, pág. 362, afirmam que “ se A prometer vender a B certo prédio e este morrer, deixando três herdeiros (C, D e E), a posição do promitente-comprador transmitir-se-á aos respectivos sucessores, os quais poderão exercer os direitos que pertenciam ao de cuius, ou ser compelidos ao cumprimento das suas obrigações conjunta ou separadamente, conforme o que resultar da sucessão”.