Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0554070
Nº Convencional: JTRP00038331
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ACÇÃO
POSSE
DIREITO DE PROPRIEDADE
COMPROPRIEDADE
Nº do Documento: RP200509190554070
Data do Acordão: 09/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I- Os procedimentos cautelares são meios provisórios de tutela do direito, destinados a evitar o perigo de demora do desfecho definitivo de acções ou execuções, devendo o requerente provar: ser titular do direito, a existência de “justo receio” de que outrem cause ao direito tutelando lesão grave e de difícil reparação.
II- Tendo natureza instrumental não dispensam a propositura da acção, em que de modo definitivo, seja apreciado o direito invocado e para o qual se demanda tutela provisória, o objecto da acção intentada na sequência da decisão cautelar tem de ter a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.
III- Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio posssionis”), ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua como dono da coisa.
IV- Tem de ser julgado improcedente o pedido dos AA. que, em acção declarativa, pretendem ver reconhecido o direito de propriedade de certa água, adquirido por usucapião – pedido não coincidente com o do procedimento cautelar prévio que instauraram – se se prova que os seus antecessores acordaram com os RR., em documento não impugnado e aceite pelas partes, que a referida água a ambos pertencia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B.............. e C.............. instauraram, em 13.6.2000, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso – ...º Juízo Cível – acção declarativa de condenação com processo sumário, contra:

D.............. e E................. .

Peticionando a condenação dos réus:

- a reconhecerem-nos como proprietários de prédio que identificam;

- que a favor do mesmo se encontra constituída, por usucapião, o direito à água para gastos domésticos e rega, proveniente do prédio dos réus;

- que sobre este prédio se encontra constituída uma servidão legal de aqueduto;

- a não impedirem o uso e fruição de tal água e a indemnizarem-nos com a quantia de 250.000$00, como compensação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

Para o efeito, alegam que são proprietários de um prédio, o qual vem sendo abastecido, há mais de 20 anos, de água através de um tubo que, partindo desse prédio, atravessava o prédio dos réus, até atingir um poço, dentro do qual se encontra instalado um motor, água essa que sempre foi utilizada pelos autores e seus antecessores, assim adquirida por usucapião, tal como a servidão de aqueduto.

No dia 19.03.2000, os réus, sem conhecimento dos autores, procederam ao corte do cabo e fio eléctrico que ligava o motor que extraia a água do poço e que era transportada por meio de um tubo para o seu prédio, em consequência do que ficaram privados de água, o que lhes causou incómodos, tendo necessitado da ajuda de familiares e fim de obterem água para as suas necessidades mínimas.

Citados, os réus apresentaram contestação, na qual impugnam por desconhecimento a alegada aquisição do prédio pelos autores, negando a veracidade de que estes tenham adquirido a água e a servidão de aqueduto por usucapião, nos termos que invocam, concluindo pela improcedência da acção e consequente absolvição dos pedidos.

Concluso o processo, procedeu-se à prolação de despacho saneador e de condensação da matéria de facto, que não foi objecto de reclamação.


Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legalmente prescrito, tendo sido dada resposta aos quesitos por despacho de fls. 88 e ss, que não foi objecto de censura.
***

A final foi proferida sentença, em 31.5.2004, decidindo-se:

Julgar a presente acção totalmente procedente e:

I) - Declarar os autores titulares do direito de propriedade incidente sobre o prédio urbano, composto de casa destinada a habitação, com a área coberta de 90 m2 e quintal com a área de 920 m2, sito no lugar de ........., freguesia de Roriz, descrito na C.R. Predial sob a ficha 17342 e inscrito na matriz sob o art. 183, condenando os réus a isso mesmo ver reconhecido;

II) – Declarar os autores titulares do direito de propriedade incidente sobre a água que é conduzida através de um tubo que parte do seu prédio e atravessa o prédio dos réus até atingir um poço ali (no prédio dos réus) existente, dentro do qual se encontra instalado um motor, água essa extraída desse poço e utilizada para os gastos domésticos e rega no referido prédio dos autores, condenando os réus a isso mesmo ver reconhecido;

III) – Declarar constituída, sobre o prédio dos réus e a favor do dos autores, uma servidão de aqueduto, consubstanciada no abastecimento de água através de um tubo que, partindo do prédio dos autores, atravessa parte do prédio dos réus até atingir um poço ali existente, dentro do qual se encontra instalado um motor, motor este que, depois de accionado electricamente, extrai a água do poço e a conduz até ao referido prédio dos autores, condenando os réus a isso mesmo verem reconhecido e a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização da água e aqueduto;

IV) – Condenar os réus, solidariamente, a pagarem aos autores a quantia de mil, duzentos e quarenta e seis euros e noventa e nove cêntimos, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos”.
***

Inconformados recorreram os RR. que, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1 - Os autores pediram o reconhecimento que a favor do seu prédio se encontrava constituído por usucapião o direito à água para gastos domésticos e rega, proveniente do prédio dos réus.

2 - Na sentença foi declarado que os autores eram titulares do direito de propriedade incidente sobre a água.

3 - A sentença é nula, por condenação em objecto diverso do pedido.

4 - Foi violado o artigo 668º, nº1, alínea e) do Código de Processo Civil)

Sem prescindir,

5 - Na douta sentença “sub judice”, escreveu-se que “relativamente à água existente no poço do prédio dos réus, apurou-se que, há mais de 20 anos, sempre os autores e seus sucessores usufruíram da água referida em 2), de forma continuada, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, mormente dos réus, e com a convicção de que usavam um direito próprio.”

6 - O antecessor dos autores passou a usufruir a água a partir de 7 de Agosto de 1979, com base num denominado “contrato-promessa” – [documento de fls. 21] – do seguinte teor:
“O primeiro (o documento refere-se ao outorgante D............) tem um prédio de habitação, sito no lugar de .........., Roriz, no qual existe um poço de água potável em que o mesmo se compromete enquanto o segundo (refere-se ao 2º outorgante F............) necessitar a ceder-lhe toda a água para consumo e rega do segundo outorgante.

Mais declaram os outorgantes que todas as despesas inerentes com o referido poço serão pagas por ambos os outorgantes em igualdade de circunstâncias.

O segundo outorgante encontra-se a explorar um poço para exploração de água e, caso o mesmo venha a dar água que o abasteça na sua totalidade, este documento ficará sem efeito, pelo que cada um se servirá dos seus próprios poços”.

7 - Este contrato é um típico contrato de fornecimento de água.

8 - Não é possível a posse de direitos que têm por base uma relação de obrigação.

9 - O antecessor dos AA. não teve, assim, qualquer posse, por falta do elemento subjectivo da posse – o “animus possidendi”.

10 - Não se verificou, assim, qualquer posse por parte do antecessor dos AA.

11 – Os AA, por seu turno, só fruíram a água durante escassos três anos e alguns meses, não atingindo a manutenção pelo lapso de tempo necessário à aquisição do direito (segundo a própria sentença “sub judice” - 20 anos), mesmo que ele existisse, mesmo que houvesse posse da sua parte, o que inquestionavelmente nunca se verificou.

12 – Acresce ainda que os AA. não podem juntar à sua (inexistente) posse a posse de eventuais antepossuidores relativamente ao seu antecessor, isto é, antes de 1979, porque nesta hipótese as posses seriam descontínuas, o que tornaria impossível a junção por falta do requisito da continuidade das posses.

13 – Os autores não são titulares do direito de propriedade incidente sobre a água, pois não a adquiriram por usucapião.

14 – Não havendo direito à água não há lugar à constituição da servidão de aqueduto. Neste sentido Ac. STJ 18.06.84 in http://www.stj.pt.

15 – Não havendo direito à água os RR não podem ser condenados a abster-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização da água e do aqueduto.

16 – Não havendo direito à água, os RR não podem ser condenados a qualquer indemnização por danos não patrimoniais.

17 - Foram violados os artigos 1287º, 1263º, 1251º, 1316º, 1258º, 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1256º, 1296º, 1547º, 1311º, 483º, 496º todos do Código Civil.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, a douta sentença “sub judice”:

a) ser declarada nula,

Sem prescindir,

b) ser revogada e substituída por outra que absolva os réus, ora recorrentes, dos pedidos.

Assim se fazendo Justiça.
***

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Julgado.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:

1) - Na escritura de partilha outorgada no dia 1 de Janeiro de 1997, no 2º Cartório Notarial de Santo Tirso, foi adjudicado ao autor B.............. o prédio urbano composto de casa destinada a habitação, com a área coberta de noventa metros quadrados e quintal com a área de novecentos e vinte metros quadrados, sito no lugar de ......., freguesia de Roriz, descrito na C. R. Predial sob o nº17342 e inscrito na matriz sob o artigo 183, com o valor patrimonial de 47.099$00.

2) - Há mais de 20 anos que o prédio referido em 1) vem sendo abastecido de água através de um tubo que, partindo daquele, atravessa parte do prédio dos réus, até atingir um poço ali existente, dentro do qual se encontra instalado um motor.

Este motor, depois de accionado electricamente, extraía a água do poço e, por meio do respectivo tubo, permite que a mesma alcance aquele prédio.

Tal água sempre foi utilizada pelos autores e seus antecessores para consumo, limpeza e rega.

3) - No dia 19 de Março de 2000, pelas 8 horas, os réus, sem conhecimento e consentimento dos autores, procederam ao corte do cabo e respectivo fio eléctrico que, até lá, estava ligado ao motor que extraia água do poço e que era transportada por meio de um tubo para o prédio descrito em 1).

4) - Por via disso, desde 19 de Março de 2000 a 15 de Maio de 2000, os autores viram-se privados da água no seu prédio.

5) - No dia 7 de Agosto de 1979, D............. e F............. celebraram um contrato a que chamaram “Contrato-Promessa”, através do qual estabeleceram o seguinte:

“O primeiro tem um prédio de habitação, sito no lugar de .........., Roriz, no qual existe um poço de água potável em que o mesmo se compromete enquanto o segundo necessitar a ceder-lhe toda a água para consumo e rega do segundo outorgante.
Mais declaram os outorgantes que todas as despesas inerentes com o referido poço serão pagas por ambos os outorgantes em igualdade de circunstâncias.
O segundo outorgante encontra-se a explorar um poço para exploração de água e, caso o mesmo venha a dar água que o abasteça na sua totalidade, este documento ficará sem efeito, pelo que cada um se servirá dos seus próprios poços”.

6) - Apesar de lhes ter sido solicitado, os réus recusaram proceder à ligação do fio eléctrico que acciona o motor, não consentindo, por outro lado, que os autores entrassem no seu prédio para o fazer.

7) - Há mais de 50 anos que os autores e antecessores habitam o prédio referido em 1), fazem obras de conservação e beneficiação e pagam as contribuições sobre o mesmo incidentes, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem interrupção e nem oposição de quem quer que seja, na convicção de que o prédio lhes pertence com exclusão de outrem.

8) - Ao longo destes mais de 20 anos, sempre os autores e seus antecessores usufruíram da água referida em 2), de forma continuada, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, mormente dos réus, e com a convicção de que usavam um direito próprio.

9) - A privação da água referida em 3) causou incómodos aos autores, em termos alimentares, de limpeza e rega e, em consequência do comportamento dos réus, os autores viram-se compelidos a socorrer-se de familiares a fim de obterem água para satisfação das necessidades mínimas, o que lhes causou mal estar físico e psíquico, bem como ao respectivo agregado familiar.

10) - Os autores viram-se envergonhados ao terem de andar a socorrer-se dos vizinhos para obter água e sentiram-se revoltados, face ao gozo que os réus lhes transmitiam ao vê-los privados de água.

11. Em 31 de Janeiro de 2000, o réu marido escreveu uma carta ao autor marido em que comunicava que nos termos do contrato outorgado com o seu sogro, F............., informava que a partir do mês de Abril terminava a cedência da água do poço, carta esta que o autor marido se recusou a receber.

Fundamentação:


Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se define o âmbito do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa dilucidar as seguintes questões:

- se a sentença é nula por ter condenado em objecto diverso do pedido;

- se os AA. adquiriram o direito á água por usucapião.

Vejamos a 1ª questão:

A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade – arts. 661º,nº1, e 668º,nº1, e) do Código de Processo Civil.

Os apelantes consideram a sentença nula por ter ocorrido em tal vício.

Importa, então, analisar a causa de pedir e os pedidos e o teor da condenação, para formular o pertinente julgamento acerca da acusada nulidade.

Como se alcança do processo apenso – 365-A-2000 a acção foi antecedida de Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse, intentado em 6.4.2000 (a acção foi-o em 13.6.seguinte) pelos AA. na acção contra os agora RR.

Aí alegaram que, há cerca de 20 anos, os requerentes/AA. e seus antecessores usufruíram da água proveniente de um poço sito no prédio dos RR. (sendo a água extraída por um motor), que alcançava o prédio deles requerentes, por meio de um tubo, sendo que os requeridos, em 19.3.2000, procederam ao corte do cabo e respectivo fio eléctrico privando-os de água.

Nos arts. 12º e 13º da petição cautelar alegaram:

“O comportamento dos Requeridos integra o previsto no art. 1279º do Código Civil e 393º do Código de Processo Civil, facto que confere aos Requerentes legitimidade para serem restituídos provisoriamente à posse da água.
Acresce que os Requerentes estão a tempo de o fazer – sic, art. 1282º do Código Civil”.

Formularam o seguinte pedido:

“Termos em que, sem audição dos Requeridos e após apreciação da prova arrolada, deverá decretar-se a presente providência cautelar de restituição de posse e, por via disso os Requerentes ser investidos na posse da água extraída do poço aberto no prédio dos Requeridos e conduzida, através de tubo, para o prédio dos Requerentes”.

Por decisão de fls. 15 a 19 foi decretada julgado procedente a pretensão cautelar:

“Ordeno que os requerentes B........... e C............... sejam de imediato restituídos à posse da dita água, devendo para tanto serem os requeridos notificados para no prazo de cinco dias procederem à colocação de um novo cabo eléctrico em substituição daquele que cortaram”.

Temos, assim, de concluir que os Requerentes cautelares não invocaram serem donos da água, nem tão pouco que a haviam adquirido por usucapião, mas apenas serem seus possuidores, daí que tivessem requerido a restituição provisória da posse – invocando os arts. 1279º e 393º do Código de Processo Civil.

Os procedimentos cautelares são meios provisórios de tutela do direito, destinados a evitar o perigo de demora do desfecho definitivo de acções ou execuções, devendo o requerente provar: ser titular do direito, a existência de “justo receio” de que outrem cause ao direito tutelando lesão grave e de difícil reparação.

“As Providências Cautelares – visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, que a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela.
Pretende-se deste modo combater o "periculum in mora" (o prejuízo da demora inevitável do processo) a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica (Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, -23).
Chama-se-lhes procedimentos e não acções porque carecem de autonomia – dependem de uma acção já pendente ou que vai ser seguidamente proposta pelo requerente (ibidem)”.

Tendo ainda natureza instrumental não dispensando a propositura da acção, em que de modo definitivo, seja apreciado o direito invocado e para o qual se demanda tutela provisória, o objecto da acção intentada na sequência da decisão cautelar tem de ter a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.

Ademais o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca – “se o requerente não propuser a acção da qual a providência depende dentro de 30 dias...” – art.389º,nº1, a) do Código de Processo Civil.

Tal preceito estabelecendo que entre a providência e a acção tem de haver um nexo de dependência não consente que decretada a providência mais a mais, sendo ela nominada e, portanto, com a sua causa de pedir claramente definida, venha, na acção a intentar para ver definitivamente apreciado seu direito, possa formular pedido ou pedidos não coincidente(s) com a decisão cautelar.

É inquestionável que no processo cautelar os requerentes, ora AA., apenas pretenderam ser restituídos, provisoriamente, à posse da água, posse essa de que se consideraram esbulhados, por actuação violenta dos requeridos.

Assim, na acção definitiva, não poderiam arrogar-se o direito de propriedade exclusiva da água, já que são realidades distintas a posse – art. 1251º do Código Civil – e a propriedade, muito embora a lei, ao contrário do critério adoptado para a posse (dela tendo dado definição legal) o não tenha feito em relação ao conceito de propriedade [Na verdade o Código Civil na Secção II – Defesa da Propriedade – limita-se no art.1311º indicar a acção de reivindicação.] – sendo que a aquisição do direito real de propriedade, depende da posse reiterada de actos hábeis e da verificação dos requisitos legais, para conduzir à aquisição por usucapião – art. 1287º do Código Civil.

Quanto dissemos serve para iluminar o caminho, em ordem a apreciar da arguida nulidade da sentença.

Na petição inicial da acção os AA., depois de alegarem serem donos do prédio para onde a água era conduzida, propriedade de tal prédio adquirida por usucapião, alegaram que o abastecimento de água, há mais de 20 anos, sempre se fez a partir do prédio dos RR., sustentando, depois de terem alegado os demais requisitos da posse hábil para aquisição por usucapião, que, por esta forma de aquisição originária, adquiriram o direito de propriedade da água que se situa no prédio dos RR.

Daí que depois de pedirem a condenação dos RR. a reconhecerem que são donos do prédio, tenham formulado, já não o pedido de restituição definitiva da posse da água, de que foram esbulhados, mas a condenação dos RR. – ut. als. b) e c) do pedido:

“A reconhecerem que a favor deste prédio se encontra constituída, por usucapião, o direito à água para gastos domésticos e rega, proveniente do prédio dos RR.” – al. b)

“ Reconhecerem que sobre o prédio dos RR. se encontra constituída uma servidão legal de aqueduto, servidão essa melhor identificada nos itens 11 e 12” – al.c).

De notar que na alínea b) os AA. não pedem, irrestritamente, que se declare que são donos da água, mas numa discutível e equívoca formulação – que se reconheça que a favor do seu prédio “se encontra constituída por usucapião o direito à água para gastos domésticos e rega proveniente do prédio dos RR.”.

Quereriam aludir à constituição por usucapião de condomínio de águas – art. 1398º do Código Civil, ou a uma servidão de água para gastos domésticos e rega – art. 1557º do mesmo diploma, e correlativa servidão de aqueduto – art. 1561º, nº1, do Código Civil?

Mesmo que se entenda que apesar da deficiente formulação do pedido da al. b), os AA. invocaram ter adquirido o direito água por usucapião, fizeram-no apenas para gastos domésticos e rega.

Daí que a sentença estivesse limitada por tal pedido.

Os recorrentes afirmam, nas conclusões 1ª e 2ª da suas alegações, que na sentença foi declarado “que os AA. eram titulares do direito de propriedade incidente sobre a água”.

Afirmam, ainda, nas suas alegações, que os AA. pretenderam que lhes fosse reconhecida uma servidão de águas a favor do seu prédio e na sentença foi reconhecido o direito de propriedade sobre a água.

Como antes dissemos a formulação do pedido formulado em b) pelos AA. consente a dúvida, sobretudo, se atentarmos no pedido cautelar onde não invocam terem adquirido o direito á água por usucapião.

Apesar disso, quando enquadram a questão no contexto da nulidade da sentença, não têm razão.

Com efeito, no 3º parágrafo da sentença – a fls. 102 – não se afirma um direito irrestrito a essa água considerada adquirida por usucapião pelos AA., já que se afirma, na parte final, que tal água é extraída “desse poço (dos RR.) para os gastos domésticos e rega no referido prédio dos AA., condenando os RR. a isso mesmo ver reconhecido”.

A sentença não condenou além do pedido e, como tal, não é nula, e ao ter interpretado o pedido como de reconhecimento de um direito de propriedade e não de mera servidão, também não cometeu nulidade.

O que poderá existir é erro de julgamento que é questão de índole diversa da nulidade da sentença.

Vejamos a 2ª questão – aquisição por usucapião do direito á água pelos AA.

Na decisão recorrida considerou-se que os AA. tinham adquirido por usucapião o direito á água, provinda do poço dos RR., e á inerente servidão de aqueduto, considerando-se que a posse com as características de publicidade de pacificidade decorreram por mais de 20 anos.

Os RR., apoiando-se no documento de fls.21 não impugnado pelos AA., tanto assim que foi o seu teor inserido na Base Instrutória, sustentam que o Autor e seus antecessores não exerceram sobre tal água uma posse boa para usucapião dada a natureza do acordo ali plasmado e, mesmo os AA. aquando da audiência de discussão e julgamento juntaram o documento, que agora constitui fls. 82, não impugnado pelos RR., sem que na sentença recorrida tenham sido apreciados – não obstante a eles se aludir no despacho de fundamentação.

O documento de fls. 21 consta do item 5) dos factos provados na sentença, por isso, antes de mais, vamos debruçarmo-nos sobre o documento de fls.82.

Na acta a fls. 84/85 o Mandatário dos AA., depois de referir que a testemunha G............ tinha aludido ao “Contrato-Promessa” – [documento de fls.21 especificado] – requereu a junção de documento afirmando, além do mais:

“Acontece que os AA. são portadores de uma declaração subscrita pelo Réu marido e pelo pai do Autor B..........., datada de 25 de Setembro de 1987, através da qual se vê que ambos os declarantes reconhecem que tanto a aquisição, como o direito de aqueduto dessa água, fica a pertencer a ambos em comum e partes iguais, pese embora – diz-se nessa declaração – a água caia directamente no terreno ao Réu D...........
Por entender que o documento releva face ao depoimento da testemunha e para a descoberta da verdade, requeiro a sua junção.”

Tal documento, assinado por D.......... e F..........., contém a data de 25 de Setembro de 1987, Santo Tirso, e sob o título Declaração, pode ler-se:

Nós abaixo assinados, D..........., casado e F............, casado, ambos residentes no lugar de ................ freguesia de Roriz, concelho de Santo Tirso, declaram para os devidos e legais efeitos que seu pai H.......... adquiriu por escritura lavrada em 21 de Janeiro de 1975, lavrada a fls. 69 do 1º Cartório da Secretaria Notarial de Santo Tirso, o direito a cinco milímetros de água bem como servidão de aqueduto, e que tanto a aquisição como o direito de aqueduto fica a pertencer aos dois declarantes em comum e em partes iguais muito embora a referida água caia directamente no terreno de D............”. (sublinhámos).

Ora, o documento de fls.21, de 7 de Agosto de 1979 – não impugnado pelas partes – e constante da al. D) da Matéria de Facto Assente e item 5) dos Factos provados na sentença, foi cerca de 12 anos antes, subscrito pelos mesmos intervenientes, sendo que o Autor é filho de F............. e herdou o prédio de sua mãe, com este casada, na sequência de partilhas por morte dela, constando dessa escritura – fls.4 a 9 do apenso cautelar – que tal prédio, agora do demandante, foi comprado pelo autor da herança, em 14 de Agosto de 1979.

De ambos os documentos, subscritos pelo Réu e pelo pai do Autor, pode concluir-se que o prédio agora do Autor não tinha abastecimento de água, carecendo de a obter de prédio vizinho.

Assim tais documentos são da maior importância para ajuizar da posse que se arrogam os Autores.

O documento de fls. 21 de 7.8.1979, apodado de Contrato-Promessa, não o é na realidade, já que através dele as partes não se obrigam a celebrar nenhum outro contrato (o contrato-prometido – art. 410º do Código Civil).

É um contrato inominado, através do qual o Réu se compromete a ceder, sem que mencione qualquer contrapartida, (apenas se alude ao custeio em pé de igualdade, das despesas com o poço abastecedor) ao pai do Autor, a partir do seu prédio, toda a água que o Autor necessitar para consumo e rega, [já que este estava a abrir um poço para “exploração de água”], consignando-se que, caso esse poço viesse a dar água que o abastecesse na sua totalidade, o documento ficaria sem efeito “pelo que cada um se servirá dos seus poços”.

Os AA., nas contra-alegações, desvalorizam tal documento afirmando, sem explicar o porquê, que está descontextualizado, e nenhuma relevância tem para a decisão da causa.

Todavia, não só não o impugnaram, como não reclamaram da Matéria de Facto Assente.

Ora, admitindo que o Autor, por si e antepossuidores, tenha estado na posse de tal água, de modo algum tal posse, tivesse ela perdurado pelo tempo que perdurou – a crer na teor da carta constante de 11) dos factos provados o Autor, em 31.1.2000, ainda estaria a fruir a água – jamais poderia relevar para efeito de usucapião, já não seria posse mas mera actos de detenção proporcionada, sob condição, pelo Réu.

A detenção apenas poderia converter-se em posse se tivesse havido inversão do título de posse, isto é, se o Autor e antecessores, passassem a partir de certa data a exercer, contra o 1º Réu, actos que traduzissem posse do direito real de propriedade da água – arts. 1263º d) e 1265º do Código Civil.

Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio posssionis”), ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua como dono da coisa.

Assim, admitindo que, entre a data de 7.8.1979, e a data em que os RR. privaram da água os Autores – 19.3.2000 –, por não ter ocorrido qualquer posse em nome próprio, nem sequer existir “animus possidendi”, tal posse seria imprestável para usucapião.

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.

O art. 1478º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.

A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material e permanente com a coisa e o “animus”, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de posse pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.

“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – “corpus” e “animus” – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – Ac. do STJ, de 14.12.1994, in. CJSTJ, 1994, III, 183.
É certo que o Tribunal recorrido deu como provada a existência de uma posse com os requisitos de possibilitar tal forma de aquisição originária, mas não teve em consideração os factos que se têm de considerar provados e que constam dos dois documentos que, nem sequer, mereceram qualquer alusão na sentença recorrida – não podendo, por isso, sufragar-se o entendimento que adoptou.

Para a solução do litígio, mais que o denominado “Contrato-Promessa”, releva o posterior documento de fls. 82, de 25.12.1987, a que antes aludimos e que, como afirmámos, traduz a existência de acordo entre o antepossuidor do prédio do Autor e o Réu, através do qual reconhecem que o pai do Autor adquirira, em 21.1.1975, por escritura notarial o direito água e à inerente servidão de aqueduto, convencionando que “tanto a aquisição como o direito de aqueduto fica a pertencer aos dois declarantes em comum e em partes iguais, muito embora a referida água caia directamente no terreno de D...............”.

Este acordo deveria ter sido celebrado por escrito, já que se trata de formalizar uma situação de compropriedade, que alterava um negócio jurídico que fora celebrado por escritura pública.

Todavia, importa não escamotear que foram os AA. quem juntou tal documento, em audiência de discussão e julgamento, argumentando e com acerto, que os declarantes no documento “reconhecem que tanto a aquisição, como o direito de aqueduto dessa água fica a pertencer a ambos em comum e partes iguais, pese embora – diz-se nessa declaração – que a água cai directamente no terreno ao Réu D..............”.

Reconhecem, deste modo, que são comproprietários da água.

Nos termos do art.1403º, nº1, do Código Civil – “Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”.

Tendo os AA., com a apresentação e aceitação de tal documento, reconhecido que a situação da água em questão é já não sua exclusiva propriedade, como sustentaram, no articulado inicial, mas um bem detido em compropriedade, actuariam com abuso de direito – art. 334º do Código Civil – na modalidade de conduta contraditória, se, porventura, invocassem a nulidade por vício de forma, ou persistissem na defesa da sua posição inicial.

Ademais os RR., não impugnando tal documento, aceitaram o teor das declarações que dele constam, desfavoráveis à sua tese – art. 376º, nºs, 1 e 2, do Código Civil.

De salientar que o Réu foi signatário dessa declaração.

Finalmente, importa esclarecer que a situação de compropriedade apenas existe em relação à água que provem do prédio dos RR. e abastece o prédio dos AA.

Uma vez que a água para atingir o prédio dos AA. tem, necessariamente, de atravessar o prédio dos RR. acha-se constituída sobre o prédio destes, e no trajecto existente, uma servidão de aqueduto em benefício do prédio dos AA.

A servidão predial consiste num encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio, pertencente a dono diferente, di-lo o art. 1543º do Código Civil.

A servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente).

“Conditio sine qua non” para se poder falar na existência de uma servidão é que os prédios, serviente e dominante, pertençam a donos diferentes, uma vez que é antijurídico que, relativamente à mesma coisa, coexistam o direito de propriedade (ou compropriedade) – que em princípio é absoluto – e um direito que o restringe, como é a servidão – “nemini res sua servit.

A compropriedade é incompatível com a existência de servidão, entre comproprietários, pelo que atenta a especificidade do caso em apreço tem de se considerar que a condução da água – que é compropriedade de Autores e Réus – por se fazer para prédio fisicamente distinto consubstancia a existência de servidão.

Quanto afirmámos não desonera os RR. da condenação pecuniária em que foram condenados; na compensação, por danos não patrimoniais, porquanto um dos comproprietários não pode privar o outro do uso da coisa comum – art. 1406º, nº1, parte final do Código Civil e arts. 483º, nº1, e 496º, nºs 1 e 3, do mesmo diploma.

A actuação dos RR. privando os AA. do acesso à água constitui um facto ilícito gerador do direito de indemnizar.

No caso apenas foi pedida compensação por danos patrimoniais pelo que o Tribunal terá que se conter nos limites do pedido, sob pena de violação do princípio ínsito no art. 661º, nº1, do Código de Processo Civil:

Por quanto dissemos a sentença tem de ser alterada.

Decisão:

Nestes termos, na parcial procedência do recurso, revoga-se a sentença recorrida declarando-se:

A) - Que AA. e os RR. são comproprietários da água que é conduzida através de um tubo que parte do prédio dos AA. e atravessa o prédio dos Réus, até atingir um poço aí existente, dentro do qual se encontra instalado um motor, água essa extraída desse poço e utilizável para os gastos domésticos e rega no prédio dos Autores, condenando os Réus a isso mesmo ver reconhecido;

B) – Condenam-se os RR. a reconhecerem que o prédio dos AA., beneficia de uma servidão de aqueduto, que onera o prédio deles RR. e beneficia o prédio dos demandantes, afim de fruírem a água, tendo direito a manter e a utilizar um tubo que, partindo do prédio dos Autores, atravessa parte do prédio dos Réus até atingir um poço aí existente, dentro do qual se encontra instalado um motor, que, depois de accionado electricamente, extrai a água do poço e a conduz até ao referido prédio dos Autores, condenando, ainda os RR. a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização da água e de tal meio de condução.

Custas, em ambas as instâncias, por apelantes e apelados, na proporção de metade.

Porto, 19 de Setembro de 2005
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale