Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
786/12.0TBSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
REGISTO DA PROVA
Nº do Documento: RP20130213786/12.0TBSJM.P1
Data do Acordão: 02/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A gravação da prova produzida em audiência visa, por um lado, o refrescar da memória para efeitos probatórios do próprio tribunal; e, por outro, “assegurar a correspondência entre a prova que é produzida e a que resulta do julgamento" (G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, 3ª ed. pág. 264), como condição essencial para, em sede de recurso, se reapreciar a matéria de facto em caso de impugnação desta.
II - O meio de documentação consiste na gravação da prova por meios de gravação magnetofónica ou audiovisual e/ou outros que visem a reprodução integral e substituiu o anterior sistema de redução a escrito das declarações prestadas.
III – Atento o disposto nos art.ºs 66° do DL 433/82 de 27/10 (RGCO) que estabelece expressamente que na audiência em 1ª instância não há “lugar à redução da prova a escrito", e no art° 75°, n.º 1 do mesmo Diploma Legal, que dispõe que “a 2" instância apenas conhecerá da matéria de direito”, não há lugar a documentação da prova produzida em audiência nos processos de impugnação judicial de coimas aplicadas pela autoridade administrativa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 786.12.0TBSJM.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferencia os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Recurso de Contra ordenação nº 786.12.0TBSJM que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de São João da Madeira, em que é arguida
“B…, Lda.”

foi pelo Instituto de Mobilidade e dos Transportes Terrestres IP proferida decisão em 8/6/2012 que aplicou à arguida, pela contra-ordenação prevista na alínea b) do nº1 do artigo 3º, conjugada com a alínea b) do nº2 do Anexo I, do DL nº 156/2005, de 15/9, na redacção dada pelo DL 371/2007, de 6/11, e punida pela alínea a) do nº1 do artigo 9º do mesmo diploma com coima de 3.500,00 € a 30.000,00 €, a coima de 1750,00 €.

Interpôs a arguida recurso de impugnação para o Tribunal que por sentença de 10/10/2012 proferiu a seguinte decisão:
“Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, julgo improcedente o recurso interposto pela arguida B…, Ldª. e em consequência condena-se a mesmo pela prática da contra-ordenação prevista na alínea b) do nº1 do artigo 3º, conjugada com a alínea b) do nº2 do Anexo I, do DL nº 156/2005, de 15/9, na redacção dada pelo DL 371/2007, de 6/11, e punida pelos artigos 8º e 9º do mesmo diploma, no pagamento da coima de 1.750,00 €.”

Recorre a arguida, a qual no final da sua motivação apresenta conclusões das quais emergem as seguintes questões:
- nulidade do julgamento por falta da gravação da audiência, e
- contradição entre os factos não provados e as declarações prestadas;

Respondeu o MºPº pugnando pela manutenção da decisão;
Nesta Relação o ilustre PGA é de parecer que o recurso deve ser julgado procedente e a sentença revogada;
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais procedeu-se á conferência
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição)
“FACTOS APURADOS
No dia 28.4.2009, pelas 11.30 horas, no Terminal Rodoviário do Centro Coordenador de Transportes, na …, em …, C…, dirigiu-se a D…, funcionário da B…, Ldª e pediu-lhe o livro de reclamações.
Queria apresentar uma reclamação porque tinha perdido a camionete por não haver indicação do local exacto do embarque, nem funcionários a informar de onde partia.
O funcionário recusou facultar-lhe o livro, dizendo-lhe que a responsabilidade era da Câmara Municipal por o Terminal estar em obras.
O funcionário de serviço tinha instruções expressas e claras para entregar o livro a quem o solicitasse.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que o livro de reclamações estava disponível no estabelecimento.
Não se apurou que o livro de reclamações não foi solicitado pelo utente.
Não se apurou que nem nenhuma reclamação foi apresentada.
Não se demonstrou que conforme se pode comprovar pelos depoimentos prestados nos autos, não houve recusa do livro.
Não se provou que o utente da Central de Camionagem e não dos serviços da arguida, perdera o autocarro para Aveiro e pretendia que o funcionário da B… o informasse onde era o local de partida.
Não se apurou que o funcionário, o Sr. D… lhe disse que não sabia porque a empresa não tem carreiras para Aveiro e que devia dirigir-se à bilheteira da empresa com carreira para Aveiro.
Não se demonstrou que passados momentos compareceu novamente o utente da Central acompanhado de agente de autoridade, a quem foi explicado o que se passava.
Não se apurou que na sequência desta última conversa é que foi solicitado e apresentado o livro de reclamações.
Não se demonstrou que o utente afinal não queria apresentar reclamação alguma porque a empresa B… não tinha nada a ver com o assunto.
Não se provou que não foi questionada nem a Central de Camionagem nem a empresa que presta o serviço ao utente.
FUNDAMENTAÇÃO
Para dar como provados os factos supra expostos tive por base os documentos juntos aos autos, nomeadamente o auto de participação e o depoimento das testemunhas inquiridas em audiência, C… e o Agente da Polícia de Segurança Pública e D… (esta última indicada pela defesa).
Pela primeira testemunha foi referido que se dirigiu ao funcionário da recorrente porque pretendia reclamar da situação, atento o transtorno sofrido. Pediu ao Sr. D… o livro de reclamações e este recusou-se a dar-lhe o livro.
Por esta testemunha foi também esclarecido que era utente dos serviços da arguida e sabia para onde ia a camioneta que pretendia tomar e tinha perdido – para Ovar – e que depois é que iria apanhar o comboio para Aveiro. Referiu também que costumava utilizar os serviços da arguida e que já outras vezes tinha também perdido a camioneta por falta de informação.
Logo por aqui, foi afastada a alegação da arguida quanto a não ter nada com o objecto da reclamação porque o utente alegadamente quereria era reclamar de uma empresa que efectuava transportes para Aveiro. A testemunha C… revelou estar bem informada e foi muito verosímil quanto a conhecer e utilizar os serviços da arguida e ter sido a camioneta da arguida que pretendia apanhar.
De seguida, ligou para a Polícia de Segurança Pública, explicou ao agente que lá chegou o ocorrido e esperou enquanto este ia falar com o Sr. D….
Ou seja, mais uma vez e contrariamente ao alegado pela arguida, o utente, pouco tempo após a primeira conversa, não voltou acompanhado do agente. O agente é que foi falar sozinho com o funcionário da arguida.
Depois do Agente ter falado com o Sr. D…, o mesmo disse que disponibilizaria o livro de reclamações, mas acabou por desistir de apresentar a reclamação.
Pelo Agente foi dito que efectivamente foi falar com o Sr. D… e que o mesmo lhe disse que não tinha facultado o livro por a responsabilidade pela situação ser da Câmara. Ou seja, da conversa que teve com o Sr. D…, o mesmo admitiu perante ele, que tinha recusado entregar o livro a C….
Pela testemunha D… foi referido que o Sr. C… foi lá reclamar do sucedido, mas não pediu o livro de reclamações e que tal apenas sucedeu quando o Agente da Polícia de Segurança Pública foi ao local, tendo-se disponibilizado para facultar o livro.
A testemunha C… depôs de uma forma série e objectiva, revelando ter conhecimento dos seus direitos e que chamou a autoridade policial por lhe ter sido recusada a apresentação do livro de reclamações. Assim, descredibilizou o que depois foi dito pela testemunha D….
Conhecendo a testemunha C… os seus direitos, faz sentido que chamasse a autoridade policial perante a recusa da apresentação do livro e é também o que consta da participação – recusa de entrega de livro de reclamações. Assim os depoimentos das duas testemunhas, C… e do Sr. Agente, além de coincidirem também fazem mais sentido. Se C… estivesse a reclamar da falta de informação para a esquadra, eventualmente de lá sugerir-lhe-iam que apresentasse uma reclamação. O que justificaria a deslocação do agente de autoridade seria a comunicação do ilícito, como a recusa da apresentação do livro de reclamações e é esta situação que precisamente consta da participação.
Por outro lado, nenhum dúvida ficou quanto à testemunha C… utilizar os serviços da arguida e não estar enganado e pretender reclamar de uma outra hipotética empresa que efectuaria viagens directas para Aveiro.
As três testemunhas mantiveram as respectivas versões. Tendo em conta a forma objectiva e convicta como depôs a primeira testemunha, e por o seu depoimento ter sido confirmado pelo do Agente da Polícia de Segurança Pública, considerei que era esta a versão que correspondia à verdade e que eventualmente o Sr. D… estará a contar uma versão diferente por se sentir culpado perante a sua entidade patronal por não ter facultado o livro de reclamações logo que o mesmo lhe foi pedido pelo Sr. C….”
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São as seguintes as questões suscitadas:
- nulidade do julgamento por falta da gravação da audiência, e
- contradição entre os factos não provados e as declarações prestadas;
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O recurso apresentado é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor:“é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
Dos elencados vícios não são invocados o erro notório, nem a contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão (pois a contradição invocada nada tem a ver com este vicio), nem a insuficiência da matéria de facto para a decisão
Na medida em que são alegados pela recorrente serão apreciados.
Objecto de apreciação será ainda a questão, levantada pelo ilustre PGA, de saber se a arguida pode ser responsabilizada.
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Conhecendo
- nulidade do julgamento por falta da gravação da audiência,

Com o grande impulso dado pela L 59/98 de 25/8 e posterior Lei 48/07 de 29/8 á gravação da prova produzida em audiência, o desiderato da documentação das declarações orais, acentuou-se e transformou-se em regra geral, visando não apenas o refrescar da memória, para efeitos probatórios do próprio tribunal, e de “assegurar a correspondência entre a prova que é produzida e a que resulta do julgamento” G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, 3ª ed. pág. 264; mas como condição essencial para em recurso, reapreciar a matéria de facto, em caso de impugnação desta com vista á sua modificação/ alteração;
O meio de documentação consiste na gravação da prova por meios de gravação magnetofónica ou audiovisual e/ou outros que visem a reprodução integral e substituiu o anterior sistema de redução a escrito das declarações prestadas.
Isto posto,
cremos que, atento o disposto nos 66º do DL 433/82 de 27/10 (RGCO) que estabelece expressamente que na audiência em 1ª instancia não há “lugar à redução da prova a escrito”, em consonância com o artº 75º1 RGCO que dispõe que “a 2ª instancia apenas conhecerá da matéria de direito” , a nulidade invocada da falta de documentação da prova em audiência apenas pode resultar de a recorrente não haver atentado no disposto nestes normativos, uma vez que deles resulta expressamente a não documentação da prova produzida em audiência o que está de acordo e em conformidade com os fins que determinam aquela.
Improcede por isso tal arguição

No que á 2ª questão respeita, denominada pela recorrente da contradição entre os factos não provados e as declarações prestadas;
A mesma enquanto tal é irrelevante e destituída de sentido pois não consta do elenco dos vícios da decisão do artº 410º CPP (ex vi artº 41º RGCO);
E com o sentido expresso pela recorrente entre o facto de o “reclamante” ter desistido de apresentar reclamação, então a reclamação não foi apresentada por desistência e não por recusa de entrega do livro de reclamação, é manifesto que não existe contradição, pois trata-se de factos diferentes: como resulta evidente: uma coisa é não apresentar reclamação (porque desistiu ou não quis ou não pode – qualquer que seja a causa, mas podendo fazê-lo) e outra é não ter - lhe sido entregue o livro de reclamações para fazer a reclamação (se quisesse). Como todos intuem, uma coisa é apresentar o livro (como é imposto por lei) quando pedido, e outra é de posse do livro lavrar ou não a reclamação.
E entre elas não há contradição.
Se por outro lado pretende por em causa a prova do pedido do livro e sua recusa, então esquece-se a arguida do teor dos factos constantes da sentença recorrida, e que não é possível a sua modificabilidade por ausência de impugnação da matéria de facto, através da reapreciação da prova, única que podia levar á alteração dos factos.
Improcede assim a questão suscitada.
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No seu parecer o ilustre PGA entende que a arguida não é responsável pela infracção, por estar provado que “O funcionário de serviço tinha instruções expressas e claras para entregar o livro a quem o solicitasse.”

Ora arguida é a sociedade “B…, Lda.” por haver sido pedido ao seu funcionário a entrega do livro de reclamações este não o ter feito/ apresentado.
A responsabilidade das pessoas colectivas no que ao RGCO se refere está consagrado no artº 7º2 RGCO que dispõe: “As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções” nada mais estabelecendo.
Todavia por força do artº 32º RGCO é-lhe aplicável subsidiariamente o Cód Penal o qual neste âmbito dispõe no seu artº 11º nº6 que “A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.”
Constando da sentença recorrida como facto provado que o funcionário da arguida que atendeu o “queixoso” “tinha instruções expressas e claras para entregar o livro a quem o solicitasse.” forçoso parece-nos ser de concluir que o funcionário agiu contra instruções expressas de quem de direito, da sociedade arguida, o que exclui a sua responsabilidade e torna o funcionário eventualmente único responsável (artº 11º nº7 CP).
E sendo assim a sociedade arguida não responde pelo acto do seu funcionário que agiu contra instruções expressas suas, e não respondendo não pode ser condenada e consequentemente tem de ser absolvida da contra-ordenação imputada.
Deve por isso ser revogada a sentença recorrida e a arguida absolvida da contra-ordenação, por outras razões que não as invocadas pela recorrente.
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Pelo exposto o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar procedente o recurso interposto pela arguida e em consequência revogando a sentença recorrida, absolve a arguida da contra-ordenação imputada
Sem custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 13/2/2013
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes