Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0635505
Nº Convencional: JTRP00039884
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP200612140635505
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 698 - FLS 114.
Área Temática: .
Sumário: I - Ao entregar um bem ao credor, com vista à extinção do crédito, o devedor transmite ao credor a propriedade desse bem, a título oneroso.
II - Por isso, não podem deixar de se aplicar à dação em cumprimento também as exigências de forma que são aplicáveis ao contrato de compra e venda.
III - A dação em cumprimento de bens móveis não deixa de operar a transmissão do direito de propriedade dos bens do devedor para o credor, pelo facto de não ter foi emitida factura ou de a dação não ter sido incluída na declaração de IRC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………., LDª deduziu embargos de terceiro por apenso aos autos de procedimento cautelar de arresto movidos por C………., SA contra D………., LDª.
Como fundamento, alegou factos tendentes a demonstrar que detém a propriedade e a posse dos bens que foram arrestados no referido procedimento cautelar.
A embargada C………., SA contestou, impugnando os factos alegados pela embargante e invocando a excepção de caducidade dos embargos, que foi julgada improcedente no despacho saneador.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e ordenou o levantamento do arresto dos bens móveis identificados a fls. 196 e 197 do apenso A.
Inconformada, a embargada C………., SA recorreu, formulando as seguintes

Conclusões
1ª – A apelante não se conforma com a resposta positiva dada ao atº 6º da base instrutória, já que o documento de fls. 43 dos autos não é documento idóneo para que a pretendida dação em pagamento tenha produzido os seus efeitos jurídicos.
2ª – A convicção do tribunal “a quo” assentou unicamente na análise desse documento e não também no depoimento da testemunha E………., como claramente evidencia o teor da motivação da decisão de facto, que remete o valor probatório desse depoimento apenas para as negociações havidas, isto é, para o âmbito dos artºs 4º e 5º da base instrutória.
3ª – A sentença recorrida considera que erradamente que o documento de fls. 43 foi assinado pela arrestada D………., Ldª e pela embargante e que esse documento titulava eficazmente a transmissão entre ambas dos bens arrestados pela apelante.
4ª – O documento de fls. 43 junto pela embargante foi impugnado pela apelante na contestação que apresentou, quer quanto à sua autoria, quer quanto à data nele aposta, quer ainda quanto ao seu conteúdo.
5ª – Em consequência, cabia à embargante, ora apelada, fazer prova da veracidade das assinaturas apostas no referido documento, assim como da veracidade do seu conteúdo.
6ª – Ora, a apelada não foi capaz de fazer prova da veracidade das assinaturas apostas no referido documento, assim como da veracidade do seu conteúdo.
7ª – Por tal motivo, ainda agora não se sabe quem assinou o documento de fls. 43.
8ª – Ainda que a assinatura fosse do F………., o que não se concede, também não foi feita prova nos autos de que o declarante tenha os necessários poderes para vincular a arrestada, face ao disposto no nº 1 do artº 163 do CC e artº 192º, nº 1 do CSC.
9ª – Não foi feita qualquer prova por parte da apelada de que o referido F………. era gerente ou legal representante da arrestada, ou que tivesse poderes de representação da mesma.
10ª – O Tribunal “a quo” considerou que a autoria da assinatura pertencia ao F………. e que este tinha poderes para vincular a declarante nesse documento, sem que tal facto se estribasse em provas idóneas.
11ª – Mesmo que fosse demonstrada a autoria do documento em causa e os poderes de representação do seu autor, o que não se concede, daí não resultaria necessariamente que tal documento seria suficiente para operar uma transmissão de activos entre a arrestada e a embargante, já que se tratam de duas sociedades comerciais.
12ª – Dívidas não há de todos os equipamentos, utensílios e mobiliário constantes do dito documento de fls. 43 integram o imobilizado corpóreo, devendo como tal ser objecto de registo de escrituração mercantil das sociedades envolvidas e constar dos correspondentes anexos da declaração anual do modelo 22 do IRC.
13ª – Em consequência, a alienação do imobilizado corpóreo da arrestada determinaria uma baixa de imobilizado, pelo que a mesma exigiria um documento idóneo, factura ou outro documento equivalente, com os elementos exigidos pelo artº 35º do CIVA.
14ª – Ora, nem o documento de fls. 43 dos autos satisfaz minimamente esses requisitos, nem a embargante juntou quaisquer outros documentos atinentes à posterior alienação do imobilizado.
15ª – Sem tal documento, não poderia registar nos seus livros de escrituração comercial a aquisição da posse ou propriedade desses bens e incluí-los na declaração modelo 22 do IRC do ano de 2004, da mesma forma que a arrestada também não poderia dar baixa desse imobilizado na sua escrituração mercantil.

A embargante contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

Em 31.03.04, foi realizado o arresto dos bens descritos no auto de fls. 195 a 197 do apenso A, os quais se encontravam na ………., .º, ………., em Lisboa. (A)
Encontra-se registada a favor da embargante desde 22.04.05 a propriedade do imóvel a que corresponde a loja nº ………, sita na ………., em Lisboa. (1º)
A embargante e a arrestada celebraram entre si o contrato junto aos autos a fls. 31 a 37. (2º)
Em 28.02.01, a embargada D………., Ldª instalou naquela loja da embargante um restaurante, para cujo funcionamento adquiriu a totalidade dos bens descritos no mencionado auto de arresto, sob as verbas nº 1 a nº 9. (3º)
Desde Novembro de 2003 que a requerida D………., Lda. e a embargante acordaram em fazer cessar o arrendamento, por revogação. (4º)
E mais acordaram em transmitir a posse e a propriedade de todo o equipamento, bens e stock existentes no interior do restaurante, para dação em pagamento da totalidade das rendas devidas à embargante. (5º)
O referido acordo foi apenas cumprido e reduzido a escrito em 22.01.04, nos termos que constam do documento de fls. 43, depois de a arrestada haver inventariado os bens que entregou para dação em cumprimento. (6º)
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III.
As questões a apreciar são as seguintes (delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
– Se o quesito 6º deve ser considerado não provado.
- Se o documento de fls. 43 dos autos é insuficiente para titular o acordo de dação em cumprimento dos bens arrestados.

1. Alteração da resposta ao quesito 6º
O quesito 6º tem a seguinte redacção: “Mercê das vicissitudes diversas, tal acordo de revogação foi apenas formalizado em 22 de Janeiro de 2004 depois de a requerida haver inventariado todos os bens que entregou para dação em cumprimento?”
E obteve a seguinte resposta:
“O referido acordo foi apenas cumprido e reduzido a escrito em 22.01.04, nos termos que constam do doc. de fls. 43, depois de a arrestada haver inventariado os bens que entregou para dação em cumprimento”.
Pretende a embargada que se altere a resposta para “Não provado”.

Dispõe o artº 712º, nº 1, do CPC que a decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão sobre a matéria de facto;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que decisão assentou.
No caso em apreço, não houve gravação dos depoimentos prestados, a embargada não alega que existam elementos no processo que imponham decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas e também não juntou documento novo superveniente.
Entende a embargada que, para responder ao quesito 6º, o Mº Juiz a quo se baseou unicamente no documento junto a fls. 43 dos autos. A embargada fundamentou, pois, o pedido de alteração da resposta àquele quesito no disposto na 1ª parte da al. a) do nº 1 do artº 712º: constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.
Lê-se na motivação da matéria de facto (fls. 99 e 100) que a decisão de toda a matéria de facto se fundou no teor dos documentos referenciados na factualidade julgada provada bem como no depoimento da testemunha E………., empregada de escritório da embargante.
Referindo-se ao depoimento desta testemunha, diz o Mº Juiz que a mesma “…foi peremptória a declarar que o acordo julgado provado foi celebrado verbalmente em Novembro de 2003, tendo ficado a sua execução dependente da inventariação do recheio dado em pagamento à Embargante”.
Ora, aquele passo do depoimento da testemunha reporta-se precisamente à matéria vertida no quesito 6º, que acima transcrevemos.
A resposta ao quesito 6º baseou-se, assim, não só nos documentos juntos aos autos, como também na prova testemunhal, que não foi gravada, pelo que este tribunal não a pode sindicar.
Por ter sido impugnado, o documento de fls. 43 não faz prova plena nos termos do artº 376º do CC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem; porém, pode ser livremente apreciado pelo tribunal (artº 366º).
No uso dos seus poderes de livre apreciação da prova, o Mº Juiz a quo analisou criticamente aquele documento em conjugação com o depoimento da testemunha acima referida e valorizou-o para formar a sua convicção no sentido de o documento ter sido emitido pela arrestada.
Os autos não contêm, pois, todos os elementos em que se baseou a decisão da matéria de facto, pelo que também não se verifica a situação prevista na 1ª parte da al. a) do nº 1 do artº 712º do CPC, não podendo, por isso, ser alterada a resposta ao quesito 6º.

2. Insuficiência do documento de fls. 43 para titular a dação em cumprimento
A dação em cumprimento é uma forma de extinção das obrigações que consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação (artº 837º).
Segundo Antunes Varela[1], a concepção exacta e completa da dação é a que retrata, no único momento em que o acto se esgota, o duplo aspecto que ele envolve. Só mediante a inclusão do fim e do meio do acto se obtém um retrato em corpo inteiro da dação em cumprimento.
O fim da dação consiste na extinção da obrigação (da única obrigação que persiste nas relações entre as partes); o meio dessa extinção, sendo diferente da prestação debitória (aliud pro alio), pressupõe uma troca concertada entre as partes – troca que se efectua no próprio momento da datio.
É notória a analogia existente entre as modalidades mais correntes da dação (como a entrega de uma coisa ou a cedência de um direito) e o contrato de compra e venda.
Por isso, o artº 838º concede ao credor a mesma protecção que os artºs 905º e seguintes do mesmo Diploma concedem ao comprador quando a coisa ou o direito transmitido apresentem vícios.
A aplicação à dação em cumprimento das regras da compra e venda resulta não só do citado artº 838º, como da remissão geral do artº 939º, o qual manda aplicar as regras da compra e venda aos outros contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas.
Por força do disposto naqueles normativos, são aplicáveis à dação em cumprimento, por exemplo, as disposições relativas à venda de coisa alheia (artºs 892º e seguintes), se tiver sido dada em cumprimento uma coisa não pertencente ao devedor.
A aplicação do regime da compra e venda à dação em cumprimento é explicada pelo carácter oneroso que reveste a datio in solutum. Entrega-se ou dá-se a coisa (lato sensu) em troca da extinção (do crédito)[2].
Ou seja, ao entregar um bem ao credor, com vista à extinção do crédito, o devedor transmite ao credor a propriedade desse bem, a título oneroso.
Por isso, não podem deixar de se aplicar à dação em cumprimento também as exigências de forma que são aplicáveis ao contrato de compra e venda.
Apenas o contrato de compra e venda de bens imóveis está sujeito a forma legal: face ao disposto no artº 875º e no artº 89º, al. a) do C. do Notariado, só é válido se for celebrado por escritura pública.
A compra e venda de bens móveis é consensual, o que se aplica também à compra e venda de bens móveis de que sejam titulares sociedades comerciais, pois que nenhuma disposição legal, maxime do CSC, exige qualquer tipo de documento para a sua formalização.
Por força das disposições conjugadas dos citados artºs 838º e 939º, também a dação em pagamento de bens móveis pode ser celebrada por qualquer forma.

O artº 35º do CIVA, que a embargada cita, enumera os requisitos que devem revestir as facturas que as sociedades comerciais, enquanto sujeitos passivos de IVA, estão obrigadas a emitir nos termos do artº 28º, nº 1, al. b) do mesmo Diploma.
Resulta das disposições conjugadas dos artºs 1º, nº 1, al. a, 2º, nº 1, al. a) e 3º, nº 2, al. f) que a transmissão dos bens arrestados estaria sujeita a IVA e, portanto, teria de ser titulada.
Também a mesma transmissão deveria ser declarada para efeitos de IRC, nos termos do artº 16º, nº 1 do CIRC, porque este imposto incide sobre o lucro tributável das sociedades comerciais (artº 3º, nº 1, al. a) do mesmo Diploma), para o qual contribuem todas as variações patrimoniais positivas ou negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício (artºs 21º e 24º do CIRC).
Os documentos referidos nas citadas normas do CIVA e do CIRC destinam-se apenas a fazer a prova da transmissão dos bens para efeitos tributários. Não constituem formalidade ad substantiam do negócio pelo qual se operou aquela transmissão.
Por isso, a dação em cumprimento de bens móveis não deixa de operar a transmissão do direito de propriedade dos bens do devedor para o credor, pelo facto de não ter foi emitida factura ou de a dação não ter sido incluída na declaração de IRC.

Resulta do exposto que a dação em cumprimento celebrada entre a embargante e a arrestada através do documento de fls. 43 é formalmente válida.
Improcedem assim todas as conclusões da embargada, pelo que há que confirmar a sentença recorrida.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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Porto, 14 de Dezembro de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Manuel Lopes Madeira Pinto
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha

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[1] Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed., 184.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, II, 3ª ed., 125.