Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1851/07.0TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP00043893
Relator: SOARES DE OLIVEIRA
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
RESERVAS SOCIETÁRIAS
LUCROS
Nº do Documento: RP201005191851/07.0TJVNF.P1
Data do Acordão: 05/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO - LIVRO 417 FLS. 105.
Área Temática: .
Sumário: I- As reservas societárias constituem capitais próprios da sociedade; os lucros de onde são retiradas as reservas não integram directamente o património dos sócios, não sendo frutos civis das respectivas participações.
II- A deliberação que, fora do permitido pelo contrato da sociedade, estipule a não distribuição de lucros, é anulável e não nula.
III- A participação aumentada por incorporação de reservas, adquirida por direito próprio anterior, conserva esta natureza.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1851-07.0TJVNF.P1
Apelação n.º 235/10
TRP – 5ª Secção

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto (5ª Secção)

I – RELATÓRIO

1.
B………….., residente na Rua ……….., ………., ….., Vila Nova de Famalicão, intentou a presente Acção Ordinária pelo ….º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão contra
C………….., residente na Rua ………, ….., Vila Nova de Famalicão,
pedindo que este seja condenado a reconhecer que A. e R. são proprietários, sem determinação de parte ou direito, de 55.000 acções num universo de 280.000 acções representativas do capital social de D…………., SA,
tendo, para tal, alegado:
A A. e o R. estão divorciados um do outro por sentença de 24-11-1997;
contraíram casamento a 6-6-1982, sem convenção antenupcial;
a 26-6-1980, o R. adquiriu uma quota de mil contos daquela sociedade que, então, se denominava E………….., Limitada;
entre 6-11-1984 e 23-12-1992, por ocasião de aumentos do capital social, aquela quota do R. viu o seu valor nominal aumentado para 56.000.000$00;
a sociedade transformou-se em anónima, passando o R. a ser detentor de 56.000 acções no valor nominal de 1.000$00 cada;
pelo que a propriedade de 55.000 acções são bens comuns de A. e R..

2.
O R. contestou, concluindo pela improcedência da acção, tendo alegado, em síntese:
em 6-11-1984, a quota do R. foi aumentada em Esc. 1.192.726$0, por incorporação de reservas, e em Esc. 1.807.274$00 por entrada em numerário;
em 22-12-1987, a quota do R. foi aumentada em Esc. 5.865.748$0, por incorporação de reservas, e em Esc. 134.252$00 por entrada em numerário;
em 23-12-1992, a quota do R. foi aumentada para Esc. 56.000.000, por incorporação de reservas; sendo transformada em sociedade anónima passou o R. a ser detentor de 56.000 acções no valor nominal de Esc. 1.000$00 cada;
o numerário com que o R. entrou para o capital social foi resultante de doações que seus pais lhe efectuaram, por conta da sua legítima, para o beneficiar e não ao casal.

3.
A A. replicou, tendo alegado que o numerário saiu da disponibilidade do casal e não fora objecto de doação.

4.
O processo foi saneado e houve selecção dos Factos já Assentes e dos que passaram a integrar a Base Instrutória.

5.
Teve lugar a Audiência Final, que culminou com a Decisão de Facto de fls. 421-423.

6.
Foi proferida Sentença, em cuja parte dispositiva ou decisória se lê: “… Julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência absolvo o réu C……….. do pedido contra ele formulado.”

7.
A A. veio recorrer.

8.
E, nas suas Alegações, formula as seguintes CONCLUSÕES:

“I - as matérias dos quesitos 1 e 9 da base instrutória estão conexionadas, implicando respostas convergentes;
II - ao responder-se ao quesito 9 “provado”, não poderá, pura e simplesmente, responder-se ao quesito 1 “não provado”;
III - na sociedade D…………, S.A., a ausência de divisão de lucros/dividendos e outros montantes pelos sócios, referida na resposta ao quesito 9, pressupõe que tais lucros e outros montantes seriam um direito dos sócios, entre os quais o Réu C…………., casado em comunhão de adquiridos com a A..
IV - juntamente com os demais sócios, o Réu C……….. anuiu a que os lucros/dividendos e outros montantes que lhe cabiam, transitassem directamente para o capital, nele sendo incorporados, como reservas;
V - face à óbvia propriedade de parte dos lucros/dividendos, pertencentes ao Réu C…………, incorporados no capital, deveria ter-se respondido ao quesito 1 da seguinte forma: provado, com a ressalva da resposta ao quesito 9.
VI - além do mais, através do depoimento da testemunha F……….., supra transcrito, verifica-se, no final do mesmo, que a parte das reservas em numerário, resultou de doação dos respectivos montantes ao casal;
VII - a matéria “disponível” nos factos assentes e nas respostas dadas aos quesitos da base instrutória, apesar de tudo, afigura-se suficiente para encontrar a solução de direito, no que concerne à origem das reservas mencionadas no quesito 9 da base instrutória;
VIII - tais reservas não resultam de mera reavaliação da quota inicial do Réu C……….., no valor de 1.000.000$00, mas sim da valorização do activo da sociedade, por acréscimo de existências, decorrente da acção da Gerência, onde se incluía aquele Réu, conforme docs. de fls. 32, 88, 189 a 197, 234, 236 e 238 dos autos, parte integrante dos articulados;
IX - através dos citados documentos, verifica-se que, sendo o Réu também gerente, as reservas, incorporadas no capital da sociedade “D……….., S.A.”, na vigência do casamento de A. e Réu, referidas nas alíneas h) a m) dos factos assentes, só podem ter resultado do acréscimo das existências do activo, por causa do trabalho da Gerência, muito para lá do valor inicial da quota de 1.000 contos do Réu C………….;
X – isto, porque é um facto notório, do conhecimento geral, que, a não ser por acréscimo de existências, jamais se alcançariam reavaliações de mais 300% e 460% de participações sociais, em curtíssimos períodos de tempo, como anteriormente se demonstrou nas Alegações;
XI - acresce ainda que, quanto aos valores em numerário, que se incorporaram nas reservas conducentes aos aumentos de capital da dita sociedade, ficou provado que tais valores foram doados por G………… ao casal constituído por A. e Réu;
XII - assim, na conformidade das alegações precedentes, é inquestionável que todos os valores que proporcionaram a subida da participação social do Réu de 1.000 contos para 56.000 contos constituem um bem comum do casal, que o mesmo constituíra com a A., só dissolvido em 24/11/1997 (al. B) f. Assentes);
XIII - a douta sentença recorrida, ao não julgar o quesito 1 da base instrutória como provado, e julgar a presente acção improcedente, violou o disposto no art.º 653º do Código Proc. Civil, e nos art.º 1724º, a) e b) e 1733º, 2, do Cód. Civil.”

9.
É importante, neste caso concreto, atenta a respectiva fundamentação, transcrever as CONCLUSÕES apresentadas pelo Recorrido, que são:

“1. A recorrente ao pretender alterar a resposta ao quesito 1º da Base Instrutória, por forma a que seja dado como “provado”, fá-lo por mera dedução (baseada em meras hipóteses) em função da resposta dada como “provado” ao quesito 9º, atentas eventuais (não) divisões de lucros/dividendos.
2. O que sabemos a este propósito, é que o casal, então formado pela recorrente e pelo recorrido, não tinha capital/rendimentos para investir, ou seja, para acompanhar os aumentos de capital na sociedade em causa, vivendo este do seu ordenado, que nem sequer era elevado àquela data.
3. Ocorre é que a pretensão da recorrente é de resto incongruente com a resposta de “provado” dada ao ponto 2º da Base Instrutória, na medida em que se acha demonstrado que foi com o dinheiro dado pelo pai do recorrido que os aumentos de capital da sociedade ocorridos em numerário se processaram.
4. Ademais, por força do princípio da livre apreciação da prova (vide artº 665º, nº 1, CPC), uma vez fixada a matéria de facto, esta não mais poderá ser alterada, excepto se ocorrer uma das situações previstas pelo artigo 712º CPC, o que manifestamente não ocorre no caso dos autos.
5. A resposta ao quesito 1º da Base Instrutória deverá pois manter-se inalterável, como “não provado”.
6. Acha-se assente nos autos, que a quota que o recorrido C…………. subscreveu, no estado de solteiro, do valor nominal (à data) de esc. 1.000.000$00, realizado em dinheiro, em 26 de Junho de 1980, no capital social da sociedade (então designada) “E………….., Lda.”, tendo nessa data sido admitido como sócio, é um bem próprio seu – vide artº 1722º nº 1, al. a), do Cód. Civil.
7. Posteriormente, procederam-se a vários reforços do capital social da mesma sociedade – como decorre dos factos provados – já com o recorrido casado com a recorrente sob o regime de comunhão de adquiridos.
8. A propriedade de 56.000 acções ou como pretende a recorrente, de 55.000 acções, até à data da homologação do divórcio do casal, proveniente dos sucessivos aumentos de capital e da transformação em sociedade anónima da sociedade referenciada, radica na relação de conexão existente entre os reforços de capital social ocorridos e a quota inicial do recorrido, subscrita ainda no estado de solteiro, de (então) esc. 1.000.000$00
9. O que significa que a primitiva quota social de C………….. – seu bem próprio como não oferece dúvida – é que foi sucessivamente reforçada, nunca tendo saído do património próprio do ex marido da recorrente, sendo que todos os reforços ocorridos não alteraram de forma alguma a identidade da quota social enquanto bem jurídico, ainda que o valor da valorização – do reforço da quota – ultrapasse o da sua aquisição originária, pois o critério a ater é de natureza jurídica e não de raiz económica.
10. Sem embargo, não se tendo provado, nem sendo de presumir (vide, por maioria de razão, o disposto do artigo 2107º, nº 3, do Código Civil), que a doação de dinheiro pelo pai do recorrente para os aumentos de capital em numerário, haja sido efectuada ao casal, há que inferir que a mesma foi efectuada ao recorrido e que, por isso, mesmo que fosse possível dissociar a natureza jurídica da participação social originária e seus reforços, em numerário, sempre as novas acções (tal como o aumento do valor nominal da quota) que resultaram desse incremento, constituiriam um bem próprio do recorrido, por força das alíneas b) e c) do nº 1 do art. 1722º do Código Civil.
11. De igual modo, também as novas acções resultantes dos sucessivos aumentos de capital realizados por incorporação de reservas, ocorridos na constância do matrimónio, constituem bens próprios do recorrido.
12. É que as “Reservas” não são consideradas como frutos, ainda que hajam sido formadas à custa de rendimentos – vide v.g. Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, vol. III, pg. 376 – não só por razões económico-financeiras, mas também por razões estritamente jurídicas; pelo que é totalmente inaplicável in casu, atenta a pretensão da recorrente, o vertido no nº 2, do artigo 1733º do Código Civil.
13. A tudo, acresce ainda que – tal como vem demonstrado da prova produzida – a opção devidamente aprovada em assembleia geral da sociedade em referência, foi a de nunca serem feitas distribuições de resultados pelos sócios, injectando os mesmos na empresa, facto permitido pelo artigo nono do pacto social respectivo, decorrente do reforço de capital de 22.12.1987 – vide documento junto aos autos de fls. _ .
14. Muito a propósito do caso que se nos depara, afirma o Acórdão da Relação de Lisboa, de 9.10.1997 (in CJ, Ano XXI, tomo IV, pgs. 14e segs.):
“Quer dizer, sem prévia deliberação não há direito a dividendos; quando muito a deliberação que negue a distribuição poderá ser considerada inválida e substituída por outra que ordene a distribuição. Desta forma seriam protegidos os direitos das minorias sem pôr em causa a tese atrás defendida sobre a natureza do direito aos lucros.”
15. Só que a recorrente não alegou sequer que a constituição das reservas que serviram para que se efectuassem aumentos de capital, tenha sido feito à custa da violação do artigo 217º do Cód. das Soc. Comerciais, o que, em todo o caso, nunca transformaria o bem em causa de bem próprio em bem comum – vide supra citado aresto.”

Termina pedindo a confirmação da Sentença recorrida.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II –

1 - DE FACTO

A - Na Sentença foram considerados como adquiridos para os autos os seguintes Factos:

Assentes aquando do Saneador

1. A. e R. casaram entre si em 6 de Junho de 1982, sem convenção antenupcial – alínea A).
2. O referido casamento foi dissolvido, por divórcio, em 24 de Novembro de 1997, no âmbito da acção de divórcio por mútuo consentimento que, autuada sob o nº 552-A/2002, correu seus termos pelo 2º Juízo Cível do T. J. de Vila Nova de Famalicão – alínea B).
3. Como preliminar da acção de divórcio, a A. instaurou contra o réu, providência cautelar de arrolamento dos bens comuns do casal – alínea C).
4. Posteriormente, por apenso às referidas acções de divórcio e de procedimento cautelar, foi instaurado processo de inventário para partilha dos bens comuns do extinto casal – alínea D).
5. Nos autos de inventário foi proferido, em 12 de Fevereiro de 2003, despacho transitado em julgado, que remeteu as partes para os meios comuns, relativamente aos bens “sobre os quais não existe acordo” – alínea E).
6. O réu foi admitido como sócio da sociedade “E…………., Ldª”, em 26 de Junho de 1980 – alínea F).
7. Por escritura pública datada do dia 26 de Junho de 1980, por via de um aumento de capital e alteração parcial do pacto, subscreveu o réu uma quota no valor nominal (à data) de 1 000 000$00 realizado em dinheiro, no capital social da sobredita sociedade, que passou de 100 000$00 para 5 000 000$00 – alínea G).
8. Por escritura pública de 6 de Novembro de 1984, do 2º Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, foi deliberado reforçar o capital social da mesma sociedade “E……….., Ldª” de 5 000 000$00 para 20 000 000$00, através da incorporação de reservas e de entrada em numerário – alínea H).
9. O referido aumento de 15 000 000$00 foi integrado nas quotas dos sócios, na proporção da respectiva participação no capital social da sociedade, sendo que o aqui R. C…………, viu reforçada a sua quota no montante de 3 000 000$00, sendo 1 192 726$00, por incorporação de reservas de reavaliação e 1 807 274$00, com entrada em numerário – alínea I).
10. Em 22 de Dezembro de 1987, por escritura pública do 2º Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, foi deliberado aumentar o capital social da mesma sociedade “E……….., Ldª” de 20 000 000$00 para 50 000 000$00 – alínea J).
11. Sendo que do aumento de 30 000 000$00, 671 261$00 foi realizado em dinheiro e 29 328 739$00 foi realizado por incorporação de reservas – alínea K).
12. Tal aumento de 30 000 000$00 foi efectuado na proporção das quotas de cada sócio, sendo a quota do sócio e aqui réu C…………., elevada para 10 000 000$00 – alínea L).
13. Por escritura pública de 23 de Dezembro de 1992, do 2º Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, foi deliberado aumentar o capital social da sociedade “E……...……., Ldª” de 50 000 000$00 para 280 000 000$00, subscrito pelos sócios e, assim, pelo sócio C…………., ora réu, na proporção das suas quotas e todo realizado por incorporação de reservas – alínea M).
14. Sendo a partir de então a sua quota elevada para 56 000 000$00 – alínea N).
15. Nessa mesma escritura foi ainda deliberado transformar essa sociedade em sociedade anónima, com a denominação “D…………, S.A.”, passando o capital de 280 000 000$00 a ser representado por 280 000 acções, no valor nominal de 1000$00 cada uma, recebendo cada sócio o número de acções correspondentes aos valores nominais das quotas que detinham – alínea O).

Resultantes da Decisão de Facto:

16. Todos os aumentos de capital da sociedade “D…………., S.A”, ocorridos em numerário, entre o casamento e o divórcio das partes, relativamente à quota inicial do réu, ou seja, o aumento de 1 807 274$00, de 6/11/1984 e o aumento de 134 252$00, de 22/12/1987 do valor total de 1 941 526$00 ( 9 684, 29 Euros) foram realizados através de dinheiro doado pelo pai do réu G…………. – 2º da B.I..
17. Os pais do réu não compareceram ao casamento do réu com a autora – 8º da B.I..
18. As reservas que serviram para que se efectuassem aumentos de capitais, resultaram da acumulação de dividendos/lucros ou de outros montantes para dividir pelos sócios que, em vez de serem divididos, foram convertidos em aumentos de capital – 9º da B.I..

B – O Recurso e a Decisão de Facto

A Recorrente pretende a alteração da Decisão de Facto no que respeita ao primeiro ponto da Base Instrutória.
Para isso invoca os depoimentos de H………….., cunhado do Recorrido, e da mulher daquele, irmã do Recorrido, de nome F…………...
Antes de mais há que referir que aquela primeira testemunha afirmou não estar de boas relações com o Recorrido, com quem não fala há vários anos, mas estar de boas relações com a Recorrente, que foi, mas já não é, casada com o Recorrido.
Por outro lado, há que concluir, do depoimento de H…………, que o pai do Recorrido já não está à frente da empresa, e que o seu depoimento é norteado pela intenção de arredar um sócio que terá tanto capital social e poder de deliberação como ele, fazendo com que o seu depoimento não seja isento.
Há zanga e um potencial conflito, podendo, com o seu depoimento dar vantagem à Recorrente, mas também a si próprio e sua mulher.
Desta forma, o seu depoimento merece pouco crédito.
O mesmo se passando com o depoimento de F…………, do qual se conclui que também não são boas as suas relações com o Recorrido e do seu testemunho poderão resultar as mesmas vantagens já anotadas.

Porém, estes depoimentos em nada podem alterar a Decisão de Facto quanto ao 1º Ponto da Base Instrutória.

Pensamos, contudo, que atenta a ligação existente entre o 1º e o 9º Factos da Base Instrutória, a Decisão quanto àqueles, tecnicamente será mais perfeita, se for decidido o 1º pela forma seguinte: “provado, apenas, o decidido quanto ao 9º”.
Mas, tal em nada altera os Factos adquiridos para os autos.

II – 2 - DE DIREITO

De acordo com o Pedido formulado na P. I. visa esta acção determinar da natureza própria ou comum de 55.000 acções representativas do capital social de D…………, SA, de que é titular o R., ora Recorrido.
Este é o único ponto a decidir neste processo, havendo que eliminar, desde já, eventuais questões de compensação entre os patrimónios de A., ora Recorrente, e R., ora Recorrido, ex-cônjuges por virtude de divórcio entre ambos decretado.

Dos Factos adquiridos há que ter presente que, aquando do seu casamento com a Recorrente., era o Recorrido titular de uma quota representativa de Esc. 1.000.000$00 do capital social daquela sociedade que, então, tinha a forma de sociedade por quotas.

Depois do mencionado casamento, o valor nominal dessa quota cresceu, em consequência de aumentos daquele capital social. Estes foram resultantes de incorporação de reservas e de simultâneas entradas em dinheiro.

Sintetizados os termos da questão, debrucemo-nos, agora, sobre os dispositivos legais relevantes, princípios e conceitos jurídicos.

Como não foi outorgada escritura antenupcial, é o de comunhão de adquiridos o regime de bens do casamento em referência – ver artigo 1717º do CC.

Neste regime de bens vamos encontrar bens próprios e bens comuns.

O artigo 1722º, 1, do CC enumera os que são considerados próprios e o artigo 1724º do CC vem-nos dizer que fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos pelos mesmos na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei.

Por seu turno, a artigo 1725º do CC vem determinar que em caso de dúvida sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes se consideram comuns.

E o artigo 1726º, 1, do CC, para as situações de aquisição de bens, em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra com dinheiro ou bens comuns, vem determinar que aqueles revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações.

Sobre reservas sociais há que ter em conta que as mesmas podem ser legais, por resultarem de imposição legal, estatutárias quando resultam, são impostas pelo contrato de sociedade, e voluntárias ou livres, se constituídas por decisão da sociedade[1].

A constituição de reservas pode ter uma das seguintes razões: uma ideia de previdência, uma ideia de desenvolvimento da empresa e uma ideia de protecção dos accionistas[2].

A reserva legal, que é referida no artigo 295º do CSC, equivale a uma cifra contabilística que traduz um valor afecto a certo regime[3]. Esta assenta na finalidade, na ideia de previdência[4].

O artigo 296º, c), do CSC admite como um dos destinos possíveis para a reserva legal a sua incorporação no capital. Anote-se, porém, que a reserva legal é indisponível e que lhe não pode ser dado outro destino além dos especificados no citado artigo 296º[5].
Se incorporada no capital, deve iniciar-se a constituição de nova reserva legal.

O artigo 91º, 1, do CSC permite que a sociedade possa aumentar a seu capital por incorporação de reservas disponíveis para o efeito.

E a competência para deliberar esse aumento reside nos sócios – artigo 85º, 1, do CSC[6].

Ao contrário do que sucede no aumento de capital por novas entradas, o reforço do capital no aumento por incorporação de reservas faz-se através da mera alteração das regras jurídicas aplicáveis a determinadas verbas, já existentes no património da sociedade[7].

A sua finalidade é a de reforçar a capacidade patrimonial da sociedade[8].

As reservas integram a categoria de capitais próprios da sociedade[9] e são provenientes da actividade da sociedade.

Como é sabido, o direito aos lucros está previsto no artigo 217º, 1, do CSC para as sociedades por quotas, porém esta regra é supletiva, podendo ser afastada por cláusula contratual e por deliberação de ¾ dos votos correspondentes ao capital social.
A deliberação que, fora do permitido, não distribua lucros, é anulável e não nula[10]. Não foi alegada a anulabilidade das deliberações de aumento, nem que tivesse sido intentada qualquer acção para esse efeito.
E os lucros da sociedade, de onde são retiradas as reservas, não chegaram a entrar no património dos sócios, não sendo frutos[11].

Há que ter presente que o sócio não retira do aumento de capital por incorporação de reservas qualquer proveito, qualquer vantagem patrimonial directa, já que a sua participação na sociedade tem, antes e depois, o mesmo valor real, havendo uma mera aproximação do valor nominal da participação ao seu valor real[12].

Assim, o aumento de capital social, que redunda em benefício de cada sócio, é, no caso presente, resultante de facto anterior ao casamento que consiste em ser titular de fracção de capital social.
A participação de maior valor, que não de percentagem, no capital social, resultante da incorporação de reservas, foi adquirida por virtude de direito próprio anterior. O ser titular da quota inicial, adquirida antes do matrimónio, é que permitiu o passar a ser titular da quota de maior valor nominal e, posteriormente, das referidas acções.
Que são, pois, bens próprios do Recorrido – ver artigo 1722º, 1, c), do CC e artigo 1728º, 1, do CC[13].
O mesmo se diga em relação às entradas em dinheiro, já que o poder ser titular da quota de maior valor e, posteriormente, das acções, é adquirido em consequência de ser titular da quota inicial. Se não tivesse aquela quota, jamais beneficiaria dos aumentos ou lhe seria possível subscrever o respectivo aumento por entradas em dinheiro.

Atente-se que a enumeração feita no n.º 2 do artigo 1722º do CC é meramente enunciativa, reveste puro carácter exemplificativo[14].

Há, ainda, que ter em devida conta o facto de a participação social aumentada por entrada em numerário ser, no seu cômputo geral, inferior à resultante da incorporação de reservas, pelo que esta nunca faria perder a natureza de própria, ainda que essas entradas tivessem sido feitas com numerário comum. A entrada em numerário é menos valiosa do que a restante – ver artigo 1726º, 1, do CC.
Repete-se – uma questão é a natureza da coisa (própria ou comum) e outra, bem diferente, é a eventual compensação de um património a outro por ocasião da partilha.
E este segundo aspecto não está em causa neste recurso.

Não foi alegado que os aumentos por incorporação de reservas fossem resultado do trabalho do Recorrido, nomeadamente de gerente, pelo que esse facto não pode ser, agora, em sede de Alegações de Recurso, trazido à discussão – ver o que se encontra disposto quanto à sua apresentação e tempo para o fazer nos artigos 506º e 507º do CPC e quanto aos poderes do juiz no artigo 264º, 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Tendo em conta o acima escrito, é possível elaborar o seguinte SUMÁRIO:
1. As reservas societárias constituem capitais próprios da sociedade; os lucros de onde são retiradas as reservas não integram directamente o património dos sócios, não sendo frutos civis das respectivas participações.
2. A deliberação que, fora do permitido pelo contrato de sociedade, estipule a não distribuição de lucros, é anulável e não nula.
3. A participação aumentada por incorporação de reservas, adquirida por direito próprio anterior, conserva esta natureza.

Porto, 2010-05-24
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
António Manuel Mendes Coelho
Baltazar Marques Peixoto
_________________
[1] PAULO CÂMARA, Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação de António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 162 e 163. Ver MICHEL DE JUGLART e BENJAMIN IPPOLITO, Traité de Droit Commercial, II vol., 3ª ed., Editions Montchrestien, Paris, 1980, pp. 560-562.
[2] RAÚL VENTURA, Sociedades por Quotas, I, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1989, p. 353.
[3] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, citado Código das Sociedades Comerciais Anotado, p. 764.
[4] RAÚL VENTURA, loc. cit..
[5] RAÚL VENTURA, ob. e vol. cits., pp. 363 e 366.
[6] FRANCISCO MENDES CORREIA, citado Código das Sociedades Comerciais Anotado, p. 304.
[7] FRANCISCO MENDES CORREIA, loc. cit..
[8] FRANCISCO MENDES CORREIA, ob. cit., p. 305.
[9] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I, Almedina, Coimbra, 2004, p. 539.
[10] ANTONIO MENEZES CORDEIRO, citado Código das Sociedades Comerciais Anotado, p. 569, e nota (10) onde são referenciadas várias decisões das Relações e STJ.
[11] Ver AC. DA RELAÇÃO DE LISBOA, DE 9-10-1997, CJ, XXII, IV, pp. 114-116.
[12] RAÚL VENTURA, Alterações do Contrato de Sociedade, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1988, p. 266.
[13] ADRIANO MIGUEL RAMOS DE PAIVA, A Comunhão de Adquiridos, Coimbra Editora, 2008, pp. 214 e 215. Ver, ainda, JOÃO A. LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, III, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 1991, p. 373, quanto a não estarmos perante frutos em relação às reservas.
[14] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, IV, 2ª ed., Coimbra Editora, 1992, p. 423.