Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0555503
Nº Convencional: JTRP00038946
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
AMPLIAÇÃO
Nº do Documento: RP200603130555503
Data do Acordão: 03/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Se em acção declarativa destinada à constituição de uma servidão legal de passagem, os Autores pedem que a servidão de carro a constituir tenha um determinado trajecto, consistente na ampliação de um caminho de pé já existente, vindo a provar-se a necessidade de uma servidão de carro com um trajecto totalmente distinto, não pode o tribunal julgar procedente a acção, sob pena de violação do princípio do pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial de Peso da Régua, B……….. e mulher C………. intentaram acção declarativa constitutiva, com processo sumário, contra D………., pedindo que seja declarada procedente a acção e, por via dela:
a) Constituída uma servidão de passagem para veículo automóvel de apoio à actividade agrícola, com a largura suficiente para que o veículo possa transitar (a definir pelos peritos) consistindo na ampliação da actual servidão pedonal, existente sobre o prédio do Réu e a favor dos Autores, com 28 metros de extensão e 0,80 m de largura (ambas aproximadamente) sobre o terreno do Réu que é de mato; e
b) Fixada a indemnização devida ao Réu pela ampliação da servidão.
Na contestação, o Réu suscitou, a título de questão prévia, a suspensão da instância, dizendo existir outro processo pendente, no qual, o pedido consistia no reconhecimento do direito a um caminho de passagem – propriedade e servidão -, com veículos motorizados, a onerar o prédio do Réu e em beneficio do prédio dos Autores. Defendeu-se, por excepção, invocando a ilegitimidade passiva e, ainda, por impugnação.
Os Autores responderam, concluindo como na petição inicial e pedindo a condenação do Réu como litigante de má fé em multa e em indemnização.
Por decisão de fls. 33, foi declarada improcedente a invocada excepção dilatória da ilegitimidade do réu. Foi, ainda, decretada a suspensão da instância até ser proferida decisão no processo n.º …/95, do ..º Juízo, do mesmo Tribunal.
Junta certidão do Acórdão desta Relação proferido no âmbito desse processo, foi ordenado o prosseguimento dos autos.
Procedeu-se a julgamento, com gravação das provas.
Foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo o Réu do pedido. Julgou improcedente o pedido de condenação do Réu, como litigante de má fé. Condenou os Autores nas custas.
Inconformados, os Autores apelaram dessa decisão e, alegando, formularam as seguintes conclusões:
1.É insuficiente um acesso de 80cm de largura para a exploração agrícola de uma propriedade, vinha da região demarcada do Douro com cerca de 2 hectares;
2.Já que tal acesso não permite a mecanização da vinha (a sua reconversão), por forma a ser trabalhada com tractor agrícola e o acesso a carros de caixa aberta para retirarem a colheita e levarem os produtos agrícolas;
3.Estando provada a necessidade e urgência da reconversão da vinha (fomentada pelo próprio Estado), estando provado que não é possível fazê-la sem aumentar (alargar) o acesso existente ou abrir outro, como determina a prova pericial, a constituição da servidão e a procedência da acção impõem-se;
4.Não é necessário que o acesso, existente desde há pelo menos 60 anos, traduza o exercício de servidão de passagem ou não;
5.É que, aberto há pelo menos 60 anos, sem qualquer oposição do Réu ou dos seus antepassados, não pode ser fechado sob pena de estarmos perante manifesto abuso de direito do Réu ao fechá-lo;
6.O que a lei exige é que o acesso existente seja insuficiente e que se justifique a ampliação do acesso ou a criação de um novo;
7.E o pedido formulado - alargar a servidão existente, não é mais do que constituir a servidão para melhorar o acesso existente;
8.E, por não haver servidão quanto ao acesso primitivo de 80 cm de largo (e ainda o único existente) não significa que a pretensão dos Autores não possa proceder;
9.É por isso que dizemos que a douta sentença impugnada assenta num manifesto equívoco - é que faz depender a procedência ou não da acção de o acesso insuficiente existente ser exercitado como direito de servidão ou não;
10.Não pode ser, até porque se a lei permite a constituição da servidão mesmo que o prédio seja totalmente encravado, porque não haveria de permitir quando existe acesso insuficiente;
11.Seja como for a douta sentença, mesmo a prevalecer a óptica que a norteou fez incorrecta aplicação do Direito já que esqueceu que, uma vez que os AA preenchem os elementos de facto da passagem, beneficiam da presunção do animus (quem possui, quem detém o corpus, presume-se que tem o animus (Assento do STJ de 14/5/96 e art. 1268, n.º 1 do CC).
12.A sentença recorrida fez também uma aplicação formalista da decisão fáctica que apreciou, quando a justiça material impõe objectivamente a procedência da acção.
13.A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 1268, n.º 1 e 1550 do CC e a doutrina do Assento de 14/5/96.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Factos dados como provados:
1 _ Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de Santa Marta de Penaguião sob o n.º 00696/270493 o prédio rústico denominado de ………., com a área de 19.280 m2, sito na Freguesia ………., constituído por duas parcelas, sendo 1 de vinha da Região Demarcada do Douro de 2.ª classe, 3 oliveiras de l.ª classe e 5 oliveiras de 2.ª, com a área de 17.187m2 e a 23 de mato, com a área de 2.093 m2, o qual confronta do Norte com E………. e F………., do Sul com G………., do Nascente com H………. e do Poente com I………. (actualmente com o R), J………. e L………., inscrito na respectiva matriz sob o art. 336-C, encontrando-se aí registada a aquisição do dito imóvel a favor do aqui A marido, B………., casado com C………., pela inscrição 0-1, correspondente à Ap. 07/........ .
2 - Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de Santa Marta de Penaguião sob o n. 00363/070788 o prédio rústico denominado de ………., ………., com a área de 14.936 m2, sito na Freguesia ………., constituído por seis parcelas, sendo a 1.ª de pinhal, com a área de 1.281 m2, a 2.ª de mato, com a área de 4.000 m2, a 3.ª de vinha da região demarcada do Douro de 1.ª classe, com a área de 3.156 m2, a 4.ª de mato, com a área de 375 m2, a 5.ª de vinha da região demarcada do Douro de 2.ª classe, com a área de 3.687 m2 e a 6.ª de cultura arvense de sequeiro de 2.ª classe, com a área de 1.754 m2, o qual confronta do Norte com M………., do Sul com J………., N……….s e outros, do Nascente com N………. e outros e do Poente com caminho, M………., O………. e outros, inscrito na respectiva matriz sob o art. 332-C, encontrando-se aí registada a aquisição do dito imóvel a favor do aqui Réu D………., pela inscrição G-l, correspondente à Ap. 01……… .
3 - O acesso ao prédio referido em 1 faz-se desde há pelo menos 60 anos por um caminho que parte do caminho municipal que liga ………. à Estrada Naçional Régua/Vila Real, pelo prédio aludido em 2, até alcançar o prédio referido em 1°.
4 - O caminho referido em 3 desde a via pública até ao prédio mencionado em 1 faz-se pelo prédio aludido em 2, sendo servido para acesso ao prédio identificado em 1.
5 - O caminho referido em 3 tem uma extensão aproximada de 28 metros de comprimento e uma largura de 80 centímetros e revela-se por sinais visíveis e permanentes.
6 - O acesso pelo caminho aludido em 3 faz-se apenas a pé e não permite o acesso de veículo automóvel.
7° - Os AA pretendem mecanizar a vinha existente no prédio referido em 1 para trazer as uvas, levar o adubo, o sulfato, o pessoal e para granjear.
8 - No prédio referido em 1 existe vinha, de compasso tradicional.
9 - Sem acesso permanente para veículo automóvel não é possível mecanizar e granjear mecanicamente o prédio aludido em 1.
10 - O terreno onde está localizado o caminho referido em 3 e na parte do prédio aludido em 2 é inclinado e não tem actualmente qualquer aproveitamento.
11 - A área necessária à ampliação do caminho mencionado em 3, de modo a permitir o acesso ao prédio aludido em 1 de veículos automóveis, é de 280 m2.
12 – O valor do metro quadrado de terreno de mato, praticado na Região Demarcada do Douro é de € 2,50.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (arts. 684, n.º 3 e 690, n.º 1 do CPC).

Estamos em face de uma acção declarativa constitutiva, destinada à constituição de uma servidão legal de passagem, proposta ao abrigo do art. 1550 do Cód. Civil.
Dispõe este artigo que:
“1.Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2.De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio”.
A servidão legal de passagem consiste, como resulta do texto legal, no poder conferido ao proprietário do prédio encravado de exigir acesso á via pública através dos terrenos vizinhos.
O que é um prédio encravado?
No Código Civil Anotado, volume III, 2.ª ed., p. 637, de Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao citado artigo escreve-se, a dado passo:
“Resumindo, pode dizer-se que a lei considera encravado (para o efeito de lhe conceder a servidão legal de passagem) não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona (encrave relativo)”.
Caso de prédio com comunicação insuficiente com a via pública é o de haver uma passagem a pé, exigindo a exploração do prédio uma passagem de carro. (v. sobre a matéria, José Luís Santos, Servidões Prediais (Serventias), p. 33 e ss.).
É, este, o caso configurado na petição inicial.

Os Autores alegaram e provaram serem donos do prédio rústico identificado no ponto 1 e que o acesso a esse prédio se faz, há pelo menos 60 anos, por um caminho de pé, com cerca de 28 metros de comprimento e e 80 cm de largura, que parte do caminho municipal que liga ………. à Estrada Nacional Régua/Lamego, pelo prédio do Réu, identificado em 2, dos factos provados.
Alegaram e provaram que pretendem mecanizar a vinha existente no seu prédio, que é de compasso tradicional, integrado na Região Demarcada do Douro, sendo que o caminho aludido não permite o acesso de veículo automóvel.

Considerou-se, na sentença recorrida, que os Autores não conseguiram provar a alegada existência de uma servidão de passagem de pé, pelo prédio do Réu, constituída por usucapião, por, apesar de demonstrado o elemento material da posse (corpus), não se ter demonstrado o elemento psicológico (animus).
Daí, concluindo não poder ser satisfeita a pretensão dos Autores de alargamento da servidão, por forma a permitir a passagem de carro.
Pois bem. Independentemente de saber se o provaram ou não, cremos que uma coisa não depende da outra.
O que os Autores visam, essencialmente, na presente acção _ se bem interpretamos a petição inicial _, não é o reconhecimento de uma servidão de passagem de pé, constituída por usucapião, mas sim a constituição de uma servidão legal de passagem de carro, pelo percurso da passagem de pé, ampliada na medida do necessário para esse fim.
Ora, para exercerem o direito potestativo de constituição, por sentença, de uma servidão de passagem de carro sobre o prédio do Réu, a favor do seu prédio, não carecem os Autores de, previamente, demonstrar a existência da falada servidão de passagem de pé, constituída por usucapião.

Dito isto.
Os Autores pediram a constituição de uma servidão de carro, com a largura suficiente para o trânsito de veículos automóveis (a definir pericialmente), consistente na “ampliação da actual servidão pedonal, existente sobre o prédio do Réu e a favor do prédio dos Autores, com 28 metros de extensão e 0,80 m de largura (ambas aproximadamente) sobre o terreno do Réu que é de mato”.
Provaram a existência do alegado caminho de pé, com 28 metros de comprimento e 0,80 m de largura (aproximadamente), pelo prédio do Réu, pelo qual se faz o acesso desde a via pública até ao prédio dos Autores.
Todavia, relativamente à servidão de carro a constituir, constando, embora, do ponto n.º 12 dos factos provados que a área necessária à ampliação do dito caminho, de modo a permitir o acesso ao prédio dos Autores por veículos automóveis, é de 280 m2, a verdade é que, conforme resulta do esboço pericial de fls. 148, o trajecto da mesma servidão (que teria 70 m de comprimento e 4 m de largura), não coincide, sequer aproximadamente, com o do alegado caminho de pé.
Por outras palavras: tendo os Autores pedido que o lugar da servidão legal de passagem a constituir correspondesse a uma “ampliação” do caminho de pé que indicaram, o que se apurou foi a necessidade _ para a mecanização da vinha existente no seu prédio _, de uma passagem de carro pelo prédio do Réu com um trajecto totalmente distinto do indicado.
O pedido não pode, por isso, proceder, sob pena de clara violação do princípio do pedido estabelecido no n.º 1 do art. 661 do CPC ((“A sentença não pode condenar em (…) ou em objecto diverso do que se pedir”)).

Em suma:
Se em acção declarativa destinada à constituição de uma servidão legal de passagem, os Autores pedem que a servidão de carro a constituir tenha um determinado trajecto, consistente na ampliação de um caminho de pé já existente, vindo a provar-se a necessidade de uma servidão de carro com um trajecto totalmente distinto, não pode o tribunal julgar procedente a acção, sob pena de violação do princípio do pedido.

Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos Autores.
Porto, 13 de Março de 2006
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues