Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11851/04.7TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ARRENDAMENTO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
CESSÃO DA EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO
INTERRUPÇÃO DA EXPLORAÇÃO
Nº do Documento: RP2010111611851/04.7TJPRT.P1
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 11º E 115º DO RAU.
ARTº 342º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I- Num estabelecimento de restauração, a clientela, os empregados e as mercadorias não são elementos integrantes necessariamente essenciais do mesmo.
II- Tal acontece, nomeadamente nos casos, em que se verificou uma interrupção da sua exploração, não tendo que acompanhar a sua transferência para terceiros, aquando da realização de um negócio de cessão de exploração, para que este não seja desqualificado, nos termos do n.° 2, do art.° 111°, do RAU.
III- Numa cessão de exploração de um estabelecimento comercial e industrial, não é absolutamente necessário que a clientela, os empregados, e as mercadoria tenham uma ligação com o cedente.
IV- Basta pensarmos nos casos em que ocorrem sucessivas cessões de exploração, nos quais a clientela, os empregados e as mercadorias não têm qualquer ligação com o cedente, tendo os clientes sido angariados, os empregados contratados e as mercadorias compradas pelo anterior cessionário.
V- O ónus da prova da verificação da circunstância prevista na alínea a), do n.° 2, do art.° 115º, pertence ao senhorio, uma vez que lhe compete demonstrar os factos constitutivos do direito de resolução que invoca — art.° 342°, n.° 1, do C. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 11851/04.7TJPRT.P1 do 4º Juízo – 3ª secção dos Juízos Cíveis do Porto
Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues

Autor habilitado: B……….

Réus: C………..
D….….....
E… …….
F….…….
G……….
H……….
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Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto

I……… intentou a presente acção de despejo com processo sumário, pedindo a resolução do contrato de arrendamento que a une ao Réu D……… e o consequente despejo do locado.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
É dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua …., n.º .. a .. da freguesia de …., no Porto.
Por contrato escrito celebrado em 26.10.1924, um dos anteriores proprietário do mesmo – J……. & Companhia – deu de arrendamento a E…….. uma loja e um andar por cima dela, do referido prédio, mediante o pagamento de uma renda mensal de 600$00, pelo período de um ano, renovável, com início a 1.1.1925.
Tal contrato tinha por objecto a exploração de uma casa de pasto e restaurante.
Em 30.11.1988, o estabelecimento comercial que a partir da data supra referida passou a funcionar na loja e andar arrendados foi adquirido por trespasse, celebrado por escritura pública, pela 1ª Ré e por K……., tendo esta falecido em 1995 e que era cônjuge do 3º Réu e mãe dos 4º, 5º e 6º Réus.
A 14.2.1996, a Autora intentou contra os aqui 1ª, 3º, 4º, 5º e 6º Réus uma acção de despejo que foi julgada procedente por decisão que transitou em julgado a 5.5.1998.
Executado o despejo, o arrendado foi entregue à Autora livre de pessoas e bens, em 26.6.1998.
Em 8.6.1998 o agora 2º Réu, deduziu embargos de terceiro contra o mandado de despejo, os quais foram a 24.6.2003 julgados procedentes, por decisão que transitou em julgado. Em 12.5.2003, o ora 2º Réu executou a decisão dos embargos de terceiro, contra a qual a aqui Autora deduziu embargos de executada que foram liminarmente rejeitados e cuja decisão transitou em julgado.
Em 23.7.1998, na sequência da entrega que lhe havia sido feita do arrendado, a Autora, através de escritura pública, deu o mesmo de arrendamento a L……, o qual, desde essa data e até 12.5.2003 ali exerceu a actividade de restauração de forma contínua e ininterrupta, equipando o estabelecimento com o necessário para a prossecução do seu fim.
Apesar da entrega que lhes foi feita a 12.5.2003, os Réus não voltaram a exercer qualquer actividade no arrendado.
A 17.6.2003, por escritura pública, os Réus cederam a M…….. a exploração do mesmo estabelecimento, do que deram conhecimento, por escrito, à Autora, em 14.7.2003. A Autora respondeu a tal missiva dos Réus, informando-os que não os reconhecia como arrendatários e que não podiam ceder a terceiro, por não terem a exploração do estabelecimento em causa.
Os Réus comunicaram à Autora que passariam a depositar a renda na CGD.
A 17.12.2003, os Réus, por escritura pública, celebraram um novo contrato de cessão de exploração do indicado estabelecimento com N……, facto de que deram conhecimento à Autora, por escrito, a 19 do mesmo mês e ano.

Os Réus contestaram a acção, defendendo que através dos referidos contratos cederam efectivamente a exploração do estabelecimento comercial e não a sua posição contratual no contrato de arrendamento que os vincula àquela.
Deduziram, para a hipótese de procedência da acção, pedido reconvencional, alegando a realização de diversas benfeitorias no locado, efectuadas por eles, de que pretendem ser indemnizados.
Concluíram pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido ou, na eventualidade de procedência da mesma, pela condenação da Autora a pagar-lhes, a título de indemnização pelas benfeitorias, a quantia de € 7.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da data da reconvenção e até efectivo e integral pagamento.
Requereram ainda a condenação da Autora como litigante de má fé.

A Autora replicou, mantendo o alegado na petição inicial e defendendo a improcedência da reconvenção e a sua consequente absolvição da pretensão nela formulada pelos Réus.
Pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do pedido de litigância de má fé.

Veio a ser proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os Réus do pedido e considerou insubsistente o pedido de litigância de má fé.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Autora recurso de apelação, que já não motivou por, entretanto, ter falecido, o que determinou, após a comprovação do óbito, a suspensão da instância.
Na sequência de incidente deduzido para o efeito, foi habilitado como único e universal herdeiro daquela, B…….., o qual apresentou as alegações do recurso.

Neste recurso foi proferida decisão que anulou a resposta dada ao facto 28º da petição inicial, determinando, nessa parte, a repetição do julgamento e a prolação de nova sentença que julgou a acção improcedente.
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Inconformado com esta decisão dela recorreu o Autor, apresentando as seguintes conclusões:
…………….
…………….
…………….
Os Réus apresentaram contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão.
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1. Do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações do Recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
a) O facto alegado sob o n.º 28º da petição inicial deve ser julgado provado?
b) O Autor tem direito à resolução do contrato de arrendamento?
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2. Os Factos
2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto
O Autor, discordando da decisão da matéria de facto, pretende que, após reapreciação da prova produzida, seja considerada provada a factualidade alegada no art.º 28º da petição inicial.
É este o conteúdo do art.º 28º da petição inicial:
Se o estabelecimento objecto da cessão, como é o caso, não possui qualquer tipo de equipamento e mercadoria propriedade dos cedentes, aqui RR., não tem clientela dos RR., nem empregados dos RR., pois os cedentes aqui RR não exerciam lá qualquer actividade, nem a exerceram a partir de 12 de Maio de 2003, não estamos perante uma cessão mas sim perante um arrendamento.
Na sequência do acórdão proferido por este tribunal em 14.10.08, foi ordenada a repetição da produção de prova quanto a esta matéria, tendo a mesma sido considerada não provada.
Em primeiro lugar, cumpre filtrar a redacção do art.º 28.º da p.i., de modo a eliminar tudo o que não seja matéria de facto.
São os seguintes os factos que se mostram alegados no referido art.º 28º da p.i.:
1.º - os Réus não exerceram qualquer actividade no estabelecimento cuja exploração foi cedida a N…….., a partir de 12 de Maio de 2003.
2.º - esse estabelecimento quando foi cedido à N……… não tinha clientela dos Réus,
3.º - nem empregados dos Réus,
4.º - nem qualquer tipo de equipamento e mercadoria propriedade dos Réus.
O primeiro facto já consta como provado dos pontos 16 e 17 da sentença recorrida.
O segundo e terceiro factos não se mostram impugnados pelos Réus na contestação que deduziram, pelo que devem ser considerados provados, nos termos do artigo 490º, n.º 2, do C. P. Civil.
Quanto à inexistência no estabelecimento de equipamento e mercadoria pertencente aos Réus, aquando da cedência da sua exploração à N………, se é certo que do depoimento da testemunha O…….. que trabalhou no estabelecimento como empregado de mesa de L……., resulta que parte do equipamento pertencia ao referido L……., o que é confirmado pela decisão proferida nos autos de embargos de terceiro n.º 178-F/86, não é possível concluir com o grau de certeza exigível que nenhum do equipamento existente no estabelecimento pertencesse aos Réus.
Já relativamente à mercadoria, sendo o estabelecimento em causa de restauração e não o explorando directamente os Réus desde 1998, é crível que nele já não existisse qualquer mercadoria àqueles pertencente, conforme afirmou a testemunha O……….
Assim, relativamente à matéria constante do art.º 28º, da p.i., além do que já consta dos pontos 16 e 17 da sentença recorrida, deve ser considerado provado que o estabelecimento em causa, quando a sua exploração foi cedida a N………, não tinha clientela dos Réus, nem empregados dos Réus, nem mercadoria dos Réus, alterando-se assim a decisão da matéria de facto neste segmento.
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2.2. Factos provados

São os seguintes os factos provados:
1º - I……. é proprietária de um prédio constituído por cinco pavimentos, sito na Rua …., nºs …. a …., da freguesia de ….., concelho do Porto, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número 31 604, a fls. 183 do Livro 99, com a inscrição número 74 467, a fls. 156 do Livro G 90, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ……. sob o artigo 114.
2º - Durante vários anos no imóvel referido em 1º teve lugar a exploração de uma casa de pasto e restauração que foi sucessivamente explorada por diversas pessoas.
3º - Tendo o estabelecimento referido em 2º chegado à propriedade da primeira Ré e de K………, entretanto falecida no dia 05 de Maio de 1995, e que era mulher do terceiro Réu e mãe dos quarto, quinto e sexto Réus que são os seus únicos e legítimos herdeiros.
4º - Que haviam adquirido o estabelecimento por escritura pública de trespasse celebrada no dia 30 de Novembro de 1988, no Cartório Notarial de Espinho a P…….. e marido Q…….., que por sua vez o haviam adquirido por igual forma a R…….., por escritura pública celebrada no dia 13 de Dezembro de 1995 no Terceiro Cartório Notarial do Porto.
5º - Em 26 de Junho de 1998, os Réus eram os legítimos arrendatários do R/C e do 1.º andar do prédio referido em 1.º, onde funcionava o aludido estabelecimento, pelo qual pagavam a renda mensal de ESC.: 28.000$00 (facto rectificado, nos termos do art.º 712º, n.º 1, b), do C. P. Civil, tendo em consideração o alegado no artigo 7.º da p.i., sobre o qual recaiu acordo das partes, e que remetia para o doc. n.º 2, donde resultava que os Réus eram arrendatários não do estabelecimento que funcionava no locado, mas sim do próprio locado).
6º - No dia 14 de Fevereiro de 1996, a primitiva Autora intentou contra a primeira Ré e contra os terceiro, quarto, quinto e sexto Réus uma acção de despejo, acção essa que correu seus termos na, agora, 6ª Vara, 2ª secção das Varas Cíveis do Porto, com o nº 178/96.
7º - Em tal acção foi decretado o despejo, com decisão transitada em julgado em 05 de Maio de 1998, executando-se o despejo em 26 de Junho de 1998.
8º - Data na qual o arrendado foi entregue livre de pessoas e bens à primitiva Autora.
9º - A tal mandado de despejo, o segundo Réu deduziu embargos de terceiro em 08 de Junho de 1998, embargos esses que foram liminarmente indeferidos em 23 de Junho de 1998.
10º - A tal despacho o aqui segundo Réu recorreu, recurso esse que por acórdão de 26 de Novembro de 2001 decide que os embargos devem prosseguir.
11º- Tendo os mesmos sido julgados procedentes em 02 de Maio de 2002, com decisão transitada em julgado, após recursos para o Tribunal da Relação do Porto e Supremo Tribunal de Justiça em 24 de Junho de 2003.
12º - No dia 12 de Maio de 2003, são executados os embargos, dado o recurso para o S.T.J. não ter efeitos suspensivos, tendo o estabelecimento em causa sido entregue ao Embargante, aqui segundo Réu.
13º - A primitiva Autora deduziu, nesse processo, embargos de executada, que foram rejeitados liminarmente em 30 de Maio de 2003, com decisão transitada em julgado.
14º - No dia 23 de Julho de 1998, a primitiva Autora, no seguimento do despejo, arrendou o estabelecimento referido em 2º a L……., por escritura pública celebrada no Terceiro Cartório Notarial do Porto, pelo prazo de um ano renovável e pela renda mensal de Esc.: 180.000$00.
15º - Desde essa data e até ao dia 12 de Maio de 2003, L……… exerceu aí a sua actividade de restauração de forma contínua e ininterrupta.
16º - Desde o dia 26 de Junho de 1998 que nenhum dos Réus exerceu no estabelecimento qualquer actividade.
17º - O mesmo acontecendo após a execução dos Embargos de 12 de Maio de 2003.
18º - Foi enviada à primitiva Autora a missiva que se mostra junta de fls. 48 a 53 dos autos.
19º - A primitiva Autora enviou ao mandatário dos Réus a missiva que se mostra junta de fls.54 dos autos, tendo este respondido através da missiva que se mostra junta a fls.57 dos autos.
20º - Foi enviada à primitiva Autora, que recebeu, a missiva que se mostra junta de fls.59 dos autos acompanhada de cópia de fls. 60 a 61 dos autos.
21º - No período compreendido entre 23 de Julho de 98 e o dia 12.5.2003, o estabelecimento foi explorado por L……..
22º - Os Réus não abriram as portas do estabelecimento no período compreendido entre 12.5.2003 e 17.6 desse mesmo ano.
23º - No apenso “B” do processo que sob o nº 178/96, da 6ª Vara, 2ª Secção das Varas Cíveis do Porto, veio a ser proferido despacho saneador-sentença que julgou procedentes por provados, os embargos de terceiro apresentados pelo aqui Réu D…….., o qual se mostra junto de fls.133 a 150 dos presentes Autos.
24º - Essa mesma decisão judicial ordenou que o ali embargante e aqui Réu D……., fosse restituído à posse do locado, que era o local onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial de restaurante (facto rectificado, nos termos do art.º 712º, n.º 1, b), do C. P. Civil, tendo em consideração o teor do doc. de fls. 133 a 150).
25º - Essa decisão veio a ser posteriormente confirmada quer pelo Tribunal da Relação do Porto, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, por intermédio de decisões transitadas em julgado.
26º - O Réu D…….. apresentou acção executiva para entrega de coisa certa, que correu termos no apenso “C” do referido processo nº 178/96, com vista à execução das decisões judiciais que se mostram juntas de fls.162 e seguintes e por essa via obter a restituição da posse do aludido estabelecimento comercial.
27º - Por intermédio de auto de entrega datado de 12 de Maio de 2003, foi entregue ao Réu D…… a posse do referido estabelecimento de “casa de pasto e restaurante” designada “S…….”, sita na Rua …., nºs …. a …., freguesia de …., no Porto.
28º - A primitiva Autora deduziu incidente de prestação de caução por apenso ao referido processo nº 178/96, com vista a evitar a entrega do estabelecimento ao aqui Réu D…….
29º - Por intermédio de decisão proferida no apenso “E” do referido processo nº 178/96, da 6ª Vara, 2ª Secção, tal incidente foi liminarmente indeferido, por intermédio de decisão transitada em julgado.
30º - A primitiva Autora deduziu igualmente um processo de embargos de executado por apenso ao referido processo nº 178/96, com vista igualmente a evitar a entrega do mesmo estabelecimento ao aqui Réu D……..
31º - Por intermédio de decisão proferida no apenso “D” do referido processo nº 178/96, da 6ª Vara, 2ª Secção, tal processo de embargos foi liminarmente indeferido, por intermédio de decisão transitada em julgado, que se mostra junta de fls.128 a 132.
32º - O Réu D…….., até ao mês de Setembro de 2003 pagou à primitiva Autora, a título de renda do locado, a quantia de € 129,62.
33º - O correspondente pagamento foi e tem sido realizado através de depósito numa conta aberta em nome da Autora na Caixa Geral de Depósitos, em virtude de a mesma ter recusado o recebimento da renda e emissão do correspondente recibo.
34º - O Réu D……. procedeu ao depósito condicional à ordem da primitiva Autora da diferença entre o referido valor de € 139,66 e o valor de € 129,62, acrescido da indemnização legal de 50%, no total de € 239,43.
35º - L……. intentou embargos de terceiro, os quais sob o nº 178-F/96, correram termos na já mencionada 6ª Vara, 2ª Secção das Varas Cíveis do Porto.
36º - No referido processo nº 178-F/96, foi proferida sentença que julgou improcedentes, por não provados, os embargos de terceiro deduzidos pelo dito L……., também na parte respeitante à posse sobre os bens móveis que integram esse estabelecimento, decisão da qual foi interposto recurso para o Tribunal da Relação, o qual através do Acórdão datado de 18.11.2004 revogou a decisão da 1ª instância, determinando a restituição a L…….. dos bens enumerados no auto de entrega que está certificado a fls. 308 e 309.
37º- Desde pelo menos Maio de 2003 o estabelecimento comercial em causa vinha a ser explorado por N……...
38º- Por intermédio de contratos celebrados respectivamente em 17 de Junho e 17 de Dezembro de 2003, os aqui Réus cederam a N…….. a exploração do estabelecimento comercial de casa de pasto e vinhos sito na Rua …. nº …, freguesia de ….., deste concelho.
39º - No período compreendido entre 12.5.2003 e 17.6 desse mesmo ano ocorreu a negociação entre os Réus e N…….. com vista à definição dos termos e condições do contrato a que se alude em 38º, a qual foi complexa e demorada face ao litígio pendente entre as partes no processo que corria termos na 2ª secção da 6ª Vara Cível do Porto.
40º - Os Réus enviaram à Autora a missiva que se mostra junta de fls. 172 a 175, a qual foi enviada para a morada constante de fls. 175, não tendo tal missiva sido reclamada pela respectiva destinatária, conforme informação nela aposta pelos serviços postais.
41º - O estabelecimento em causa, quando a sua exploração foi cedida a N…….., não tinha clientela dos Réus, nem empregados dos Réus, nem mercadoria dos Réus.
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3. O direito aplicável

A primitiva Autora intentou a presente acção de despejo, exercendo o direito de resolução do contrato de arrendamento que ainda a unia ao Réu D…….. e referente ao R/C e 1.º andar, do prédio urbano sito na Rua …., n.º … a …. da freguesia de …., no Porto. Fundamentou a sua pretensão no facto deste ter cedido a posição de arrendatário a terceiros.
Por sua vez, os Réus sustentaram que apenas cederam a exploração do estabelecimento comercial que funciona no arrendado, o que não confere ao senhorio o direito a resolver o contrato de arrendamento.
Previamente refere-se que, situando-se a causa resolutiva invocada em 2003, a legislação aplicável é a vigente nessa altura, designadamente o disposto no RAU.
O art.º 64º, n.º 1, f), do RAU, conferia ao senhorio o direito de resolver o contrato se o inquilino subarrendasse o locado ou cedesse a sua posição contratual, quando esses actos fossem ineficazes relativamente ao senhorio.
Mas nos arrendamentos para comércio ou indústria, não era havido como arrendamento o contrato pelo qual alguém transferisse temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio a exploração de um estabelecimento nele instalado – art.º 111º, n.º 1, do RAU.
Estas situações escapavam à alçada na referida alínea f), de modo a facilitar a transmissão temporária dos estabelecimentos comerciais e industriais, numa opção proteccionista das respectivas actividades económicas.
Estes contratos eram designados como contratos de cessão de exploração de estabelecimento comercial ou industrial [1].
Com estes contratos ocorria unicamente uma alteração subjectiva da gestão do estabelecimento, tido como universalidade, e da qual faz parte o próprio local onde o mesmo se encontrava instalado, estabelecimento esse que continuava a ser o mesmo e titulado pelo mesmo arrendatário e sobre o qual continuavam a impender as mesmas obrigações que defluem do contrato de arrendamento.
Contudo, o n.º 2, do art.º 111º, do RAU, determinava que se ocorresse alguma das circunstâncias previstas no n.º 2, do art.º 115º, o contrato passava a ser havido como arrendamento do prédio.
Na alínea a), do n.º 2, do art.º 115º, do RAU, onde se regulava a transmissão definitiva de estabelecimentos comerciais e industriais, previa-se a circunstância da transmissão acordada não corresponder, na prática, a uma transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integrassem o estabelecimento.
Nesses casos, o legislador, abstractamente, considerava que se verificava uma simulação negocial e que o negócio declarado de transmissão de um estabelecimento apenas encobria um negócio real de transmissão do gozo das suas instalações, impondo, por isso, a sua qualificação de acordo com esta realidade presumida.
Com esta medida legislativa visava-se evitar a prática de actos englobados na alínea f), do n.º 1, do art.º 64º, do RAU, fraudulentamente encobertos sob a capa do negócio admitido pelo n.º 1, do art.º 111º, do mesmo diploma.
Assim, para haver um verdadeiro contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial ou industrial era necessário que o seu objecto fosse um estabelecimento, bastando para tal que o complexo da organização económica que lhe subjaz estivesse apto a entrar em funcionamento, mesmo que a respectiva exploração nunca se tivesse iniciado, ou que tivesse sido interrompida ou suspensa.
E para que isso sucedesse não era exigível que o estabelecimento não pudesse estar desfalcado de algum ou alguns dos seus elementos não essenciais. O que não podia faltar eram precisamente os elementos essenciais à sua existência, o que só no caso concreto era possível precisar.
Da matéria fáctica provada resulta que o Réu D…….. era arrendatário comercial de parte de um prédio, onde funcionava um estabelecimento de restauração, tendo sido indevidamente desapossado do arrendado por acto de despejo judicial em que não interveio.
No período em que ficou sem o gozo do arrendado, o senhorio arrendou-o a terceiro que continuou aí a explorar um estabelecimento de restauração.
Restituído à posse do arrendado por acto judicial, na sequência do reconhecimento da sua qualidade de arrendatário, o Réu D………, acompanhado dos seus compartes, declarou ceder a exploração do estabelecimento de restauração ali existente a terceira pessoa.
Relativamente a esta transmissão provou-se apenas que, desde o dia 26 de Junho de 1998, nenhum dos Réus havia exercido no estabelecimento qualquer actividade, o mesmo acontecendo após a execução da decisão proferida nos embargos de terceiro de 12 de Maio de 2003, e que o estabelecimento em causa, quando a sua exploração foi cedida a N……, não tinha clientela dos Réus, nem empregados dos Réus, nem mercadoria dos Réus.
Em primeiro lugar, estando nós perante um estabelecimento de restauração, a clientela, os empregados e as mercadorias não são elementos integrantes necessariamente essenciais do mesmo[2], nomeadamente nos casos, como o sub iudice, em que se verificou uma interrupção da sua exploração, não tendo que acompanhar a sua transferência para terceiros, aquando da realização de um negócio de cessão de exploração, para que este não seja desqualificado, nos termos do n.º 2, do art.º 111º, do RAU.
Em segundo lugar, apenas se provou que a cessão de exploração questionada não foi acompanhada de transferência de clientela dos Réus, nem de empregados dos Réus, nem de mercadoria dos Réus, o que não exclui que esses elementos tenham acompanhado a transmissão do estabelecimento, apesar da clientela não ter sido angariada pelos Réus, os empregados não terem sido contratados por eles e as mercadorias não lhes pertencerem. Na verdade, numa cessão de exploração de um estabelecimento comercial e industrial, não é absolutamente necessário que tais elementos tenham uma ligação com o cedente. Basta pensarmos nos casos em que ocorrem sucessivas cessões de exploração, nos quais a clientela, os empregados e as mercadorias não têm qualquer ligação com o cedente, tendo os clientes sido angariados, os empregados contratados e as mercadorias compradas pelo anterior cessionário.
O ónus da prova da verificação da circunstância prevista na alínea a), do n.º 2, do art.º 115º, pertence ao senhorio, uma vez que lhe compete demonstrar os factos constitutivos do direito de resolução que invoca – art.º 342º, n.º 1, do C. Civil.
Não tendo logrado fazer essa prova, os contratos de cessão de exploração celebrados pelos Réus não podem ser qualificados, nos termos do n.º 2, do art.º 111º, do RAU, pelo que a sua celebração não integra a previsão do artigo 64º, n.º 1, f), do RAU, não conferindo ao senhorio um direito à resolução do contrato de arrendamento.
Deste modo, deve ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas do recurso pelo Recorrente.
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Porto, 16 de Novembro de 2010
Sílvia Maria Pereira Pires
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
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[1] Leia-se a história do aparecimento (e interesses que a justificam) desta figura contratual no direito estrangeiro e nacional em Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial, de ORLANDO DE CARVALHO, respectivamente a pág. 268 e seg. e 211 e seg., da ed. de 1967.
[2] Relativamente à clientela, vide, neste sentido, Barbosa de Magalhães, em Do estabelecimento comercial, pág. 69-70, ed. de 1951, Januário Gomes, em Arrendamentos comerciais, pág. 61, da ed. de 1986, da Almedina, Fernando Cardoso, em Reflexões sobre o estabelecimento comercial ou industrial e respectivo contrato de aluguer, pág. 46-54, da ed. de 1991, da Livraria Portugalmundo Editora.
Relativamente às mercadorias, vide, neste sentido, Fernando Cardoso, na ob. cit., pág. 78-79, e o Acórdão da Relação de Évora, de 7.7.1977, na C.J., Ano II, tomo IV, pág. 887.