Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8476/05.3TBMTS-F.P1
Nº Convencional: JTRP00043224
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: IMPENHORABILIDADE DA TOTALIDADE DO SALÁRIO
Nº do Documento: RP200911178476/05.3TBMTS-F.P1
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 334 - FLS 07.
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 824º, Nº 1, A) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: A impenhorabilidade da totalidade do salário percebido pelo insolvente, nos termos do artº 824º, nº 1, a) do Código de Processo Civil não se aplica à situação em que não está em causa um crédito que tem origem na falta de pagamento de retribuições, subsídios e indemnização por antiguidade devida pela cessação do contrato de trabalho, reconhecido ao insolvente na sequência de acção por ele proposta contra os credores e a massa falida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 8476/05.3TBMTS-F.P1 - Agravo
Tribunal Judicial de Matosinhos – .º Juízo Cível


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – Relatório

No processo de insolvência supra identificado foi proferido o seguinte despacho:
“B………., declarado insolvente nestes autos veio, por requerimento junto aos mesmos em 4 de Março p. p, requerer que se considere nula a apreensão do crédito laboral do insolvente, por violação do disposto no art. 113°. do CIRE, ou, sem prescindir, por violar o disposto no art. 824°. n°. 1 al. a) do CPC, aplicável ao caso por força do artigo 17°. do CIRE, ordenando-se a entrega ao insolvente de dois terços do valor desse crédito.
Alega para tanto que o crédito apreendido tem a sua origem na falta de pagamento de retribuições, subsídios e indemnização por antiguidade devida pela cessação do contrato de trabalho, reconhecido ao aqui insolvente na sequência de acção por si proposta contra os credores e a massa falida da C………., S.A., crédito esse que não deveria ter sido apreendido pelo Sr. Administrador de Insolvência por força do disposto no art°. 113°. do CIRE. Sem prescindir, e para o caso de se entender ser permitido o arrolamento de créditos laborais anteriores à declaração de insolvência, então, e por vigorarem no processo de insolvência as regras de impenhorabilidade previstas no art. 824°. do C.P.C., ex vi art. 17°. do CIRE, apenas se poderia arrolar um terço desse crédito e nunca a totalidade.
Notificados o Administrador da Insolvência e os credores veio aquele dizer que não se verifica qualquer violação do art°. 113°. do CIRE porquanto não está em causa a suspensão do contrato de trabalho do trabalhador e o n°. 2 do referido dispositivo legal ser aplicável apenas no caso de ser o empregador a reclamar qualquer quantia ao trabalhador, o que nada tem a ver com o caso dos autos. Quanto à violação do art°. 824°. n°. 1 al a) do C.P.C. diz que, a entender-se que tal disposição é aplicável subsidiariamente ao CIRE, apenas será quando a relação laboral ainda vigore e reportando-se apenas a vencimentos, salários e outras prestações de natureza semelhante, não se incluindo neste preceito as indemnizações pela cessação do contrato. Mais alega que, pretendendo o requerente a separação do montante apreendido da massa insolvente o meio utilizado não é o próprio, resultando do art. 141°. n°. 1 al. c) que o meio idóneo seria a acção judicial proposta contra a massa insolvente.
O D………., S.A. veio defender igualmente a não aplicação ao caso do art°. 113°. do CIRE, defendendo ainda que as regras da impenhorabilidade previstas no art°. 824°. do C.P.C. não se aplicam ao crédito dos autos, que é um crédito vencido e não pago integrando a massa insolvente. Quando muito, as referidas regras de impenhorabilidade apenas abrangeriam a parte do crédito laboral devido a título remuneratório e nunca a parte de tal crédito devido a título indemnizatório.
Por sua vez o E………., S.A. defende que as regras de impenhorabilidade do art. 824°. do C.P.C. só se aplicam aos rendimentos laborais percebidos depois da declaração da insolvência, o que não é o caso do crédito dos autos, e que o art. 113°. do CIRE não tem aplicabilidade no caso em apreço.
Compulsados os autos resulta dos mesmos o seguinte:
a) O requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 15 de Dezembro de 2005, tendo sido fixado na mesma em 15 dias o prazo para a reclamação de créditos.
b) A referida sentença foi publicada no D.R. em 9 de Janeiro de 2006.
c) Em 4 de Dezembro de 2006, nos autos do processo de insolvência da C………., S.A. a correr termos sob o n°. …/03.4 do .°. Juízo do Tribunal do Comércio de V.N. de Gaia, foi proferida sentença que reconheceu ao aqui insolvente um crédito no valor de € 45.217,28.
d) Em 28 de Fevereiro de 2007 o Administrador da Insolvência notificou o Liquidatário Judicial de que o crédito atrás referido fora apreendido à ordem destes autos.
e) Em1 de Março de 2007 foi junto aos autos o auto de apreensão do referido crédito.
Declarada a insolvência, é ordenada a imediata apreensão dos bens do insolvente e a sua entrega ao administrador nomeado - arts. 36°. Al. g) do CIRE.
Face à indevida apreensão de quaisquer bens, o ofendido pela mesma tem os seguintes meios para obter a restituição ou separação dos bens indevidamente apreendidos:
- reclamação a apresentar no prazo da reclamação de créditos dirigida ao administrador da insolvência - art°. 141°. do CIRE.
- sendo os bens apreendidos depois de findo o prazo para as reclamações, o direito de restituição ou separação tem que ser exercido "nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento, apensado ao processo principal" - n°. 1 do art. 144°. Do CIRE.
- Findos os prazos atrás referidos o direito à separação ou restituição de bens pode ainda ser exercido, mas através de "acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor" - art°. 146°. do CIRE.

O requerente defende que o crédito que detinha sobre a massa insolvente da C………., S.A foi indevidamente apreendido, na sua totalidade ou em parte, pretendendo a sua restituição.
O referido crédito foi apreendido já depois de ter decorrido o prazo da reclamação de créditos, tendo também, já decorrido o prazo previsto no n°. 1 do ar°. 144°. do CIRE.
Temos, assim, que o meio de que o insolvente deitou mão não é o adequado à tutela da sua pretensão, pelo que, independentemente do fundado da mesma, e face à inidoneidade absoluta do meio processual utilizado, se indefere ao requerido.
Notifique.”

Inconformado o insolvente apresentou recurso, concluindo:

1.Foi apreendido pelo Senhor Administrador de insolvência um crédito que o aqui insolvente detém sobre a massa insolvente da sua ex-entidade patronal, no valor de € 45.217,28.
2. Tal crédito tem origem na falta de pagamento de retribuições, subsídios e indemnização por antiguidade por força da cessação do contrato de trabalho que o insolvente detinha com a sua entidade patronal.
3. Nos termos do disposto no artigo 817° do C.C. e da alínea a) do n°1 do artigo 824°, não podem penhorar-se dois terços dos salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado.
4. Esta norma aplica-se subsidiariamente ao processo de insolvência ex vi do artigo 17° do CIRE, pelo que o administrador de insolvência não pode apreender para a massa insolvente mais de um terço do salário ou prestação de natureza semelhante do insolvente.
5. Assim como não poderá arrolar os bens absolutamente impenhoráveis a que se refere o artigo 822° do CPC.
6. Isto posto, a apreensão do crédito dos autos viola frontalmente o disposto no artigo 817° do CC e no artigo 824° n°1 alínea a) do CPC, devendo ser considerada nula.
7. Ora, o despacho recorrido não apreciou esta questão pelo que mesmo é nulo, nos termos da alínea d) do artigo 668° do CPC, devendo ser anulado e substituído por outro que, aplicando as normas legais acima referidas, ordene a restituição ao insolvente de dois terços da quantia apreendida nos autos, atenta a sua natureza laboral e as regras de impenhorabilidade relativa aplicáveis ao processo de insolvência, ex vi do artigo 17° do CIRE.
Sem prescindir,
8. O despacho recorrido deve ser substituído por outro que considere que o meio usado pelo insolvente - requerimento apresentado no processo arguindo a nulidade da apreensão - é o meio próprio, uma vez que o mesmo, na qualidade de insolvente, não pode lançar mão do disposto no artigo 146° do CIRE.
9. Com efeito, atenta a qualidade do requerente, o mesmo para reagir contra a errada apreensão de um crédito laboral, não pode propor a acção a que se refere o artigo 146°, uma vez que reuniria nessa acção a qualidade de Autor e de Réu.
10.Tem assim de entender-se que, sempre que se apreendam para a massa insolvente bens absoluta ou relativamente impenhoráveis do insolvente, o meio de reacção adequado a utilizar pelo insolvente é a apresentação de requerimento no processo e não a propositura da acção a que se refere o artigo 146° do CIRE, sendo que o insolvente não pode ser autor e réu numa mesma acção.
11. Deve assim deferir-se o requerimento do insolvente, ordenando-se a restituição do crédito em causa, uma vez que o mesmo se destina aos seus alimentos e não a pagamento aos credores.
12. Com efeito, o disposto no artigo 113° do CIRE, conjugado com o disposto no n° 1 do artigo 182° do mesmo código, impõe que não se possam apreender para a massa insolvente créditos de natureza laboral do insolvente, sendo que é pacífico face a estas normas legais que o insolvente tem direito ao seu salário ou crédito salarial para prover ao seu sustento e ao do seu agregado familiar.
13. Deve assim ordenar-se a restituição ao insolvente do crédito laboral que lhe foi reconhecido uma vez que o mesmo não se destina a satisfazer os credores da massa insolvente.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido uma vez que o mesmo é nulo e ordenando-se a restituição ao insolvente da quantia de € 45.217, 28, ou quando assim se não entenda, a restituição de dois terços dessa quantia.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 684,º nº 3 e 690,º do CPC, na redacção anterior ao Dec-Lei nº 303/207, de 24/VIII, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, tendo em vista estas imposições legais, no caso em apreço, a questão a resolver consiste em saber se crédito que o insolvente detém da sua ex-entidade patronal, no valor de € 45.217,28 pode ser apreendido para a massa insolvente.

II – Fundamentação
Para a decisão do recurso releva a factualidade vertida no despacho recorrido.

Direito versus Factos

Adianta o recorrente que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que considere que o meio usado pelo insolvente - requerimento apresentado no processo arguindo a nulidade da apreensão - é o meio próprio, uma vez que o mesmo, na qualidade de insolvente, não pode lançar mão do disposto no artigo 146° do CIRE.
Analisando.
A lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artigos 141.º e seguintes do C.I.R.E.
Este preceito estatui que as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis, nomeadamente à reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa [nº1 al. c)].
O artº 144º, nº1 do CIRE estipula que, sendo os bens apreendidos depois de findo o prazo para as reclamações, o direito de restituição ou separação tem que ser exercido nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento, apensado ao processo principal.
Por último, resulta do artº 146º que, findos os prazos atrás referidos, o direito à separação ou restituição de bens pode ainda ser exercido, mas através de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor.
É esta a forma e o caminho que todos aqueles (incluindo o insolvente) que, pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade, e pretendam obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente, devem percorrer.
O recorrente argumenta, ainda, que a apreensão do crédito dos autos viola frontalmente o disposto no artigo 817° do CC e 824° n°1 alínea a) devendo ser considerada nula e o despacho recorrido, ao não apreciar esta questão, é nulo nos termos da alínea d) do artigo 668° do CPC.
Porém, e como se colhe manifestamente dos autos, a questão não foi apreciada por se entender que não foi utilizado o meio próprio, não havendo, assim, omissão de pronúncia.
De qualquer modo, sempre se dirá que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.º 1.º do CIRE).
Estão sujeitos a apreensão no processo de insolvência todos os bens integrantes da massa insolvente, a qual abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo; quanto aos bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta (vide art.º 46.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).
Temos de entender que no processo de insolvência vigoram supletivamente, as regras constantes do art.º 824.º do CPC sobre a impenhorabilidade relativa de determinados bens, salvo se o insolvente voluntariamente os oferecer para apreensão.
Do salário auferido pelo insolvente são impenhoráveis dois terços do mesmo (cfr. art.º 824.º, n.º 1, a), do CPC).
Esta regra sofre duas excepções, as quais são aplicáveis ao conjunto dos bens relativamente impenhoráveis constantes das alíneas a) e b) do n.º1 do art.º 824.º do CPC.
Uma das excepções consiste em a impenhorabilidade relativa dos bens em causa ter como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão.
A outra excepção consiste em a impenhorabilidade relativa dos bens em causa ter como limite mínimo o montante equivalente a um salário mínimo nacional à data de cada apreensão, conquanto o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja por alimentos.
Esta interpretação deriva do respeito pelo princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, consagrados nas disposições conjugadas dos art.ºs 1.º, 59.º, n.º 2, a) e 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 96/2004 de 11/02/2004, em DR, II, n.º 78, de 01/04/2004).
De acordo com esta jurisprudência do Tribunal Constitucional, o seu juízo de inconstitucionalidade sobre a matéria em causa "radicou, tão-somente, na consideração de que a penhora deveria salvaguardar o montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário, sendo adequado tomar como referência de tal montante o salário mínimo nacional" e que "esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e, por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante equivalente ao salário mínimo nacional".
Sendo esta a razão de ser da impenhorabilidade da totalidade do salário percebido pelo insolvente, é óbvio que não se aplica à situação dos autos em que não está em causa aquilo que o insolvente recebe como salário, mas antes, um crédito que tem origem na falta de pagamento de retribuições, subsídios e indemnização por antiguidade devida pela cessação do contrato de trabalho, reconhecido ao insolvente na sequência de acção por ele proposta contra os credores e a massa falida da C………., S.A.
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao presente agravo, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.

Porto, 17 de Novembro de 2009
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
José Bernardino de Carvalho