Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0409398
Nº Convencional: JTRP00008877
Relator: VAZ DOS SANTOS
Descritores: ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE IMPRENSA
DIFAMAÇÃO
DIFAMAÇÃO COM PUBLICIDADE
INJÚRIA
INJÚRIAS COM PUBLICIDADE
DIREITO À INFORMAÇÃO
CONFLITO DE NORMAS
CONFLITO DE DEVERES
PESSOA COLECTIVA
DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
DOLO GENÉRICO
DOLO ESPECÍFICO
Nº do Documento: RP199005300409398
Data do Acordão: 05/30/1990
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J ESPINHO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. ALTERADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: FIGUEIREDO DIAS IN DIREITO DE INFORMAÇÃO E TUTELA DA HONRA NO DIREITO PENAL DE IMPRENSA PORTUGUÊS IN RLJ ANO115 PAG100 PAG133 PAG170.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CONST89 ART25 ART26 ART27 ART37 N3 ART12 N2.
CP82 ART14 ART164 ART165 ART31 N2 B ART167 N2.
LIMP75 ART25 ART26 N2 D.
Sumário: I - A Constituição da República, no seu artigo 27, proclama amplamente o direito fundamental de liberdade de expressão e informação, cujo exercício não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura, do mesmo passo que nela ocupa um lugar saliente a defesa dos direitos do cidadão à sua integridade moral, que é inviolável - artigo 25 -, ao seu bom nome e reputação - artigo 26.
II - Aquele direito de informação e crítica não é ilimitado, sendo que a mesma Constituição estabelece limites ao exercício da liberdade de imprensa, preceituando que as infracções cometidas no exercício dos direitos de expressão de pensamento e de informação ficam submetidas aos princípios gerais do direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais ( artigo 37, n. 3 ).
III - Os artigos 164 e 165 do Código Penal descrevem comportamentos que integram os crimes de difamação e injúrias, sendo tais crimes considerados de abuso de liberdade de imprensa, quando cometidos através da comunicação social.
IV - Entre tais direitos, que são de igual hierarquia
( direito à honra, de um lado, e direito de informação, de outro ) podem surgir e surgem conflitos cuja solução se impõe, prevenindo ou reprimindo, através dos adequados mecanismos a respectiva manifestação.
V - Na solução de tais conflitos, "...necessário se torna fazer recuar a tutela jurídico-penal da honra, introduzindo-lhe as limitações indispensáveis à conservação do núcleo essencial do direito de informação, maxime no que toca ao livre exercício da função pública da imprensa...", sendo o próprio direito de informação, através da função da imprensa e este através da sua actividade dirigida à formação da opinião pública, que há-de valer como justificação jurídico-penal de quaisquer ofensas à honra que aquele traga consigo - artigos 31, n. 2, alínea b) e 165, n. 2, alínea a) do Código Penal.
VI - Para essa justificação, importa que a ofensa à honra cometida se revele como meio adequado e razoável de cumprimento da função pública de imprensa, sendo que o meio utilizado não só não pode ser excessivo, como deve ser o menos pesado possível para a honra do atingido.
VII - Nos crimes de difamação cometidos através da imprensa não se exige dolo específico, bastando-se a lei com o dolo genérico ( directo, necessário ou eventual - artigo 14 do Código Penal ), sendo, assim o elemento moral constituído pelo conhecimento por parte do agente de que a imputação do facto, mesmo sob a forma de suspeita, é objectivamente ofensivo da honra ou consideração de outra pessoa, tendo-a ele assumido voluntariamente, dando-lhe publicidade através da imprensa, não se exigindo qualquer finalidade ou motivação específica.
VIII - As pessoas colectivas podem ser sujeito passivo desses crimes, gozando aquelas de todos os direitos de personalidade, salvo, evidentemente, os inerentes e inseparáveis da personalidade singular, tendo, pois, direito ao bom nome e à sua defesa e não só ao crédito e confiança, tanto mais que, nos termos constitucionais, elas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza - artigo 12, n. 2 -, abrangendo, assim, a expressão " pessoas " empregada no artigo 164 do Código Penal, indistintamente, as pessoas singulares e as pessoas colectivas, não havendo razão para restringir às primeiras a protecção jurídico-penal da sua honra ou consideração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - No Tribunal Judicial da comarca de Espinho, em processo correccional, os assistentes S........... S.A. e Manuel ........... requereram o julgamento do arguido João ........., todos com os demais sinais dos autos, imputando-lhe, relativamente a cada um, um crime de abuso de liberdade de imprensa previsto e punido nos 164 e 165 do Código Penal e 25, 26, n. 2 e 28 do Decreto-Lei n. 85-C/75, de 26 de Fevereiro.
Tendo-se procedido a julgamento com redução da prova a escrito, foi proferida sentença, que condenou o arguido, como autor material de um crime de abuso de liberdade de imprensa previsto e punido pelos artigos 25, 26, n. 2, alínea b) do Decreto-Lei n. 85-C/75, com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n. 181/76, de 9 de Março, em conjugação com os artigos 164, n. 1 e 167, n. 2, ambos do Código Penal, na pena de oitenta dias de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa diária de 300 escudos e em vinte e cinco dias de multa à mesma taxa, ou seja, na multa global de 31500 escudos, ou, em alternativa, 70 dias de prisão; no imposto de justiça de 7000 escudos e em 2000 escudos de procuradoria.
O arguido foi ainda condenado no pagamento, a título de indemnização, de 25000 escudos a cada um dos assistentes.
II - Irresignado, o arguido interpôs recurso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. O assistente Manuel ......... é parte ilegítima, pois que não se encontra sanada tal irregularidade na procuração que não obedeceu à forma prevista na lei, o de ser por instrumento público com poderes para o acto;
2. Nada pode impedir a publicação de partes processuais de autos de processo crime, publicada que seja a sentença ou mesmo antes;
3. Ao publicar que tenha sido absolvido, relatando o artigo que serviu de base à queixa e incluído que estava nos autos, como documento, o recorrente exerceu o direito de informar e fê-lo com base no artigo
75 do Código de Processo Penal antes e com base na liberdade de imprensa;
4. Não teve assim o arguido intenção de difamar ou injuriar quem quer que fosse, mas de relatar factos de interesse do próprio jornal;
5. Com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, as pessoas colectivas deixaram de ser sujeitos passivos dos crimes de difamação e injúria;
6. São imputados comportamentos e actuações a um órgão colectivo de uma pessoa colectiva e não a esta.
Deve a sentença ser revogada e o recorrente absolvido por se ter violado por erro de interpretação o disposto nos artigos 164, 165 e 27 do Código Penal, 75 do Código de Processo Penal e 25, 26 e 28 do Decreto-Lei n. 85-C/75.
Contra-alegaram o Digno Agente do Ministério Público e os assistentes.
O primeiro considera improcedente a questão da ilegitimidade suscitada pelo recorrente, mas defende a absolvição deste por entender não se poder ter como demonstrado que o arguido estivesse ciente do carácter ofensivo da publicação para o bom nome, reputação e consideração dos assistentes.
Os segundos também consideraram improcedente a argumentação do recorrente quanto à pretensa ilegitimidade e, quanto ao fundo, pronunciam-se pela confirmação da sentença recorrida.
O Meritíssimo Juiz proferiu despacho de sustentação.
Nesta instância, o Ilustríssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso e no da confirmação do julgado.
III - Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
3.1. É ainda aplicável aos autos, instaurados em 9 de Janeiro de 1987, o regime do Código de Processo Penal de 1929 e legislação complementar ( cf. artigos 7, n. 1 do Decreto-Lei n. 78/87, de 17 de Fevereiro e único da Lei n. 17/87, de 1 de Junho ).
3.2. São os seguintes os factos que a sentença teve como provados:
O jornal semanário " E...... ", na edição de ...........de 19....., publicou em primeira página um artigo titulado " Tribunal Judicial de Espinho absolve "E.....", réu em acções da Câmara e S......... - Em causa a Liberdade de Imprensa " e com o subtítulo " S........... dá 40000 contos a Braga-Golfe de Espinho espoliado em favor da Rampa da Falperra "
- documento junto a folhas 5 e 6, o qual se dá aqui por reproduzido.
O aludido artigo é da autoria do arguido.
No artigo em causa começa-se por afirmar o seguinte:
" No nosso número 282, de 22 de Fevereiro do ano findo publicamos a seguinte notícia: S........... dá 40000 contos a Braga-Golfe de Espinho espoliado em favor da Rampa da Falperra - Os espinhenses lembram-se quando o S........... de Manuel ........, pseudo benemérito citadino, ( ... ) ter dado uns subsídios ao Braga e Guimarães quando presidia à direcção do Sporting de Espinho e então presidente da Câmara J.....? "
E acrescenta:
" E os verdadeiros espinhenses que lhes interessa, de facto, o progresso e bem da sua terra, hoje em vias de ser uma Coutada onde ainda há-de ser preciso pagar bilhete nas fronteiras a uma associação de malfeitores para poder assim entrar ( ... ) "
Prosseguindo:
" Pois essa mesma S....., sociedade por acções ( que já estão na sua esmagadora maioria em mão de determinado clã ) ( ... ) continua a actuar à mercê da vontade de um indivíduo megalómano, assessorado por um " staff " tenebroso e apadrinhado por indivíduos que efemeramente têm o cadeirão do poder e se prestam a favores compensados por não se sabe ao certo que favores... "
De seguida, refere o mesmo artigo:
" Como se não bastasse este sórdido quadro, outros apêndices se penduram na sua moldura, como sanguessugas, apêndices invertrebados, prostituídos, senis, esclerosados por uma política idiota de ganância e arrogância.
Os espinhenses lembram-se do desvio dos milhares de contos da obrigação da S............ destinada à variante à Estrada Nacional 109 para a marina de Leça? "
Mais adiante, ao noticiar que o Oporto Golf Clube firmara contrato com o Hotel Praia Golf, do Grupo Sonae, diz-se no artigo em causa:
" Este contrato fez com que alguém ligado à S....... procurasse, junto do Secretário de Estado do Turismo, retirar uns milhares de contos concedidos ao Golfe da verba que se destinava à variante " ( ... )
Este acontecimento poderá ter ligação com o acto de subtracção ao Golfe em benefício da Rampa da Falperra "
Tais afirmações não correspondem à verdade e com a sua publicação, de forma livre e voluntária, o arguido estava ciente do carácter ofensivo dos mesmos para o bom nome, reputação e consideração social, quer da pessoa de Manuel ............., quer da sociedade S.......... .
O arguido, antes da publicação, não levou a cabo, junto da S........ ou da pessoa do presidente do conselho da administração desta, o dito Manuel ..........., qualquer diligência para confirmação ou esclarecimento sobre os factos.
O citado artigo é repetição de um outro, relativamente ao qual havia sido instaurado processo crime contra o arguido apenas por parte da S............ .
Na sequência desse artigo anterior, foi o arguido absolvido no Tribunal Judicial de Espinho e condenado no Tribunal da Relação do Porto pelas razões constantes das doutas decisões cujo teor consta de folhas 152 a 179 verso, o qual se dá por reproduzido.
Manuel ........... é o presidente do conselho de administração da S...... e é pessoa que já foi agraciada com as comendas de " benemerência " e
" mérito industrial " e goza de prestígio a nível local, nacional e internacional.
A sociedade S......... é concessionária da zona de jogo de Espinho e concedente o Estado, sendo requisito dessa concessão a sua credibilidade e bom nome como empresa.
O arguido tem antecedentes criminais.
Possui como habilitações literárias o quinto ano do liceu, exerce profissão de jornalista há cerca de 15 anos, trabalhando no " E..... " há mais de 10 anos.
O arguido vive de rendimentos seus e de sua esposa, os quais atingem mensalmente cerca de 120000 escudos, tendo a expensas suas um filho maior e possui casa própria.
O jornal " E...... " tem uma tiragem média mensal de 1300 exemplares.
3.3 Não se tendo prescindido de recurso relativamente a matéria de facto, a prova prestada oralmente na audiência ficou documentada na acta, pelo que a Relação conhecerá de facto e de direito ( cf. artigos 531 e 536 do Código de Processo Penal ).
Analisada e valorada a prova recolhida, concluimos que a sentença recorrida fixou correctamente a matéria fáctica dela resultante, pelo que a damos como assente, com os seguintes acrescentamentos: a) No artigo em questão começa-se por escrever:
" Foi ontem ( ... ) lida pelo Meritíssimo Juiz ( ... ) a sentença do julgamento S........../E..... e ( ... ) ambas as acções intentadas por alegado abuso de liberdade de imprensa ( ... ).
E....... foi absolvido em ambas as acções.
Terminou assim o diferendo que opunha as duas instituições a este Semanário independente, virado para a defesa dos interesses do concelho ". b) Depois de " recordar " os factos, transcrevendo a notícia publicada no número 282, do mesmo jornal, de .... de ..... de 19..., e de fazer um relato do que se passou em audiência, o referido artigo remata assim:
" Da sentença poderá a exploradora do jogo recorrer à Relação. " c) O ora recorrente, que no cabeçalho do jornal figura como seu director, teve conhecimento na íntegra do texto da sentença fotocopiada a folhas 152 e seguintes, a cuja leitura assistiu, sabia que não se tratava de decisão definitiva. d) O mesmo recorrente, apesar de saber que essa decisão foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação de 25 de Novembro de 1987, que acabou por condená-lo ( documento que constitui fotocópia de folhas 168 e seguintes ), não publicou qualquer notícia a esse respeito, por sua iniciativa.
3.4 Questão de ilegitimidade do assistente M............ suscitada pelo recorrente.
Alega este que a queixa inicial foi subscrita por advogado sem poderes para tal, não tendo a procuração obedecido à forma prevista na lei, e não estando a respectiva irregularidade sanada, é o assistente parte ilegítima.
Porém, sem razão. Com efeito, o assistente passou a procuração de folhas 7, que confere ao seu mandatário poderes especiais para, em seu nome e representação, apresentar queixa crime contra o ora recorrente, mostrando-se a sua assinatura notarialmente reconhecida; por outro lado, para o fim em questão, não é necessário que a procuração seja lavrada por instrumento público ( cf. artigo 127, n. 1 do Código do Notariado ).
3.5 Questão de fundo.
3.5.1 Consideram-se crimes de liberdade de imprensa os actos ou comportamentos lesivos de interesse jurídico- -penalmente protegido que se consumam pela publicação de textos ou imagens através da imprensa, sendo-lhes aplicável, embora com determinadas especialidades, a legislação penal comum ( cf. artigo 25, ns. 1 e 2 do Decreto-Lei n. 85-C/75, de 26 de Fevereiro ).
Através deste diploma legal - e como se afirma no seu preâmbulo - pretendeu-se dar plena consagração à liberdade de expressão de pensamento pela imprensa.
A Constituição da República, no seu artigo 37, proclama amplamente o direito fundamental de liberdade de expressão e informação, cujo exercício não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
No mesmo plano jurídico-constitucional, em que a defesa da dignidade da pessoa humana ocupa um lugar saliente, estão também consagrados os direitos do cidadão à sua integridade moral, que é inviolável ( artigo 25,
n. 1), ao seu bom nome e reputação ( artigo 26, n. 1 ).
Entre tais direitos, que são de igual hierarquia ( direito à honra, de uma parte, e direito de informação, de outra parte ) podem surgir - e têm surgido - conflitos cuja solução se impõe, prevenindo ou reprimindo, através dos mecanismos adequados, a respectiva manifestação.
O direito de informação e de crítica não é ilimitado.
A própria Lei Fundamental estabelece limites ao exercício da liberdade de imprensa, preceituando que as infracções cometidas no exercício dos direitos de expressão de pensamento e de informação ficam submetidos aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais ( artigo 37, n. 3 ).
Também o artigo 4 do Decreto-Lei n. 85-C/75 estabelece que os limites à liberdade de imprensa decorrerão unicamente dos preceitos dessa lei e daqueles que a lei geral e a lei militar impõem, em ordem a salvaguardar a integridade moral dos cidadãos, a garantir a objectividade e a verdade de informação ( ... ).
No acatamento dos princípios jurídico-constitucionais, os artigos 164 e 165 do Código Penal descrevem comportamentos que integram os crimes de difamação e de injúrias ( que são infracções contra a honra ou consideração das pessoas, por imputação a estas, mesmo sob a forma de suspeita, de factos, ou formulação dos juízos, ofensivos desses valores morais. Se tais imputações forem veiculadas através de órgãos de comunicação social, o respectivo crime será considerado de abuso de liberdade de imprensa, já que esta, nesse caso, não poderá abrigar-se sob o manto do exercício do direito de liberdade de expressão ou de informação ( compreendendo este o direito a informar e a ser informado - cf. artigo 1, n. 2 do Decreto-Lei n. 85-C/75 )).
Abordando o tema de relações entre o direito de informação e a tutela da honra, com vista à composição dos interesses ou bens jurídicos em conflito, sem perder de vista o princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais e segundo o qual se deve obter a " harmonização " ou " concordância prática " dos bens em colisão, traduzido numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível, e depois de chamar a atenção para a necessidade da tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas por um lado, e o cerne do direito fundamental de informação e da própria liberdade de imprensa por outro, cuja função pública, dirigida à formação da opinião pública nos vários domínios social, político, económico e cultural, justamente lhe confere a dignidade de objecto de protecção constitucional, o Professor Figueiredo Dias, no seu notável estudo
" Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal de Imprensa Português " ( Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115, páginas 100 e seguintes, 133 e seguintes e 170 e seguintes ), conclui que
" necessário se torna fazer recuar a tutela jurídico-penal da honra, introduzindo-lhe as limitações indispensáveis à conservação do núcleo essencial do direito de informação, " maxime " no que toca ao livre exercício da função pública da imprensa ".
Como alcançar tal desiderato?
É o próprio exercício do direito de informação, através da função da imprensa e esta através da sua actividade dirigida à formação da opinião pública, que há-de valer como justificação jurídico-penal de quaisquer ofensa à honra que aquele traga consigo - obra citada, página 136 ( cf. artigos 31, n. 2, alínea b) e 164, n. 2, alínea a), ambos do Código Penal ).
Porém, para se ter por verificada essa justificação, importa que a " ofensa à honra cometida se revele como meio adequado e razoável de cumprimento de função pública de imprensa, sendo que o meio utilizado não só não pode ser excessivo, como deve ser o menos pesado possível para a honra do atingido; que no exercício da sua actividade, a imprensa tenha actuado com o " animus " ou a intenção ( ao menos " iminente " ) de cumprir a sua função pública e, assim, de exercer o seu direito-dever de informação, ou que ao menos não esteja em concreto excluído ter sido um tal cumprimento o motivo da sua actuação; e que a imprensa, no exercício da sua função pública, não publique imputações que atinjam a honra das pessoas e que saiba inexactas, cuja exactidão não tenha podido comprovar ou sobre a qual não tenha podido informar-se suficientemente - obra citada, páginas 137, 170 e 171.
A liberdade de expressão do pensamento envolve o direito de opinião e de crítica, que, aliás, é essencial à prática da democracia; não sendo, porém, tal direito ilimitado, o seu excesso pode considerar-se injurioso.
Segundo Cuello Colon ( Derecho Penal, II, volume 1, terceira edição, páginas 578 e seguintes ), o direito de crítica e censura tem o seu limite racional no respeito devido à honra e reputação das pessoas e, portanto, se a crítica ou censura não constitui delito, quando com ela se agrava e desonra o criticado constituirá uma injúria.
3.5.2 Nos crimes de difamação cometidos através da imprensa basta o dolo genérico, em qualquer das formas que pode revestir ( directo, necessário ou eventual - cf. artigo 14 do Código Penal ), para integrar o elemento subjectivo da infracção, como é jurisprudência uniforme; prescinde-se, pois, do dolo específico, do " animus injuriandi vil diffamandi ".
O elemento moral satisfaz-se, portanto, com o conhecimento por parte do agente de que a imputação do facto, mesmo sob a forma de suspeita, é objectivamente ofensiva da honra ou consideração de outra pessoa, tendo-a ele assumido voluntariamente, dando-lhe publicidade através da imprensa, não se exigindo qualquer finalidade específica ou motivação especial.
Relativamente ao sujeito passivo desse crime tem-se discutido, se as pessoas colectivas o podem ser. De acordo com a opinião dominante, também entendemos que a protecção jurídico-penal conferida nesse tipo legal de crime abrange indistintamente as pessoas singulares e as pessoas colectivas, gozando estas de todos os direitos de personalidade, salvaguardando, evidentemente, os inerentes e inseparáveis da personalidade singular, tendo portanto direito ao bom nome e à sua defesa e não só ao crédito e confiança ( cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado, terceira edição, página 282 e Acórdão desta Relação, de 12 de Abril de 1989, proferido nos presentes autos e junto a folhas 108 e seguintes, onde se cita inúmera doutrina e jurisprudência naquele sentido ).
Também desenvolvidamente, o Acórdão desta Relação, de 25 de Novembro de 1987, já anteriormente citado, cuja fotocópia se encontra junta a folhas 168, proferido no processo crime em que haviam intervindo como assistente a S......... e como arguido o ora recorrente, se pronunciou sobre a mesma questão, concluindo no mesmo sentido, citando, em reforço da respectiva fundamentação, um parecer do Professor Figueiredo Dias, que havia sido junto a esses autos.
Reproduzindo, em síntese, a fundamentação contida neste último aresto, e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, diremos:
- da redacção dada aos artigos 164 e 165 do Código Penal resulta ter havido o propósito do legislador em alargar a área de condutas reprováveis que de outro modo o não seriam ( veja-se a expressão por ele utilizada " mesmo sob a forma de suspeita " ), com o consequente alargamento da protecção geral dos bens jurídicos contemplados: a honra ou consideração;
- não existindo qualquer outra alteração relevante face ao direito anterior, mantem-se a validade da doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 1960 ( Boletim do Ministério da Justiça n. 94, página 107 ), que afirmou: " As pessoas colectivas podem ser sujeito passivo nos crimes de difamação e de injúria ";
- a descriminalização de condutas anteriormente punidas em relação às pessoas colectivas estaria em contradição com a ampliação da área das matérias incrimináveis consagrada nos preceitos actuais;
- a expressão pessoa empregada no citado artigo 164 abrange indistintivamente as pessoas singulares e as pessoas colectivas, não hevendo razões para restringir às primeiras a protecção jurídico-penal da sua honra ou consideração;
- nos termos constitucionais, as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza ( artigo 12, n. 2 da Constituição );
- entre esses direitos figura o direito ao bom nome e reputação, à credibilidade, à lisura no tráfego mercantil, o direito ao respeito, que tudo representa uma emanação do conceito de honra e consideração;
- o argumento, em contrário, deduzido do desaparecimento da norma do artigo 411 do Código Penal de 1886 - que tutelava as corporações que exerciam autoridade pública - é irrelevante: com efeito, nesse artigo previa-se uma punição agravada quando os crimes de difamação e injúria fossem praticados contra elas. Agora, se a corporação gozar de personalidade jurídica, nada impede que possa ser considerado sujeito passivo do crime, mas do crime geral;
- quanto ao argumento de não consagração legislativa do artigo 183 do Projecto da Parte Especial do Código Penal, que visava proteger as ofensas ao crédito e confiança que as pessoas colectivas merecem do público, também ele não procede. Porque, por um lado, se entende que tal protecção já está contida no artigo 164; por outro, se houvesse o propósito de afastar a incriminação no que toca às pessoas colectivas, fácil seria ao legislador manifestar essa intenção, referindo no artigo 164 pessoa singular.
Em suma: concluimos que as pessoas colectivas podem ser sujeito passivo nos crimes de difamação e de injúria.
3.5.3 O artigo em questão, publicado no jornal E......., na sua edição de 03/10/86, que é a transcrição de um outro publicado no mesmo semanário em 22/02/85, contem imputações que objectivamente, quer nas expressões verbais utilizadas, quer no seu conteúdo envolvente, não podem deixar de considerar-se ofensivas do bom nome e reputação da assistente " S......... " e da honra e consideração do assistente Manuel ..........., seu presidente do Conselho de Administração.
Aliás, no já citado acórdão desta Relação, de 25 de Novembro de 1987, fotocopiado a folhas 168 e seguintes, que considerou o ora recorrente como autor do escrito publicado em 22/02/85 ( nesse processo apenas a
" S.......... " se havia constituído assistente ), afirmou-se " que as expressões utilizadas no artigo, as referências nele feitas à sociedade " S........ " e a imputação de factos desonrosos à mesma sociedade são lesivos do bom nome dessa sociedade e ofensivos da honra e consideração a que a mesma tem direito e que a lei protege ".
Também o acórdão deste Tribunal, de 12 de Abril de 1989, junto a folhas 108 e seguintes, que ordenou o recebimento dos requerimentos acusatórios dos assistentes, não tem dúvidas de que as expressões usadas no artigo são objectivamente injuriosas em relação a qualquer dos assistentes.
E com efeito assim é. As expressões verbais utilizadas, globalmente enquadradas, reproduzidas em 3.2 deste acordão, " põem em causa a lisura de processos de actuação da S........ ", a honorabilidade dos seus elementos, a susceptibilidade para a corrupção e manipulação, a sua movimentação social motivada por interesses alheios àqueles a que estava vinculado " ( folhas 177 verso ); delas " flui a ideia nítida de que o arguido quis afirmar que a " Solverde " era uma associação de malfeitores e que ela e o assistente Manuel, que apelida de megalómano, obtêm favores das entidades oficiais em troca de outros favores menos lícitos ou honestos, permitindo que a eles se associem invertebrados, senis, prostituídos, etc., traduzindo o entendimento de que todos se medem pela mesma rasa " ( folhas 111 verso ).
Resumindo: no artigo foram atingidos o assistente Manuel e a " S..... ", enquanto sociedade dotada de personalidade jurídica e não apenas os seus órgãos dirigentes.
Por outro lado, não se nos oferecem dúvidas de que o arguido, jornalista experimentado já com 15 anos de carreira, ao escrever e promover a publicação desse artigo na edição de 03/10/86 - que, como concluimos, era objectivamente injurioso - não podia ter deixado de representar que as imputações dele constantes eram susceptíveis de ofender, como efectivamente ofenderam, o bom nome, a reputação, a honra e consideração dos assistentes, e, não obstante, conformou-se com esse resultado, que lhe era indiferente.
Ou seja, mostra-se preenchido o elemento subjectivo na forma de dolo eventual.
3.5.4 Alega o recorrente que, ao publicar a notícia da absolvição acompanhada de reprodução do artigo anteriormente publicado, exerceu legitimamente o direito de informar com base no artigo 75 do Código de Processo Penal e na liberdade de imprensa.
A questão que se nos coloca é saber se a reedição do artigo, nas circunstâncias concretas, constituiu o exercício do direito de informação com a virtualidade da justificação do facto. Por outras palavras: a publicação do artigo dirigiu-se à formação da opinião pública através da função da imprensa e respeitou os pressupostos a que anteriormente se aludiu, que consubstanciam causa justificativa da reprodução das imputações ofensivas do bom nome e honra dos atingidos?
É evidente que ao arguido assistia todo o direito de informar os leitores do seu jornal que fora absolvido, e, efectivamente, a notícia em si insere-se no exercício desse direito, tanto mais que, embora um tanto contraditoriamente afirme inicialmente que terminou o diferendo, conclui chamando a atenção de que da sentença poderá a exploradora do jogo recorrer à Relação.
Ao que, quanto a nós, já não lhe assistia o direito de reproduzir o artigo anterior.
Por um lado, não tendo a sentença, transitado em julgado, a repetição integral da imputação dos factos, que bem pode considerar-se gratuita e desnecessária ao esclarecimento da opinião pública, traduz uma renovação, agora a coberto de sentença absolutória, de ofensa à honra e consideração de outrem.
A notícia da absolvição podia fazer referência aos factos por uma forma sucinta e resumida, sem necessidade de reincidir na ofensa à honra de terceiros, tanto mais que o ora assistente Manuel, um dos atingidos no artigo, não havia tido intervenção processual nesse processo; se o arguido quisesse ir mais além no seu propósito de informar, então, em vez de repetir o artigo bem podia ter publicado a sentença.
Por outro lado, ao cabo e ao resto, essa notícia, longe de informar, desinformou. É que, quem a leu, nos termos em que se encontra redigida, terá ficado com a ideia de que o Tribunal reconhecera ao arguido o direito de utilizar as expressões consideradas injuriosas, quiçá, até, por serem verdadeiros os factos imputados.
Ora, a fundamentação da sentença não assentou nesse pressuposto. A absolvição foi decretada, não porque se não considerassem ofensivas, objectiva e subjectivamente, as imputações, mas, isso sim, por se ter entendido que uma pessoa colectiva não podia ser sujeito passivo do crime de difamação por a honra e consideração se prenderem apenas com a integridade moral da pessoa humana; e, mesmo que assim não se entendesse, por se considerar que o arguido não terá querido atingir a S....... directamente, mas sim a pessoa do Manuel e de outras pessoas não identificadas que mantinham ligação com essa sociedade mas que não tiveram intervenção no processo.
Conhecendo a fundamentação da sentença, sabendo portanto que esta não deixara de formular um juízo sobre o carácter, objectiva e subjectivamente, injurioso do texto, o arguido nem por isso se escusou de o
" relembrar ", transcrevendo-o já se vê injustificadamente.
Quer dizer, a notícia acompanhada da repetição do artigo, em vez de contribuir para o esclarecimento da opinião pública - como é função essencial da imprensa livre e democrática - confundiu, desinformou.
A transcrição do artigo não se revelava meio adequado e razoável do cumprimento do fim que a imprensa no exercício da sua função pública visa prosseguir, antes traduziu um meio desmedido e injustificado de atingir a honra das pessoas visadas.
Por outro lado, tendo-se dado como provado que as imputações não correspondiam à verdade e não se tendo demonstrado que o arguido tivesse anteriormente procurado comprovar a sua exactidão ou tivesse fundamentos sérios para, em boa fé, os reputar como verdadeiros, falece um outro pressuposto justificativo do facto, ou seja, que a imprensa não faça imputações que atinjam a honra de terceiros, cuja exactidão não tenha podido comprovar ou sobre a qual não tenha podido informar-se suficientemente.
Não concorre, pois, qualquer causa de exclusão da ilicitude ( cf. artigo 31, ns. 1 e 2, alínea b) do Código Penal ), nem motivo para isentar o arguido da pena ( cf. artigo 164, ns. 2 e 3 do mesmo Código ).
Em suma: sendo do conhecimento do arguido que a sentença não justificava a nova publicação do artigo, e excedendo essa publicação o cumprimento da função pública da imprensa, ao mesmo tempo em que traduziu um meio excessivo, reprovável, ilícito e injustificado de ofender a honra de terceiros, concorrendo ainda o elemento moral, é de concluir ter o arguido cometido o crime por que foi condenado: o previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 25, 26 n. 2, alínea d) do Decreto-Lei n. 85-C/75, de 26 de Fevereiro e 164, n. 1 e 167, n. 2 do Código Penal.
Contrariamente, porém, ao decidido na bem elaborada sentença recorrida, e porque os bens jurídicos tutelados são eminentemente pessoais, o arguido praticou não apenas um crime, mas dois em acumulação real
( cf. artigo 30, n. 1 do Código Penal ).
A pena mostra-se criteriosamente fixada, de acordo com os parâmetros legais, não havendo razões para a alterar. Só que, agora, tratando-se de dois crimes, e fazendo-a corresponder a cada um, condena-se o arguido na pena única de 160 ( cento e sessenta ) dias de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa diária de 300 escudos e 50 ( cinquenta ) dias de multa à mesma taxa, ou seja, na multa global de 63000 escudos, ou, em alternativa, em 140 ( cento e quarenta ) dias de prisão.
No mais ( tributação e indemnizações ) nada há a censurar.
IV - De harmonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso, alterando-se, porém, a sentença recorrida nos termos indicados, condenando-se, por isso, o arguido e ora recorrente, como autor de dois crimes, nas penas parcelares e única referidas.
Nos termos do disposto no artigo 175, ns. 1 e 3 do Código Penal, e pela forma referida neste último número, ordena-se que se dê conhecimento público da condenação.
A recorrente pagará 10000 escudos de imposto de justiça.
Porto, 30 de Maio de 1990
Vaz dos Santos
Hernâni Esteves
Ramiro Correia