Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1900/10.5TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE SEGURO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
PARQUEAMENTO DOS SALVADOS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201205151900/10.5TBVFR.P1
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tratando-se de seguro obrigatório de responsabilidade civil, destinado à tutela de terceiros, a liberdade contratual (cfr. artigo 405.° CC) é fortemente restringida, pois não só as partes são obrigadas a celebrar certos contratos, como têm de o fazer dentro de parâmetros imperativamente estabelecidos.
II - Diversamente, no seguro de natureza facultativa, as partes gozam de ampla liberdade negociai, podendo negociar as coberturas que entenderem, sempre, obviamente, sem prejuízo das regras da boa fé que devem nortear toda a negociação.
III - A circunstância de sobre o locatário impender a obrigação de segurar o bem locado não transforma o seguro em seguro obrigatório de responsabilidade civil, nos termos da dicotomia entre seguro de responsabilidade civil obrigatório em contraposição a seguro facultativo.
IV - O seguro contra risco da perda e deterioração do bem locado é obrigatório para o locatário no confronto com o locador, pois trata-se de norma destinada à protecção destes último, imposto no diploma que regula a locação financeira. No confronto com a seguradora, trata-se claramente de um seguro de coisas, com coberturas facultativas.
V - Não tendo sido expressamente convencionada a cobertura de privação de uso, não é devida qualquer indemnização a esse título. A seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada.
VI - Constitui abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio do exercício, o parqueamento de salvados destinados à venda, no valor de € 2.750,00, por um período de 1.961 dias (cinco anos, quatro meses e quinze dias), ò razão de € 12 diários, acrescido de IVA, o que perfaz a quantia de € 23.532,00, acrescida de IVA (1961 x 12,00 + IVA).
VII - Situação tanto mais grave quanto é certo que a seguradora se dispôs a ficar com os salvados, desde que lhe fossem enviados os documentos necessários.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 1900/10.5TBVFR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

B…, Ld.ª, intentou acção declarativa de condenação com processo comum sob a forma ordinária contra Companhia de Seguros C…, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 32.520,00 já liquidada e correspondente aos danos sofridos até 3 de Fevereiro de 2010, acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia que se apurar em incidente de liquidação relativa à indemnização pelos prejuízos resultantes do parqueamento da viatura sinistrada, aquisição de veículos, e a quantia de € 30,00 desde o dia do acidente ou do dia em que se considera perda total, indemnização devida pela paralisação e privação do uso, até que seja reparado ou substituído o veículo sinistrado ou a A. receba o valor do mesmo.

Alegou para tanto, e em síntese, que celebrou um contrato de locação tendo por objecto uma viatura OPEL …, que cumpriu integralmente, tendo no quadro desse acordo celebrado com a R. um contrato de seguro que incluía o ressarcimento de danos próprios.

E que em 2006.02.03 teve um acidente com esse veículo, sem a intervenção de terceiros, de que resultou a perda total do veículo seguro, o que foi comunicado à R., que, todavia, propôs apenas a indemnização de € 4.927,13.

Afirma que, em consequência do sinistro e conduta da R., sofreu os seguintes danos:
a) € 10.000,00, a título de dano da perda do veículo;
b) € 12,00 mais IVA diários, a título da despesa de aparcamento que a autora irá suportar;
c) € 30,00 diários a titulo de privação da utilização do veículo;
d) As quantias que discrimina que teve de despender na aquisição de veículo de substituição.

Contestou a R. excepcionando a ilegitimidade da A. por esta não ser a proprietária do veículo, e, por impugnação, afirma que tempestivamente efectuou a proposta do valor devido nos termos do contrato pelo que não é devida qualquer quantia a título de privação de uso, acrescentando que só é responsável nos termos do contrato de seguro que não incluiu os restantes danos peticionados.

Replicou a A., pugnando pela improcedência da excepção.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade deduzida e foi fixada matéria de facto relevante.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 5.718,21, acrescida de juros de mora, à taxa comercial desde a citação até integral pagamento, mantendo a A. a propriedade dos salvados do veículo ..-..-TD, no mais absolvendo a R. dos pedidos contra si formulados.

Inconformada, recorreu a A., apresentando as seguintes conclusões:

«I. A sentença nos presentes Autos, na parte em que é absolutória da Ré ao declarar a inexistência do direito da Autora de ser ressarcida pelo dano de privação do uso a título de danos indirectos ou lucros cessantes, e na fixação do montante indemnizatório, não aplicou o direito e manifestamente não fez justiça, pelo que o presente recurso vem interposto apenas quanto à matéria de direito.

II. O presente Recurso vem assim interposto da sentença proferida a fls…. e ss dos autos de 28 de Abril de 2011, nos termos da qual foi decidido, que o pedido da Autora era improcedente no que concretamente diz respeito:

III. à nulidade da sentença quando fundamenta juridicamente a decisão quanto à perda total;

IV. improcedência quanto ao pedido da Autora pela ressarcibilidade do dano de privação de uso;

V. improcedência do pedido da Autora quanto às despesas decorrentes da imobilização;

VI. o consequente montante indemnizatório decidido.

VII. No que concerne à determinação da indemnização por perda total, a decisão do Tribunal “a quo” nesta parte, padece da mais clamorosa nulidade por falta de fundamentação de direito, nos termos do art. 668º n º 1, alínea b) do C.P.C, nulidade essa que se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

VIII. E isto porque, o Tribunal “a quo” faz uma referência expressa a um Decreto-Lei que, pese embora não se aplique ao caso em análise, uma vez que os factos ocorreram em 3 de Fevereiro de 2006, e o DL n º 83/2006 de 3 de Maio entrou em vigor apenas em 1 de Agosto de 2006, apenas fá-lo como mera norma interpretativa o que até é compreensível.

IX. E, ao fazer uma referência expressa a tal Decreto-Lei, apenas como norma interpretativa, acaba por servir-se desse mesmo normativo como base legal que fundamenta e justifica o processo decisório.

X. Ora é com total estranheza que a Autora encontra a referência e expressa a este Decreto-lei como forma de interpretação ou fundamentação do processo decisório.

XI. E a estranheza da Autora não se deve ao facto de este diploma ter entrado em vigor apenas em 1 de Agosto de 2006 e por conseguinte não se aplicável à data dos factos que são de 3 de Fevereiro de 2006; mas deve-se antes ao facto desse decreto-lei ter sido revogado pelo Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto, pelo que o Tribunal “a quo” utilizou um diploma inexistente no nosso ordenamento jurídico, um Decreto-Lei cuja a vigência já tinha cessado, para fundamentar juridicamente a sua decisão. E ao fazê-lo, esvaziou de fundamento jurídico essa mesma decisão referente ao quantum indemnizatório, pois que tal diploma tendo sido expressamente revogado, é inexistente.

XII. A decisão do Tribunal “a quo” padece de nulidade por falta de fundamentação de direito na parte em que utiliza do Decreto-Lei 83/2006 de 3 de Maio, nulidade que se invoca para os devidos e legais efeitos, nos termos e para os efeitos do art. 668 º n º 1, alínea b) do C.P.C

XIII. A improcedência do pedido da Autora quanto aos danos referentes à privação do uso e das despesas decorrentes da imobilização, também merecem os maiores reparos da Autora, impondo-se nova decisão juridicamente mais adequada.

XIV. A este propósito, decidiu o Tribunal “a quo” que para além dos danos directos previstos no programa contratual, a privação do uso enquanto dano indirecto ocorrido no património do credor, quando não expressamente previsto na apólice, não é exigível pela Autora.

XV. A sentença do Tribunal “a quo” começa por referir que altura do ainda em vigor art. 432º n º 2 do Código Comercial, decorria que “a seguradora apenas está obrigada, face ao tomador do seguro, nos precisos termos do contrato de seguro de dano próprio celebrado, não sendo devida indemnização por danos que não estejam cobertos”.

XVI. Ora, com o devido respeito, não é exactamente isso que decorre do já revogado art. 432º mas sim que: “O seguro contra riscos pode ser feito”, elencando os temas ou matérias sobre as quais podem versar as cláusulas do contrato.

XVII. Ora, quanto ao pedido de indemnização pelos lucros cessantes ou danos indirectos não é verdade que, no contrato de seguros ora em apreço, junto a fls 42 a 43 as partes não convencionaram expressamente essa indemnização. Aliás, a cláusula 7.ª das condições gerais determina o âmbito da responsabilidade do seguinte modo: “Nos termos das adendas celebradas com os fornecedores, estes respondem perante o CLIENTE por todos os danos ou prejuízos decorrentes de deficiências ou defeitos na execução dos serviços ou lhe foram cometidos ao abrigo do presente contrato, não podendo por isso ser exigida qualquer indemnização ao D…, SA”.

XVIII. Ora, “todos os danos” entendemos “danos directos e indirectos”.

XIX. Mas, mesmo que se defenda tese contrária, ou seja, que se defenda que não há uma previsão expressa dos “danos indirectos” na apólice ora em apreço, também não se pode afirmar que há uma cláusula de exclusão expressa e absoluta desses danos no contrato junto aos Autos, pelo que, na falta de previsão das partes, impunha-se a aplicação dos princípios gerais em matéria indemnizatória; e, ao não recorrer aos princípios gerais da indemnização, mal andou o Tribunal “a quo” ao absolver a Ré desse pedido.

XX. Ora, como elucida Antunes Varela, “danos directos … são os efeitos imediatos do facto ilícito ou a perda directa causada nos bens ou valores juridicamente tutelados” e “danos indirectos … são as consequências mediatas ou remotas do dano directo” – v. “Das Obrigações em Geral”, 4ª edição, Vol. I, págs. 527/528.

XXI. Também Vaz Serra faz essa distinção nos seguintes termos: dano directo ou imediato é a modificação prejudicial que no bem atingido pelo facto danoso é causada por este mesmo facto; aparece primeiro como dano real e a sua extensão resulta da comparação entre o estado actual do bem danificado e o seu estado antes de ser danificado. O dano indirecto ou mediato compreende os prejuízos que mais tarde se juntam e, em regra, se dão, não no próprio objecto do dano, mas só no património – v. “Obrigação de Indemnização”, no BMJ n.º 84.

XXII. Tendo presente o artigo 564 n.º 1, do CC, no qual se afirma que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, e a distinção, acabada de fazer, entre danos directos (imediatos) e danos indirectos (mediatos), parece-nos que a Ré tem de responder pelos mesmos.

XXIII. Por outro lado, igualmente os artigos 798º e 804 nº 1 do Código Civil, ao referirem-se concretamente à responsabilidade contratual não distinguem entre uma e outra classe de danos.

XXIV. Aliás não deixa de causar algum espanto que o Tribunal “a quo” para fundamentar a sua decisão faça referência a alguns dos princípios gerais da indemnização – concretamente faz referência aos art. 562 º e 566 º do Código Civil – para depois fazer completa tábua rasa do art. 564 º, ignorando por completo tal dispositivo legal.

XXV. Somos portanto de defender, afincadamente que, na responsabilidade civil contratual são indemnizáveis os danos não patrimoniais que mereçam a tutela do direito, ao contrário do decidido pelo Tribunal “a quo”.

XXVI. E a Autora não está só na defesa deste entendimento.

XXVI I. A este propósito importa subscrever integralmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/06/2005, in dgsi.pt, processo 05B1526, o qual chamamos aqui à colação, segundo o qual: “...é opinião francamente maioritária na doutrina e na jurisprudência a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais em sede de responsabilidade contratual - cfr. 5 Norma esta situada na Secção VIII do Código Civil, referente aos princípios gerais do dever de indemnizar os acórdãos do STJ, de 17/1/1993, CJSTJ, ano I, tomo I, página 64 e de 23/9/2004, Revista n. 24204/04-2ª Secção, Sumários do Gabinete dos Juízes Assessores, nº 83, Página 45 e ainda Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, página 486 e Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, página 31, nota 77.
De facto, como se lê no citado acórdão do Supremo, de 17/1/1993, os artigos 798 e 804, nº1 do CC, ao referirem-se, no domínio da responsabilidade contratual, e sucessivamente, à ressarcibilidade do prejuízo causado ao credor e à ressarcibilidade dos danos causados ao credor, não distinguem entre uma e outra classe de danos, não limitam a responsabilidade do devedor aos danos patrimoniais.”

XXVIII. É que, pese embora seja compreensível a afirmação do Tribunal “a quo” segundo a qual “a determinação do montante indemnizatório no contrato em apreço, é diferente do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, porque a autora não é um terceiro e está vinculada às regras estabelecidas na apólice”, a verdade é que, com o devido respeito, Facultativo é que o contrato de seguros em apreço, não é de todo!

XXIX. Estamos aqui perante um seguro de danos próprios em viatura automóvel e que nem sequer podemos afirmar que é facultativo, pois está associado a uma obrigação legal contrato de locação financeira, numa relação triangular locadora, locatário e seguradora.

XXX. É que uma das obrigações legais do locatário é a de efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados, ficando a seu cargo, salvo estipulação em contrário, o pagamento dos respectivos prémios de seguro – v. arts. 10º, n.º 1, al. i) e art. 14º do DL 149/956

XXXI. A Autora fez o contrato porque essa era a sua obrigação legal, não se compreendendo a dualidade de critérios entre o seguro “obrigatório de responsabilidade civil automóvel” e o seguro de danos próprios em viatura automóvel que a lei impõe como uma obrigação ao locatário, aqui Autora, e desconhecendo por completo a Autora a existência de alguma financeira em todo o Portugal, que faça algum contrato de locação financeira sem que o locatário cumpra com essa obrigação legal.

XXXII. No concreto caso em apreço, esse contrato de seguro surge como parte integrante do contrato de locação financeira, não foi negociado autonomamente, e a Autora não teve a liberdade de contratar ou não contratar – tinha a obrigação legal de o fazer, ou negociar os termos, como de resto acontece em muitos contratos de locação financeira

XXXIII. Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” violou os arts. 564 º, 798 e 804 º todos do Código Civil.

XXXIV. Pelo exposto, deverá a decisão do Tribunal “a quo” ser revogada na parte em que absolve a Ré de ressarcir a Autora pelos danos da privação do uso, sendo substituída por outra que condene a Ré a ressarcir esses danos pela privação do uso.

XXXV. O Tribunal “a quo” a propósito das despesas decorrentes da imobilização refere que a mora da Ré apenas e só ocorre entre a data do acidente (3.2.2006) e 26.3.2006, altura em que a ré teria posto à disposição da autora o montante global de € 4.927,13, incluindo o salvado, e que além disso “a autora não tinha direito a qualquer outra prestação para além da que lhe foi oferecida”, pelo que – e segue a decisão – “ para que esse pagamento fosse efectuado seria necessário que a autora assinasse e entregasse uma série de documentos (carta f ls. 26), o que não fez”, o que significa por isso que a partir daquela comunicação da Ré, a mora passaria a ser da Autora.

XXXVI. Ora, em consonância com a sua posição quer assumida em correspondência vária, junta aos Autos (documentos junto à Réplica), quer assumida na sua própria contestação, a missiva junto aos Autos a fls. 26 nada mais fez do que formalizar aquela sua posição de que, no seu entender apenas teria de pagar 28% do valor inicial do veículo.

XXXVII. A Ré poderia ter resolvido todo este problema num prazo não superior a 15 dias, mas em vez disso, prontificou-se a pagar apenas e só 28% do valor do veículo, ao que a Autora não aceitou por entender que teria direito a receber 43 % daquele valor.

XXXVIII. Sendo que, a douta sentença veio a dar razão à Autora ou seja, que a percentagem correcta é a de 43 % e não a de 28%.

XXXIX. Então, a que propósito é que a mora é imputável À Autora como decidiu o Tribunal “a quo”?

XL. Se a Ré propusesse 28%, a viesse a ser condenada apenas a pagar os 28%, até compreenderíamos que a mora fosse imputada à Autora a partir da carta referida na sentença que ora se coloca em crise.

XLI. Agora, quando a Autora recusa aquele valor, e o Tribunal vem a dar-lhe razão, não podemos aceitar que a mora seja imputável à Autora.

XLII. Pelo exposto, ao decidir conforme o decidido, o Tribunal “a quo” penaliza desproporcionalmente a Autora por não ter aceitado a proposta da Ré, deixando de forma clara a ideia de que ressarcir a Autora em 43% ou em 28% do valor inicial do veículo, seria exactamente o mesmo, pois que a Autora tinha de concordar a todo o custo com a proposta da Ré (ainda que, na perspectiva da Autora, aquela proposta não encontrasse o menor fundamento na tabela anexa ao contrato de seguro), pois ao não fazê-lo, a mora passaria a correr por culpa da Autora.

XLIII. Aliás se a Ré tivesse enviado uma carta a dizer que só ressarciria em 5% do valor do veículo, e a Autora não concordasse, apesar do manifesto desrespeito pelo clausulado, seria de se premiar a Ré, imputando-se a mora à Autora?

XLIV. Ora, nada mais inadmissível e merecedor da veemente discordância da Autora, pelo que deverá a douta sentença ser revogada igualmente nesta parte, substituindo-se por outra decisão que condene no pagamento dos 12,00 € acrescido de IVA conforme resulta da matéria de facto provada, até ao trânsito em julgado do douto acórdão.

Termos em que deve ser concedido provimento ao Presente Recurso Interposto pela recorrente, Revogando-se a sentença proferida em 1ª Instância, na parte em que julga improcedente o pedido principal formulado pela Autora no que toca aos danos pela privação do uso e no que toca às despesas da imobilização nos termos peticionados, e sendo declarada nula a parte da fundamentação de direito quanto à perda total por ser de inteira
JUSTIÇA».

Contra-alegou a R., assim concluindo:

«1ª – A Douta sentença recorrida não merece qualquer reparo;

2ª – A Apelante esquece-se que a apreciação deste processo remete-nos para a responsabilidade contratual;

3ª – A Apelada não incorreu em qualquer incumprimento contratual gerador de responsabilidades;

4ª – A Apelante reclama desde a fase pré-judicial até ao presente recurso uma indemnização que não tem qualquer suporte seja legal, seja contratual;

5ª – O valor a que a Apelante tem direito pela perda do veículo é aquele que foi doutamente fixado na sentença da 1ª instância;

6ª – Sendo mais do que evidente que, face aos factos dados como provados, a reparação não se justificava;

7ª – A Apelada colocou à disposição da Apelante o valor que, segundo ela, estaria obrigada pagar nos termos contratuais (de resto, muito próximo daquele que foi fixado na sentença), mais solicitando à Apelante a documentação necessária à concretização do referido pagamento, solicitação que não foi satisfeita;

8ª – A Apelante não usou da diligência normal e exigível ao colocar um salvado numa garagem a pagar uma diária de €12,00 (doze euros);

9ª – Quando não podia desconhecer que os salvados teriam de ser vendidos e que tal venda não estava na disponibilidade da Apelada;

10ª – Tal conduta, sem prescindir, configuraria sempre um Abuso de Direito – art.º 334º do Código Civil;

11ª – Não podendo desconhecer a impossibilidade contratual da reparação, também nunca poderá reclamar a proclamada indemnização pela substituição do veículo;

12ª – A sentença colocada em crise pela Apelante não violou o preceituado no contrato, nem qualquer preceito legal, designadamente os artigos 564ª, 798º e 804º todos do Código Civil.

Termos em que, mantendo-se a douta Sentença recorrida se fará inteira

JUSTIÇA!»

Foi proferido despacho de sustentação.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

Dos factos assentes

2.1. Em 29 de Abril de 2002, a Autora celebrou com a D…, SA, contribuinte ………, com sede na Rua … n º ., agora E…, SA, um contrato de locação financeira – contrato ………..... – cujas cláusulas se encontra descritas no documento junto aos autos a fls. 20 a 21 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2.2. B) No contrato referido em A) a D… dava em locação financeira à Autora uma viatura de marca OPEL …, …, com a matrícula ..-..-TD no valor global de € 17.956,72.

2.3. Aquando da celebração do tal contrato ………....., o à altura D… (agora E…) celebrou na mesma data, uma apólice de seguros de responsabilidade civil com a Ré, com a cobertura de danos próprios para o veículo locado, conforme adenda ao respectivo contrato apólice AUI……..

2.4. A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação ocorridos com intervenção do veículo referido em A) estava a 3 de Fevereiro de 2006 transferida por contrato de Seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice AUI……. para a Ré Companhia de Seguros cujas condições particulares e especiais se encontram descritas no documento junto aos autos a fls. 42 a 43 e cujo teor no demais se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2.5. Tal contrato de seguros do ramo automóvel englobava as seguintes coberturas e garantias: Responsabilidade Civil Ilimitada; Assistência em Viagem (Km 0 ou Mercadorias); Protecção Jurídica; danos próprios em virtude de Choque, Colisão, Capotamento, Incêndio, Raio ou Explosão (sujeitos à franquia de 002%); Furto ou Roubo (decorridos 60 dias após o desaparecimento); Ocupantes da Viatura (Todos os Ocupantes: Morte ou Invalidez Permanente: Eur. 14963,94: Despesas de tratamento Eur. 1496,39; Quebra Isolada de Vidro com Capital até 997.60; Fenómenos da Natureza e Actos de Vandalismo (Sujeitos à Franquia de 2%).

2.6. O veiculo referido em B) sofreu um acidente.

2.7. Não existiram outros veículos envolvidos em tal acidente.

2.8. Como consequência directa e necessária do embate/choque resultaram vários danos no veículo automóvel propriedade da aqui Autora, nomeadamente em toda a parte frontal, e os quais determinaram a perda total do mesmo.

2.9. Tal sinistro foi de imediato comunicado à Ré, a qual efectuou uma peritagem.

2.10. A Ré conclui que, face aos danos, seria recomendável a respectiva regularização como perda total.

2.11. A Ré a 26 de Março enviou à autora um carta cuja cópia junta aos autos a fls. 26 e 27 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

— Nos termos do artigo 659.º, n.º 3, ex vi artigo 713.º, n.º 2, CPC, é o seguinte o teor da carta supra referida:

«No seguimento da participação do acidente e após a peritagem efectuada ao veículo de V. Exas., concluíram os nossos Serviços Técnicos que, face aos danos, é recomendável a respectiva regularização como perda total.
Neste contexto e de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, colocamos à disposição de V. Exas. o montante € 4.927,13, já deduzido da franquia contratual de € 100.55, ficando o salvado do veículo na posse desta Seguradora, que foi avaliado em € 2.759.00.
Informamos que a melhor proposta para a aquisição do salvado foi apresentada por F…, com morada em …, …, …. Ovar, com quem poderão contactar, caso pretendam efectuar directamente a respectiva transacção. Neste contexto, o valor a indemnizar é de € 2.168,13.
A rápida regularização deste sinistro, consubstanciada no pagamento da indemnização proposta fica dependente do vosso contacto e da entrega da documentação e demais elementos necessários à transmissão da propriedade:
Declaração de Venda legalizada na parte do “Vendedor”
Titulo de Registo de Propriedade
Livrete
Fotocópia do Cartão de Contribuinte
Extinção da reserva da propriedade se a houver
Chaves e duplicados, livros de garantia, instruções e revisões e ainda a indicação de todos os códigos de segurança do veiculo, tudo isto, no caso de pretenderem que o salvado fique na posse desta seguradora
Deverão, ainda, dar indicações à oficina que permita a remoção do veiculo da mesma.

A resolução imediata deste assunto, para além do bom serviço que lhes pretendemos prestar enquanto nosso Cliente, evitará eventuais situações de desvalorização do salvado, bem como custos adicionais relacionados com o parqueamento do veículo na Oficina, custos estes que, como compreenderão, não poderão ser imputados a esta Seguradora.
Agradecemos as prezadas noticias de V. Exas, no prazo de 6 dias úteis e, entretanto, apresentamos os nossos melhores cumprimentos,»

Da base instrutória

2.12. A Autora liquidou todas as rendas, valor residual, relativo ao contrato referido em A).

2.13. O acidente referido em F) ocorreu no dia 3 de Fevereiro de 2006, por volta das 2 h da manhã sendo o veículo referido em B) conduzido pelo sócio gerente da A.

2.14. Tal acidente ocorre quando o veículo circulava na Estrada nacional n º …, Rua …, freguesia de …, Concelho de Santa Maria da Feira, no sentido …, para a freguesia de …, uns metros antes de chegar à Estrada nacional n º . (Rua …).

2.15. Ao descrever uma curva ali existente, o condutor do veículo perdeu o controle da viatura e despistou-se, acabando por embater frontalmente no muro de vedação de um parque de merendas.

2.16. Nesse dia o piso estava escorregadio em virtude da chuva.

2.17. O veículo era conduzido a velocidade moderada.

2.18. Desde a data do acidente, o veículo da Autora encontra-se sem poder circular, parado na G…, SA, oficina sita no …, …, …. Oliveira de Azeméis.

2.19. (…) suportando a Autora um custo diário de € 12,00 acrescido de IVA.

2.20. A Autora necessitava do veículo para as deslocações necessárias ao normal desenvolvimento da sua actividade profissional.

2.21. Para fazer face a essa necessidade a A. adquiriu um Opel … matrícula ..-..-IS por 2.500,00€ a qual serviu de transporte das mercadorias como grades de bebidas

2.22. A reparação do veículo (com a matricula ..-..-TD) foi orçada em € 12.732,23.

3. Do mérito do recurso

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684.º, n.º 3, e 685.º A, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º, n.º 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:

— nulidade da sentença por falta de fundamentação jurídica quanto à perda total (artigo 668.º, n.º 1,alínea b), CPC;

— ressarcibilidade do dano da privação de uso;

— ressarcibilidade das despesas decorrentes da imobilização.

Consigna-se que, como relativamente à perda total, apenas foi arguida a nulidade por falta de fundamentação, pedindo-se a declaração de nulidade desse segmento da sentença, está vedado ao tribunal conhecer da problemática da perda total e da excessiva onerosidade.

Com efeito, embora tenha discorrido acerca dessa problemática na motivação, não levou essa questão às conclusões da alegação, que delimitam o objecto do recurso, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3, e 685.º-A,CPC, razão por que não se pode conhecer dessa questão.

3.1. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação jurídica quanto à perda total

Arguiu a apelante a nulidade da sentença por falta de fundamentação jurídica em virtude de o Mm.º Juiz a quo ter aplicado ao caso o Decreto-Lei 83/2006, de 3 de Maio.

A estranheza da apelante não decorre do facto de se ter aplicado um diploma que ainda não se encontrar em vigor, pois admite que o tenha sido enquanto norma interpretativa, mas por entender que a sentença recorrida utilizou tal norma, que já não se encontrava em vigor, para fundamentar a sua decisão, assim a esvaziando de fundamento jurídico.

Nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que fundamentam a decisão.

No caso vertente está em causa uma alegada falta de fundamentação jurídica relativamente ao segmento relativo à perda total do veículo.

Conforme entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, a nulidade por falta de fundamentação aplica-se apenas às situações de falta absoluta de fundamentação.

Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. V, 3.ª edição, pg. 140, esclarece:

«Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 [actual alínea b) do n.º 1] do art. 668.º»

No mesmo sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 2.ª edição, vol. I, pg. 558; Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. II, 2.ª edição, pg. 703).

Compulsada a sentença, verifica-se que o Mm.º Juiz a quo fundamentou a sua decisão na circunstância de a reparação ser excessivamente onerosa por corresponder a 150% do valor do veículo à data do acidente, inspirando-se no Decreto-Lei 83/2006, de 3 de Maio, apesar de ainda não se encontrar em vigor à data do acidente.

Este segmento da decisão está fundamentado, independentemente de se poder discordar da decisão.

A discordância quanto à fundamentação de direito integrará fundamento de recurso, mas não de arguição de nulidade por falta de fundamentação.

3.2. Da ressarcibilidade do dano de privação de uso

Insurge-se a apelante contra a sentença na parte em que lhe negou a pretendida indemnização pelo dano indirecto consubstanciado na privação do uso do bem.

Entendeu a sentença recorrida que estando em causa seguro de coisas, o artigo 435.º do Código Comercial impõe que a indemnização devida seja rigorosamente calculada em função do valor do objecto seguro à data do sinistro, acrescentando que, nos termos do artigo 432.º, n.º 4, do mesmo diploma, ainda em vigor na altura dos factos, este tipo de seguro visa a garantia e conservação do património do segurado, apenas sendo devida a indemnização por lucros cessantes se convencionada entre as partes.

Esgrime a apelante com a cláusula 7.ª das condições gerais, do teor seguinte:

«Nos termos das adendas celebradas com os fornecedores, estes respondem perante o CLIENTE por todos os danos ou prejuízos decorrentes de deficiências ou defeitos na execução dos serviços ou lhe foram cometidos ao abrigo do presente contrato, não podendo por isso ser exigida qualquer indemnização ao D…, SA»

Em causa está a interpretação do contrato de seguro accionado, que é um seguro facultativo do ramo automóvel, que englobava as seguintes garantias e coberturas: Responsabilidade Civil Ilimitada; Assistência em Viagem (Km 0 ou Mercadorias); Protecção Jurídica; danos próprios em virtude de Choque, Colisão, Capotamento, Incêndio, Raio ou Explosão (sujeitos à franquia de 002%); Furto ou Roubo (decorridos 60 dias após o desaparecimento); Ocupantes da Viatura (Todos os Ocupantes: Morte ou Invalidez Permanente: Eur. 14963,94: Despesas de tratamento Eur. 1496,39; Quebra Isolada de Vidro com Capital até 997.60; Fenómenos da Natureza e Actos de Vandalismo (Sujeitos à Franquia de 2%) (ponto 2.5 da matéria de facto).

Nos termos do artigo 427.º CCom., o contrato de seguro rege-se pelas disposições da respectiva apólice não proibidas por lei, e, e sua falta, pelas disposições deste Código, estabelecendo o artigo 3.º do mesmo diploma que, se as questões emergentes dos contratos comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito ou casos análogos nela prevenidos, serão decididos pelo direito
civil.

Um contrato de seguro contém cláusulas gerais, cláusulas especiais e cláusulas particulares, integrando-se na categoria dos contratos de adesão.

Assim, na interpretação do contrato de seguro há que determinar se a cláusula a interpretar foi ou não objecto de negociação prévia entre as partes.

Em caso negativo (cláusulas predispostas pela entidade seguradora sem negociação prévia) aplicar-se-á o regime das cláusulas contratuais gerais, constante do Decreto--Lei 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decretos-Lei 249/99, de 7 de Julho (artigos 10.º e 11.º), cujo princípio geral é de que estas cláusulas são interpretadas e integradas de acordo com as regras relativas à interpretação e integração do negócio jurídico, mas sempre dentro de cada contrato singular em que se inserem.

Às cláusulas negociadas aplicam-se as regras de interpretação do negócio jurídico, previstas nos artigos 236.º e ss., CC.

Atendendo à variedade de seguros existentes, um outro factor a atender na determinação do alcance da cláusula será a natureza do contrato, designadamente a nível das exclusões.

Nessa conformidade, não será indiferente tratar-se de seguro obrigatório ou seguro facultativo.

Tratando-se de seguro obrigatório de responsabilidade civil, destinado à tutela de terceiros, a liberdade contratual (cfr. artigo 405.º CC) é fortemente restringida, pois não só as partes são obrigadas a celebrar certos contratos, como têm de o fazer dentro de parâmetros imperativamente estabelecidos (cfr. Maria Clara Lopes, Responsabilidade Civil Extracontratual, Rei dos Livros, pg. 27-8).

Diversamente, no seguro de natureza facultativa, as partes gozam de ampla liberdade negocial, podendo negociar as coberturas que entenderem, sempre, obviamente, sem prejuízo das regras da boa fé que devem nortear toda a negociação

O seguro obrigatório de responsabilidade civil, através do qual o tomador transfere para a seguradora a sua responsabilidade civil contratual ou extracontratual pelos danos causados a terceiros, é um seguro pessoal, sendo o titular da indemnização um terceiro.

Já os seguros contra danos (ou seguros de coisas) são seguros reais, em que o titular da indemnização é o próprio segurado, cujos interesses ditam a sua celebração.

Centremo-nos no caso do seguro do ramo automóvel, que é o que está em causa nos autos.

Entende a apelante que o seguro em causa é obrigatório, atento o teor da alínea i) do artigo 10.º e artigo 14.º do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho.

A alínea i) do artigo 10.º referida pela apelante passou a alínea j), por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei 265/97, de 2 de Outubro. Dispõe esta alínea que constitui obrigação do locatário efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados.

O artigo 14.º do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho, estabelece que, salvo estipulação em contrário, as despesas de transporte e respectivo seguro, montagem, instalação e reparação do bem locado, bem como as despesas necessárias para a sua devolução ao locador, incluindo as relativas aos seguros, se indispensáveis, ficam a cargo do locatário.
A circunstância de sobre o locatário impender a obrigação de segurar o bem locado não transforma o seguro em seguro obrigatório de responsabilidade civil, nos termos da dicotomia acima referida de seguro de responsabilidade civil obrigatório em contraposição a seguro facultativo.

O seguro contra risco da perda e deterioração do bem locado — que é o que está em causa — é obrigatório para o locatário no confronto com o locador, pois trata-se de norma destinada à protecção destes último, imposto no diploma que regula a locação financeira.

No confronto com a seguradora, trata-se claramente de um seguro de coisas, com coberturas facultativas, como entendeu a sentença recorrida.

A cobertura convencionada que aqui releva é a que contempla os riscos de Choque, Colisão, Capotamento, Incêndio, Raio ou Explosão. Não foi convencionada a cobertura de veículo de substituição ou privação de uso.

Defende a apelante que, estabelecendo o artigo 564.º CC que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

Essa é efectivamente a regra geral da responsabilidade civil. Porém, na cobertura danos próprios (seguro facultativo) a responsabilidade da seguradora é definida pelos termos da apólice livremente contratada, ao abrigo da liberdade contratual.

Dispõe o artigo 432.º CCom. que o seguro contra riscos pode ser feito:

1.ºSobre a totalidade conjunta de muitos objectos;
2.º Sobre a totalidade individual de cada objecto;
3.º Sobre parte de cada objecto, conjunta ou separadamente;
4.º Sobre o lucro esperado;
5.º Sobre os frutos pendentes.

Do § 4.º resulta que pode ser convencionada a cobertura de lucros cessantes, i.e, os benefícios que o segurado deixou de obter em consequência do sinistro (cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, pg. 258).

Não tendo sido expressamente convencionada a cobertura de privação de uso, não é devida qualquer indemnização a esse título. A seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada.

A problemática da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual é alheia à questão posta a este tribunal — o que se discute é se o dano da privação de uso está contemplado na apólice em causa.

Poder-se-ia equacionar a situação da privação do uso decorrente do acidente ter se prolongado mais do que o período de tempo necessário para a regularização do sinistro por parte da seguradora. Aqui a privação de uso já não radicaria no acidente, mas na violação por parte da seguradora das regras de rápida resolução do sinistro.
Aqui a privação de uso já não radica no acidente mas na inércia da seguradora, que sabe não responder pela privação de uso.

No entanto, não foi sob este prisma que a questão foi equacionada.

O recurso improcede neste segmento.

3.3. Da ressarcibilidade das despesas decorrentes da imobilização

Peticionou a apelante indemnização que se viesse a liquidar pelo parqueamento do veículo sinistrado, tendo a sentença recorrida reconhecido tal direito apenas relativamente ao período que decorreu entre 2006.02.03 (data do acidente) e 2006.03.23 (data em que a apelada teria posto à disposição da apelante o montante global de € 4.927,13, incluindo o salvado no valor de € 2.759,00.

Entendeu a sentença recorrida que a apelada cumpriu a sua obrigação com a apresentação desta proposta, tendo a mora passado a correr por conta da apelante já que não lhe seria devido mais do que aquilo que lhe foi proposto.

Afigura-se existir aqui um erro de cálculo por parte da sentença recorrida.

Vejamos:

A sentença considerou ser devida, a título de perda do veículo a quantia de € 4.861,53 (7.721,08 [43% do valor do veículo de acordo com a tabela de desvalorização aplicável] - 100,55 [valor da franquia] – 2.759,00 [valor dos salvados]), segmento que transitou em julgado.

Na óptica da sentença, o valor oferecido pela apelada teria sido € 4.927,13 ligeiramente superior ao devido, o que teria feito a apelante incorrer em mora por não ter apresentado os documentos necessários para o recebimento da quantia oferecida.

No entanto, analisada a carta através da qual foi veiculada a proposta da apelada, verificamos que o valor oferecido não foi € 4.927,13, mas € 2.168,13, pois foi deduzido o valor dos salvados (4.927,13 – 2.759,00= 2.168,13) (cfr. ponto 2.11 da matéria de facto).

Nessa conformidade, a apelada continua em mora, não havendo, pois, mora da apelante.

Nos termos do artigo 813.º CC, o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento.

A recusa da apelante em aceitar a proposta da apelada foi perfeitamente legítima, já que lhe foi proposto valor inferior ao que decorria do acordado. E nem sequer se tratava de quantia de cálculo complexo, já que bastava aplicar a tabela acordada e deduzir a franquia, e o valor dos salvados, no caso de ficarem na posse da apelante.

Mantendo-se a mora da apelada, esta seria responsável pelas despesas de parqueamento deste a data do acidente (2006.03.02) até à data deste acórdão (2012.05.15), ou seja 1.961 dias (cinco anos, quatro meses e quinze dias), o que perfaz a quantia de € 23.532,00, acrescido de IVA (1961 x 12,00 + IVA).

Trata-se de um valor significativo para parqueamento de salvados destinados à venda.

Defende a apelante que a apelada incorreu em abuso do direito, não utilizando a diligência exigível, ao parquear salvados destinados à venda numa garagem ao custo diário de € 12,00.

Relativamente a instituto do abuso do direito, remetemos para as considerações gerais do acórdão do STJ, de 2009.02.12, Paulo Sá, www.dgsi.pt.jstj, proc. 08A4090, que oferecem uma excelente síntese do instituto:

O abuso de direito (art. 334.º CC), como excepção peremptória inominada, que se traduz, segundo CASTANHEIRA NEVES (Questão de Facto e Questão de Direito, 1967, p. 528), “num problema metodológico-normativo de realização (ou de aplicação) concreta do direito…; o abuso é um modo de ser jurídico que se coloca no trajecto entre a norma e a solução concreta”.
Ocorre esta figura jurídica quando o direito legítimo — e portanto razoável, em princípio — é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim económico-social do direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do nosso comum sentimento de justiça, que repouse em bases éticas aceitáveis.
O instituto do abuso do direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial, são meios de que, os tribunais, devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que — objectivamente — e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça, prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa.
Como se afirmou no acórdão deste Tribunal, de 10 de Outubro de 1991, in BMJ, n.º 412, p. 460:
“Nos termos do artigo 334.º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762.º, n.º 2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”.
Os bons costumes entendem-se por seu turno como um “conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social”.
Finalmente, o fim social ou económico do direito, no âmbito dos direitos de crédito – o conteúdo da obrigação desdobra-se no direito à prestação e no dever de prestar – consiste precisamente na satisfação do interesse do credor mediante a realização da prestação por banda do devedor (artigo 397.º do Código Civil)...”.
O art. 334.º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando pois que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos (PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, p. 298, em anotação ao artigo em questão e ANTUNES VARELA, (Das Obrigações em Geral, 7ª edição, p. 536).
Para MANUEL DE ANDRADE (Teoria Geral das Obrigações, p. 63) ocorre tal excesso se os direitos forem “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, o que VAZ SERRA (“Abuso do direito”, BMJ n.º 85, p. 253) apelida de “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”(cf. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 7.1.93, in BMJ, n.º 423, p.539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, p.19).
O abuso do direito — “como válvula de escape”, que deve ser, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito. Deve, por isso, ser invocado com ponderação e equilíbrio, sem que constitua panaceia fácil para toda a situação de excessivo exercício; é que pode o respectivo excesso não ser manifesto e ilegítimo ou só se apresentar assim na aparência (cf. ac. do STJ, BMJ n.º 407, p. 557).
O que leva os acima citados anotadores do Código a acrescentar que para determinar os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade».

Das várias categorias de abuso de direito que a doutrina enuncia, estaremos perante uma situação de desequilíbrio no exercício, em que a vantagem auferida pelo titular é impõe um sacrifício desproporcionado à contraparte (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Almedina, I, PARTE GERAL, TOMO I, 1999, pg. 211-2).

Com efeito, afigura-se censurável a manutenção dos salvados durante cinco anos, quatro meses e quinze dias num parqueamento ao custo diário de € 12,00 (€ 360/mês). Situação tanto mais grave que os salvados valem € 2.759,00.

A boa fé imporia atitude diversa à apelada: a venda dos salvados evitaria a acumulação do valor do parqueamento.

A apelante deixou a opção relativamente à posse dos salvados à apelada, tendo inclusivamente informado qual o melhor valor obtido e quem o ofereceu, sendo certo que a apelante estava impossibilitada de vender os salvados por não dispor dos documentos (cfr. teor da carta que foi considerada nos termos do artigo 659.º, n.º 3, ex vi 713.º, n.º 2, CPC).

Tivesse a apelada vendido atempadamente os salvados, como lhe era exigível, e já não teria que suportar custos de parqueamento.

A venda dos salvados era independente da questão do cálculo do valor da indemnização: a venda dos salvados não impedia que se continuasse a discutir o valor do automóvel à data do acidente.

Nessa medida, não pode a apelada exigir à apelante qualquer quantia a título de parqueamento para além daquela que lhe foi reconhecida pela 1.ª instância, que, nessa parte transitou.

A apelação procede neste segmento.

4. Decisão

Termos em que, julgando a apelação improcedente, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 15 de Maio de 2012
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
Ondina de Oliveira Carmo Alves
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Sumário
1. Tratando-se de seguro obrigatório de responsabilidade civil, destinado à tutela de terceiros, a liberdade contratual (cfr. artigo 405.º CC) é fortemente restringida, pois não só as partes são obrigadas a celebrar certos contratos, como têm de o fazer dentro de parâmetros imperativamente estabelecidos.
2. Diversamente, no seguro de natureza facultativa, as partes gozam de ampla liberdade negocial, podendo negociar as coberturas que entenderem, sempre, obviamente, sem prejuízo das regras da boa fé que devem nortear toda a negociação.
3. A circunstância de sobre o locatário impender a obrigação de segurar o bem locado não transforma o seguro em seguro obrigatório de responsabilidade civil, nos termos da dicotomia entre seguro de responsabilidade civil obrigatório em contraposição a seguro facultativo.
4. O seguro contra risco da perda e deterioração do bem locado é obrigatório para o locatário no confronto com o locador, pois trata-se de norma destinada à protecção destes último, imposto no diploma que regula a locação financeira. No confronto com a seguradora, trata-se claramente de um seguro de coisas, com coberturas facultativas.
5. Não tendo sido expressamente convencionada a cobertura de privação de uso, não é devida qualquer indemnização a esse título. A seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada.
6. Constitui abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio do exercício, o parqueamento de salvados destinados à venda, no valor de € 2.750,00, por um período de 1.961 dias (cinco anos, quatro meses e quinze dias), à razão de € 12 diários, acrescido de IVA, o que perfaz a quantia de € 23.532,00, acrescida de IVA (1961 x 12,00 + IVA).
7. Situação tanto mais grave quanto é certo que a seguradora se dispôs a ficar com os salvados, desde que lhe fossem enviados os documentos necessários, o que não foi feito.