Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4643/09.9TAMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CUSTAS PROCESSUAIS
ENCARGOS
TRADUTOR
REMUNERAÇÃO
Nº do Documento: RP201204114643/09.9tamts-A.P1
Data do Acordão: 04/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No exercício da função jurisdicional, o juiz está sujeito à lei [art. 203° da CRP] e, ressalvados os casos em que fundamente a deci­são em inconstitucionalidade normativa [art. 204° da CRP], não pode deixar de apli­car uma norma jurídica por a considerar injusta ou desadequada aos interesses a que se destina.
II - De acordo com a Lei [art. 17º, n.º 4, do RCP], o juiz não pode fixar ao tradutor uma remuneração que ultrapasse os valores impostos pela tabela IV.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4643/09.9TAMTS-A.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos com o nº 4643/09.9TAMTS foi proferido despacho que aceitou um dos orçamentos apresentados nos autos para prestação de serviços de tradução.
Inconformado com a referida decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O tribunal atribuiu a quantia de 69€ + IVA a título de remuneração de tradutor pela tradução de três páginas;
2. Tal decisão viola diretamente lei expressa – o artº 17º nº 2 do Regulamento das Custas Processuais, que determina que a remuneração dos tradutores seja efetuada de acordo com a tabela IV anexa ao referido diploma legal;
3. Na redação aplicável, a referida tabela fixa um critério definido de 1/15 avos de uma UC/página, pelo que inexiste fundamento legal para remunerar a tradução com base num orçamento que não respeite o disposto naquela Tabela;
4. A norma legal em causa não comporta a possibilidade de qualquer interpretação corretiva, uma vez que o espírito da lei e a letra da mesma são coincidentes;
5. Pelo que o despacho recorrido viola lei expressa, devendo ser substituído por outro que ordene a atribuição de remuneração de tradutor nos termos previstos na tabela IV, anexa ao Regulamento das Custas Processuais de 1/15 por página, ou seja, de 20,4 €.
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Notificadas a arguida e a empresa proponente do serviço em causa, não foram apresentadas respostas à motivação.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O despacho recorrido é do seguinte teor: (transcrição)
«Considerando os dois orçamentos/propostas apresentados, resulta à evidência que o de fls. 129 é claramente mais favorável/menos dispendioso.
É certo que, fruto das recentes alterações legislativas e com a atual vigência do RCP, qualquer uma das propostas ultrapassa a tabela de remunerações aí fixada (cfr. artº 17º e tabela IV).
Contudo a atender de forma estrita a tais limites (entenda-se também como limitações), o Tribunal acabaria por se ver na contingência de não ter colaboradores/entidades para prestar os serviços de tradução pretendidos. Convém em termos de normalidade da vida e de senso comum atender aos interesses e ao prisma de quem presta o serviço, não podendo vingar os interesses jurídicos e processuais ou mesmo o simples interesse de um Tribunal enquanto órgão de soberania, em claro prejuízo do particular/prestador de serviço que tem objetivos claros de sustentabilidade e viabilidade económico-financeira.
Ainda em termos de senso comum e razoabilidade se salienta que os valores propostos não são, sob prisma algum, exagerados ou excessivos – muito menos e comparativamente com o valor (reduzido/irrisório) resultante da aplicação da sobredita tabela a que, no caso sub-judice o Tribunal só pode considerar como indicativa/indicadora. Tanto mais considerando, o trabalho pretendido, a natureza e número de páginas da peça processual a traduzir.
Termos em que se aceita o orçamento de fls. 129.
Prazo – 15 dias.
Notifique.»
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III – O DIREITO
Considerando que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2], a única questão a decidir consistir em saber se o juiz goza de liberdade para atribuir aos intervenientes processuais, designadamente aos tradutores, a remuneração que entenda ajustada e adequada ao serviço prestado, não obstante a determinação legal expressamente prevista a esse respeito.
O artº 17º do Regulamento das Custas Processuais[3] prevê remunerações fixas a atribuir a determinados intervenientes processuais, estabelecendo que:
1. As entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências, salvo os técnicos que assistam os advogados, têm direito às remunerações previstas no presente Regulamento.
2. A remuneração de peritos, tradutores, intérpretes e consultores técnicos, em qualquer processo é efetuada nos termos do disposto na tabela IV, que faz parte integrante do presente Regulamento.
3. Quando a taxa seja variável, a remuneração é fixada numa das seguintes modalidades, tendo em consideração o tipo de serviço, os usos do mercado e a indicação dos interessados:
a) Remuneração em função do serviço ou deslocação;
b) Remuneração em função da fração ou do número de páginas de parecer, peritagem ou tradução.
4. A taxa é fixada em função do valor indicado pelo prestador do serviço, desde que se contenha dentro dos limites impostos pela tabela IV.
[…]
Como resulta da própria epígrafe do preceito, os intervenientes acidentais que hajam de ser remunerados, percebem uma remuneração fixa, de acordo com a tabela IV do RCP.
E, não obstante o nº 3 do preceito faça referência a uma taxa variável, tal expressão não contraria o carácter fixo da remuneração. Com efeito, o referido nº 3 só vem estabelecer que a “taxa fixa” pode variar numa das seguintes modalidades, para cuja opção se terá em conta o tipo de serviço, os usos de mercado e a indicação dos interessados:
- em função do serviço ou deslocação;
- em função da fração ou do número de páginas de parecer, peritagem ou tradução.
Porém, a taxa fixada em função do valor indicado pelo prestador do serviço, tem de se conter dentro dos limites impostos pela tabela IV – nº 4 do artº 17º do RCP.
Ou seja, no caso de serviços de tradução, face à natureza do serviço de tradução e aos usos, a remuneração deverá ter em conta o valor indicado pelo tradutor para cada página ou fração de texto traduzido, mas sem poder exceder o valor correspondente a um quinze avos da unidade de conta.
Não é, por isso, correto afirmar que os valores constantes da tabela IV são meramente indicativos/indicadores.
Como realça o Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação no parecer que emitiu, “o julgador, na interpretação da lei, deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, mas não pode, em caso algum fixar à norma um sentido e um alcance que não tenha na sua letra um mínimo de correspondência verbal (artº 9º nºs 2 e 3 do Código Civil)”.
Ora, nada na letra da lei permite extrair a ilação de que os valores constantes das tabelas anexas ao RCP são meramente indicativos e que o juiz é livre de atribuir aos intervenientes processuais, que prestem determinados serviços, uma remuneração que atenda apenas aos respetivos interesses particulares.
Como se disse, o artº 17º nº 4 do RCP é muito claro ao mandar atender ao valor indicado pelo prestador do serviço, desde que se contenha dentro dos limites impostos pela tabela IV. Isto é, sempre que haja lugar à fixação de remuneração a um interveniente acidental identificado no nº 2 do artº 17º do RCP, o juiz deverá ouvi-lo previamente e atender, em princípio, ao valor por ele indicado, mas jamais poderá fixar-lhe uma remuneração que ultrapasse os valores impostos pela tabela IV.
No exercício da função jurisdicional, o juiz está sujeito à lei (artº 203º da Constituição da República Portuguesa) e, ressalvados os casos em que fundamente a decisão em inconstitucionalidade normativa (artº 204º da CRP), não pode deixar de aplicar uma norma jurídica por a considerar injusta ou desadequada aos interesses daquele a que a norma se destina.
Ao fixar qualquer remuneração no âmbito de um processo judicial, o juiz está a gerir “dinheiros públicos”, sujeito aos critérios que o legislador entendeu por bem fixar, não lhe competindo derrogar tais critérios e fixar uma remuneração como se aqueles não existissem, ou como se o legislador lhe atribuísse um poder discricionário dentro de uma margem variável de fixação.
Contrariamente ao que se afirma na decisão recorrida, a tabela IV do RCP não é meramente indicativa/indicadora, mas antes pelo contrário, uma tabela limitadora, no sentido de que os referidos valores constituem limites absolutos.
No caso em apreço, tratando-se de um serviço de tradução por páginas de texto, a remuneração a atribuir ao tradutor, em conformidade com o disposto no artº 17º nºs 2, 3 al. b) e 4 do RCP e tabela IV anexa, não poderá ultrapassar um quinze avos da unidade de conta por cada página.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que fixe a remuneração do tradutor nos termos e com os limites acima referidos.
Sem tributação.
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Porto, 11 de Abril de 2012
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Doravante designado como RCP