Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
50/06.3TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
DENÚNCIA PARA HABITAÇÃO DO SENHORIO
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP2014012150/06.3TBMTS.P1
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No domínio do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo D.L. nº 321-B/90, de 15/10, a denúncia para habitação do senhorio, além do mais, não dispensa a prova de não ter, na respectiva localidade, casa própria que satisfaça as suas necessidades de habitação ou casa arrendada, há mais de um ano, em idênticas circunstâncias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 50/06.3TBMTS.P1
Matosinhos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Apelante: B….
Apelada: C….

I- A tramitação na 1ª instância.
1. C… instaurou contra B…, acção declarativa com processo sumário.
Em síntese, alegou que:
Em 23 de Setembro de 1969, o seu falecido marido deu de arrendamento, à mãe da Ré, o rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua …, nºs .. a .., em Matosinhos, hoje propriedade da A.
No início dos anos 90, a Ré adquiriu a posição de arrendatária passando a pagar a renda, a qual ascende hoje a € 151,36[1].
O arrendado destina-se a salão de cabeleireiro de senhoras e a Ré desde Julho de 2003 tem vindo a utilizar o locado como se de um espaço para lavagem, limpeza, secagem e tratamento de toalhas e capas (artigos destinados a cabeleireiros) se tratasse, dando-lhe um fim diverso para o qual foi arrendado.
Nele instalou uma máquina de lavar roupa de carácter industrial ou semi-industrial que sistemática e reiteradamente provoca poluição sonora no locado e se reflecte por todo o interior da cave do prédio, habitada pela A.
Cave esta que não possui condições de habitabilidade para a A., com 83 anos.
O locado é aquele que se encontra arrendado há menos tempo no único prédio propriedade da A., em Portugal e é o único que pode satisfazer as necessidades de habitação da A.
Conclui pedindo a condenação da Ré a despejar o prédio, como consequência da resolução do contrato de arrendamento por alteração do respectivo destino e subsidiariamente a despejá-lo no dia 23 de Setembro de 2006, por denuncia do arrendamento para este termo, por necessitar a A. do locado para sua habitação, bem como a condenação da Ré no pagamento de uma quantia nunca inferior a €100,00 por cada dia que passe após a verificação dos efeitos da requerida denúncia sem que proceda à entrega do locado, a título de sanção pecuniária compulsória.
Contestou a Ré por impugnação e por excepção; por excepção defendeu que o exercício do direito à denuncia do contrato se mostra caducado por durar há mais de vinte anos à data da entrada em vigor do D.L. nº 321-B/90, de 15/10 [o contrato foi celebrado em 1969 entre o marido da A. e a própria Ré, então menor, intervindo a mãe da A. em representação desta] e, por impugnação, defendeu que sempre exerceu, como agora exerce, a actividade de cabeleireira e sempre usou, como agora usa, uma máquina doméstica de lavar roupa para lavagem de toalhas e penteadores, não se havendo alterado o fim do contrato e ainda que o locado tivesse melhores condições de habitabilidade para a A. e não é o caso porque a A. tem um inquilino mais recente do que a Ré, no primeiro andar do prédio, que satisfaz igualmente as necessidades de habitação da A.
Conclui pela improcedência da acção e pela condenação da A. como litigante de má fé [deduz pretensão cuja falta de fundamento não ignora, altera a verdade dos factos e omite outros relevantes para a decisão da causa].
Respondeu a A., à matéria da excepção, reafirmando o alegado na p.i. e refutando a sua alegada litigância de má fé.

2. Foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância e se consignou inexistirem excepções a conhecer e dispensada a elaboração da base instrutória, por se haver considerado não o justificar a simplicidade da matéria de facto controvertida.

3. Em articulado superveniente veio a A. alegar que a R. violou de forma reiterada e grave as regras ambientais referentes ao ruído produzido no locado, razão pela qual foi sancionada pela CM, ampliando o pedido por forma a que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes por violação reiterada e grave de regras de sossego, com recurso ao disposto no art. 1083.º do CC, na redacção que entretanto lhe foi introduzida pelo NRAU.
A Ré, na resposta, impugnou os factos alegados pela A.
Foram admitidos o articulado superveniente e a ampliação do pedido.

4. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e em seguida foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
“A) Julga-se a presente ação intentada por C… contra B… parcialmente procedente:
DECLARANDO-SE a DENÚNCIA do arrendamento referente ao R/C do prédio urbano sito na Rua …, com os números de polícia .. a .., em Matosinhos, encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o art. 4.710, por necessidade da A. no locado para habitação própria com efeitos a partir de 23/09/2006, e,
CONDENANDO-SE a R. a ENTREGAR o R/C do citado prédio à A. livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação.
Improcedendo em tudo o mais peticionado.
B) Indefere-se o pedido de condenação da A. como litigante de má-fé.”

II – O recurso.
1. Argumentos das partes.
É desta sentença que a Ré recorre, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1ª O presente recurso vem interposto da, aliás respeitável, sentença de folhas na parte em que julgou a ação procedente, declarando a denúncia, com efeitos a partir de 23 de setembro de 2006, do arrendamento referente ao rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua …, com os números de polícia .. a .., em Matosinhos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4710º, pelo facto de a Autora-Apelada [alegadamente] necessitar do locado para habilitação própria, e condenando a Ré-Apelante a entregar o sobredito rés-do-chão à Autora- Apelada, livre de pessoas e de bens e em bom estado de conservação.
2ª A referida ação funda-se, de direito, nos artigos 69°, nº 1, alínea a), e 71°, Regime do Arrendamento Urbano [doravante designado por RAU] - o aplicável.
3ª Na alínea b) do respetivo nº 1, o artigo 71° do RAU faz depender o direito de denúncia para habitação do senhorio e em relação a este da verificação do seguinte requisito: "Não ter, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do País casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1° grau".
4ª Por força do disposto no artigo 342°, nº 1, do Código Civil, cabia à Autora-Apelada fazer a prova do requisito do direito de denúncia para habitação do senhorio enunciado na conclusão precedente.
5ª Ora, a Autora-Apelada não alegou - e, consequentemente, não provou que não tem, há mais de um ano [à data da propositura da ação], em Matosinhos [localidade onde se situa o despejando], casa própria ou arrendada que satisfaça as suas [dela, Autora-Apelada] necessidades de habitação.
6ª Uma vez que a Autora-Apelada não provou que não tem, há mais de um ano, em Matosinhos, casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação, a ação tinha - e tem agora, no presente recurso -, necessariamente, de improceder.
7ª Tendo-a julgado procedente, a sentença recorrida violou o disposto no artigo71°,nº1,alínea b), do RAU, e o artigo 342°, nº 1, do Código Civil.
Sem prescindir:
8ª É essencial para que o senhorio possa efetivar o direito de denúncia nos casos previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 69° do RAU, alegar e demonstrar a necessidade que tem do prédio.
9ª Este requisito - porque de um verdadeiro requisito se trata, como há muito é entendido na jurisprudência e na doutrina e a própria sentença recorrida o reconhece - .cumula-se com os indicados nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 71 ° do RAU.
10ª A necessidade tem de ser real, séria, atual ou futura - esta última não eventual mas iminente - e traduzida em razões ponderosas.
11ª Ficou provado que a Autora-Apelada padece, entre outras maleitas próprias da idade, de hipertensão, de osteoartrose e de insuficiência vascular, e que, fruto da doença de que sofre, encontra-se acamada há pelo menos um ano, sendo o seu estado irreversível.
12ª Mas se assim é - e é, infelizmente para a Autora-Apelada e para as pessoas que cuidam dela -, a Autora tanto pode estar acamada no local onde presentemente habita [na parte da cave, semienterrada, do prédio sito na Rua …, nº .. a .., em Matosinhos, de acordo com o número 17, a folhas 3, da sentença recorrida] como no rés-do-chão que reclama.
13ª Tal e tanto vale por dizer que a Autora-Apelada não tem uma necessidade séria, real, atual e traduzida em razões ponderosas, daquele rés-do-chão.
14ª Salvo o devido respeito, ao apreciar o requisito da necessidade o Tribunal a quo esqueceu-se completamente dos três factos referidos na conclusão 11ª [e que deu como provados e registou nos números 20, 79 e 83 de folhas 3 e 5 da sentença recorrida].
15ª Estando uma pessoa definitivamente acamada e sendo a sua doença irreversível – como ficou demonstrado no caso dos autos ser a situação da Autora-Apelada – não pode dizer-se que objetivamente e segundo a experiência comum isso determina que a generalidade das pessoas que se encontrasse naquele estado precisaria do arrendado para sua habitação.
16ª Isto porque, como já dito, tanto vale estar acamado num quarto como noutro quando, certo como é, na situação dos autos, que em relação àquele onde a Autora-Apelada está nada foi apontado de onde possa concluir-se que não tem condições para a Autora-Apelada nele assim permanecer.
17ª Não importa que o rés-do-chão possa, porventura, proporcionar melhores condições de mobilidade à Autora-Apelada uma vez que, fruto da doença de que padece – maleitas próprias da idade, hipertensão, osteoartrose e insuficiência vascular se encontra acamada há pelo menos um ano, sendo o seu estado irreversível.
18ª No caso dos autos não se verifica o requisito da necessidade revestido das características com que a doutrina e a jurisprudência e a própria sentença recorrida o exornam.
19ª Não tendo a Autora-Apelada provado o mencionado requisito da necessidade, a ação tinha - e tem, agora, em sede do presente recurso necessariamente de ter improcedido.
20ª Tendo-a julgado procedente, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 69°, nº 1, alínea a), do RAU, e 342°, nº 1, do Código Civil.
Nestes termos, nos mais, de direito, aplicáveis, e, sobretudo, nos que serão objeto do douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento à apelação e revogada a sentença recorrida, com as legais consequências.”[2]
Respondeu a A. e requereu a ampliação do objecto do recurso, concluindo assim:
“1) – Na douta sentença recorrida não ocorre qualquer dos vícios que a apelante invoca ao longo das suas alegações;
2) – Deve assim ser mantida a mui douta sentença de fls. … confirmando-se, consequentemente, os respectivos efeitos – declara-se a denúncia do arrendamento, com efeitos a partir de 23 de setembro de 2006, e condenar-se a recorrente a entregar o locado livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação;
3) – Contrariamente ao que alega a recorrente, a recorrida não só cuidou de alegar ser apenas proprietária do prédio em questão – objecto de minuciosa inspecção por parte do tribunal recorrido, mas de igual modo cuidou de alegar ser o locado que a recorrente ocupa o único que poderá satisfazer as respectivas necessidades de habitação, seja porque ambas as meias caves que se encontram semi enterradas daquele imóvel não possuindo os mesmos quaisquer condições de habitabilidade (dado tratarem-se de caves adaptadas a habitação), seja ainda porque são ambas idênticas – como aliás se conclui na douta decisão em crise;
4) – Da factualidade dada como provada pelo tribunal recorrido – mormente a descrição de acesso às caves semi enterradas no prédio em questão (veja-se, a título de exemplo, os factos provados em números 37 e 91), bem como da própria planta do imóvel junta a fls. …, resulta que sendo ambos aqueles espaços adaptados a habitação, o rés-do-chão arrendado à recorrente é o único que satisfaz as necessidades habitacionais da recorrida (veja-se, a título de exemplo, os factos provados em números 87, 89, 92, 93 e 94), o que tudo equivale a dizer que demonstrado ficou que a recorrida, cujo único prédio de que é proprietária é o dos autos, não possui qualquer arrendado (anterior ou posterior ao do contrato dos autos) que satisfaça as respectivas necessidades;
5) - Contrariamente ao que alega a recorrente, da factualidade dada como provada pelo tribunal recorrido resulta que a recorrida tem absoluta necessidade do locado sub judice, o que se mostra imprescindível para que tenha uma vida condigna numa habitação que lhe permita ter qualidade de vida atento o respectivo estado de saúde;
- Da ampliação do objecto do recurso (vide artº 684º-a do cód. de proc. civil):
6) - Sem prejuízo de tudo o que supra se alegou, pretende a recorrida que este venerando tribunal superior conheça, ainda que a título subsidiário, das seguintes questões:
- validade do contrato de arrendamento;
- resolução do contrato por alteração do respectivo destino;
7) - Deve este venerando tribunal da Relação do Porto conhecer e declarar a nulidade do contrato de arrendamento dos autos por absoluta falta de forma, porquanto dos factos provados resulta que o contrato celebrado aos 23 de setembro de 1969 foi verbal (devendo tê-lo sido por escritura pública);
8) – Caso não proceda a arguida nulidade, sempre deverá este venerando tribunal da relação do porto conhecer e declarar a resolução do contrato de arrendamento dos autos por a recorrente, atenta a matéria de facto provada, usar o arrendado para fim ou ramo diverso daquele a que se destinava quando do início do mesmo - cabeleireiro.
Nestes termos, e com o mui douto suprimento de vossas excelências, venerandos desembargadores, deve ser julgado totalmente improcedente o presente recurso de apelação, e, consequentemente, mantido in totum a douta sentença proferida a fls. … pela exma. sra. dra. juíza a quo, ou, caso assim se não entenda, deve, em ampliação do objecto do recurso, ser conhecidas e declaradas os arguidos vícios, com todas as devidas e legais consequências, assim se fazendo inteira j u s t i ç a !”[3]

2. Dos agravos.
Para prova da alegada alteração do fim do contrato a A. requereu a notificação da Ré para juntar aos autos cópia das declarações de rendimentos do estabelecimento comercial relativas aos anos de 2003, 2004 e 2005[4].
Este requerimento de prova foi indeferido[5].
A A. recorreu deste despacho, o recurso foi admitido como de agravo, a subir com o recurso que interposto após ele houvesse de subir imediatamente[6], após as alegações o despacho foi mantido[7] e subiu com a apelação.
Em 11/5/2009, foi proferido o seguinte despacho:
“PE – REFª 1515494 de 18/03/2009 e refª 1933453 de 07/04/2009 e fls. 585 e 588 p.p. – Uma vez que foi comprovadamente repetido o cumprimento do artº 229º A do Código de Processo Civil nada mais há a ordenar, quanto a notificações.”
A Ré recorreu deste despacho, o recurso foi admitido como de agravo, a subir com o recurso que interposto após ele houvesse de subir imediatamente[8], após as alegações o despacho foi mantido[9] e veio a subir com a apelação.
Não havendo a Ré, nas suas alegações, especificado manter interesse no agravo, nem havendo declarado manter tal interesse, não obstante notificada para o efeito, com a cominação a que se reporta o artº 748º, nº2, 2ª parte, do CPC, na versão aplicável, entende-se que desistiu do agravo e, como tal, dele não se tomará conhecimento.
Do agravo interposto pela A. tomar-se-à conhecimento caso a sentença não seja confirmada (artº 710º, nº1, do CPC) e, então, sendo o caso, importará considerar as seguintes conclusões:
“A) - Em processo civil a regra geral é a da prossecução do princípio da descoberta da verdade material, o qual, na fase da instrução, encontra consagração na produção de prova para demonstração da realidade dos factos vertidos ao longo do processo com efectivo e relevante interesse para a boa e justa composição do litigio, porquanto, aquele que invoca um direito tem sobre si o ónus probandi dos factos constitutivos do mesmo;
B) - No que in casu interessa, o tribunal recorrido indeferiu a produção de prova documental requerida pela recorrente, consubstanciada na notificação da recorrida para junção de certa e determinada documentação, para prova de certa e determinada factualidade vertida na petição inicial, com o fundamento de tal prova não ser adequada a provar o pretendido;
C) - Ora, e nos termos do artº 513° do cód. De proc. Civil, a instrução tem por objecto a demonstração ou não dos factos relevantes para o exame e decisão da causa, pelo que, constituindo a produção da prova por documentos um dos respectivos corolários, encontra-se consagrado entre nós o poder-dever do tribunal em determinar a respectiva obtenção;
D) - Pelo que, e contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, é certo que tal meio de prova tinha como objecto a averiguação dos rendimentos da recorrida em função da respectiva facturação no estabelecimento comercial em questão, sendo de igual modo certo que, em opinião da recorrente, com a análise de tal documentação, poder-se-ia averiguar do volume de facturação da arrendatária enquanto cabeleireira, e comparar-se este com a quantidade de capas que são postas a secar no estabelecimento (segundo a agravante desproporcionada em relação à quantidade de clientes do cabeleireiro);
E) – Ou seja, e contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, a notificação da recorrida para proceder à junção de documentos que se encontram na respectiva posse mostra-se imprescindível para prova de factualidade susceptível de configurar resolução contratual por alteração do destino do locado - vg. Alínea b) do n°1 do artº 64° do r.a.u.;
F) - Pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido violou e/ou interpretou erradamente, entre outros, o disposto nos artºs. 2°, 513°, 515°, 528° e 535º, todos do cód. De proc. Civil, e 3410 e 342°, ambos do código civil.
Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, deve reparar-se o agravo sub judice, e, em consequência, revogar-se o douto despacho proferido pelo tribunal a quo a fls. 155 (3a parte), o qual deverá ser substituído por outro que, por pertinente, legal e tempestivamente admissível, ordene seja produzida a prova documental requerida na alínea a) do ponto iii do requerimento de meios de prova de fls .... e segts., seguindo-se os ulteriores termos processuais.
Decidindo nesta conformidade, mui venerandos desembargadores, será feita a costumada e sã justiça!”

3. Objecto dos recursos.
Considerando as conclusões dos recursos, e sem prejuízo das considerações supra (ponto 2) , são as seguintes as questões que importa decidir:
- na apelação, se ocorrem os pressupostos da denúncia do contrato;
- na ampliação do âmbito do recurso, se o contrato é nulo por falta de forma e se ocorre fundamento de resolução do contrato por alteração do respectivo destino.
- no agravo, se deve ser ordenada a produção da prova documental que o despacho agravado indeferiu.

3. Fundamentação.
3.1. Os factos.
Sem impugnação, são os seguintes os factos julgados provados:
1. O prédio urbano sito na Rua …, com os números de polícia .. a .., em Matosinhos, encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o art. 4.710.
2. Pela Ap. 86/171100, foi inscrita na CRP de Matosinhos a aquisição a favor da Autora do prédio identificado em 1., por sucessão.
3. A Autora foi casada com D…, sendo que o casamento foi dissolvido por óbito do cônjuge marido, falecido em 18 de Abril de 1988.
4. A Autora, quer por si, quer por antecessores, desde há mais de 5, 10 e 20 anos, vem recebendo as rendas do prédio identificado em 1.
5. O que fez e faz sempre à vista de toda a gente, nomeadamente vizinhos e arrendatários.
6. Sem oposição de quem quer que seja.
7. Agindo na convicção de estar a exercer um direito próprio, na ignorância de lesão de direitos de outrem.
8. De forma contínua.
9. Mediante acordo verbal celebrado aos 23 de Setembro de 1969, o falecido marido da Autora, D…, cedeu à Ré o gozo temporário do rés do chão do prédio identificado em 1., pelo período de 6 meses. 10. Para que a Ré pudesse aí instalar um salão de cabeleireiro de senhoras.
11. O falecido marido da Autora e a Ré acordaram no pagamento da quantia mensal de 2.000$00.
12. Aos 3 de Julho de 1970, a Câmara Municipal emitiu em nome de E… alvará de licença, classe …, “Indústrias, Insalubres, Incómodas, Perigosas ou Tóxicas”, junto aos autos a fls. 45 a 47, do qual consta, “(…) ficando o concessionário obrigado a atender, na exploração, a todas as condições de higiene e segurança legais e ainda as especiais, constantes do verso (…)”.
13. Do verso do alvará consta que ”Não sera permitida a lavagem ou engomadoria de roupas nos recintos dos estabelecimentos, nem a existência de aparelhos destinados aquele fim” (condição 5ª).
14. O estabelecimento comercial está a ser explorado pela Ré, filha de E….
15. A Ré procedeu junto da Câmara Municipal ao averbamento do alvará em data posterior a 18 de Outubro de 2000.
16. A quantia mensal devida pela cedência do rés do chão do imóvel, com referência à data da petição inicial, ascendia ao montante de pelo menos 151,36 Euros.
17. A Autora, presentemente, habita parte da cave semi-enterrada do imóvel identificado em 1., com entrada pelo número de polícia ...
18. O andar imediatamente superior àquele que a Autora habita é ocupado pelo salão de cabeleireiro explorado pela Ré.
19. A Autora está na faixa etária dos 80 anos, é reformada e viúva.
20. Padece a Autora, de entre outras maleitas próprias da idade, de hipertensão, osteoartrose e insuficiência vascular.
21. Padece a Autora de uma situação clínica que limita a sua capacidade de se deslocar sozinha, necessitando para o efeito do recurso à ajuda de terceiros.
22. A Autora, fruto das maleitas de que padece bem como do decurso dos anos, irá provavelmente perder quase totalmente (ou mesmo totalmente) a capacidade de movimentação autónoma.
23. A Ré, no rés do chão do imóvel, procede à lavagem e secagem de toalhas e capas destinadas a cabeleireiros.
24. A máquina de lavar roupa utilizada pela Ré provoca ruído, o qual, atentas as condições de isolamento acústico do prédio, é audível na cave onde habita a Autora.
25. O rés do chão constitui um prédio antigo.
26. A meia cave onde habita a Autora é composta por dois quartos, uma sala, cozinha e uma casa de banho.
27. A casa de banho foi construída em momento posterior ao da construção do prédio.
28. Para aceder ao interior da casa de banho é necessário percorrer 3 degraus com a altura de, respectivamente, 23 cm, 24 cm e 13 cm de altura, o que dificulta a mobilidade da Autora.
29. A Autora foi submetida a artroplastia da anca esquerda, sendo que, mesmo após essa intervenção, demonstrou limitação funcional marcada da articulação coxofemoral esquerda.
30. O rés do chão ocupado pela Ré constitui uma casa de habitação adaptada a salão de cabeleireiro, com 3 quartos.
31. O rés do chão tem área superior à meia cave e tem uma casa de banho.
32. O rés do chão é arejado.
33. O rés do chão tem como acesso a respetiva parte frontal, o qual não servirá os intentos da Autora, dada a existência de um lanço de escadas composto por 7 degraus.
34. O rés do chão tem uma entrada nas traseiras, sendo que para aceder à mesma é necessário percorrer um lanço de escadas composto por 6 degraus.
35. O primeiro andar do prédio tem um lanço de escadas que a Autora não consegue subir.
36. Atento o estado de saúde da Autora e a respetiva idade, é provável que a mesma venha a ficar privada de qualquer mobilidade.
37. A meia cave, contrariamente ao rés do chão, não possui condições de acesso para uma maca de uma ambulância.
38. A Ré nasceu a 5 de Agosto de 1950.
39. Dada a menoridade da Ré, com o acordo de D…, o acordo a que se alude em 9. figurou, formalmente, em nome de E…, mãe da Ré.
40. A mãe da Ré não exercia, nem nunca exerceu, a atividade de cabeleireira, sendo dona de casa.
41. A Ré já então era cabeleireira.
42. D… sabia o que se refere em 40. e 41.
43. O salão de cabeleireiro foi instalado no rés do chão para a Ré exercer nele, por conta própria e no seu interesse, a actividade de cabeleireira.
44. A Ré sempre exerceu no rés do chão, desde então até esta data a actividade de cabeleireira.
45. Sempre auferiu os proventos dela.
46. Sempre suportou as inerentes despesas.
47. A Ré procedeu ao pagamento de rendas.
48. A Ré sempre exerceu no rés do chão a actividade de cabeleireira da mesma forma, no que concerne a aparelhos e sua utilização.
49. Os aparelhos utilizados no rés do chão são próprios de um estabelecimento de cabeleireiro e indispensáveis ao seu funcionamento.
50. Para lavar as toalhas e os penteadores que usa no estabelecimento de cabeleireira, a Ré possui uma máquina doméstica de lavar roupa.
51. A máquina de lavar roupa está instalada na casa de banho, onde permanece e é utilizada há 33 anos, com referência à data da contestação.
52. A máquina faz o ruído normal que lhe é inerente.
53. A máquina é utilizada apenas para lavar toalhas e penteadores.
54. A Autora mudou-se para a meia cave onde habita há pelo menos cinco anos.
55. Anteriormente a Autora habitava o primeiro andar do prédio.
56. Para aceder, pelas traseiras, ao rés do chão ocupado pela Ré, é necessário percorrer primeiro, desde a rua, um corredor com 15,10 metros, virar à esquerda, transpondo um portão, após o qual se percorrem 1,25 metros até se chegar junto de um lanço de escadas composto por 6 degraus. Após as escadas é necessário percorrer uma extensão de 1,38 metros até à porta de acesso da cozinha do rés do chão.
57. A outra meia cave do prédio foi arrendada em data posterior à que se refere em 9.
58. O estabelecimento da Ré encontra-se inserido numa zona onde existem casas de habitação e unidades de comércio e serviços.
59. O funcionamento do estabelecimento da Ré origina um acréscimo de 2,2dB ao ruído ambiente, ficando aquém dos 6,0dB.
60. A máquina de lavar roupa existente no rés do chão é doméstica, da marca “Hoover”, modelo ….
61. A Ré adquiriu-a em 14 de Setembro de 2005.
62. As que possuiu antes eram em tudo semelhantes à atual.
63. A máquina de lavar roupa é utilizada pela Ré exclusivamente para lavar as toalhas e os penteadores que usa no seu estabelecimento de cabeleireiro.
64. A utilização da máquina de lavar não é diária.
65. Quando a Ré utiliza a máquina de lavar roupa, os programas habitualmente utilizados duram entre trinta a quarenta minutos.
66. A Ré não utiliza a máquina mais do que uma vez por dia, naqueles em que a máquina é utilizada.
67. Diante do prédio onde a Autora habita existe um armazém de produtos alimentares.
68. Diante do prédio existe uma sala de estudo para crianças e jovens.
69. Em frente ao prédio existe um estabelecimento de instrumentos musicais.
70. O estabelecimento de cabeleireira está aberto e funciona de terça a sábado.
71. Funciona das 09.00 horas às 12.00 horas e das 15.00 horas às 19.00 horas.
72. O movimento que tem não excede, em média e por dia, seis clientes.
73. A parte principal e mais utilizada do rés do chão onde o estabelecimento da Ré está instalado não fica por cima da habitação da Autora.
74. A placa de piso do rés-do-chão que separa este da meia cave em cujas traseiras fica a habitação da Autora, é em betão armado.
75. Essa placa, aparentemente, mostra-se executada, em termos de materiais e de espessura, de acordo com o respectivo projecto. 76. O projecto foi aprovado pela Câmara Municipal ….
77. O piso do rés-do-chão está revestido com tacos de madeira colocados sobre a placa de betão.
78. Sobre os tacos foram colocadas duas camadas de corticite, excepto num compartimento destinado a arrumos.
79. Fruto da doença de que padece, a Autora encontra-se acamada há pelo menos 1 ano.
80. A Autora não consegue locomover-se sozinha.
81. É a neta da Autora que lhe muda a fralda.
82. A Autora necessita da ajuda de terceiros para a realização de actividades diárias dependentes de deslocações.
83. O estado da Autora é irreversível.
84. A Autora padece de problemas ósseos ao nível dos membros inferiores.
85. Os problemas ósseos condicionam a mobilidade da Autora principalmente ao nível da locomoção (membros inferiores).
86. Presentemente, com a ajuda de terceiros, a Autora consegue sair da cama para fazer as respectivas refeições sentada numa cadeira junto à cama.
87. A Autora não consegue deslocar-se sozinha à cozinha e à casa de banho da sua habitação e está impedida de aí circular em cadeira de rodas devido aos desnível existente no pavimento da cozinha e aos degraus de acesso à casa de banho.
88. A Ré usa fraldas, pelo menos durante a noite.
89. A Autora, com esforço, consegue deslocar-se, em plano, sozinha, numa cadeira de rodas.
90. A habitação da Autora não permite que a Autora possa circular na cozinha e aceder à casa de banho numa cadeira de rodas.
91. A configuração do acesso ao interior da habitação da Autora – dois lanços de escada em curva, com alturas entre os 14 cm e os 20 cm, não permite a colocação de cadeira elevatória nas respectivas escadas.
92. O rés do chão permite, na respectiva parte frontal e traseira, a colocação de uma cadeira elevatória.
93. O rés do chão, nas respectivas traseiras, permite a construção de uma rampa de acesso à cozinha, no local onde actualmente se encontram os degraus.
94. A rampa ficaria com uma inclinação que permitiria à Autora, com a ajuda de terceiros, entrar e sair da habitação numa cadeira de rodas.
95. A Autora vem sofrendo de problemas respiratórios.

3.2. O direito.
3.2.1.- A denuncia do contrato.
A decisão recorrida julgou improcedente as causas de resolução do contrato de arrendamento (uso do prédio para fim diverso e violação reiterada e grave de regras de sossego e boa vizinhança) e procedente a denuncia para a habitação da senhoria terminando por condenar a Ré a proceder à entrega do locado.
Esta insurge-se contra esta decisão com dois argumentos:
- a A. não provou que não tem, há mais de um ano, em Matosinhos casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação;
- a A. não tem uma necessidade séria, real, actual e ponderosa do rés-do-chão do locado porque está acamada há pelo menos um ano, estado este que é irreversível e, por ser assim, tanto pode estar acamada no local onde presentemente habita [na parte da cave, semienterrada … de acordo … com a sentença recorrida] como no rés-do-chão que reclama.

3.2.2. – A prova de não ter, há mais de um ano, em Matosinhos casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação da A.
A presente acção foi instaurada[10] antes da entrada em vigor da Lei nº 6/2006 de 27/2 e, como tal, é-lhe aplicável, quanto à denuncia, o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo D.L. nº 321-B/90, de 15/10; assim decidiu a sentença recorrida, aliás, secundada, nesta acepção, pelas partes.
Sob a epígrafe denúncia para habitação, dispõe o artº 71º do RAU:
“1- O direito denúncia para habitação do senhorio depende, em relação a ele, da verificação dos seguintes requisitos:
a) Ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos, ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão;
b) Não ter, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do País casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1° grau.
2 - O senhorio que tiver diversos prédios arrendados só pode denunciar o contrato relativamente àquele que, satisfazendo às necessidades de habitação própria e da família, esteja arrendado há menos tempo.”
A decisão recorrida considerou verificados os requisitos constantes na alínea a) e no nº2 e dispensável o requisito previsto na alínea b), escrevendo a propósito o seguinte: “A necessidade está assim justificada. Finalmente, está demonstrada a titularidade do prédio em causa pelo tempo imposto no art. 71.º, n.º1 a) do RAU, não cabendo no caso o afirmado na al. b), nem se demonstrando que o prédio que a A. tem arrendado há mais tempo suprisse as necessidades de condições de habitabilidade que a A. tem no r/c onde está instalado o estabelecimento da R. pois que se trata, precisamente, da outra meia cave do prédio.”
Apesar de considerar que não cabe no caso o afirmado na al. b) a decisão recorrida não explica as razões desta sua conclusão e a Ré não economiza na adjectivação da solução - disparate, absurdo e monstruosidade jurídica. Têm-se discutido se a exigência do prazo – duração do ano – respeita apenas à casa arrendada ou também à casa própria e existem várias decisões dos tribunais superiores no sentido que respeita apenas à casa arrendada[11], mas admitindo assentar a decisão recorrida neste pressuposto (no caso prova-se que a A. habita em casa de que é proprietária há mais de cinco anos) não cremos que se possa, sem mais, afastar a aplicação desta alínea e isto porque o senhorio não ficaria dispensado de provar, que não tem na localidade casa arrendada há mais de um ano.
A interpretação desta alínea tem suscitado vasta controvérsia na jurisprudência e mesmo na doutrina (aquela, porventura, decorrente desta) basta atentar, sem preocupação de aprofundar o assunto, por dispensável para a economia dos autos, na lição de Pinto Furtado[12] ao mencionar que foi “para fazer face a uma mudança de residência que se concebeu, na Lei nº 2:030, a previsão legal depois transposta para a formulação primitiva do Código Civil, depois para o RAU e hoje incluída, de novo, no CC (…) Quis, efectivamente, admitir-se a susceptibilidade de denúncia do contrato quando o denunciante (…) mude a sua residência ou esteja em eminente perspectiva de mudança para a área do prédio cujo contrato se pretenda denunciar, e onde não só não tenha já casa arrendada como não ocupe alguma que satisfaça a sua necessidade de habitação a título de proprietário (…) – e, ainda, que a não tenha tido, nessas condições, há um ano, ou menos disso” que explicando a causa/função da norma continua: “É que, nesta eventualidade de já ter tido aí casa há menos de 1 ano, não só, na perspectiva do legislador, seria indecoroso que viesse o proprietário (…) desalojar um arrendatário (…) tendo (…) estado servido há tão pouco tempo, como haveria o risco de se ter praticamente forçado, abandonando essa casa, o exercício do direito de denuncia;” ou no entendimento de Pereira Coelho[13], a “exigência do decurso do prazo de uma ano funcionará, também aqui, como elemento dissuasor do senhorio, que deste modo não se disporá, porventura, a vender o prédio próprio ou a denunciar o contrato do prédio que tomou de arrendamento, sabendo que, se o fizesse, teria que aguardar um ano para denunciar o contrato do prédio que dera de arrendamento, com fundamento em necessidade do prédio para sua habitação” e comparar com a interpretação de Gravato de Morais que, desligando-se deste elemento histórico, como nos parece, retira então como condição ou requisito da denúncia motivada para habitação do senhorio que este não tenha há mais de um ano, em determinada zona, casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação, ou seja, “o facto de o senhorio ser o proprietário de um prédio ou ser arrendatário de um imóvel que satisfaça as suas necessidades de habitacionais na zona em causa preclude a utilização desta via”.[14]
Seja como for e trate-se de um facto constitutivo do direito (à denúncia) do senhorio, ou de uma condição da acção (também neste ponto há oscilações) este não está dispensado de alegar e provar que não tem, há mais de um ano, na respectiva localidade (por ser o caso) casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1° grau, ou, no mínimo, atenta a falada jurisprudência, que não têm casa arrendada nas ditas condições.
No caso dos autos, a A. ainda alegou que o prédio onde habita é o único propriedade da A. em Portugal (artº 64º da p.i.) - e se este é o único é porque não tem outro - ou seja, alegou parte (a omissão não foi total como parece entender a Ré e daqui a razão de se haver mencionado o óbvio) dos factos que lhe incumbia provar, mas mesmo este facto foi julgado não provado[15] e, assim, não provando a A. que não tem na localidade de Matosinhos, onde se situa o prédio cujo rés-do-chão foi dado de arrendamento à Ré, casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria, não se vê como se lhe possa reconhecer o direito à denuncia do contrato.
Procede, pois, o recurso da Ré mostrando-se, em consequência prejudicado a segunda questão nele colocada.
3.3. Ampliação do âmbito do recurso
Procedendo a apelação, impõe-se conhecer da ampliação do âmbito do recurso.
3.3.1. Invalidade do contrato de arrendamento por falta de forma (ampliação do âmbito ).
Na consideração que os contratos de arrendamento para o exercício de profissão liberal celebrados antes da entrada em vigor do D.L. nº 64-A de 2000, estavam sujeitos a escritura pública e que o contrato a que os autos se reportam foi celebrado mediante acordo verbal em 23 de Setembro de 1969, a A. veio suscitar ex novo (a questão não foi colocada na 1ª instância) a nulidade do contrato por vício de forma.
A Ré contraditou este pretensão da A. defendendo que a ampliação com este fundamento consubstancia a prática de um acto nulo, nulidade que expressamente argúi, por abarcar a ampliação do recurso apenas os fundamentos em que a parte vencedora decaiu e não haver a A. decaído quanto a esta questão, uma vez que não constituiu um fundamento da acção.
Temos por certo que a ampliação do âmbito do recurso (artº.684º-A, do CPC, aplicável à data da prática do acto) a requerimento do recorrido pode reportar-se aos fundamentos da acção ou da defesa (desde que plurais e a aparte vencedora haja decaído em algum ou alguns deles, prevenindo a possibilidade de vir a decair quanto ao fundamento ou fundamentos que procederam na 1ª instância), ao julgamento da matéria de facto desfavorável ao vencedor (prevenindo a possibilidade da decisão do recurso lhe vir a ser desfavorável por insuficiência de factos – provados – justificativos da solução jurídica impugnada) ou à nulidade da sentença[16] (prevenindo a possibilidade de passar de vencedor a vencido e enfermar a sentença de um erro de construção que, não fora a ampliação, não pode ser conhecida, por não haver sido suscitada e, assim, se estabilizar no processo) e que, assim, a ampliação do objecto do recurso não se confunde com a ampliação do objecto da acção, pois que os elementos da instância (sujeitos, pedido e causa de pedir) estabilizam-se com a citação do réu (artº 268º, do CPC) e apenas podem ser modificados ou alterados, em princípio, nos estreitos limites dos artºs 269º a 273º, do CPC.
E também não se ignora que, no nosso sistema, os recursos ordinários, como é o presente, destinam-se à reponderação da decisão recorrida, o que significa que, em regra, “o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”[17], e isto porque os recursos visam modificar ou anular as decisões recorridas[18] e “não criar decisões sobre matéria nova não sendo lícito invocar e conhecer nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido”[19].
Ainda assim, existem excepções a estas regras e, entre elas, as questões de conhecimento oficioso (artº 660º, nº2, última parte, aplicável ao recurso ex vi do artº 713º, nº2, ambos do CPC); quer dizer, em regra o juiz só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, (quando o façam – é o ponto da Ré – com observância do procedimento adequado), mas não é assim quando às questões de conhecimento oficioso, quanto a estas, o juiz, pode conhecer ainda que as partes as não suscitem.
A nulidade do negócio jurídico designadamente por falta de forma é uma destas questões de conhecimento oficioso (artºs 220º e 286º, ambos do CC) e não se vê como reputar nulo um requerimento de uma das partes, como sustenta a Ré, porque as pretensão das partes deduzidas nos processos destinam-se a provocar uma decisão do juiz e, assim, por natureza, ainda que careçam de fundamento, não podem, por si só, influir no exame ou decisão da causa, entendendo-se esta expressão como actos e formalidades que garantam “a instrução, a discussão e julgamento regular do pleito”[20] e daqui a impossibilidade de traduzirem, enquanto tal, uma qualquer nulidade (situação que não se confunde com o acto jurisdicional que admite a prática do acto com inobservância da forma prescrita e assim influi no exame da causa; nulo será este e não o acto da parte).
Conhecendo, pois, da nulidade invocada pela A. (por ser de conhecimento oficioso), importa considerar que o contrato a que os autos se reportam tem por fim o exercício de uma profissão liberal (cabeleireiro) e foi celebrado em 23/9/1969; nesta data encontrava-se em vigor o artº 1029º do Código Civil, na redacção do D.L. nº 47.344, de 25/11/1966 que exigia no seu nº1, al. b), sob pena de nulidade (artº 220º, do mesmo Código) a redução a escritura pública dos arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão libera.
O D.L. nº 67/75, de 19/2 veio, porém, aditar ao dito artigo 1029º um nº3, com a seguinte redacção: “No caso da alínea b) do nº1, a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio”, e determinou a aplicação deste regime “aos arrendamentos já existentes, mesmo que haja acção pendente, ainda que com despejo decretado, contando que não efectuado” (artº 2º, nº1), concedendo ao locador a faculdade de, no prazo de cento e oitenta dias, a contar da sua entrada em vigor[21], notificar judicialmente o locatário para reduzir o contrato a escritura pública, não aproveitando a este o preceituado nesse número se por sua parte houver recusa injustificada” (artº 2º, nº2)[22].
Este regime, por vigente, à data da celebração do contrato é o aplicável (artº 12º, nº1 e 2 1ª parte, do CC) e dele decorre que a nulidade do contrato por falta de forma não é invocável pela A., enquanto locadora, a menos que houvesse demonstrado ter notificado a Ré, no aludido prazo de cento e oitenta dias, para reduzir o contrato a escritura pública; não fazendo a A. esta demonstração, improcede, nesta parte, a ampliação do âmbito do recurso.

3.3.2. A alteração do fim do contrato.
Porque o arrendado se destinou à instalação de um salão de cabeleireiro e a Ré nele passou a exercer a actividade de lavandaria procedendo à lavagem e secagem de capas e toalhas de cabeleireiro em número muito superior àquele que a utilização do locado implicará, utilizando para o efeito uma máquina industrial, sendo a R. e respectivas empregadas não raras vezes vistas a proceder à carga e descarga de toalhas e capas de e para o arrendado[23], a A. pediu a resolução do contrato de arrendamento, por alteração do respectivo destino.
Como se provou apenas que a Ré lava as toalhas e os penteadores que utiliza no estabelecimento, com uma máquina de lavar doméstica que usa há 33 anos[24], a decisão recorrida negou esta pretensão à A. por falta de prova.
A A. argumenta agora no recurso que “estando a Recorrente confessada e demonstradamente (…) a proceder à lavagem de roupas, tendo um aparelho para tal fim (máquina de lavar), verificada se mostra uma violação do destino do arrendado”.
Como se vê a questão colocada no tribunal recorrido e a colocada agora no recurso, são diferentes; ali defendeu a alteração do fim do contrato por se dedicar a Ré a uma actividade extra – lavandaria – à actividade de cabeleireiro, aqui defende que constitui alteração do fim do contrato a lavagem de roupas próprias, e assim inseridas na mesma actividade, do exercício da actividade de cabeleireiro (que é o que confessada e demonstradamente resulta); ora, sobre esta questão não se pronunciou a decisão recorrida, por não lhe haver sido colocada.
A resolução do contrato por via do fundamento agora invocado pela A. é, assim, uma questão colocada ex novo no recurso e, por isso, a sua apreciação, independentemente da sua valia, não poderá neste empreender-se, pelas razões supra referidas, razão pela qual dela não se tomará conhecimento.

3.4. Do agravo.
Para prova do alegado nos artºs 31 a 45 da petição inicial, a A. requereu a notificação da Ré para juntar aos autos cópia das declarações de rendimentos do estabelecimento comercial relativas aos anos de 2003, 2004 e 2005[25].
Este requerimento mereceu o seguinte despacho:
“Indefere-se o requerido pela Autora quanto aos documentos que pretende da Ré, pois que das declarações de rendimentos não resulta de forma alguma a realidade de facto constante dos artºs 31 a 45 da p.i., pois delas resulta apenas os rendimentos auferidos e as despesas suportadas” [26].
A A. sustenta a revogação deste despacho por considerar que com a análise da facturação do estabelecimento comercial “poder-se-ia averiguar do volume de facturação da arrendatária enquanto cabeleireira e comparar-se este com a quantidade de capas que são postas a secar no estabelecimento (segundo a agravante desproporcionada em relação à quantidade de clientes do cabeleireiro)”.
Destinando-se a prova à demonstração da realidade dos factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintos dos direitos invocados pelas partes e sendo inquestionável que o juiz deve cumprir e fazer cumprir (zelar e assegurar) o direito à prova que às partes assiste, a questão está, pois, em saber se conhecidos os rendimentos declarados pela Ré e o número de capas que são postas a secar no estabelecimento se pode concluir (pela desproporcionalidade) que a Ré exerce no estabelecimento uma actividade extra (lavandaria) à contratualmente acordada.
Se a resposta for positiva o agravo merece provimento, se o não for não merece.
E posta assim a questão quer-nos parecer que é inútil a requerida diligência de prova, como se decidiu e isto porque os rendimento declarados pela Ré ao fisco não permitem, em quaisquer circunstâncias estabelecer uma proporção, ou desproporção, como visa a A, entre a quantidade de capas que são postas a secar no estabelecimento e a quantidade de clientes do cabeleireiro, para isto seria necessário conhecer outros factos, designadamente quanto paga cada cliente, facto que não foi alegado; e ainda que se houvesse de concluir que a Ré declarou rendimentos muito inferiores aos cortes de cabelo indiciados pela quantidade de capas nenhuma relevância se poderia atribuir a esta conclusão para a economia dos autos por ficar por demonstrar se a Ré declarou os rendimentos referentes a todos os cabelos que cortou; em suma, e como se decidiu, dos rendimentos (da Ré) não resulta de forma alguma a realidade de facto constante dos artºs 31 a 45 da p.i, nem se poderia, acrescenta-se, presumir essa mesma realidade.
A requerida diligência de prova é, assim, inidónea à visada demonstração, razão pela qual o agravo não merece provimento.
Em conclusão:
No domínio do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo D.L. nº 321-B/90, de 15/10, a denúncia para habitação do senhorio, além do mais, não dispensa a prova de não ter, na respectiva localidade, casa própria que satisfaça as suas necessidades de habitação ou casa arrendada, há mais de um ano, em idênticas circunstâncias.

4. Dispositivo.
Delibera-se, pelo exposto:
a) em julgar procedente o recurso;
b) em julgar improcedente a ampliação do objecto do recurso;
c) em julgar não provido o agravo;
d) em alterar a decisão recorrida, na parte em que julgou procedente a denúncia do contrato de arrendamento e condenou a Ré a entregar à A. o rés-do-chão do prédio desta, mantendo-a em tudo o mais.
Custas pela recorrida.

Porto, 21/1/2014
Francisco Matos
Maria João Areias
Maria de Jesus Pereira
________________
[1] Embora a A. haja alegado na p.i. que a renda actual era de € 179,81, veio a corrigir este valor na resposta à contestação.
[2] Transcrição de fls. 129 a 132.
[3] Transcrição de fls. 1227 a 1230.
[4] Cfr. fls. 135.
[5] Cfr. despacho de fls. 155.
[6] Cfr. despacho de fls. 169.
[7] Cfr. despacho de fls. 203.
[8] Cfr. despacho de fls. 607.
[9] Cfr. despacho de fls. 1091.
[10] A acção foi instaurada em 4/1/2006.
[11] Cfr. jurisprudência coligida por Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4ª ed., pág. 215.
[12] Manual do Arrendamento Urbano, 5ª ed., vol. 2, pág. 971.
[13] Arrendamento, 1984, pág. 229.
[14] Novo Regime do Arrendamento Comercial, 3ª ed., pág. 75.
[15] Consignou-se no ponto 2.21 dos factos não provados: “O rés-do-chão ocupado pela Ré é aquele que há menos tempo se encontra arrendado no único prédio propriedade da Autora em Portugal”.
[16] Possibilidade introduzida pelo D.L. nº 180/96 de 25/9 que alterou o nº2, do artº 684º-A, do CPC.
[17] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos, pág. 395 e Jurisprudência aí indicada; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2ª ed., 3º vol. Tomo I, pág. 5 e Abrantes Geraldes, Recursos, novo regime, pág. 23.
[18] É o que decorre, entre outros, dos artºs 676º, nº1, 680º e 690º, nº1, todos do C.P.C.
[19] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 6/2/1987, BMJ, 364º - 714
[20] Alberto dos Reis, Comentário, 1945, 2º vol. pág. 486.
[21] O diploma entrou imediatamente em vigor (artº 3º).
[22] Para maiores desenvolvimentos sobre esta questão – cfr. Pereira Coelho, Ob. cit., pág. 118 a 120 e Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil, anot, 2ª ed., vol. 2º, pág. 343 e seg.
[23] Cfr. designadamente artºs 45 a 48 da P.I.
[24] Cfr. números 48 a 51 dos factos provados.
[25] Cfr. fls. 135.
[26] Cfr. despacho de fls. 155.