Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1842/11.7TBVCD-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
Nº do Documento: RP201206191842/11.7TBVCD-D.P1
Data do Acordão: 06/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - quando o juízo de censura ético de que o devedor é merecedor (radicado no conhecimento - ou desconhecimento, com culpa grave — da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica) se articule com a verificação dum nexo de causalidade adequada entre o protelamento da apresentação à insolvência e o prejuízo dos credores, deverá a concessão do benefício da exoneração ser liminarmente coarctada (art 238°, n° l, d) do CIRE), pois que em tais casos se concluirá não ter sido a conduta do devedor pautada, quanto à sua situação económica e financeira, pela licitude, honestidade, probidade e boa fé;
II - preenche a previsão legal em causa a situação em que os devedores se apresentam à insolvência em Junho de 2011, estando em situação de insolvência já desde Abril/Maio de 2010 (altura em que se encontravam incumpridas obrigações vencidas de cerca de 230.000,00€), contraem nova obrigação (de cerca de 57.000,00), enquanto avalistas, em Junho de 2010, assim contribuindo para o patente agravamento da situação dos credores, não tendo qualquer perspectiva séria de melhorar a sua situação e reverter a situação de insolvência (pois que os seus exclusivos rendimentos provinham de actividade desempenhada em sociedade que atravessava situação difícil, o que não podiam desconhecer).
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 1842/11.7TBVCD-D.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Desembargadora Maria de Jesus Pereira
Desembargador Henrique Araújo
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto.

RELATÓRIO

Apelantes: B……. e C…...
Tribunal Judicial de Vila do Conde – 2º Juízo Cível.
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Em 13/06/2011 apresentaram-se B…. e C….. à insolvência, deduzindo pedido de exoneração do passivo restante, nos termos dos art. 235º e ss. do CIRE, fazendo a declaração a que alude o art. 236º, nº 3 do mesmo diploma.
Declarados em estado de insolvência, veio o pedido de exoneração do passivo restante a ser liminarmente indeferido por despacho que considerou estar preenchida a previsão contida na alínea d) do nº 1 do art. 238º do CIRE, por se ter entendido que os impetrantes se apresentaram à insolvência decorridos mais de seis meses sobre a data em que tal situação se verificou, ocorrendo com esse retardamento prejuízo para os credores (agravamento da situação dos credores decorrente da contracção de novas obrigações), não existindo por parte dos insolventes qualquer perspectiva de séria melhoria da sua situação económica

Inconformados, apelam os insolventes, pugnando pela revogação da decisão e sua substituição por outra que defira o pedido de exoneração do passivo restante, fazendo seguir os demais trâmites, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
1ª- A partir do dia da outorga da escritura de cessão de quotas da sociedade D….., Lda., os devedores entenderam já não estar vinculados à mesma e às obrigações por esta assumidas, quer anteriores quer futuras;
2ª- À altura da cedência da dita quota e desvinculação contratual não tinham consciência da possível situação de insolvência em que esta poderia estar, dado o património que esta detinha, a qual era suficiente para assegurar todo o passivo;
3ª- Por força disso mesmo, nunca se assumiram numa situação de insolvência, até porque tal não tem qualquer cabimento, pois que até então sempre foram cumprindo com as suas obrigações, só o deixando de fazer com a assunção das mesmas por outro;
4ª- Não houve qualquer desrespeito pela apresentação atempada à insolvência, pois que o fizeram aquando do surgimento das primeiras execuções, altura em que sim tomaram consciência da “consolidação” da sua insolvência;
5ª- Nunca visaram ou sequer contribuíram para qualquer prejuízo aos credores, seja pela dissipação do património, vendendo-o ou ocultando-o, seja património da sociedade ou dos próprios, muito menos contribuíram para o agravamento do passivo, nem contribuíram para qualquer favorecimento dos credores;
6ª- O devedor marido, aquando da cedência das quotas não se esquivou ao trabalho, muito pelo contrário, pois que foi em busca do mesmo, estando a laborar há já algum tempo ainda que fora do país.

Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Objecto do recurso
Considerando a decisão recorrida e as conclusões formuladas pelos apelantes, o objecto do recurso consiste em apurar se se verificam (como decidido) ou não (como propugnado pelos apelantes) os pressupostos legais para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo, nos termos do art. 238º, nº 1, d) do CIRE.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

A decisão recorrida considerou relevante a seguinte matéria de facto:
1º- Os insolventes têm, actualmente, como único rendimento mensal o vencimento do insolvente marido, que se encontra emigrado em França. Até então, os rendimentos do casal provinham da actividade desenvolvida pela sociedade D…., Unipessoal, Lda., de que o insolvente era (único) sócio gerente.
2º- Da lista provisória de credores resulta terem sido já reclamados e/ou reconhecidos créditos sobre os insolvente no montante global de cerca de 1.500.000,00€.
3º- O crédito de E…., S.A., que beneficia de hipoteca sobre prédio descrito na CRP de Vila do Conde sob o nº 280, freguesia de Touguinhá, que pertence aos insolventes, pela quantia global de 190.875,34€ provém de um contrato de mútuo celebrado com estes a 31/7/2008, tendo os pagamentos das obrigações decorrentes de tal contrato de mútuo cessado a 22/4/2010. Para cobrança deste crédito instaurou este credor acção executiva a 18/3/2011, que correu termos neste 2º Juízo Cível sob o nº 830/11.8TBVCD.
4º- A 9/3/2011 o credor F…., Plc instaurou acção executiva contra os insolventes que corria termos no 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 731/11.3TBVCD, para cobrança da quantia de 57.052,44€, apresentando como título executivo uma livrança avalizada pelos insolventes com vencimento a 12/11/2010. Tal livrança foi emitida na sequência de contrato de empréstimo celebrado com a sociedade D…., Unipessoal, Lda. (de que o insolvente era legal representante) a 21/6/2010, do qual os insolventes se assumiram como garantes.
5º- A 2/11/2010 o Banco G….., S.A. instaurou acção executiva contra os insolventes que corria termos no 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 2940/10.0TBVCD, apresentando como título executivo uma livrança avalizada pelos insolventes com a data de emissão de 20/9/2010 e vencimento a 28/9/2010, para cobrança da quantia de 148.131,31€, relativo a contrato de locação financeira.
6º- A 2/11/2010 a credora H….., Instituição Financeira de Crédito, S.A. instaurou acção executiva contra os insolventes que corria termos no 3º Juízo Cível deste
Tribunal sob o n.º 2935/10.3TBVCD, apresentando como título executivo uma livrança avalizada pelos insolventes com a data de emissão de 20/9/2010 e vencimento a 28/9/2010, para cobrança da quantia de 54.140,15€, relativo a contrato de locação financeira.
7º- A 31/8/2010 a credora I…. Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Esposende, CRL, instaurou acção executiva contra os insolventes que corria termos no 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 2277/10.4TBVCD, apresentando como título executivo uma livrança avalizada pelos insolventes com a data de emissão de 16/10/2006 e vencimento a 18/7/2010, para cobrança da quantia de 5.845,30€, relativo a contrato de empréstimo celebrado em Outubro de 2006 com a sociedade D…., Unipessoal, Lda..
8º- Este credor reclamou também o crédito de 56.808,07€ proveniente de contrato de abertura de crédito em conta corrente celebrado em Abril de 2009 com a sociedade D….., Unipessoal, Lda. e garantido pelos insolventes mediante livrança que avalizaram e que se venceu em 7/7/2010.
9º- Este credor reclamou ainda o crédito de 2.542,14€ proveniente de contrato de empréstimo celebrado em Abril de 2009 com a sociedade D….., Unipessoal, Lda. e garantido pelos insolventes mediante livrança (emitida pelo valor de 4.544,70€) que avalizaram e que se venceu em 17/3/2010. Para cobrança deste crédito tinha a credora instaurado acção executiva a 31 de Agosto de 2010 que corria termos no 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 2278/10.2TBVCD.
10º- A 22/12/2010 o credor J…. (Portugal), S.A. instaurou acção executiva contra o insolvente B…. que corria termos no 1º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 3500/10.0TBVCD, apresentando como título executivo uma livrança avalizada pelos insolventes e subscrita pela sociedade D….., Unipessoal, Lda. com a data de emissão de 6/12/2010 e vencimento a 16/12/2010, para cobrança da quantia de 110.236,97€, relativo a contrato de locação financeira.
11º- Nos autos de insolvência foram ainda reclamados créditos pela sociedade G…., S.A. (que incorporou, por fusão, as sociedade financeiras K…., S.A. e Banco L…., S.A.) no valor de 4.097,36€, proveniente de contrato de aluguer de longa duração (de veículo automóvel) que celebrou em Maio de 2006, tendo sido cessado o pagamento das prestações mensais acordadas em Maio de 2010.
12º- Reclamou também a sociedade M…., S.A. o crédito de 26.019,36€ proveniente do pagamento que efectuou ao Banco N…., S.A. em 27/9/2010 na sequência do contrato de garantia autónoma que celebrou em Maio de 2009 com a sociedade D…., Unipessoal, Lda., e que foi garantido pelos insolventes por aval em livrança.
13º- Reclamou a sociedade E1…., Instituição Financeira de Crédito, S.A. o crédito global de 583.229,30€ proveniente de sete contratos de locação financeira e um contrato de financiamento para aquisições a crédito, celebrados entre Outubro de 2006 e Janeiro de 2010 com a sociedade D….., Unipessoal, Lda. e garantidos por aval em livrança prestado pelos insolventes, e que a credora resolveu por incumprimento das obrigações assumidas por estes mediante declaração emitida em Janeiro de 2011.
14º- Reclamou o O…., S.A. o crédito de 14.483,00€, titulado por livrança avalizada pelos insolventes e subscrita pela sociedade D….., Unipessoal, Lda., emitida a 17/11/2010 e vencida a 29/11/2010.
15º- Reclamou a sociedade P….. – Instituição Financeira de Crédito, S.A. o crédito de 35.335,00€ proveniente de dois contratos de locação financeira, celebrados em Outubro de 2006 e Agosto de 2009, e um contrato de crédito, celebrado em Abril de 2008, com a sociedade D….., Unipessoal, Lda. e garantida pelos insolventes mediante avais prestados em livranças, que resolveu mediante declaração emitida em Outubro de 2010 na sequência do incumprimento das obrigações em todos os referidos contratos a partir de Maio de 2010.
16º- Por fim, reclamou ainda a Q….., CRL, o crédito de 34.866,88€, proveniente de dois contratos de locação financeira que celebrou a 6/9/2006 e a 30/7/2008 com a sociedade D…., Unipessoal, Lda., e de que os insolventes foram garantes mediante a prestação de avais em livranças, e cujas prestações deixaram de ser pagas a partir da 46º e da 23º, respectivamente.
17º- Os insolventes não foram anteriormente declarados insolventes nem lhes são conhecidos antecedentes criminais.
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Fundamentação de direito
O regime da exoneração do passivo restante[1], instituído nos art. 235º e seguintes do CIRE (o diploma a que se referirão os demais preceitos citados sem expressa menção de origem), específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, visando com ele a lei ‘libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que depois de «aprendida a lição», ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial’ – o objectivo é, pois ‘dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero’[2].
A medida ‘fresh start’ (novo arranque) tinha sido indicada pela Comissão Europeia, no seu relatório de síntese de Setembro de 2003 (relacionado com o ‘Projecto Best sobre Reestruturação, Falências e Novo Arranque’) como um instrumento importante para a revitalização da economia europeia, assente num novo espírito empresarial, depois de ter constatado que, de um modo geral, os empresários que passaram por processos de falência aprendem efectivamente com os seus erros e são mais bem sucedidos no futuro[3].
A exoneração, em rigor, qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações – extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado nos arts. 837º a 874º do CC –, aparecendo, deliberadamente, como uma faculdade do devedor[4].
A exoneração do passivo restante constitui, para o devedor insolvente, uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente regulado nos art. 235º e seguintes. ‘Daí falar-se de passivo restante’[5].
Assumiu o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o propósito de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica’[6], para tal instituindo o incidente da exoneração do passivo restante. A obtenção de tal benefício (libertação dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste) por parte do devedor justificar-se-á se ele observar a conduta recta que o cumprimento dos requisitos legalmente previstos pressupõe (cfr. o art. 239º do C.I.R.E.).
Efectivamente, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num ‘instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido’[7], sendo por isso que logo na fase liminar de apreciação do pedido se instituem ‘os requisitos mais apertados a preencher e a provar’, devendo a conduta do devedor ser ‘analisada através da ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta’[8].
A prolação de despacho inicial está, pois, dependente do que se possa concluir quanto ao comportamento pretérito do devedor – a sua concessão só se justifica para o ‘comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência’[9].
A esta luz devem entender-se os requisitos enunciados no nº 1 do art. 238º para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, tenham eles incidência processual (como é o caso da alínea a) do preceito), tenham eles natureza substantiva – aqueles que respeitam a situações ligadas ao passado do insolvente (alíneas c) e f) do preceito), aqueles que concernem a condutas observadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no processo de insolvência (alínea g) do preceito) ou aqueles que se reconduzem a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram (alíneas b), d), e e) do preceito)[10].

A hermenêutica do preceito há-de ter por alicerce o fundamento do instituto da exoneração do passivo restante (em que o princípio do ‘fresh start’ é conjugado e compatibilizado com o princípio fundamental do ressarcimento dos credores), convocando assim a ponderação de elementos reveladores da circunstância do devedor ser merecedor, face à sua conduta honesta, lícita, proba e transparente, de uma nova oportunidade – à luz do direito (e, logo, à luz do fundamento axiológico que é o seu suporte), esta nova oportunidade, novo começo, azzeramento da situação passiva, só se justifica para os devedores probos e honestos (para os que não tiveram condutas tidas – no plano económico e financeiro – por ilícitas, desonestas e não transparentes).
O instituto da exoneração não pode descambar num meio de desresponsabilização do devedor, transformando o processo de insolvência num refúgio ou numa protecção habitual contra os credores[11].

A decisão recorrida sustentou o indeferimento da exoneração nos fundamentos previstos na alínea d) do nº 1 do art. 238º.
Para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, prescreve este normativo, cumulativamente, três requisitos:
1- que o devedor se haja abstido de se apresentar à insolvência nos seis meses posteriores à verificação da situação de insolvência;
2- que dessa abstenção (de apresentação à insolvência no semestre posterior à verificação da situação de insolvência) resulte um prejuízo para os credores;
3- que o devedor saiba (ou pelo menos não possa ignorar, sem culpa grave) não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Para que a norma se aplique será preciso, ‘por um lado, que entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores se verifique um nexo de causalidade; o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica será, por sua vez, a circunstância que faz com que os outros dois factos assumam relevância qualificada’ – são pressupostos que reclamam leitura articulada[12].
Quando o juízo de censura ético de que o devedor é merecedor (radicado no conhecimento – ou desconhecimento, com culpa grave – da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica) se articule com a verificação dum nexo de causalidade adequada entre o protelamento da apresentação à insolvência e o prejuízo dos credores, deverá a concessão do benefício da exoneração ser liminarmente coarctada, pois que em tais casos se concluirá não ter sido a conduta do devedor pautada, quanto à sua situação económica e financeira, pela licitude, honestidade, probidade e boa fé.
Será, pois, de elementar evidência recusar um tal benefício ao devedor que, consciente (ou disso desconhecedor, por grave negligência) da impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas e de que não é, seriamente, perspectivável ou expectável uma melhoria da sua situação, protela a sua apresentação à insolvência, causando prejuízo aos credores, designadamente porque (entre outras hipóteses) vai avolumando o seu passivo, com contracção de novas obrigações.
O prejuízo em questão deve constituir patente agravamento da situação dos credores – não basta um prejuízo insignificante, exigindo o preceito em análise a verificação dum prejuízo ‘irreversível e grave, como aquele que resulta da contracção de dívidas, estando já o devedor em estado de insolvência’[13].
Visa a lei, ao estabelecer como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração que a apresentação extemporânea do devedor se conexione ou articule, com nexo de casualidade adequada, com o prejuízo dos credores (pressupostos aos quais há-de acrescer, enquanto elemento aglutinador, o de que o devedor não desconheça – ou desconheça com culpa grave – a inexistência de sérias perspectivas de melhoria da sua situação económica), sancionar comportamentos que importem ou traduzam não só uma diminuição do acervo patrimonial do devedor ou uma sua oneração, como também os actos geradores de novos débitos. Qualquer destes comportamentos é desconforme ao proceder, honesto, lícito, transparente e de boa fé, e por isso impeditivo de ao devedor ser reconhecida a possibilidade de se libertar de algumas das suas dívidas, e assim, conseguir a sua reabilitação económica. Sancionam-se (com o indeferimento do pedido de exoneração) os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem.

A situação retratada nos factos provados preenche a previsão normativa vinda de analisar.
Em primeiro lugar, porque os devedores protelaram a apresentação à insolvência para lá dos seis meses seguintes ao momento em que ficaram impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3º, nº 1) – situação que ocorre com a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas (alínea a) do nº 1 do art. 20º) ou mesmo com a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (alínea b) do nº 1 do art. 20º).
Apresentaram-se à insolvência em 13/06/2011.
Em Abril de 2010 deixaram de pagar empréstimo (garantido por hipoteca) no montante de 190.875,34€, contraído junto do E…., S.A. (facto provado com o número 3).
Já antes, em 17/03/2010, tinha ocorrido o vencimento de livrança por eles avalizada, e que determinou que o respectivo credor viesse a demandá-los em execução, pelo valor de 2.542,14€ (facto provado com o número 9).
Em Maio de 2010 deixaram de pagar as prestações mensais acordadas relativas a um contrato de aluguer de longa duração (relativo a veículo automóvel), ficando em dívida o valor de 4.097,36€ (facto provado com o número 11).
Ainda em Maio de 2010 deixaram de cumprir (na sua qualidade de avalistas em livranças) obrigações relativas a dois contratos de locação financeira, celebrados em Outubro de 2006 e Agosto de 2009, e um contrato de crédito, celebrado em Abril de 2008, vindo a ser-lhes exigido o valor global de 35.335,00€ (facto provado com o número 15).
Conclui-se daqui que não só em Maio de 2010 se verificava já uma generalizada (porque alastrada) falta de pagamento das obrigações vencidas (alínea a) do art. 20º), como também que já em Abril de 2010 ocorria falta de cumprimento de obrigação reveladora, atento o respectivo montante e circunstâncias do incumprimento, da impossibilidade de cumprimento pontual da generalidade das suas obrigações (alínea b) do art. 20º).
Efectivamente, ao deixarem de pagar as prestações respeitantes a empréstimo que contraíram junto de instituição bancária, garantido por hipoteca que onerava imóvel de sua propriedade, importando as responsabilidades então vencidas em cerca de 190.000,00€, anunciavam (revelavam) os devedores a impossibilidade de prover à pontual satisfação de todas as demais (da generalidade das) obrigações – trata-se de montante não negligenciável para pessoas singulares, sendo certo que respeitava a obrigação garantida por hipoteca incidente em imóvel de sua propriedade.
Os incumprimentos ocorridos em Maio de 2010, constituindo já um alastramento do pontual incumprimento à generalidade das obrigações dos apelantes, mais não representam do que a (inelutável) objectivação da situação de insolvência anunciada (revelada) pelo incumprimento ocorrido em Abril de 2010 – constituindo também estes incumprimentos, adicionados ao anteriormente verificado, um anúncio de que se viria a verificar o incumprimento de todas as demais obrigações com vencimento futuro.
Pode pois concluir-se, à luz do facto-índice previsto na alínea b) do art. 20º, que a situação de insolvência dos apelantes se verificava já em Abril de 2010 ou, no mínimo (considerando a alínea a) do preceito ou também a sua b), que tal ocorria em Maio de 2010.
Decorreram, pois, sobre a verificação da situação de insolvência, mais de seis meses até que os apelantes se apresentassem à insolvência – pois que só o fizeram em 13/06/2011, ou seja, decorrido mais de um ano.
Nesse período, decorrido entre a verificação da situação de insolvência e a apresentação à insolvência, os apelantes contraíram novas obrigações.
Mesmo que se não possa considerar que as obrigações assumidas nos actos aludidos nos factos provados com os números 5, 6 e 10 foram contraídas em datas posteriores a Abril/Maio de 2010 (é conhecida a prática generalizada consistente na emissão de livranças avalizadas sem preenchimento das datas de emissão e vencimento, ficando o credor autorizado ao seu preenchimento em caso de incumprimento), seguro e incontroverso é que em 21/06/2010 os apelantes se responsabilizaram, enquanto avalistas, pelo cumprimento de obrigação no montante de cerca de 57.000,00€ (veja-se o facto provado com o número 4).
Tal conduta dos insolventes – susceptível até de ser equacionada ou valorizada no âmbito da alínea e) do nº 1 do art. 238º, questão que está contudo fora do âmbito da presente apelação – contribuiu para o patente agravamento da situação dos credores, pois que se já prejudicados pela situação de insolvência dos devedores (impossibilitados, por essa razão, de obter a pontual satisfação dos seus respectivos créditos), viram a sua situação agravada, já que passaram a concorrer com novo credor, também ele a pretender obter satisfação do seu crédito (e por cujo cumprimento respondia o já insuficiente património dos insolventes).
Indiscutível o nexo causal entre este prejuízo e aquela tardia apresentação à insolvência.
Por fim, conferindo a estes dois pressupostos a exigível ‘relevância qualificada’, articulando-se com eles, podem os insolventes ser eticamente censurados, já que conheciam – ou pelo menos, não podiam desconhecer, senão com grave negligência – a inexistência de qualquer séria perspectiva de melhoria da sua situação económica.
Como assumido pelos insolventes na petição com que se apresentaram à insolvência, os seus rendimentos provinham, exclusivamente, i) da actividade de empregada de escritório que a apelante mulher desenvolvia na sociedade D….., Unipessoal, Ldª e, ii) da actividade do apelante varão enquanto sócio e gerente da mesma sociedade.
Porque a sociedade donde lhes provinham os seus rendimentos se encontrava também em difícil situação económica (como os factos provados espelham), o que não podiam ignorar, senão com negligência grave, não podiam eles perspectivar que os seus rendimentos viessem a sofrer qualquer incremento, susceptível de lhes permitir ultrapassar a situação de insolvência com que se confrontaram em Abril/Maio de 2010.
Podendo judicialmente presumir-se (arts. 349º e 351º do C.C.) que foi a insuficiência económica da sociedade que contagiou, qual epidemia, os apelantes, e não podendo eles desconhecer a situação em que se encontrava a sociedade donde provinham os seus únicos rendimentos (não tanto pelo facto do apelante varão ser o seu único sócio e gerente, mas ainda porque se a sociedade produzisse lucros, eles teriam entrado no património dos insolventes, que certamente os afectariam ao cumprimento das suas obrigações), conclui-se que eles sabiam – não podiam desconhecer, senão com grave negligência – não haver qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Não procede a argumentação dos apelantes de que não tinham consciência da sua situação de insolvência, por sempre terem cumprido as suas obrigações até à data (16 de Julho de 2010) em que o apelante varão cedeu a sua quota na sociedade em causa, sendo que então assumiram ficar desvinculados da mesma e das respectivas obrigações e que até aí não tinham consciência da possível situação de insolvência em que esta se encontrava.
Em primeiro lugar, não é correcta a afirmação dos apelantes de que até 16/07/2010 sempre cumpriram com as suas obrigações – como já acima referimos, os apelantes ‘caíram’ na situação de insolvência em Abril/Maio de 2010, sendo nesses meses que deixaram de pagar, primeiro (em Abril), empréstimo que haviam contraído (com garantia hipotecária incidente em imóvel próprio), e depois (em Maio), as prestações relativas a um contrato de aluguer de longa duração, tendo-se também vencido (não sendo cumpridas) obrigações relativas a contratos de locação financeira e contrato de crédito celebrados pela sociedade D…., Unipessoal, Ldª, assumidas pelos apelantes enquanto avalistas.
Depois, para lá de não poderem os apelantes desconhecer, senão com culpa grave, que a sua responsabilidade enquanto avalistas não cessava com a alegada cessão de quotas, sempre se terá de realçar que, mesmo que os apelantes se vissem ‘desvinculados’ da sociedade e das obrigações desta com a cessão de quotas efectuada, se mantinha a sua responsabilidade em todo o passivo já vencido e determinante da sua situação insolvência, inexistindo quaisquer perspectivas sérias de inverter ou sequer minorar essa situação – ainda que se verificasse a por eles (alegada) entendida ‘desvinculação’ da sociedade e respectivas obrigações, sempre se continuaria a manter a sua insuficiência patrimonial para solver os compromissos assumidos e vencidos, sendo não expectável e não plausível (imprevisível) que a sua situação económica viesse a melhorar (não se vislumbra como pudessem os apelantes, nas referidas circunstâncias, perspectivar, em bases sólidas e sérias, que os seus rendimentos aumentassem no futuro próximo de forma minimamente suficiente para lhes permitir reverter a situação em que se encontravam; antes pelo contrário se lhes impunha reconhecer que a sua situação não poderia melhorar).

Conclui-se, face ao exposto, pela improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida.

Sintetizando os argumentos, em jeito de sumário:
- quando o juízo de censura ético de que o devedor é merecedor (radicado no conhecimento – ou desconhecimento, com culpa grave – da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica) se articule com a verificação dum nexo de causalidade adequada entre o protelamento da apresentação à insolvência e o prejuízo dos credores, deverá a concessão do benefício da exoneração ser liminarmente coarctada (art. 238º, nº 1, d) do CIRE), pois que em tais casos se concluirá não ter sido a conduta do devedor pautada, quanto à sua situação económica e financeira, pela licitude, honestidade, probidade e boa fé;
- preenche a previsão legal em causa a situação em que os devedores se apresentam à insolvência em Junho de 2011, estando em situação de insolvência já desde Abril/Maio de 2010 (altura em que se encontravam incumpridas obrigações vencidas de cerca de 230.000,00€), contraem nova obrigação (de cerca de 57.000,00), enquanto avalistas, em Junho de 2010, assim contribuindo para o patente agravamento da situação dos credores, não tendo qualquer perspectiva séria de melhorar a sua situação e reverter a situação de insolvência (pois que os seus exclusivos rendimentos provinham de actividade desempenhada em sociedade que atravessava situação difícil, o que não podiam desconhecer).
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e em manter a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente.
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Porto, 19/06/2012
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Maria de Jesus Pereira
Henrique Luís de Brito Araújo
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[1] O passivo restante, nos termos do art. 235º do CIRE, é constituído pelos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. Não são porém abrangidos pela exoneração, além de outros que à economia da decisão não importam, os créditos tributários (art. 245º, nº 1, d) do CIRE).
[2] Cfr. Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 4ª edição, p. 133.
[3] Cfr. Ac. R. Porto de 12/05/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Henrique Araújo), no sítio www.dgsi.pt.
[4] Catarina Serra, obra citada, p. 135.
[5] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, Quid Iuris, Lisboa 2009, p. 778, anotação 3 ao artigo 235º.
[6] Cfr. o considerando nº 45 do preâmbulo do diploma que aprovou o C.I.R.E. – DL 53/2004, de 18/03.
[7] Ac. R. Coimbra de 17/12/2008 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Gregório Silva Jesus), no sítio www.dgsi.pt.. Catarina Serra, obra citada, pp. 133/134, depois de referir que o instituto da exoneração, sendo uma medida de protecção do devedor e um efeito eventual da declaração de insolvência favorável ao devedor, constituindo por isso uma verdadeira tentação para ele, adverte, a este propósito, para os efeitos perversos desencadeados pela força atractiva da exoneração: os ‘abusos de exoneração’.
[8] Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, p. 170.
[9] Autora, obra e local citados na nota anterior.
[10] Esta arrumação dogmática dos requisitos em questão é encontrada em Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p. 784.
[11] Catarina Serra, obra citada, p. 134.
[12]Catarina Serra, obra citada, p. 140.
[13] Ac. S.T.J. de 24/01/2012 (relatado pelo Exmº Sr. Conselheiro Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.