Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
31/06.7IDVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: FRAUDE FISCAL
LEI NOVA
CONTRA-ORDENAÇÃO
DESPENALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2014040931/06.7IDVRL.P1
Data do Acordão: 04/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Através da emissão de faturas falsas, o agente visa documentar operações económicas que não são verdadeiras, porque não existem ou pelo menos não existem nos exatos termos que aparentam. O objetivo que subjaz à emissão de faturas falsas radica frequentemente na documentação falsa de custos fiscais, assegurando, deste modo, a diminuição de lucros com con­sequências na determinação da matéria coletável (IRC) ou mesmo a obtenção ilícita de reembolsos fiscais (IVA).
II – A falsidade fiscal e a simulação constituem realidades diferentes, uma vez que a primeira se reporta ao documento e a segunda ao conteúdo do negócio celebrado: no caso da falsidade existe uma divergência intencional entre a declaração e a realidade (falsidade intelectual) ou entre a declaração e o seu suporte escrito (falsidade material); na simulação verifica-se uma divergência intencional entre a vontade e a declaração negocial, sendo verdadeiro o documento que a incorpora.
III – Apurada a utilização de documento falso para efeitos de determinação da matéria coletável ou de obtenção de reembolso fiscal, acompanhado da consciência e vontade da realização do tipo de ilícito, tanto basta para responsabilizar o utilizador pelo crime de fraude fiscal, verificados que se mostrem todos os restantes elementos objetivos do tipo.
IV – O limite de € 15.000,00, limite negativo e quantitativo da incriminação, tem o seu espaço de aplicação tanto em sede do tipo base como do tipo qualificado de fraude fiscal [art. 103.º e 104.º do RGIT].
V – O princípio geral é o de que a lei que cria contraordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor [art. 3.º do RGCOC].
VI – Assim, se não existir uma norma geral que estabeleça o regime transitório das leis que convertem crimes em contraordenações, ou uma norma na própria lei que opere tal conversão, conclui-se que a lei nova é despenalizadora.
VII – A parcela da conduta dos arguidos que respeita ao IVA, porque cada uma das declarações apresentadas que visavam a obtenção de vantagem patrimonial correspondente ao reembolso do imposto é inferior a € 15.000,00, tornou-se, com a entrada em vigor da nova redação do art. 103.º do RGIT, jurídico-penalmente irrelevante, tendo sido despenalizada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 31/06.7IDVRL.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Tribunal Judicial de Montalegre com o nº 31/06.7IDVRL, foram submetidos a julgamento os arguidos B…, Lda. e C…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 05.03.2013, que condenou os arguidos:
- B…, Lda., pelo crime de fraude fiscal qualificada p. e p. nos artºs. 103º nº 1 al. c), 104º nº 2, 7º nºs 1 e 3, todos do RGIT, na pena de 370 dias de multa à taxa diária de € 10,00, o que perfaz a multa global de € 3.700,00;
- C…, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. nos artºs. 103º nº 1 al. c) e 104º nº 2 do RGIT, na pena de dezoito meses de prisão, suspensa por igual período, condicionada ao pagamento, no prazo de cinco anos, da prestação tributária em falta (€63.845,64), à Administração Tributária.
Inconformada com a decisão condenatória, dela veio o arguido C… interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Subjacente à factualidade dos autos está a existência de um contrato de empreitada, celebrado no início do ano de 2001, entre a sociedade “D…, Lda.”, com sede no …, freguesia …, concelho de Montalegre, como dona da obra e a sociedade arguida “B…, Lda.”, que teve por objeto a execução de obras de infra-estruturas no loteamento …, em Montalegre, pertença daquela primeira, sendo o mesmo justificativo da afetação das faturas em causa nos autos a essa obra, o que resulta dos depoimentos do arguido C…, bem como dos testemunhos prestados em audiência de julgamento, designadamente das testemunhas E… e F…, representantes legais da sociedade “D…, Lda. (gravações sob as referências 20130107111450_89286_64812 e 20130107113012_89286_64812, e 20130129102321_89286_64812), bem como o depoimento da testemunha G… (referência 20130129105953_89286_64812), todos eles perentórios em afirmarem a existência desse contrato de empreitada;
2. Assim, deverá ser acrescentado à matéria de facto provada o seguinte factos:
- Entre a sociedade “D…, Lda.” como sede no …, freguesia …, concelho de Montalegre, como dona da obra e a sociedade arguida “B…, Lda.” foi celebrado, no início do ano de 2001, um contrato de empreitada que teve por objeto a execução de obras de infra-estruturas no loteamento …, em Montalegre, pertença daquela primeira;
3. Resulta igualmente provado que, durante a execução do contrato de empreitada, houve empresas que abordaram os legais representantes da “D…, Lda.” no sentido de conseguirem fornecer materiais para a obra que a sociedade arguida estava a executar no dito loteamento e que, fruto do conhecimento e da relação de confiança dessas empresas com aqueles legais representantes da dona da obra, dita “D…, Lda.”, foram as mesmas fornecedoras de materiais para a referida obra;
4. Dado esse prévio conhecimento e relação de confiança entre essas fornecedoras e a dona da obra, para garantia do bom pagamento do preço, este era por vezes pago pela dona da obra e descontado do preço a pagar à sociedade arguida, como empreiteira, sendo toda essa matéria coerentemente afirmada pelas testemunhas E… e F…, representantes legais da sociedade “D…, Lda.”, tendo mesmo a primeira dessas testemunhas afirmado que houve pessoas da sociedade “H…, Lda.” que foram ter consigo pessoalmente no sentido de fornecer material para a obra que a sociedade arguida estava a executar, como tudo resulta do seu depoimento gravado sob as referências 20130107111450_89286_64812 e 20130107113012_89286_64812;
5. Daí resulta evidente factualidade que impõe que sejam acrescentados à matéria provada os seguintes factos:
- Durante a execução desse contrato de empreitada, houve empresas que abordaram os legais representantes da “D…, Lda.” no sentido de conseguirem fornecer materiais para a obra que a sociedade arguida estava a executar no dito loteamento;
- Fruto do conhecimento e da relação de confiança dessas empresas com aqueles legais representantes da dona da obra, foram algumas empresas apresentadas à sociedade arguida, tendo conseguido, através daqueles, fornecer materiais para a execução da empreitada pela sociedade arguida, de entre as quais se contou a sociedade “H…, Lda.”, que forneceu para a obra, através da sociedade “D…, Lda.”, os materiais constantes das faturas de fls. 16 a 18, que nela foram aplicados; e
- Dado esse prévio conhecimento e relação de confiança entre essas fornecedoras e a dona da obra, para garantia do bom pagamento do preço, este era pago pela dona da obra e descontado do preço a pagar à sociedade arguida, como empreiteira;
6. Inexiste qualquer prova, seja através dos diversos documentos juntos aos autos, seja da prova testemunhal trazida pela acusação, da qual tenha resultado, de forma segura e concreta, ter existido um acordo de vontades entre a emitente das faturas e a sociedade arguida que visasse a obtenção de um ganho fiscalmente relevante, com vista a ser alcançada uma vantagem económica consistente na diminuição de receitas tributárias da sociedade arguida, sendo que nem se logrou apurar a identidade de quem terá atuado em representação da sociedade “H…, Lda.”, o que é revelador da impossibilidade de ter ficado demonstrado o pretenso acordo ou conluio;
7. Desconhecendo-se quem terá atuado em representação da sociedade “H…, Lda.” não é possível ter-se apurado qualquer conteúdo de um qualquer acordo entre essa sociedade e o arguido ou a sociedade arguida, que apenas surge na decisão recorrida como uma afirmação ou juízo meramente abstrato, não fatualizado nem concreto, sem qualquer substrato probatório seguro, como o exige o Direito Penal;
8. O acordo simulatório impõe a necessidade de uma prova direta, prova essa que, no caso dos autos, inexiste em absoluto. Daí que toda a matéria atinente a esse alegado acordo não possa subsistir, impondo-se a sua eliminação do rol da matéria provada;
9. Tendo em consideração que a conduta típica imputada ao recorrente se enquadra na previsão da al. c) do nº 1 do artigo 103º do RGIT, tal implica a necessidade de consideração de uma infração por natureza plurisubjetiva, o que equivale a dizer que só mediante a convergência de duas ou mais vontades em que se traduz o acordo celebrado é possível cometer o crime de fraude fiscal aqui em causa;
10. A admitir-se como boa e suficiente para incriminar o arguido a afirmação de que alguém que se desconhece atuou em representação de uma sociedade, para concluir um acordo de vontades com fins criminalmente relevantes, tal redundaria na mais absoluta subversão do princípio básico do Direito Penal de que não é o arguido que tem que provar a sua inocência mas a acusação que terá que demonstrar, de forma não meramente indiciária mas concreta e objetiva, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal em causa;
11. A insuficiência de factos seguros que impliquem uma decisão do teor da que foi proferida é bem patente na seguinte expressão constante da motivação da decisão de facto: “Acresce o facto de se tratar de três faturas emitidas em final de ano, o que é habitualmente feito, segundo as testemunhas, por diversas sociedades para “compor as contas”, sendo assim, mais um indício da falsidade das faturas e do conluio entre emitente e beneficiário das mesmas”;
12. Desta afirmação da Mmª. Juiz a quo resulta evidente a insuficiência de factualidade probatória segura demonstrativa da alegada falsidade das faturas e do conluio cuja perpetração é imputada ao arguido e a um outro sujeito não identificado, sendo que tal ónus, cabendo à acusação, não foi cumprido, pelo que terá que redundar inevitavelmente na observância do princípio de presunção de inocência do arguido, que nestes autos não foi observado, em manifesta violação legal;
13. No cumprimento do dever de colaboração com a descoberta da verdade, o arguido requereu a inquirição do legal representante, à data dos factos, da sociedade “H…, Lda.”, I…, diligência probatória que lhe foi negada com o fundamento de que a morosidade daí decorrente colidiria com a perda da prova já produzida, sendo certo que tal princípio de índole meramente processual sempre seria menos relevante do que o objetivo da descoberta da verdade material;
14. A qualidade de representante societário desse indivíduo à data dos factos em causa nos autos e neles demonstrada documentalmente, porque terá sido a pessoa que terá emitido os documentos contabilísticos aqui em análise e os terá entregue, imporia que o depoimento pessoal dessa testemunha fosse considerado relevante, não só por ser a pessoa que poderia trazer o relato da realidade do ocorrido quanto aos factos que são imputados ao arguido, como também por se tratar da única pessoa com conhecimento pessoal dessa mesma realidade, o que tudo justificava a imprescindibilidade da sua comparência em juízo a fim de ser inquirido como testemunha;
15. Ao não ser assim entendido, a descoberta da verdade material ficou inexoravelmente comprometida, restando a prova coligida pelos inspetores tributários que foi assente em depoimentos das testemunhas E… e F…, representantes legais da sociedade “D…, Lda.”, depoimentos esses prestados em sede de inquérito e que, em audiência de julgamento, foram derrogados por diferentes versões – vejam-se as gravações sob as referências 20130107111450_89286_64812 e 20130107113012_89286_64812 e 20130129102321_89286_64812 – o que levou o Exmº Procurador Adjunto a requerer o confronto das referidas testemunhas com os depoimentos anteriormente prestados;
16. Os materiais discriminados nas faturas em apreço foram efetivamente fornecidos, como referido pelo legal representante da sociedade dona da obra, ao afirmar que tais materiais estão na obra executada pela sociedade arguida, de onde resulta que as faturas em causa correspondem efetivamente a materiais fornecidos e existentes em obra;
17. Carece de qualquer fundamento e sustentação probatória a afirmação constante do ponto 4 da matéria de facto dada como provada, de que das faturas em análise constam “transações inexistentes”, uma vez que as transações a que se reportam tais faturas existiram, pois que os materiais nelas discriminados foram colocados e existem em obra, devendo, em consequência, a factualidade constante dos pontos 3 e 4 da matéria provada ser eliminada e dada por não provada, face à inexistência de prova segura que a permita sustentar, como resulta, aliás, do próprio teor desses pontos de facto;
18. O arguido, desde o primeiro momento de contacto com os autos, concretamente no auto de declarações prestadas em 10/11/2005 ao Inspetor Tributário responsável pelo processo (J…, testemunha nestes autos), sempre afirmou que as faturas em causa lhe foram apresentadas pelos sócios-gerentes da firma “D…, Lda.” em resultado do material posto à disposição pelos próprios na obra do Loteamento do … e que, efetivamente, o pagamento das respetivas faturas foi feito em acerto de contas entre a empreiteira e a dona da obra;
19. Toda a prova produzida nos autos, quer documental quer testemunhal, confirma a versão do arguido, não podendo de forma alguma concluir-se, como indevidamente se faz no relatório da inspeção tributária e na motivação da douta sentença, que o arguido tenha declarado que aquelas faturas não correspondiam a “qualquer aquisição de materiais” (relatório de inspeção tributária) ou a “transações reais) (motivação da sentença), pois que tais conclusões não têm o mínimo de correspondência com o efetivamente declarado e constante do auto de declarações do arguido (anexo I do relatório junto aos autos);
20. Não tem qualquer sustentação real, nem pode mostrar-se fundamentada em qualquer prova que tenha sido produzida – que não foi – a afirmação contida na motivação da decisão de facto de que “… desde logo se diga que, pese embora a tese avançada pelo arguido, o certo é que, pelo mesmo, foi admitido não ter adquirido à sociedade “H…, Lda.”, emitente das faturas em questão, os materiais constantes das mesmas, pelo que se impõe, sem mais, concluir que, pelo arguido, foi admitido que as faturas em causa são falsas porque não titulam qualquer transação real entre a emitente das mesmas e a sociedade arguida”;
21. O facto de as faturas não corresponderem a transações reais entre a emitente e a sociedade arguida não implica necessariamente que se trate de transações inexistentes, pois que elas existiram, embora não diretamente com a sociedade arguida mas com reflexo direto no preço da empreitada realizada por esta;
22. Não há qualquer justificação probatória para a afirmação constante da motivação da decisão de facto de que “Nem faz qualquer sentido que o arguido C…, pessoa instruída e com larga experiência de vida, tenha aceite emitir uma fatura por valor muito superior ao efetivamente recebido como preço da empreitada, aceitando, em compensação, três faturas emitidas por uma sociedade que alega não conhecer sequer …”, cabendo, desde logo, referir que não ficou demonstrado que a sociedade arguida tivesse emitido uma fatura de valor superior ao efetivamente recebido como preço da empreitada, por efeito da compensação com as três faturas em causa nos autos, nem tal matéria consta dos factos provados;
23. Decorre igual consequência para a afirmação constante do ponto 6 da matéria de facto dada como provada, de que tais faturas “não titulavam verdadeiras transações comerciais”, bem como para a expressão constante do ponto 8 da mesma matéria, se “as faturas referidas em 4) titularem transações inexistentes” expressões que deverão ser eliminadas;
24. Outra conclusão formulada pela Mmª. Juiz a quo para a existência da simulação, como fundamento e requisito objetivo do preenchimento do tipo legal aqui em causa, que não tem qualquer suporte probatório, nem a sua construção conclusiva pode ser reconhecida como coerente e minimamente justificativa do seu teor, é a seguinte afirmação constante da motivação da decisão de facto: “A incongruência da tese avançada pelo arguido foi, desde logo, apontada pelas testemunhas J… e K…, os quais realçaram que tal versão foi desde o início negada pelos representantes legais da “D…, Lda.” Mais realçaram que, a ter sucedido como o arguido afirma, então o correto seria as faturas terem sido emitidas em nome da “D…, Lda.” e não da sociedade arguida, sendo certo que, porque, de qualquer dos modos, não ocorreu nenhuma real transação entre a emitente e a sociedade arguida, sempre as faturas em questão são falsas porque não titulam qualquer transação real e, por isso, sempre haverá um negócio simulado na sua base, pelo que sempre estaria em causa o crime de fraude fiscal”;
25. Desde logo há que atentar-se que os depoimentos das testemunhas J… e K…, inspetores tributários, basearam-se exclusivamente nas conclusões do relatório da inspeção que elaboraram, que assentou fundamentalmente nos depoimentos dos legais representantes da “D…, Lda.” que, como supra aludido, foram prestados em sede de inquérito, tendo sido em audiência de julgamento derrogados por diferentes versões, o que levou o Exmº Procurador Adjunto a requerer o confronto das referidas testemunhas com os depoimentos anteriormente prestados;
26. Sendo inquestionável que o correto seria as faturas terem sido emitidas em nome da “D…, Lda.” e não da sociedade arguida, a realidade é que daí não pode retirar-se, sem mais, que não tenha existido uma transação real e que por isso sempre haverá um negócio simulado na sua base;
27. As faturas em causa titulam a existência de uma transação real, como o demonstra o facto de os materiais descritos nas faturas terem sido aplicados em obra e lá existirem – facto que os inspetores tributários omitiram mas que não pode deixar de ser considerado, atenta a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, sendo que a simples afirmação de não ter existido um negócio real entre a emitente das faturas e a sociedade arguida não legitima juridicamente, por si só, a conclusão de que daí decorra a existência e a demonstração de um negócio simulado;
28. No limite, o que existe é uma mera desconformidade do teor dos documentos com a realidade ocorrida, apenas no que toca aos sujeitos da operação comercial que as faturas revelam e aos sujeitos do verdadeiro ato comercial. Para que se retirasse a conclusão jurídica da existência de negócio simulado, outros requisitos factuais se impunha que estivessem provados – o que efetivamente não acontece -, como seria a factualidade atinente ao conluio ou acordo de vontades e ainda a factualidade que demonstrasse a imputação subjetiva dessa divergência entre o real e o declarado aos agentes, de modo tal que permitisse aferir a intenção da prática do ilícito, num qualquer grau de censurabilidade e culpa, bem como ainda a intenção de causar prejuízo ao Estado, nada existindo nos autos que permita retirar tais conclusões, tanto mais que não se provou que o recorrente tenha agido com dolo, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual);
29. Inexistem igualmente nos autos quaisquer factos provados dos quais seja possível retirar a existência de conluio e de um negócio simulado com vista a prejudicar o Estado, através da diminuição das receitas tributárias, sendo infundado o juízo a tal propósito proferido pela Mmª. Juiz a quo;
30. No processo administrativo de inspeção tributária que se encontra a instruir os autos, existe uma declaração escrita emitida pela sociedade “H…, Lda.” de recebimento do valor global das faturas. Embora tal documento não tenha relevância para efeitos fiscais, por não corresponder aos requisitos legais de um recibo, não pode esse documento deixar de ser atendido como uma verdadeira declaração de quitação do preço para efeitos penais. E, neste âmbito, a acusação não demonstrou que esse documento fosse falso, como era seu ónus, nem sequer existe qualquer menção desse documento na douta sentença aqui em crise;
31. Em sede penal terá esse documento que ser havido como verdadeiro e verdadeiro o seu teor, que é demonstrativo do pagamento do preço global constante das faturas em apreço, pelo que terá que ser havida como legítima a consideração do mesmo preço como custo, se não para efeitos fiscais, por não cumprir com os requisitos que a lei impõe nesta sede, sempre o terá que ser em sede penal, com as consequências que daí decorrem;
32. Pelos fundamentos invocados, impõe-se concluir pela inexistência do preenchimento dos necessários elementos objetivos e subjetivos integrantes do tipo legal de crime por que o arguido foi condenado, de onde resultará a necessária absolvição do arguido;
33. O princípio “in dubio pro reo” pressupõe – e tal é aceite pacificamente no nosso ordenamento jurídico e assim é aplicado pela jurisprudência em geral – que sobre o arguido não recai qualquer ónus de prova e que a dúvida sobre os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança implica sempre decisão absolutória, pois que a dúvida equivale à prova positiva da não culpabilidade, não podendo nunca exigir-se ao arguido a prova de que não é culpado;
34. Verifica-se também in casu erro notório na apreciação da prova, pois que desta e da sua correta apreciação, conjugada com as regras da experiência comum, deveria a Mmª. Julgadora, senão optar pela absolvição do arguido, por falta de prova, atingir idêntica decisão absolutória pela aplicação do princípio in dubio pro reo, consagrado constitucionalmente no artº 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa;
35. Deverá, portanto, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que absolva o arguido, com as demais consequências legais;
36. Sem prescindir, a douta decisão recorrida determina, na al. c) do seu dispositivo que a execução da pena de prisão aplicada ao arguido recorrente fica condicionada ao pagamento pelo mesmo da prestação tributária em falta (€ 63.845,64), à Administração Tributária, no prazo de cinco anos, reportando-se aquele indicado valor a IRC no montante de € 45.672,66 e a IVA no montante de € 18.172,98;
37. Tendo os presentes autos seguido os seus termos por só se verificar ilícito criminal quanto ao montante alegadamente sonegado a título de IRC, apenas quanto a este valor haverá que se considerar o seu pagamento como condição da suspensão da pena de prisão, uma vez que a conduta relativa à falta de entrega de IVA se encontra discriminalizada, nos termos do disposto no artº 103º nº 2 do RGIT, conforme, aliás, consta do parecer fundamentado da Direção de Finanças de Vila real, junto aos autos a fls. 169 e seguintes, concretamente, a fls. 182 e 183;
38. Demonstrado que está o pagamento do montante relativo a IRC e acréscimos legais (veja-se fls. 183 do referido parecer) e descriminalizada que está a conduta relativa ao IVA, nos termos do disposto no artº 103º nº 2 do RGIT, decorre necessariamente a impossibilidade de se retirarem as consequências penais constantes da sentença recorrida, pelo que terá que se dar como verificada a condição da suspensão da pena aplicada;
39. Assim, deverá ser acrescentada à matéria de facto provada a seguinte factualidade: A sociedade arguida pagou a importância de € 45.672,66 e acréscimo legais, relativa a IRC do ano de 2001;
40. A suspensão da pena de prisão de 18 meses aplicada ao arguido, a manter-se, terá que ser considerada suspensa na sua execução por igual período, nos termos legais, sem aquela condição, por já se mostrar cumprida.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o mesmo não merece provimento, remetendo, no essencial, para a resposta apresentada pelo Mº Pº na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. A arguida “B…, Lda.”, é uma sociedade comercial que se dedica à construção civil, tendo sede na Rua …, n.º .., Montalegre, com o capital social de €249.398,94, integralmente realizado em dinheiro e representado por quatro quotas, todas subscritas pelo arguido C…, o qual assume também a gerência da mesma.
2. A arguida “B…, Lda.”, na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais encontrava-se coletada como contribuinte n.º ………, e registada em matéria de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (I.R.C.) na atividade de construção e engenharia civil (CAE: ……), e enquadrada, para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), no regime normal de periodicidade mensal.
3. Em data não concretamente apurada, mas seguramente no ano de 2001, o arguido C…, conluiado com alguém cuja identidade não logrou apurar-se mas que atuou em representação da sociedade “H…, Lda.”, por si e na qualidade de legal representante da referida B…, Lda., tomou o propósito de obter, em prejuízo do Estado, vantagem económica para si.
4. No seguimento desse plano, também em data não apurada, mas seguramente no ano de 2001, alguém cuja identidade não logrou apurar-se mas que actuou em representação da sociedade “H…, Lda.”, emitiu as faturas que de seguida se alinham, em favor da sociedade arguida “B…, Lda.”, nelas fazendo constar transacções inexistentes, entregando-as ao seu representante legal, o arguido C…:



5. Uma vez na posse de tais faturas, supostamente referentes a fornecimentos de matéria-prima para construção civil – areia, brita, sacos de cimento, lancil, manilhas e pave trief –, o arguido C… integrou-as na contabilidade da arguida “B…, Lda.”, deduzindo indevidamente I.V.A. nos seguintes montantes:


6. E ainda, com base em tais faturas que não titulavam verdadeiras operações comerciais, o arguido C… considerou indevidamente como custos da “B…, Lda.”, em sede de I.R.C., o montante de €106.899,87, tendo pago menos I.R.C. do que aquele que deveria pagar caso não as considerasse, obtendo assim vantagem patrimonial no valor de €45.672,66.
7. Tais quantias, no valor global de €63.845,64, foram, por decisão do arguido C…, integrados no seu património e no património da arguida “B…, Lda.”.
8. Agiu o arguido C…, ao receber as faturas em questão, e o indivíduo que atuou em representação da sociedade “H…, Lda.”, ao emiti-las, em comunhão de esforços, bem sabendo que a atuação supra descrita não lhes era permitida por as faturas referidas em 4) titularem transações inexistentes, já que não correspondiam a quaisquer fornecimentos de bens prestados pela sociedade “H…, Lda.” à sociedade “B…, Lda.”.
9. Sabia o arguido C… e o indivíduo que atuou em representação da sociedade “H…, Lda.”, que as faturas descritas em 4) seriam, como foram, integradas pelo arguido B… na escrita da arguida que representava, a “B…, Lda.”, com o intuito de defraudar a Fazenda Nacional em sede de I.V.A. e I.R.C., obtendo para si e para esta proveito económico que também sabiam não lhes ser devido, bem sabendo ainda o arguido que desse modo diminuía as receitas tributárias.
10. Ao forjarem as referidas faturas, nelas fazendo constar fornecimentos de bens que, na realidade, não aconteceram, assim as utilizando nos termos e com os objetivos descritos, os arguidos violaram a segurança e o tráfico jurídico, em especial o tráfico probatório que tais faturas deveriam documentar.
11. Ao deduzir I.V.A. e ao contabilizar como custos em sede de I.R.C., relativos a transações fictícias, o arguido C…, por si e em representação da arguida “B…, Lda.”, agiu com a intenção concretizada de obter, para si e para aquela sociedade, uma vantagem patrimonial indevida, bem sabendo que desse modo diminuía as receitas fiscais.
12. Agiu o arguido C…, por si em representação da sociedade arguida de forma livre, voluntária e consciente.
13. Tinha perfeito conhecimento de que o seu comportamento era proibido por lei.
Mais se provou que,
14. O arguido C… é divorciado e vive com sua a ex-mulher, em casa desta.
15. O arguido C… tem três filhos, com 38, 30 e 16 anos de idade, suportando um montante mensal de €600,00 com a pensão de alimentos devida ao filho menor.
16. O arguido C… é aposentado da função pública e aufere uma pensão mensal de €1.250,00.
17. O arguido C… é também empresário, não retirando qualquer salário dessa atividade.
18. O arguido C… tem, como habilitações literárias, o 5.º ano da escola industrial.
19. Do certificado de registo criminal do arguido C… nada consta.
20. A arguida “B…, Lda.” continua atualmente a laborar com cerca de 4 funcionários e cinco veículos automóveis.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A convicção do tribunal quanto à factualidade provada supra elencada fundou-se, desde logo, na análise do teor do auto de notícia de fls. 1 e 2, do relatório de inspecção de fls. 5 a 14, do auto de apreensão de fls. 15, das cópias de faturas de fls. 16 a 18, das certidões de fls. 28 a 31 e 33 a 35, das informações de fls. 155 a 160, da nota de cobrança de 161, dos print de fls. 162 a 167, e dos documentos de fls. 544 a 569, analisados de forma crítica e conjugada entre si, bem como conjugada com a restante prova produzida.
Por outro lado, revelaram-se essenciais, à formação da convicção do tribunal quanto à prova dos factos supra elencados, os depoimentos prestados pelas testemunhas J…, inspetor tributário e autor da inspeção que conduziu aos presentes autos, e K…, inspetor tributário autor da parte criminal do inquérito. Ambos prestaram depoimentos muito claros, coerentes e seguros, demonstrando total isenção e mereceram, por isso, toda a credibilidade deste tribunal.
Pelas referidas testemunhas, além de confirmarem o teor do relatório de fls. 5 a 14, foi esclarecido que no âmbito de um processo de inspeção realizado à sociedade “H…, Lda.” foram detetadas as três faturas em questão nestes autos, emitidas à arguida “B…, Lda.”, tendo-se logrado apurar que as mesmas não correspondem a qualquer transação real e foram utilizadas pela arguida “B…, Lda.” em termos fiscais, tendo sido deduzido o IVA correspondente e deduzidos custos em sede de IRC.
Esclareceram, ainda, que foi solicitado ao arguido C…, em representação da sociedade arguida, que apresentasse os documentos que comprovassem que as faturas em questão eram verdadeiras, que titulavam transações reais, não tendo este apresentado qualquer documento comprovativo e tendo declarado que aquelas faturas não correspondiam, efetivamente, a transações reais.
Mais realçaram o facto de os matérias constantes das faturas serem materiais de construção, quando o objeto social da sociedade “H…, Lda.” é apenas a serração de madeiras, bem como o facto de, no respetivo processo inspetivo a sociedade “H…, Lda.” nunca ter logrado comprovar que adquiriu os materiais constantes naquelas três faturas para os poder vender à arguida “B…, Lda.”. Acresce o facto de se tratar de três faturas emitidas em final de ano, o que é habitualmente feito, segundo as testemunhas, por diversas sociedades para “compor as contas”, sendo, assim, mais um indício da falsidade das faturas e do conluio entre emitente e beneficiário das mesmas.
O arguido C… prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo confirmado a sua qualidade de sócio e único gerente da sociedade arguida, responsável pelos destinos da mesma, e que as três faturas aqui em questão foram contabilizadas em termos fiscais, quer em sede de IVA, quer em sede de IRC. Mais admitiu o arguido não ter adquirido os materiais constantes das três faturas apreendidas nos autos à sociedade “H…, Lda.”.
No entanto, pretendeu o arguido convencer o tribunal que os materiais constantes das faturas em questão foram efetivamente aplicados pela sociedade arguida na obra que se encontrava a realizar no loteamento …, em Montalegre, no âmbito de um contrato de empreitada celebrado com a “D…, Lda.”, tendo os referidos materiais aplicados pela sociedade arguida sido fornecidos pela referida D… e não pela sociedade “H…, Lda.”, a qual nem sequer conhece.
Quando confrontado, afirmou o arguido que foi o Sr. E…, sócio da “D…, Lda.” quem lhe entregou as faturas aqui em questão para fazer o acerto de contas, uma vez que a sociedade arguida emitiu uma fatura pela totalidade do preço da empreitada, quando na realidade recebeu apenas a diferença entre aquele preço e os custos dos materiais aplicados que foram, afinal, fornecidos pela “D…, Lda.”
Assim, pretendeu o arguido convencer o tribunal que as faturas em questão titulam o material efetivamente aplicado por si na obra e que não visava obter qualquer benefício com as mesmas, mas apenas fazer o acerto de contas por ter emitido uma fatura de valor superior ao montante efetivamente recebido pela empreitada.
Ora, desde logo se diga que, pese embora a tese avançada pelo arguido, o certo é que, pelo mesmo, foi admitido não ter adquirido à sociedade “H…, Lda.”, emitente das faturas em questão, os materiais constantes das mesmas, pelo que se impõe, sem mais, concluir que, pelo arguido, foi admitido que as faturas em causa são falsas porque não titulam qualquer transação real entre a emitente das mesmas e a sociedade arguida.
Por outro lado, importa dizer também que a tese avançada pelo arguido não faz qualquer sentido nem tem qualquer congruência com as regras da experiência e da normalidade, pois que se houvesse sido a “D…, Lda.” a adquirir os materiais para aplicar na obra e entregue os mesmos ao arguido, então as faturas que titulam essa aquisição deveriam ter sido emitidas à “D…, Lda.” e não à sociedade arguida.
Nem faz qualquer sentido que o arguido C…, pessoa instruída e com larga experiência de vida, tenha aceite emitir uma fatura por valor muito superior ao efetivamente recebido como preço da empreitada, aceitando, em compensação, três faturas emitidas por uma sociedade que alega não conhecer sequer e que, necessariamente, titulavam transações inexistentes, sendo por isso falsas. Nem pode o tribunal acreditar que, a ter sucedido assim, o arguido tenha, de boa fé, pensado que não fazia nada de errado, e desconhecesse que praticava o crime aqui em questão.
A incongruência da tese avançada pelo arguido foi, desde logo, apontada pelas testemunhas J… e K…, os quais realçaram que tal versão foi desde o início negada pelos representantes legais da “D…, Lda.” Mais realçaram que, a ter sucedido como o arguido afirma, então o correto seria as faturas terem sido emitidas em nome da “D…, Lda.” e não da sociedade arguida, sendo certo que, porque, de qualquer dos modos, não ocorreu nenhuma real transação entre a emitente e a sociedade arguida, sempre as faturas em questão são falsas porque não titulam qualquer transação real e, por isso, sempre haverá um negócio simulado na sua base, pelo que sempre estaria em causa o crime de fraude fiscal.
Para além da incongruência da tese avançada pelo arguido, certo é também que a mesma foi desde logo negada pelas testemunhas E… e F…, representantes legais da “D…, Lda.”.
Pese embora o notório cuidado destas testemunhas em não prejudicar o arguido, o certo é que por ambos foi afirmado que a “D…, Lda.” não adquiriu quaisquer materiais, nem forneceu quaisquer materiais à sociedade arguida para que os aplicasse na obra, e designadamente não forneceu aqueles que constam das faturas em questão, tendo, ainda, afirmado ambos desconhecer a sociedade “H…, Lda.”. Pela testemunha E… foi, ainda, dito não se recordar de entregar as faturas aqui em questão ao arguido C…, mas se o fez foi porque alguém as deixou lá e lhe pediu para as entregar. Mais afirmaram ambos que, se fosse verdade que os materiais haviam sido adquiridos pela “D…, Lda.” para serem aplicados na obra pela sociedade arguida, então as faturas seriam emitidas em nome da D… e não da sociedade arguida.
Nenhuma das testemunhas recorda, também, o acerto de contas que o arguido afirma ter existido como fundamento para lhe terem sido entregues aquelas faturas, admitindo, apenas, a testemunha E… que possa ter servido de intermediário entre a sociedade arguida e um qualquer fornecedor de materiais, apenas no sentido de assegurar a este que a sociedade arguida não receberia o preço da empreitada sem que estivesse pago o preço dos materiais, ou que seriam feitos os pagamentos na presença de todos.
Posta em causa a versão avançada pelo arguido, quer pela sua incongruência, quer porque cabalmente contrariada pelos depoimentos das testemunhas E… e F…, acresce ainda considerar que, as testemunhas arroladas pelos arguidos – G…, L… e M… –, não lograram também convencer o tribunal da veracidade daquela tese.
A testemunha G…, começou por afirmar ter a certeza que os materiais para aplicar naquela obra não eram fornecidos pela sociedade arguida mas pela “D…, Lda.”, no entanto, quando lhe foi perguntado porque tinha essa certeza, limitou-se a dizer que só podiam ser fornecidos pela “D…, Lda.” porque, ao que sabe, o arguido C… não conhecia a empresa que ia lá descarregá-los.
De forma muito atrapalha, nervosa e confusa, incapaz de explicar ao tribunal como tinha tanta certeza daquilo que afirmava, acabou a testemunha por dizer ter “quase a certeza”, por que o arguido “quase de certeza” não tinha relações com aquela empresa fornecedora, sem nunca conseguir esclarecer o tribunal do motivo da sua certeza ou quase certeza. Quanto às faturas em questão ou eventuais acertos de contas entre a sociedade arguida e a “D…, Lda.” disse a testemunha nada saber.
E o mesmo sucedeu com a testemunha L…, empreiteiro e amigo do arguido C… há cerca de 15 anos, o qual disse desconhecer as faturas em questão, os materiais nelas constantes ou quem os forneceu, sabendo apenas que via umas carrinhas lá a descarregar materiais e que era o Sr. E… que “estava à frente de tudo”. Mais afirmou ter ouvido, a certa altura, uma conversa entre o arguido e o Sr. E… sobre um acerto de contas, sem que soubesse concretizar a que se referiam.
Também a testemunha M…, trabalhador da sociedade arguida, soube apenas dizer que na obra do loteamento … aplicaram diversos materiais, parte dos quais foram fornecidos por uma empresa de …. Mais disse que o Sr. E… é que estava à frente de tudo e que, “com certeza” tinha arranjado a fornecedora mais barata.
Ora, pela forma vaga e imprecisa como foram prestados os referidos depoimentos, e pelo fraco contributo que trouxeram, não se revelaram os mesmos suficientes para corroborar a tese incoerente do arguido, nem tão pouco para abalar a credibilidade resultante da análise dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos prestados pelas restantes testemunhas.
Acresce que nenhum dos documentos juntos pelos arguidos com a sua contestação teve, de igual modo, a virtualidade de corroborar a tese do arguido ou de abalar a força probatória dos demais elementos.
Assim sendo, dúvidas não restam, para este tribunal que, no ano de 2001, alguém cuja identidade não logrou apurar-se mas que atuou em representação da sociedade “H…, Lda.”, emitiu as faturas aqui em questão, em favor da sociedade arguida “B…, Lda.”, nelas fazendo constar transações inexistentes, e entregando-as ao seu representante legal, o arguido C…, o qual as integrou na contabilidade da arguida “B…, Lda.”, deduzindo indevidamente I.V.A. nos montantes apurados e considerando indevidamente como custos da “B…, Lda.”, em sede de I.R.C., o montante de €106.899,87, obtendo assim vantagem patrimonial no valor de €45.672,66.
Ora, apurada esta factualidade, da mesma resulta, em conjugação com as regras da experiência e da normalidade o conluio com a sociedade “H…, Lda.” e o propósito do arguido, por si e na qualidade de legal representante da referida B…, Lda., em obter, em prejuízo do Estado, vantagem económica para si e para a sociedade.
Por outro lado, apurada a factualidade supra enunciada, da mesma resulta que o arguido sabia, efetivamente, que as faturas em questão eram falsas, por titularem transações inexistentes, já que não correspondiam a quaisquer fornecimentos de bens prestados pela sociedade emitente, e que não lhe era permitido atuar do modo que atuou, tendo atuado com o intuito de defraudar a Fazenda Nacional em sede de I.V.A. e I.R.C., obtendo para si e para a sociedade arguida proveito económico que também sabiam não lhes ser devido, bem sabendo, ainda, que desse modo diminuía as receitas tributárias.
Mais resulta das regras da experiência e da normalidade, conjugadas com a demais factualidade apurada, que quem age como o arguido agiu, por si e em representação da sociedade arguida, age de forma livre, voluntária e consciente, com perfeito conhecimento de que o seu comportamento era proibido por lei.
Consistindo, os factos em questão, em elementos da vida interior do agente, a prova dos mesmos terá de resultar, como sucede no caso em presença, de dados concretos que, com muita probabilidade, revelam aqueles factos internos, em conjugação com as regras da experiência e daquele que é o padrão de atuação do homem médio.
No que concerne à apurada situação económica da sociedade arguida, bem como à situação socioeconómica do arguido C…, atendeu o tribunal às declarações por este prestadas, em sede de audiência de discussão e julgamento, as quais se revelaram, nesta parte, credíveis.
A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido C… resulta do teor do certificado de registo criminal, de fls. 647 dos autos.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à impugnação da matéria de facto que considera incorretamente julgada, à inexistência de prova demonstrativa de conluio entre o arguido e o emitente das faturas, à desconsideração da declaração de quitação existente nos autos, bem como à desconsideração do pagamento pelo arguido da prestação tributária e legais acréscimos e à descriminalização da conduta relativa a IVA.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
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Improcede, por isso, a pretendida impugnação da matéria de facto. *
Alega ainda o recorrente que “não existe prova demonstrativa de conluio entre o arguido e o emitente das faturas, não tendo resultado de forma segura e concreta ter existido um acordo de vontades entre ambas as partes, que visasse a obtenção de um ganho fiscalmente relevante. E que, desconhecendo-se quem terá atuado em representação da sociedade H…, Lda., não é possível apurar o conteúdo do acordo simulatório, sendo certo que o crime de fraude fiscal em causa consiste numa infração de natureza plurissubjetiva”.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. no artº 104º nº 2 do RGIT por ter utilizado faturas por operações inexistentes com vista a obter uma vantagem patrimonial suscetível de causar diminuição das receitas tributárias.
Através da emissão de faturas falsas, o agente visa documentar operações económicas que não são verdadeiras, ou porque pura e simplesmente não existem, ou pelo menos não existem nos exatos termos que aparentam. Assim, o objetivo que subjaz à emissão de faturas falsas radica frequentemente na documentação falsa de custos fiscais, assegurando, deste modo, a diminuição de lucros com importantes consequências na determinação da matéria coletável (IRC) ou mesmo a obtenção ilícita de reembolsos fiscais (IVA).
Na trilogia proposta por Nuno Sá Gomes[3] tipificam-se três modalidades de faturas falsas: a) faturas falsas stricto sensu – conferidas pelo emitente-utilizador a empresas inexistentes; b) faturas forjadas – conferidas pelo emitente-utilizador a empresas existentes mas sem conhecimento destas últimas e c) faturas de favor – emitidas por um terceiro em resultado de acordo com o utilizador que as incorpora na sua contabilidade fiscal, existindo pagamento de uma quantia ao emitente ou mediante faturas emitidas gratuitamente.
Nos dois primeiros casos a emissão de faturas falsas ocorre através de um ato unilateral do infrator e não há qualquer operação/relação económica.
Na última situação referida, a emissão de faturas falsas pode ocorrer mediante acordo entre duas pessoas para prejudicar o Estado Fiscal. Neste caso, o emitente é co-autor do tipo legal previsto no nº 2 do artº 104º do RGIT (fraude qualificada), juntamente com o utilizador de faturas falsas. Tratar-se-ia, como refere o recorrente, de uma infração plurisubjetiva, em que declarante e declaratário celebram uma aparência de negócio jurídico destinado a provocar uma ilusão a terceiro (neste caso, a administração tributária). Há apenas o negócio simulado e, por detrás dele, nada mais (colorem habet, substantiam vero nullam).
Pensamos, porém, que a falsidade fiscal e a simulação constituem realidades diferentes, uma vez que a primeira se reporta ao documento e a segunda ao conteúdo do negócio celebrado. No caso da simulação, verifica-se uma divergência intencional entre a vontade e a declaração negocial, sendo verdadeiro o documento que a incorpora. Na falsidade existe uma divergência intencional entre a declaração e a realidade (falsidade inteletual), ou entre a declaração e o seu suporte escrito (falsidade material) e não entre a vontade e a declaração negocial[4].
Daí que, não obstante o acordo de vontades entre o emitente e o utilizador de faturas falsas – imprescindível nas denominadas “faturas de favor” – e a correspondente co-autoria no tipo legal do artº 104º nº 2 do RGIT, a apreciação da responsabilidade criminal do utilizador não pressupõe a identificação do concreto emitente e a respetiva responsabilização criminal.
Apurada a utilização de documento falso, para efeitos de determinação da matéria coletável ou de obtenção de reembolso fiscal, acompanhado da consciência e vontade da realização do tipo de ilícito, tanto basta para responsabilizar o utilizador pelo crime de fraude fiscal, verificados que se mostrem todos os restantes elementos objetivos do tipo.
É por isso irrelevante a prova da existência de conluio ou de um acordo de vontades entre a emitente das facturas e o arguido e a sociedade por ele representada. Não podemos olvidar que muitas situações existem em que o emitente de facturas falsas procede à sua venda a variadas empresas, muitas vezes sem ter qualquer prévia relação com o utilizador final, servindo-se mesmos de intermediários. E aí não pode, naturalmente, falar-se de acordo de vontades entre o emitente e o utilizador.
A pessoa de identidade não apurada a que aludem os pontos 3 e 4 da matéria de facto provada da decisão recorrida tanto pode ser um legal representante da empresa H…, Lda., como um seu intermediário atuando em representação daquele.
Alega o recorrente que, perante a inexistência de prova direta do referido acordo de vontades ou de que o recorrente agiu com dolo, se impunha que os factos constantes dos pontos 3 e 4 fossem eliminados da matéria de facto provada.
Se assim fora, a prova dos factos de cariz subjetivo, do domínio íntimo de quem age, apenas poderiam resultar de confissão, logo se revelando o absurdo dessa conclusão que conduziria à impunidade.
Diga-se que a prova indireta ou indiciária que contém momentos de presunção ou inferência pode igualmente justificar certeza bastante à convicção positiva do Tribunal desde que indique com base nas regras da experiência que o facto em causa corresponde à realidade.
A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.
Acresce que a nossa lei penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Importa constatar, em primeiro lugar, uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios[5].
Se atentarmos no disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal concluiremos sem esforço que admite a chamada prova indireta ou por presunção quando preceitua que a prova é apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência. E são precisamente as regras da experiência que permitem extrair ilações dos factos diretamente percecionados e conhecidos, chegando por essa via ao conhecimento de outros factos com o necessário grau de certeza.
Com efeito, não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas diretas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define.
Como se lê no Acórdão do STJ de 12.9.2007[6] “Vejamos que o indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas diretas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico inteletual necessário antes que se gere a impunidade.” “E sobre a prova indiciária (…) entende-se, ainda, que aquela é suficiente para determinar a participação no facto punível se (requisito de ordem formal) da sentença constarem os factos-base e se mostrarem provados, os quais vão servir de base à dedução ou inferência, se se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à verificação do facto punível e da sua participação no facto de que é acusado, essa explicitação é imperativa para se controlar a racionalidade da inferência em sede de recurso. Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência da vida; dos factos base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência.”
Ora, na motivação da decisão de facto, a Srª. Juíza a quo explicitou todo o raciocínio seguido a partir da prova produzida, ainda que indireta, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, concluindo de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que as facturas utilizadas pelos arguidos não correspondem a verdadeiras transações, tratando-se por isso de documentos falsificados. E constando de tais facturas que terão sido emitidas pela empresa H…, Lda., não constituindo documentos forjados pelo próprio arguido, só é possível concluir que as mesmas foram emitidas por um legal representante daquele empresa ou por alguém atuando em representação daquela.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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Alega ainda o recorrente que o tribunal recorrido desconsiderou o documento junto aos autos e que constitui uma declaração emitida pela sociedade H…, Lda. de recebimento do valor global das faturas.
Acontece que, se por um lado, o recorrente não invocou em audiência de julgamento o “pagamento” constante da declaração de fls. 4, por outro lado, o teor de tal documento contraria a versão apresentada pelo próprio arguido.
Com efeito, o arguido sempre afirmou não conhecer a empresa H…, Lda., já que a mesma forneceu os materiais constantes das facturas de fls. 16 a 18 à D…, Lda. e não à sociedade arguida. Estranha-se, por isso que, não conhecendo aquela empresa, conseguiu obter um documento de quitação emitido por uma empresa que desconhece, sabendo esta a sua designação social e o seu NIF.
Por outro lado, tendo as faturas sido emitidas em nome da sociedade arguida, mas tendo sido pagas - de acordo com a versão do arguido -, pela D…, Lda., do documento de fls. 4 não consta a identidade da pessoa, singular ou coletiva, que efetuou o pagamento em numerário.
Acresce que, sendo obrigatória a emissão de recibo de quitação, a sociedade H…, Lda. não emitiu o competente recibo, tendo subscrito uma declaração com o teor de fls. 4, com data 3 de Janeiro de 2002, mas sem que conste do mesmo documento a data em que as faturas foram efetivamente pagas.
Ora, estando o referido documento sujeito à livre apreciação do tribunal, em conformidade com o disposto no artº 127º do C.P.P., perante tantas interrogações, não nos merece censura a opção do tribunal recorrido em desconsiderar o aludido meio de prova.
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Sustenta o recorrente que o tribunal recorrido não atentou no pagamento do montante relativo a IRC e acréscimos legais, bem como à descriminalização da conduta relativa a IVA, tendo condicionado a suspensão da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária em falta.
Vejamos:
O art. 103º do RGIT incrimina como fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no artigo, que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Essas condutas encontram-se descritas nas als. a) a c) do nº1. E o nº 2 prescreve que “os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem ilegítima for inferior a 15.000” (na redação introduzida pela Lei nº 60-A/2005 de 30.12).
Por seu turno, o art. 104º do RGIT prevê a fraude fiscal qualificada, com elevação da moldura abstrata quando, ao que ora interessa, “a fraude tiver lugar mediante a utilização de faturas ou documentos equivalentes, por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente”.
Trata-se de um preceito que prevê circunstâncias que qualificam o tipo de crime base, que é o do art. 103º. O crime de fraude fiscal do art. 103º configura, aliás, o ilícito basilar ou básico das infrações tributárias.
Os crimes tributários tutelam o património fiscal[7], bem jurídico político de referência, mas prosseguem também a verdade e a fiabilidade no tráfico jurídico fiscal, a transparência na relação do sujeito passivo com a administração fiscal[8], os quais se apresentam como bem jurídico instrumental do primeiro.
A fraude fiscal materializa-se numa defraudação, que visa a obtenção de benefício (fiscal) ou a causação de prejuízo (ao fisco).
O valor de 15.000 previsto declaradamente no art. 103º nº 2 do RGIT constitui um limiar mínimo de punição. Consubstancia uma fronteira de relevância típica, ou seja, um limite mínimo de dignidade penal, integrando assim o tipo de ilícito.
Não configura uma simples condição de punibilidade, o que pressuporia que o tipo já estivesse realizado só havendo punição se a condição se verificasse; representa, sim, um elemento do próprio tipo de ilícito, sem o qual este não se realiza[9].
Ao integrar o tipo de ilícito base não pode deixar de se estender ao tipo qualificado do art. 104º do RGIT, contaminando-o. É que este preceito não prevê um tipo de ilícito autónomo, mas um conjunto de circunstâncias qualificadoras do ilícito base. Configura uma forma qualificada de crime – de fraude fiscal –, com o sentido e as implicações que daí derivam.
Assim, as condutas – todas as condutas – adequadas a causar diminuição de receita tributária inferior a 15.000 não serão puníveis. E não o serão, mesmo que configurem uma das modalidades agravadas, previstas no art. 104º do RGIT.
Abaixo daquele valor (“vantagem ilegítima inferior a € 15.000”), a ação não atinge dignidade penal.
Solução que não choca, desde logo porque o princípio da intervenção mínima do direito penal, com a sua natureza fragmentária, implica que a intervenção criminal se alicerce na proteção de bens jurídicos correspondentes a valores fundamentais, que não obtenham proteção adequada e eficaz fora dela.
As condutas menos graves poderão integrar contra-ordenação. E a cobrança fiscal estará sempre assegurada através do processo de execução fiscal.
No sentido que defendemos, Carlos Adérito Teixeira e Sofia Gaspar aditam: “admitindo o carácter controverso da questão, considera-se ser a boa solução a que exige a verificação de uma vantagem patrimonial superior a 15.000 do tipo base, por três ordens de razões: i)desde logo, porque a conduta do tipo qualificado tem de integrar os pressupostos do crime base, sendo um deles o valor, qual limiar de punição (…); ii) de resto, o art. 104º começa por se reportar “aos factos previstos no artigo anterior”; iii) finalmente, seria ilógico que, logo que se verificassem duas circunstâncias – onde supostamente residiria o acrescido desvalor da ação – e sendo a prestação de montante reduzido ou mesmo irrisório, não constituísse fraude simples mas pudesse ser fraude qualificada”[10].
Também Susana Aires de Sousa se pronuncia neste sentido, em recentíssimo e desenvolvido comentário de jurisprudência, onde concluiu que “a fraude fiscal, simples ou qualificada, só assume dignidade penal quando a conduta do agente se mostre idónea a obter uma vantagem patrimonial ilegítima igual ou superior a 15.000 euros, nos termos do art. 103º, nº 2 do RGIT”. Afirma ainda a autora que entre a fraude fiscal simples e a fraude qualificada se estabelece uma pura relação de especialidade, que a fraude qualificada incorpora todos os elementos constitutivos da fraude simples e acrescenta ao facto matricial “elementos suplementares ou caracterizadores, elementos estes que não constituem um novo e autónomo facto ilícito”[11].
Assim, o limite de € 15.000,00, limite negativo e quantitativo da incriminação, tem o seu espaço de aplicação tanto em sede do tipo base como do tipo qualificado de fraude fiscal[12].
No caso em apreço, atendendo a que a sociedade arguida estava enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de peridiocidade mensal e que os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, temos que cada uma das três faturas respeitantes às declarações de Outubro, Novembro e Dezembro de 2001 é bastante inferior a € 15.000,00, não atingindo por isso aquele limiar mínimo de punição.
Ora, a decisão recorrida considerou que havia um só crime de fraude fiscal qualificada, abrangendo todas as condutas, inclusive aquelas em que o prejuízo causado se situou num patamar inferior a € 15.000,00, que são as que respeitam a IVA, já que o benefício visado pelos arguidos no tocante ao IRC é bastante superior a esse montante.
Conclui-se assim que relativamente às declarações de IVA, a respetiva conduta deixou de integrar a prática de crime de fraude fiscal qualificado, após as alterações introduzidas pela Lei nº 60-A/2005 de 30.12 que aumentou de € 7.500,00 para € 15.000,00 o limiar mínimo abaixo do qual o facto não é punível.
Considerando que os factos em apreciação ocorreram em Outubro, Novembro e Dezembro de 2001 e que, nessa data, os mesmos factos constituíam crime e deixaram de o ser para integrarem a prática de um ilícito de mera ordenação social (artº 118º do RGIT), coloca-se a questão de saber se, quanto à parcela da conduta que respeita ao IVA, os arguidos devem ser punidos com coima.
Trata-se de uma questão de sucessão de leis no tempo, que importa definir.
Face à nova redação introduzida em 30.12.2005 no nº 2 do artº 103º do RGIT, as condutas previstas no preceito legal que visassem uma vantagem patrimonial ilegítima superior a € 7.500,00 mas inferior a € 15.000,00, deixaram de constituir crime, passando a ser qualificadas como contra-ordenação.
Ora, o princípio geral é o de que a lei que cria contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor – artº 3º do Dec-Lei nº 433/82.
Como ensina o Prof. Taipa de Carvalho[13] “a relação entre lei contra-ordenacional e lei penal não é uma relação de grau, isto é, não é uma relação de mais ou menos, mas uma relação de distinção essencial, digamos, um problema de ser ou não ser infração penal”.
Assim, se não existir uma norma geral que estabeleça o regime transitório das leis que convertem crimes em contra-ordenações, ou uma norma na própria lei que opera tal conversão, a estabelecer o seu regime transitório, “não pode deixar de concluir-se que, quanto à responsabilidade penal, uma lei que converte uma infração penal numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e que, enquanto tal, se aplica retroativamente. Não se trata, pois, de uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo assim o princípio da lex mitior, mas o princípio da lei despenalizadora, isto é, extintiva da responsabilidade penal”.
Conclui-se assim que a parcela da conduta dos arguidos que respeita ao IVA, porque cada uma das declarações apresentadas que visavam a obtenção de vantagem patrimonial correspondente ao reembolso do imposto, era inferior a € 15.000,00, se tornou jurídico-penalmente irrelevante, tendo sido despenalizada.
Já o mesmo não acontece relativamente à vantagem patrimonial visada em sede de IRC, na medida em que esta ultrapassava já o limite de € 15.000,00, situando-se em €38.975,60 (a que acrescem os juros compensatórios no valor de € 6.584,20).
Acontece, porém, que como resulta do relatório de fls. 178 e dos prints informáticos de fls. 162 a 166, o arguido C… efetuou o pagamento integral de € 45.672,66 correspondente ao IRC em dívida e respetivos juros compensatórios, encontrando-se a situação regularizada.
Neste aspeto assiste razão ao recorrente, impondo-se o aditamento à matéria de facto provada de um novo facto, com a seguinte redação:
«A sociedade arguida pagou a importância de € 45.672,66 correspondente ao IRC do ano de 2001 e juros compensatórios».
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Importa, assim retirar as devidas consequências da procedência deste segmento do recurso, quer relativamente ao arguido recorrente, quer ainda relativamente à arguida sociedade, nos termos dos artºs 402º nº 2 al. a) e 403º do C.P.Penal, justificando-se a alteração das penas aplicadas na decisão recorrida, já que é substancialmente menor a ilicitude do crime de fraude fiscal qualificado, na medida em que apenas está em causa a declaração de IRC do ano de 2001.
Por outro lado, a sociedade arguida já regularizou a sua situação tributária relativamente ao referido imposto, pelo que em conformidade com o disposto no artº 22º nº2 do RGIT as penas deverão ser especialmente atenuadas.
Assim, tendo em consideração a moldura abstrata prevista no artº 104º nº 1 do RGIT e o artº 73º do Cód. Penal a pena de prisão aplicável ao arguido C… passa a situar-se entre um mês e três anos e quatro meses e a pena de multa aplicável à sociedade arguida situa-se entre 10 e 800 dias.
Atendendo à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido C…, a sua inserção social e profissional, a reposição da verdade tributária, e acima de tudo o tempo entretanto decorrido sem que haja notícia da prática de idênticas infrações, entende-se como adequada às finalidades da punição a pena de um ano de prisão, cuja suspensão se mantém, embora não sujeita a qualquer condição.
Relativamente à sociedade arguida B…, Lda., tendo em consideração o prejuízo causado ao Estado Fiscal, as exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir no domínio deste tipo de criminalidade, mas não esquecendo que se mostra regularizada a situação tributária, entende-se adequado fixar a pena de multa em 200 dias, mantendo-se a taxa diária em € 10,00.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
- declaram extinta por despenalizada a conduta dos arguidos no que respeita ao IVA;
- determinam o aditamento à matéria de facto provada de um novo facto com a seguinte redação: «A sociedade arguida pagou a importância de € 45.672,66 correspondente ao IRC do ano de 2001 e juros compensatórios»;
- alteram as condenações impostas na douta sentença recorrida e, em consequência, condenam:
a) o arguido C…, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificado p. e p. nos artºs. 103º, 104º nº 2 e 22º do RGIT e 73º do Cód. Penal, na pena de um ano de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo;
b) a arguida B…, Lda., pela prática de um crime de fraude fiscal qualificado p. e p. nos artºs. 103º, 104º nº 2, 7º nºs. 1 e 3 e 22º nº 2 do RGIT e 73º do Cód. Penal na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que perfaz o montante global de € 2.000,00 (dois mil euros).
Sem custas.
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Porto, 09 de Abril de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] In Relevância Jurídica, penal e fiscal das faturas falsas e respetivos fluxos financeiros e da sua eventual destruição pelos contribuintes, Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, nº 377, DGI, Jan-Mar.1995, pág. 9.
[4] Como escreve Helena Moniz, “o que verdadeiramente se passa na simulação é o facto de o documento retratar fielmente a declaração produzida pela parte; porém, esta não reproduz a vontade real dos declarantes”, in Faturas Falsas – Burla ou Simulação Fiscal, Scientia Ivridica – Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, Tomo XLIII, nº 247-249, Universidade do Minho.
[5] Sobre a prova indiciária em processo penal veja-se com interesse, La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J. M. Bosch Editor, 1997, M. Miranda Estrampes, páginas 231 a 249.
[6] Proferido no Proc. nº 07P4588, Cons. Armindo Monteiro, disponível em www.dgsi.pt
[7] Neste sentido, Augusto Silva Dias, Crimes e Contra-ordenações Fiscais, Direito Penal Económico e Europeu: Textos doutrinários, II, p. 445; e Helena Moniz, Faturas Falsas Burla ou Simulação Fiscal? Direito Penal Económico e Europeu: Textos doutrinários, II, p. 359.
[8] Cfr. Figueiredo Dias e Costa Andrade, O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Tributário Português, Direito Penal Económico e Europeu: Textos doutrinários, II, p. 411
[9] Sobre estas posições em confronto, e ainda a de que representaria uma causa de extinção da responsabilidade criminal ver, mais desenvolvidamente e com várias referências doutrinárias, Carlos Adérito Teixeira, Sofia Gaspar, Comentário das leis Penais Extravagantes, Org. P.P.Albuquerque, José Branco, II, p. 452-460.
[10] Ob. cit., pág. 462.
[11] In O Limiar Mínimo de Punição da Fraude Fiscal Qualificada: Entre Duas Leituras Jurisprudenciais Divergentes, R.P.C.C., Ano 21º, nº 4, pp 612-634
[12] Neste sentido pode ver-se ainda: na doutrina, Germano Marques da Silva, Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias, Direito e Justiça, XV-II, p. 64; Isabel Marques da Silva, em RGIT, Cadernos IDEF, 5, 2ª edª., pág. 164, Susana Aires de Sousa, Os crimes Fiscais, 2009, pág.118; Simas Santos e Jorge de Sousa, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2008, p. 737; Nuno Pombo, em Fraude Fiscal, A norma incriminadora, a Simulação e outras reflexões, Almedina 2007, pág. 215; na jurisprudência, Ac. do TRP 16.03.2011, Des. Joaquim Gomes, de 23.03.2011, Des. Élia São Pedro, Ac. do TRC de 19.01.2011, Des. Maria Pilar Oliveira, mas em sentido contrário, Ac. do TRG 18.05.2009, Des. Fernando Monterroso e Ac. do TRC de 07.03.2012, Des. Maria José Nogueira.
[13] In Sucessão de Leis Penais, 3ª edª., pág. 153.
[14] Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 163.