Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0533348
Nº Convencional: JTRP00038245
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: EXECUÇÃO
PENHORA
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP200506090533348
Data do Acordão: 06/09/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Pode ser penhorado um prédio onde o executado tenha instalada a sua habitação e da sua família, não violando essa penhora qualquer preceito constitucional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 00.09.18, na .. Vara Cível da Comarca do .........., Banco X.........., SA instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa contra B.........., Lda., C.......... e mulher D.........., e E.......... e mulher F.........., tendo por base duas livranças, subscritas por B.........., Lda. e avalizadas por C.......... e mulher D.........., e E.......... e mulher F.........., no valor de 69.968,27€.

Em 01.06.04, a exequente nomeou à penhora o prédio urbano designado por fracção "A", correspondente ao primeiro andar, destinado a habitação, garagem na cave, sito na freguesia de .........., concelho de .........., inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2.132-A e descrito na .. Conservatória do Registo Predial de .......... sob o número 1000/19951 025-A, propriedade de E.......... e mulher F.......... .

Por despacho de 01.06.18, a folhas 55, foi ordenada a penhora do imóvel.

Em 01.07.05 foi penhorado o referido imóvel - cfr. folhas 60.

O executado, notificado da penhora – cfr. folhas 61 – nada requereu.

Por despacho de 03.05.15, foi ordenada a venda do imóvel penhorado mediante propostas em carta fechada, sendo o preço mínimo da venda de 130.000,00€.

Em 04.12.13 e a folhas 153 e 154, o executado E.......... requereu a suspensão da venda decretada, com fundamento de que a venda do bem imóvel em causa ofende a lei e os bons costumes, bem como preceitos constitucionais relacionados com o direito à habitação e à saúde e a uma vida condigna.

Por despacho de 05.02.15, a folhas 166, o Tribunal "a quo" indeferiu a requerida suspensão da venda do bem imóvel penhorado bem como o levantamento de tal penhora.

Inconformado, o executado E.......... deduziu o presente agravo, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A exequente contra alegou, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

O Sr. Juiz manteve tabelarmente a sua decisão.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
a única questão proposta para resolução consiste em determinar se um imóvel habitado por um executado não pode ser penhorado.

Os factos

Os factos a ter em conta são os acima assinalados, decorrentes da tramitação processual.

Os factos, o direito e o recurso

Vejamos, então, como resolver a questão.

No despacho recorrido entendeu-se que, ao abrigo da alínea f) do artigo 822° do Código de Processo Civil, são absolutamente impenhoráveis os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do executado, não abarcando, no entanto, este preceito a própria residência.

O agravante entende, como acima ficou referido, que a penhora não era admissível, uma vez que a venda do bem imóvel em causa ofendia a lei e os bons costumes, bem como preceitos constitucionais relacionados com o direito à habitação e à saúde e a uma vida condigna.

Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

Antes de mais, há que assinalar duas notas.
A primeira é que as normas do Código de Processo Civil que a seguir se aplicarão têm a redacção anterior à que lhes foi dada pelo Decreto-Lei 38/03, de 08.03, uma vez que a presente execução foi instaurada antes de 03.09.15 – cfr. artigo 21º do referido Decreto-Lei.
A segunda, é que entendendo o executado agravante que a penhora em causa não era admissível, deveria ter reagido tempestivamente contra o despacho que a ordenou, nomeadamente nos termos do disposto nos artigos 863-A e 863-B, ambos do Código de Processo Civil.
Não o tendo feito, em rigor, sobre a questão formou-se caso julgado.
De qualquer forma, sempre diremos algo sobra a matéria.

A execução visa a satisfação efectiva da prestação exequenda, pelo que a lei concede uma especial importância à posição do exequente e de outros eventuais credores.

No entanto e como refere Teixeira de Sousa “in” Estudos” 2ª edição página 641 “a prevalência do interesse do exequente não deve fazer esquecer os interesses atendíveis do executado.
Dessa prevalência resulta que, na ponderação dos interesses do exequente e do executado, qualquer protecção deste último pressupõe necessariamente que os seus interesses devam ser sensivelmente mais fortes do que o interesse do exequente na realização coactiva da prestação.
A protecção do executado é actualmente um reflexo dos princípios orientadores do Estado social de direito (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa)
(…)
Essa protecção demonstra-se na proporcionalidade da penhora, na impenhorabilidade de certos bens e no respeito de certos direitos fundamentais do executado”.

A proporcionalidade da penhora significa que não devem ser penhorados mais bens que os necessários para a satisfação da pretensão exequenda.

Pelo cumprimento das obrigações respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora – artigos 601º do Código Civil e 821º do Código de Processo Civil.
Mas existem restrições a esta penhorabilidade geral, algumas da quais são impostas pelos princípios do Estado social de direito e encontram justificação na necessidade de assegurar a subsistência do executado e da sua família e de respeitar a moral pública e os sentimentos religiosos.
Assim, nos artigos 822º, 823º e 824º do Código de Processo Civil estão referidos, respectivamente, os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, os bens relativamente impenhoráveis e os bens parcialmente penhoráveis.
Porque tais isenções constituem uma excepção à regra geral de que todo o patrimónios do devedor está sujeito a execução, indicação feita naqueles artigos é taxativa, ou seja, todos os bens não incluídos nestes artigos são livremente penhoráveis – neste sentido, Lopes Cardoso “in” Manual da Acção Executiva 3ª edição página 294.

Entende o agravante que a penhora do imóvel onde alega estar instalada a sua habitação familiar não é admissível porque ofende os bons costumes e a habitação é um bem imprescindível a qualquer economia doméstica, consubstanciando, assim, as restrições estabelecidas nas alíneas c) e f) do referido artigo 822º.
Sem razão, no entanto.

Quanto aos “bons costumes”, não vemos como se pode considerar a penhora de um imóvel onde está instalada uma habitação como ofensiva a qualquer regra de ordem ética, que, não tendo expressão normativa, é aceite pela generalidade das pessoas como obrigatória – conceito de “bons costumes” referido por Rodrigues Bastos “in” Notas aos Código de Processo Civil 2ª edição, em anotação ao artigo 822º.

Quanto à segunda razão apontada pelo agravante, é evidente que a alínea f) do referido artigo não se que referir à impenhorabilidade de uma casa de habitação.
Como bem se refere na decisão recorrida, da própria letra da citada alínea se concluiu isso.
Na verdade, nela se estabelece que são absolutamente impenhoráveis “os bens imprescindíveis a qualquer economia domestica que se encontrem na residência permanente do executado (…)”.
Ora a lei ao referir-se expressamente a “residência permanente do executado” apenas o faz com o significado de enunciar o local onde se devem encontrar os “bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica”, e não com o significado de que a própria residência é impenhorável.
A confirmar este entendimento, está a existência de diversas disposições legais subsequentes que supõem a admissibilidade da penhora de uma casa de habitação.
Assim, dispunha-se no n.º4 do artigo 840º do Código de Processo Civil o seguinte:
“Quando o imóvel penhorado for a casa de habitação onde resida habitualmente o executado, é aplicável o previsto no artigo 930.º-A para a entrega de coisa certa, podendo ainda o juiz, ponderadas as circunstâncias, sustar a desocupação até à venda”.
O artigo 930º-A dizia o seguinte:
1 - Se a execução se destinar à entrega de casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto no artigo 61.º do Regime do Arrendamento Urbano.
2 - Quando a entrega do imóvel suscite sérias dificuldades no realojamento do executado, o juiz comunicará antecipadamente o facto às entidades assistenciais competentes.

E o artigo 61º do Regime do Arrendamento Urbano estabelece o seguinte:
1 - O executor deve ainda sobrestar no despejo quando, tratando se de arrendamento para habitação, se mostre, por atestado médico, que a diligência põe em risco de vida, por razões de doença aguda, a pessoa que se encontra no local.
2 - O atestado referido no número anterior deve indicar de modo fundamentado o prazo durante o qual se deve sustar o despejo.
3 - Nos casos referidos no nº 1 tem aplicação o disposto nos nºs 3, 4 e 5 do artigo anterior.
4 - O senhorio pode requerer, à sua custa, o exame do doente por dois médicos nomeados pelo juiz, decidindo este da suspensão, segundo a equidade.

Quer dizer, o próprio legislador, previu a hipótese de a penhora incidir sobre a habitação onde resida habitualmente o executado e aceitando a sua verificação, procurou resolver ou minorar as consequências que para o executado poderiam advir da inerente desocupação da habitação.
Temos, pois, que concluir, que a penhora da alegada habitação do agravante não violou qualquer disposição legal.

Mas será que as disposições legais indicadas são ofensivas a qualquer preceito constitucional relacionado com o direito à habitação e à saúde e a uma vida condigna, como pretende o agravante?
Entendemos que não.
Das disposições conjugadas contidas nos citados artigos 840º, n.º4 e 930-A, ambos do Código de Processo Civil e 61º do Regime do Arrendamento Urbano resulta que quer a entrega efectiva, quer a execução destinada à entrega da casa da habitação principal, devem ser suspensas quando se mostre, por atestado médico, que a diligência põe em risco de vida, por razões de doença aguda, a pessoa que se encontra no local, mesmo que não seja o executado
Salvaguardados estão, pois, os direitos à saúde e a uma vida condigna que estão estabelecidos nos artigos 64º e 66º da Constituição da República Portuguesa.
Quanto ao direito à habitação, estabelecido no artigo 65º do mesmo diploma e na linha do que já se decidiu em vários acórdãos do Tribunal Constitucional – acórdão n.º633/95, de 95.11.08 “in” DR II de 96.04.24; acórdão n.º60/99, de 99.02.02 “in” DR II de 99.03.30; acórdão n.º465/01, de 01.10.24 “in” DR II de 01.12.26 - há que referir que esse direito pressupõe a concretização, mediação, do legislador ordinário, decorrente de opções político-administrativas, em que, em principio, não há molde constitucional para além das incumbências enunciadas nas várias alíneas do n.º2 do referido artigo 65º, nem aos tribunais compete substituir o legislador nesta matéria, havendo sim e apenas, um conteúdo mínimo determinado constitucionalmente.
Não pode aceitar-se, como constitucionalmente exigível, que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como é o direito a uma tutela jurisdicional efectiva – artigo 20º.
E tendo em conta o que acima ficou dito sobre as razões da impenhorabilidade de certos bens e as cautelas que o legislador ordinário estabeleceu para a as consequências da desocupação de uma casa de habitação onde resida o executado por virtude da penhora da mesma, também acima enunciadas, não vemos como sustentar que esta penhora viola o direito à habitação de um executado.
A não ser assim e vendo a questão por um lado prático, nenhuma entidade bancária emprestaria dinheiro para compra de habitação própria, pois a garantia do empréstimo, na maioria dos casos, consiste na hipoteca dessa habitação.
Ora, se esta não pudesse ser penhorada, a hipoteca não teria qualquer utilidade prática, pelo que os empréstimos nunca seriam concedidos.
Anote-se que, pelo que consta do apenso de reclamação de créditos, impende precisamente sobre a fracção penhorada uma hipoteca a favor de uma entidade bancária, o que evidencia que o próprio executado aceitou a possibilidade de essa garantia ser executada e, consequentemente, ser privado da sua habitação por virtude de uma venda executiva.
Resumindo: pode ser penhorado um prédio onde o executado tenha instalada a sua habitação e da sua família, não violando essa penhora qualquer preceito constitucional.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao presente agravo e assim, em manter o despacho recorrido.
Custas pelo agravante.

Porto, 9 de Junho de 2005
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo