Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0823239
Nº Convencional: JTRP00041524
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PREFERÊNCIA
NOTIFICAÇÃO PARA PREFERÊNCIA
ELEMENTOS ESSENCIAIS
RENÚNCIA
DESTINO DO PRÉDIO
VENDA POR PREÇO GLOBAL
PRÉDIO RÚSTICO
LOGRADOURO
Nº do Documento: RP200806180823239
Data do Acordão: 06/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 277 - FLS. 10.
Área Temática: .
Sumário: I-. A comunicação ou notificação para preferir é mais que uma simples proposta para contratar, já que o preferente pode não aceitar a proposta para contratar e querer, todavia, preferir na venda mais tarde ajustada pelo obrigado à preferência.
II-. A identificação do comprador e o preço a pagar, discriminado por cada um dos prédios projectados vender, constituem os elementos decisivos para a formação da vontade de contratar, na específica preferência do confinante.
III-. Se não existe comunicação do concreto projecto de venda, não existe possibilidade de abdicar expressamente do direito de preferência (renúncia), ou de o ver extinto em consequência de inacção do respectivo titular durante determinado período de tempo - caducidade.
IV-. O "fim" a que a lei alude no art. 1381° al.a) C.Civ. não pode ser um fim meramente potencial ou virtual – há que configurar um projecto actual e viável diferente da cultura, prova que incumbe ao Réu.
V-. Não existe venda por preço global, nem ao caso pode ser aplicável o disposto no art. 417° nº1 C.Civ., se na escritura se mostra concretamente discriminado o preço dos diversos bens objecto do contrato.
VI-. A definição de um concreto espaço como prédio urbano ou prédio rústico não depende de critérios matriciais ou registrais, nem da configuração que lhe é dada pelos contraentes em contrato de compra e venda, mas antes da actividade do intérprete, em conjugação com o disposto no art. 204° C.Civ.
VII-. A definição de logradouro, integrante de prédio urbano (art 204° nº 2, 2ª parte, C.Civ.), abrange o terreno adjacente à casa, com carácter de quintal, pátio ou jardim, e o terreno de horta com árvores, na dependência de moradia, servindo de aproveitamento ou suporte às necessidades ocasionais dos donos da casa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº……/04.4TBESP, do ….º Juízo da comarca de Espinho.
Autora – B……………….., Ldª.
Réus – C…………….. e D……………..

Pedido
a) Que se reconheça o direito de preferência da A. na compra e venda celebrada entre os RR., relativamente ao prédio rústico identificado no artº 11º da P.I., com o direito de aquela fazer seu este prédio rústico, procedendo aos inerentes actos registrais, uma vez depositado o preço respectivo;
b) que seja ordenado o cancelamento da inscrição a favor do Réu comprador.
Pedido Reconvencional Subsidiário
Que a preferência seja exercida sobre a totalidade dos prédios e a Autora seja condenada a pagar ao Réu a quantia de € 72.325,70, acrescida das despesas de sisa e escritura, num total de € 75 058,61.

Tese da Autora
É dona de um prédio rústico, situado na freguesia de …….., com a área de 1829 m2, que confina pelo Norte com outro prédio rústico, que a Ré C……………. vendeu ao Réu D………….., prédio esse também com área inferior à unidade de cultura.
A Ré não deu conhecimento à Autora da venda projectada e realizada.
Tese da Ré vendedora
Invocam a renúncia à preferência por parte da Autora, que oferecia apenas um preço pelo conjunto predial muito inferior àquele pelo qual o prédio foi efectivamente vendido.
A Autora apresentou na edilidade um projecto de construção e uma viabilidade para o seu terreno, pelo que não visa qualquer actividade de cultivo, ou similar, no terreno vendido.
Nenhum dos dois prédios vendidos pela Ré tem aptidão agrícola ou visa ser destinado a aproveitamento agrícola.

Tese do Réu comprador
A Autora teve conhecimento dos elementos essenciais do contrato muito mais de seis meses antes da propositura da acção, por comunicação da Autora, antes de Maio de 2003.
Tendo a Autora recusado preferir nas condições comunicadas, verifica-se a caducidade do direito de preferir.
A Ré adquiriu o prédio misto em apreço para nele exercer a actividade de restauração, fazendo as obras necessárias nas casas de habitação para as adaptar a restaurante e afins.
A Autora não depositou o valor da sisa e despesas de escritura, pelo que, também por esse motivo, procede a excepção de caducidade.
Ainda que a Autora gozasse do direito de preferência, sempre teria de o exercer em relação à totalidade do prédio vendido, dado que a separação das partes rústica e urbana provoca considerável prejuízo – artº 417º C.Civ.
Exercendo esse direito sobre a totalidade do prédio, sempre o Réu teria o direito de receber da Autora o preço pago, acrescido da sisa e das despesas da escritura.

Sentença
A sentença proferida pelo Mmº Juiz “a quo” conduziu à improcedência integral da acção, com absolvição dos RR. do pedido.

Conclusões do Recurso de Apelação
1ª - Existiu erro na apreciação da matéria de facto, atentas as provas documental e testemunhal, nas respostas dadas aos qq. 4º, 14º, 15º, 16º, 17º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º, que deveriam ter sido substituídas pelas respostas contrárias (4º, provado, 14º, 15º, 16º, 17º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º, não provados).
2ª - Em momento algum a Apelada deu conhecimento à Apelante da venda projectada e realizada, designadamente com o preço, as condições de pagamento e a identidade do comprador.
3ª - Não é bastante a mera intenção subjectiva de pretender dar outro destino ao prédio alienado para afastar o direito de preferência da Apelante, tornando-se necessário demonstrar que a finalidade de construção é exequível por lei.
4ª - A douta sentença violou a al.a) do nº 1 do artº 1381º C.Civ. e os artºs 653º nº 2 e 659º nºs 2 e 3 C.P.Civ., por erro na apreciação das provas.
5ª - A mudança pretendida na matéria de facto deve conduzir à procedência da acção.

Em contra-alegações, os RR. pugnam pela manutenção do decidido.

Factos Apurados em 1ª Instância
1 – Encontra-se inscrita a favor da A. a aquisição, por compra e permuta, do prédio rústico, sito no lugar da ………., freguesia de ………, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº1055/020997 e inscrito na matriz predial rústica sob o art.728º; [A) dos factos assentes]
2 – Por escritura pública de 10 de Setembro de 2003, a ré declarou vender ao réu, que declarou aceitar, o prédio rústico, sito no mesmo lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº1737/280103 e inscrito na matriz predial rústica sob o art. 727º, pelo preço de 38.906,24 euros, já pago; [B) dos factos assentes]
3 – Na mesma escritura, a ré declarou vender ao réu, que declarou aceitar, o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar, destinada a habitação, sito na Rua ……….., da mesma freguesia, pelo preço de 33.419,46 euros, já pago; [C) dos factos assentes]
4 – Mais mencionaram que os prédios eram vendidos pelo preço global de 72.325,70 euros; [D) dos factos assentes]
5 – O prédio referido sob o número 1 tem a área de 1829 m2 e confina a norte com o prédio referido sob o número 2, o qual tem a área de 1400 m2; [E) e F) dos factos assentes e resposta ao quesito 1º]
6 – O réu não era proprietário de qualquer prédio rústico confinante com o prédio mencionado sob o número 2; [G) dos factos assentes]
7 – O prédio referido sob o número 1 tem aptidão agrícola, destinando-se ao cultivo de milho, feijão, erva e palha, e que é a sua única aplicação legalmente possível; o prédio referido sob o número 2 tem idêntica aptidão agrícola; [respostas aos quesitos 2º e 3º]
8 – A A. dedica-se exclusivamente à actividade de construção civil e desde que adquiriu o prédio referido sob o número 1 este não foi objecto de qualquer intervenção agrícola, hortícola ou agro-pecuária; a A. adquiriu tal prédio para o exercício da sua actividade de construção civil e procedeu à sua terraplanagem [H) e I) dos factos assentes e respostas aos quesitos 16º e 17º]
9 – Para esse prédio, a A. apresentou na Câmara Municipal de Espinho um pedido de viabilidade de construção, integrado por um pedido de aprovação de um projecto de loteamento do respectivo terreno para a sua divisão em 7 lotes, um deles localizado na parte ocupada pela casa de habitação que existia em tal terreno e que a A. já demoliu, projecto esse no qual a A. classificou o seu prédio como urbano [J) dos factos assentes e respostas aos quesitos 12º, 18º, 19º e 20º]
10 – Porque tal prédio está inserido em zona rural e não apresenta viabilidade construtiva, tal pedido de viabilidade foi indeferido pela Câmara Municipal de Espinho; [resposta ao quesito 27º]
11 – O prédio identificado sob o número 2 sempre foi utilizado como quintal e complemento das casas de habitação que compõem o prédio referido sob o número 3, servindo aos seus moradores de horta para subsistência doméstica; sem esse logradouro, o prédio referido sob o número 3 fica desvalorizado; [respostas aos quesitos 21º, 22º, 23º e 24º]
12 – O réu adquiriu os prédios mencionados sob os números 2 e 3 por serem juntos indispensáveis à concretização do projecto de construção e adaptação das casas de habitação a restaurante; [resposta ao quesito 25º]
13 – Quando a A. e a ré estabeleceram negociações a propósito da alienação dos prédios referidos sob os números 2 e 3, pretendia então a A. adquirir apenas o primeiro deles; o que a ré recusava, porque sempre pretendeu vender conjuntamente ambos os prédios; [respostas aos quesitos 5º, 6º e 7º]
14 – Durante o ano de 2002, a ré voltou a contactar a A. para vender-lhe os dois prédios, o que ela recusou; até que a A. propôs a aquisição de ambos os prédios pela importância de 10.000.000$00 e perante a resposta da ré de que por esse valor não vendia, a A. disse-lhe que não lhe dava nem mais um centavo; [respostas aos quesitos 8º, 9º e 10º]
15 – Pelo menos até Junho de 2003 a ré deu conhecimento à A. que o réu aceitava pagar, pela aquisição dos prédios indicados sob os números 2 e 3, o valor de 72.325,70 euros, ao que a A. respondeu que por esse preço não lhe interessava comprar. [respostas aos quesitos 14º e 15º]

Fundamentos
A questão colocada pelo presente recurso prende-se com a análise das respostas dadas em 1ª instância aos quesitos 4º, 14º, 15º, 16º, 17º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º (que, na tese da Apelante, deveriam ter sido substituídas pelas respostas contrárias - q. 4º, provado, qq. 14º, 15º, 16º, 17º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º, não provados) e consequências de tal alteração na decisão de mérito.
Vejamos pois de seguida.
I
Começaremos por analisar a impugnada matéria de facto – para o efeito procedemos à audição integral dos suportes magnéticos áudio referentes ao julgamento da causa.
No quesito 4º perguntava-se se “a Ré não comunicou à Autora o preço da venda do prédio e as restantes cláusulas do negócio identificado em B”; foi respondido “não provado”.
Passaremos por sobre a observação que o quesito em referência (e a resposta ao mesmo) não respeitam a divisão do ónus de prova que sobre as partes impende em acção de preferência.
Na verdade, e consoante resulta do artº 342º nºs 1 e 2 C.Civ., encontram-se os autores onerados com a demonstração dos factos constitutivos do direito que se arrogam e os réus com a demonstração dos factos extintivos, modificativos e impeditivos do direito invocado. Nestes termos, e de acordo com a apontada norma, cabe ao titular do direito de preferência fazer a prova dos factos de que depende a existência do seu direito, ou seja, provar, em concreto, a respectiva qualidade de preferente; todavia, não lhe incumbe já demonstrar a falta da comunicação a que alude o artº 416º nº1 C.Civ.
A realização dessa comunicação para preferir, conjugada com o não exercício tempestivo do direito de preferência, integra um facto extintivo do direito invocado pelo preferente, cuja prova ao réu incumbe – artº 342º nº2 C.Civ.
É esta a habitual orientação doutrinária dos nossos tribunais, à qual aderimos – cf., por todos, S.T.J. 26/9/91 Bol.409/779, Ac.R.P. 6/4/92 Bol.416/709, Ac.R.E. 9/5/91 Bol.407/642 – condizente com a doutrina pela qual a verdadeira destrinça entre factos constitutivos do direito do autor, de um lado, e factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, de outro lado, coincide com um critério a um tempo de normalidade social (neste sentido, S.T.J. 26/2/92 Bol.414/533), mas também a um critério normativo, no sentido em que a cada parte processual cabe o ónus de provar os factos que integram aquela concreta parte da norma legal que a beneficiam (veja-se Ac.R.P. 9/4/92 Bol.416/705).
Uma vez que os quesitos, sua globalidade, plasmam os factos trazidos ao processo por autora e réus (e neste sentido, sempre se poderá provar positivamente a comunicação, que não simplesmente a “não comunicação”, por conta da autora), a questão perde alguma acuidade.
Assim, será dado o devido relevo inicial à prova positiva dos qq. 14º e 15º referentes à comunicação para preferência realizada pela Ré, ou seja, pela proprietária obrigada à preferência.
Nos quesitos 14º e 15º perguntava-se se “antes de Maio de 2003, a Ré deu conhecimento à Autora que o Réu aceitava pagar, pela aquisição dos prédios indicados em B e C, o valor de € 72 325,70, ao que a Autora respondeu que, por esse preço, não lhe interessava comprar”.
Foi respondido que, “pelo menos até Junho de 2003, a Ré deu conhecimento à Autora que o Réu aceitava pagar, pela aquisição dos prédios indicados em B e C, o valor de € 72 325,70, ao que a Autora respondeu que, por esse preço, não lhe interessava comprar”.
Não acompanhamos o Mmº Juiz “a quo” na convicção que plasmou na motivação das respostas na decisão impugnada.
As testemunhas relevantes para o efeito foram os indicados E……………, F………….., G………….. e H……………..
A verdade é que o primeiro indicado, pessoa da confiança da Autora e da Ré vendedora, nunca afirmou em audiência ter comunicado à Autora, por ordem ou pedido da Ré, que o prédio iria ser vendido ao Réu por um determinado preço. Aliás a testemunha em causa foi muito concretizada – “nunca falei ao sr. B1…………… em 14.500 contos”.
O que o respectivo depoimento revelou é que ele depoente possuía conhecimento de que o prédio iria ser vendido a um terceiro e garantiu à Ré vendedora que a Autora cobriria um preço que ascendesse a aproximadamente quinze mil contos – só que a Autora lhe respondeu que nunca venderia à Autora, apesar de, no entendimento obviamente subjectivo do depoente, essa ser a melhor solução para a Ré ou para as partes.
Assim, o sr. B1………….. (“rectius” a Autora) soube pelo depoente, quer antes, quer depois da outorga do instrumento notarial de compra e venda, que o prédio “estava vendido”.
Este não é pois um depoimento que possa corroborar uma convicção positiva à matéria do quesito.
Quanto aos depoimentos das filhas da Ré, descartaremos de imediato o depoimento da testemunha H………….., que declarou nada ter presenciado quanto à venda em conjunta dos “dois prédios” (parte urbana e parte rústica), tal como, a final, se veio a verificar. Por identidade de razões, descartaremos por igual o testemunho da filha do representante da Autora, F…………..
A testemunha G…………… declarou, é certo, ter presenciado uma comunicação para preferência efectuada verbalmente por sua mãe, na pessoa do representante da Autora. Todavia, desde logo, o respectivo depoimento é contraditado pelo outro depoimento da testemunha E……………, designadamente quanto ao valor que a Autora estava disposta a despender pelo terreno; por outro lado, não deixaremos de levar em conta que a proximidade desta testemunha para com a Ré vendedora e respectivos interesses económicos ou morais, não pode, por si só, desacompanhado de outros meios de prova directos, convencer sobre uma matéria tão especificada, concreta e decisiva para a sorte da acção – trata-se, a esse nível, de um meio de prova pobre, destituído do nível de relevância probatória que entendemos necessária para afirmar um grau de convicção que teremos de afirmar também ou à semelhança do grau de certeza suficiente para as necessidades práticas da vida (Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, pg. 191).
Portanto, somos de entendimento, em conclusão, que tais quesitos deveriam ter sido considerados “não provados”, o que agora decidimos.
Voltando ao quesito 4º, que em bom rigor não deveria ter sido formulado, como vimos atrás, por identidade de razões e de prova, somos de entendimento que não resulta suficientemente demonstrado o facto negativo, pelo que manteremos a resposta “não provado” dada em 1ª instância.
No quesito 16º perguntava-se “se a Autora adquiriu o prédio mencionado em A) para o exercício da sua actividade de construção civil”. Foi respondido “provado” e pensamos que bem.
Não existe outra actividade conhecida da sociedade Autora. As testemunhas ouvidas à matéria do quesito (J……………. e K……………, agricultores vizinhos, sobre as demais testemunhas) dizem que o terreno não está abandonado (a casa está até devidamente fechada com “blocos” nas portas e janelas, com declarou o representante da Autora em depoimento de parte), mas também não está aproveitado agricolamente – apenas tem sido regularmente limpo de ervas ou silvas e “fresado”. Pensamos que a melhor caracterização do terreno foi a efectuada pelo próprio sr. B1…………… – adquire terrenos que, por vezes, não dão para construir, logo “ficam monos”, ou seja, à espera de melhor destino.
Todavia, isso não quer dizer que o objectivo último da compra do prédio não fosse a actividade de construção – uma coisa é o objectivo com que se adquire o prédio; outra, bem diferente, são as determinações da administração quanto àquilo que aí se pode ou não pode construir. Portanto, e em suma, mantemos a resposta “provado”.
No seguimento do dito quesito 16º, o quesito 17º perguntava “tendo, para esse efeito de construção, procedido à sua terraplanagem?”. Respondeu-se restritivamente – “provado apenas que a Autora procedeu à sua terraplanagem”.
E cremos que bem – é inequívoco que o terreno se encontrava terraplanado, como o demonstram as fotos juntas aos autos e ainda o demonstrou inequivocamente, sobre o conceito de “terraplanagem”, o depoimento da testemunha I……………. (engenheiro civil). Porém, nenhuma prova foi efectuada sobre o que visaria a dita terraplanagem, nomeadamente se a mesma foi efectuada apenas para não dar um aspecto de abandono ao prédio ou, mais concretamente, com o objectivo visado na pergunta. Nessa conformidade, impôs-se a resposta restritiva, que mantemos.
Quanto aos qq. 21º e 22º, foram objecto de resposta conjunta – neles se perguntava se “o prédio identificado em B) não é susceptível de aproveitamento, nem nunca foi utilizado para exploração agrícola, e sempre foi utilizado como quintal e complemento das quatro casas de habitação que compõem o prédio referido em C)”. Respondeu-se restritivamente “provado apenas que o prédio referido em B) sempre foi utilizado como quintal e complemento das casas de habitação que compõem o prédio referido em C)”.
Existe, de facto, uma unanimidade nos depoimentos prestados à matéria deste quesito – disseram-no afirmativamente (quanto ao segmento provado) as testemunhas E………….., L……………. (padrinho do Réu), G…………… e H…………… e M………….
Apenas o depoimento do Engº I………….., como já vimos marcado pela independência e pelos conhecimentos especiais sobre a matéria, pôs o acento tónico na falta de dimensão para uma exploração agrícola do prédio em causa “rectius” apontando para uma configuração de complemento às casas de habitação, que não de mero quintal: até porque se trata de um espaço aberto e não delimitado entre as habitações, atribuindo-o a qualquer delas, no todo ou em parte.
Tal depoimento conjuga-se com a riqueza factual do depoimento de E………….., que referiu que existia uma divergência quanto ao cultivo do quintal, sendo que a Ré negava aos inquilinos habitacionais a possibilidade de cultivarem o prédio em causa, por tal não integrar o contrato celebrado entre eles, Ré e inquilinos.
Nesta conformidade, entendemos apenas restringir ainda mais a resposta dada, mantendo a referência a complemento das casas de habitação, mas retirando da resposta a referência a um quintal, no que esta referência tem de adstrição de um determinado espaço a um determinado prédio, bem como a sugestão de pequeno espaço, por comparação com as habitações, sendo certo que se trata de áreas muito superiores – referiu o Engº I…………….. que o prédio referido em B) tem uma área três vezes e meia superior à área (urbana) do prédio referido em C).
Decidimos assim pela resposta conjunta, do seguinte teor: “provado apenas que o prédio referido em B) sempre foi utilizado como complemento das casas de habitação que compõem o prédio referido em C)”.
O quesito 23º perguntava se o dito prédio referido em B) servia aos moradores do prédio referido em C) para subsistência doméstica. Respondeu-se “provado” e, sobre a matéria, nada temos a acrescentar ou alterar, vistos os considerandos que já produzimos. Confirmamos, pois, a resposta.
O quesito 24º perguntava se, sem o logradouro, o prédio referido em C) fica desvalorizado em não menos de 50%. Respondeu-se: “provado apenas que sem esse logradouro, o prédio referido em C) fica desvalorizado”.
A valorização ou desvalorização que o quesito visa tem a ver com um determinado valor venal ou de mercado, seja qual for o destino visado pelos adquirentes potenciais (habitação, cultivo, construção, ou outro); e quanto a tal desvalorização, o depoimento das testemunhas Engº I……………. e L…………., não contraditados por qualquer forma ou meio de prova, foram particularmente elucidativos, e no sentido apontado na resposta (note-se que ambas as testemunhas se referiram positivamente à matéria da desvalorização, mas mais em geral, comparando, em abstracto, a venda de dois prédios com a venda de um só prédio).
Para além do mais, também entendemos e decidimos, no seguimento da não consideração do prédio referido em B) como mero quintal do prédio referido em C), que a referência a logradouro deve ser abolida da resposta, que assim passará, em nosso entender mais correctamente, a ser: “provado que, sem o complemento do prédio referido em B), o prédio referido em C) fica desvalorizado”.
Finalmente, no quesito 25º perguntava-se se “o Réu adquiriu os prédios mencionados em B) e C), por serem, juntos, indispensáveis à concretização do projecto de construção e adaptação das casas de habitação a restaurante”.
Respondeu-se “provado”, o que, em nosso entender, não merece qualquer observação. As testemunhas com ligação passada ao Réu referiram-no expressamente (I……………. e L…………….) e não existe qualquer razão para duvidar da veracidade do respectivo depoimento.
Mantemos, pois, a citada resposta.
II
É a seguinte a matéria de facto provada, tal como a consideramos nesta instância:
1 – Encontra-se inscrita a favor da A. a aquisição, por compra e permuta, do prédio rústico, sito no lugar da ………., freguesia de ……….., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº1055/020997 e inscrito na matriz predial rústica sob o art.728º; [A) dos factos assentes]
2 – Por escritura pública de 10 de Setembro de 2003, a ré declarou vender ao réu, que declarou aceitar, o prédio rústico, sito no mesmo lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº1737/280103 e inscrito na matriz predial rústica sob o art. 727º, pelo preço de 38.906,24 euros, já pago; [B) dos factos assentes]
3 – Na mesma escritura, a ré declarou vender ao réu, que declarou aceitar, o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar, destinada a habitação, sito na Rua ………….., da mesma freguesia, pelo preço de 33.419,46 euros, já pago; [C) dos factos assentes]
4 – Mais mencionaram que os prédios eram vendidos pelo preço global de 72.325,70 euros; [D) dos factos assentes]
5 – O prédio referido sob o número 1 tem a área de 1829 m2 e confina a norte com o prédio referido sob o número 2, o qual tem a área de 1400 m2; [E) e F) dos factos assentes e resposta ao quesito 1º]
6 – O réu não era proprietário de qualquer prédio rústico confinante com o prédio mencionado sob o número 2; [G) dos factos assentes]
7 – O prédio referido sob o número 1 tem aptidão agrícola, destinando-se ao cultivo de milho, feijão, erva e palha, e que é a sua única aplicação legalmente possível; o prédio referido sob o número 2 tem idêntica aptidão agrícola; [respostas aos quesitos 2º e 3º]
8 – A A. dedica-se exclusivamente à actividade de construção civil e desde que adquiriu o prédio referido sob o número 1 este não foi objecto de qualquer intervenção agrícola, hortícola ou agro-pecuária; a A. adquiriu tal prédio para o exercício da sua actividade de construção civil e procedeu à sua terraplanagem [H) e I) dos factos assentes e respostas aos quesitos 16º e 17º]
9 – Para esse prédio, a A. apresentou na Câmara Municipal de Espinho um pedido de viabilidade de construção, integrado por um pedido de aprovação de um projecto de loteamento do respectivo terreno para a sua divisão em 7 lotes, um deles localizado na parte ocupada pela casa de habitação que existia em tal terreno e que a A. já demoliu, projecto esse no qual a A. classificou o seu prédio como urbano [J) dos factos assentes e respostas aos quesitos 12º, 18º, 19º e 20º]
10 – Porque tal prédio está inserido em zona rural e não apresenta viabilidade construtiva, tal pedido de viabilidade foi indeferido pela Câmara Municipal de Espinho; [resposta ao quesito 27º]
11 – O prédio identificado sob o número 2 sempre foi utilizado como complemento das casas de habitação que compõem o prédio referido sob o número 3, servindo aos seus moradores de horta para subsistência doméstica; sem esse complemento, o prédio referido sob o número 3 fica desvalorizado; [respostas aos quesitos 21º, 22º, 23º e 24º]
12 – O réu adquiriu os prédios mencionados sob os números 2 e 3 por serem juntos indispensáveis à concretização do projecto de construção e adaptação das casas de habitação a restaurante; [resposta ao quesito 25º]
13 – Quando a A. e a ré estabeleceram negociações a propósito da alienação dos prédios referidos sob os números 2 e 3, pretendia então a A. adquirir apenas o primeiro deles; o que a ré recusava, porque sempre pretendeu vender conjuntamente ambos os prédios; [respostas aos quesitos 5º, 6º e 7º]
14 – Durante o ano de 2002, a ré voltou a contactar a A. para vender-lhe os dois prédios, o que ela recusou; até que a A. propôs a aquisição de ambos os prédios pela importância de 10.000.000$00 e perante a resposta da ré de que por esse valor não vendia, a A. disse-lhe que não lhe dava nem mais um centavo [respostas aos quesitos 8º, 9º e 10º]
III
Movido pelo escopo do legislador de contrariar a proliferação do minifúndio, dispõe o artº 1380º nº1 C.Civ. que “os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”.
Mais tarde, o artº 18º nº1 D.-L. nº384/88 de 25 de Outubro consagrou que “os proprietários dos terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no artº 1380º C.Civ., ainda que área daqueles seja superior à unidade de cultura”.
A presente acção visa a actuação da preferência do proprietário confinante (a A.), sendo certo que a confinância é indiscutida nos autos.
A primeira questão que se nos suscita prende-se com o destino que a Autora e o Réu comprador pretendem a cada um dos prédios confinantes – em ambos os casos, o destino visado é a construção.
Como se sabe, não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura – artº 1381º al.a) C.Civ.
Mas esse “fim” a que a lei alude não pode ser um fim meramente potencial ou virtual – há que configurar um projecto actual e viável diferente da cultura (neste sentido, cf. Ac.R.C. 17/6/97 Bol.468/487 ou Col.II/31).
Ora, nesse caso, o que importa é constatar que nem a Autora, nem o Réu comprador, deram efectivamente aos respectivos prédios, ou provaram que poderiam dar (por via, designadamente, do disposto em regulamentos administrativos – prova que incumbiria ao Réu[1] – cf. M.H. Mesquita, Col. 1986, V/53, S.T.J. 5/7/88 Bol.379/578, S.T.J. 18/1/94 Col.I/46 ou Bol.433/481, S.T.J. 21/6/94 Col.II/154 ou Bol.438/450, S.T.J. 19/3/98 Col. I/143, S.T.J. 14/3/02 Col.I/133, Ac.R.C. 11/10/88 Bol.380/544) outra utilidade que não fosse a da cultura, razão pela qual, pese embora não venham cultivando os respectivos prédios, não se lhes aplica a excepção a que alude o citado artº 1381º al.a) C.Civ. (em sentido semelhante, mutatis mutandis, consulte-se o Ac.R.C. 4/5/99 Col.III/12).
IV
Por remissão do artº 1380º nº4 C.Civ., estabelece o artº 416º C.Civ. que (1) querendo vender a coisa o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato e que (2) recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.
Na exegese destas normas, pode estabelecer-se, de acordo com a doutrina comummente aceite na nossa ordem jurídica, e com interesse para o thema decidendum, o seguinte:
Em primeiro lugar, que a comunicação dos elementos essenciais do negócio deve ser feita, ao preferente, pelo obrigado a dar preferência (veja-se Varela, Revista Decana, 105º-14 e 15 – “enquanto não houver a notificação por parte do vinculado à preferência, feita directamente ou por meio de mandatário, não se desencadeia o dever de agir que o nº2 do artº 416º lança sobre o preferente, nem começa a correr o prazo de caducidade”; no mesmo sentido, M.H. Mesquita, Revista Decana, 132º/213).
Em segundo lugar que quer a identificação do comprador quer o preço a pagar constituem os elementos decisivos para a formação da vontade de contratar, na específica preferência do confinante (“o preferente pode não desejar ter como confinante um vizinho com quem não se entenda ou de quem tenha má impressão, ou, pelo contrário, ter satisfação em que certa pessoa passe a ser seu vizinho” – ex abundanti, Ac.R.C. 12/10/99 Col.IV/30, Ac.R.C. 18/10/88 Col.IV/81 e P. de Lima e Varela, Anotado, III, nota 3 ao artº 1410º).
De seguida, também, que a comunicação ou notificação para preferir é mais que uma simples proposta para contratar: “O preferente pode não aceitar a proposta para contratar (por não possuir na altura os meios necessários para a aquisição, por considerar o preço elevado e supor que ninguém esteja disposto a cobri-lo ou por qualquer outra razão) e querer, todavia, preferir na venda mais tarde ajustada pelo obrigado à preferência (por já ter nessa altura os recursos necessários, por então se persuadir de haver alguém disposto a dar pela coisa o preço pedido pelo alienante ou por algum outro motivo” (ut Varela, Revista Decana, 122º/305 – cf., igualmente, Ac.S.T.J. 26/5/92 Bol.417/711 e Ac.R.P. 3/11/92 Col.V/205).
E finalmente, que a comunicação para preferência pode ser dada a conhecer ao titular do direito por qualquer meio, inclusive por comunicação verbal – cf. artº 219º C.Civ. ou Ac.R.P. 27/6/91 Col.III/267 ou S.T.J. 18/11/93 Col.III/140, Ac.R.P. 15/3/83 Col.II/224, Ac.R.P. 3/5/88 Bol.377/573, Ac.R.P. 28/11/89 Col.V/197 e Ac.R.P. 27/6/91 Col.III/267
O que é que se verifica nos autos?
De acordo com os factos que considerámos provados nesta instância, verifica-se que não se logrou provar qualquer facto demonstrativo de comunicação, por parte do obrigado à preferência (a Ré) à Autora, dos elementos essenciais do negócio.
Sabe-se que existiram negociações prévias entre as partes, nas quais se ventilou ou se ofereceu o preço de 10 mil contos, pelos dois prédios referenciados em B) e C), todavia, como é sabido, não pode existir renúncia válida à preferência ou decurso do prazo de caducidade para preferir com preterição do exacto dever de informação, quanto ao concreto negócio, preço e identidade do comprador, a que alude o artº 416º nº1 – sobre este dever, os autos encontram-se in albis.
E sem comunicação para preferência (cf. artº 416º nº2 1ª parte C.Civ.), sem que o direito seja colocado na disponibilidade do preferente, não existe possibilidade de abdicar expressamente do direito (“renúncia”), ou de o ver extinto em consequência de inacção do respectivo titular durante determinado período de tempo – “caducidade” (cf. M.H. Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pg.209, nota 131).
Nesse exacto sentido, também, cf. M.H. Mesquita, Revista Decana, 126º/57ss., Ac.R.C. 7/1/92 Bol.413/624, Ac.R.P. 20/2/92 Bol.414/632, Ac.R.C. 4/4/89 Bol.386/520 e Ac.R.C. 21/11/91 Bol.391/710.
Como também escreveu Antunes Varela, Revista Decana, 117º/236ss., “uma renúncia total, de uma vez por todas, colide com o espírito das diversas normas que criaram ou mantiveram os direitos legais de preferência; tal renúncia é nula, por contrária ao estatuto legal do direito real em que a preferência se enxerta”.
V
A contestação e o pedido reconvencional, porém, remetem-nos para o disposto no artº 417º nº1 C.Civ., nos termos do qual “se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo porém ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável”.
Acontece que a norma não possui aplicação ao caso dos autos.
Na verdade, como facilmente se pode comprovar do teor da escritura de compra e venda dos autos, bem como da matéria de facto especificada, na escritura mostra-se discriminado o valor dos diversos bens, ou seja, não existe, em rigor, uma “venda por preço global” (é a exigência de “preço global” que se retira do teor da norma, bem como é nesse sentido – de que falha o “preço global” se existe discriminação dos preços - que a norma vem sendo interpretada pela doutrina – cf. A. Varela, Revista Decana, 100º/242, e Das Obrigações em Geral, 1970, pg. 235, cits. in Ac.S.T.J. 13/2/97 Bol.464/524).
Desta forma, a preferência podia ser exercida sobre um só dos prédios vendidos e devidamente discriminados na escritura.
Uma observação mais, a este propósito, para vincar que, também por este motivo, não poderia ser considerada a mera alegação do Réu comprador de que deu conhecimento da venda de dois prédios ao preferente, em momento anterior à venda, por um preço único e global (artsº 6º e 7º da respectiva Contestação e quesitos 14º e 15º) – a comunicação para preferir deveria ter abrangido, naturalmente, o preço discriminado dos dois prédios, pois sobre um deles apenas poderia ter sido exercida preferência.
Dir-se-á também, no caso, que Autora e Réu comprador nada mais visavam e visam fazer nos prédios de que eram já proprietários, ou no prédio sobre o qual a Autora vem agora exercer direito de preferência, que mera construção.
A questão coloca-se como atrás – tratando-se de uma finalidade meramente potencial ou virtual, não existem elementos para que, de algum modo, se pudesse afirmar que o exercício do direito de preferência é ilegítimo, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito – artº 334º C.Civ.
Da mesma forma, o referido instituto nada pode obstar no que toca ao exercício da preferência quanto a um só dos prédios objecto do negócio, mesmo que com desvalorização venal do prédio não objecto da preferência.
VI
Resta porém apreciar a questão da complementaridade dos prédios referenciados em B) e C), ou seja, os prédios objecto de preferência.
Na verdade, apenas se os prédios confinantes dos autos forem considerados, na sua globalidade, como prédios rústicos, conforme definição do artº 204º nº2 C.Civ., a eles se lhes aplica de pleno o direito de preferência do artº 1380º - cf. Ac.R.E. 17/5/07 Col.III/242.
A questão prende-se com a exegese do disposto no referido artº 204º nº2 C.Civ. – segundo o preceito, prédio urbano constitui uma parte delimitada do solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
Este conceito de logradouro verte-se, de facto, em conceito indeterminado, competindo ao intérprete determinar a respectiva existência caso por caso.
De acordo com o discorrido no Ac.S.T.J. 25/3/93 Col.II/33 (Pais de Sousa), logradouro será o que é ou pode ser gozado, fruído ou disputado por alguém; o logradouro de um prédio urbano há-de ser, em regra, o terreno contíguo que é ou pode ser fruído por quem se utilize daquele.
Casa e terreno devem constituir uma unidade cujas características variarão de região para região e até dentro da mesma localidade.
Para fazer uma tal determinação, não são determinantes, embora possam ser úteis, apenas e só para a subsunção a uma realidade predial abstracta:
- a circunstância de o prédio estar dividido na Repartição de Finanças entre rústico e urbano;
- o facto de existirem descrições prediais distintas (ut Ac.R.L. 7/6/90 Bol.398/572);
- a utilização que os residentes façam relativamente ao terreno;
- a diferença entre o valor do terreno e o valor do edifício.
Trata-se verdadeiramente da unidade casa e terreno que define o prédio urbano e nada mais.
Noutro local da doutrina, encontramos a definição de logradouro como o terreno adjacente à casa, com carácter de quintal, pátio ou jardim, terreno de horta com árvores, na dependência de moradia, servindo de aproveitamento ou suporte às necessidades ocasionais dos donos da casa - Ac.R.C. 17/11/81 Col.V/69 (Dario Martins de Almeida).
Revertendo para o caso dos autos:
Vem provado que o prédio identificado sob o número 2 (aquele sobre o qual se pretende o exercício da preferência) sempre foi utilizado como complemento das casas de habitação que compõem o prédio referido sob o número 3, servindo aos seus moradores de horta para subsistência doméstica.
Estes simples factos mostram como o prédio que foi objecto de contrato de compra e venda como prédio rústico autónomo (prédio nº2), não possui, na verdade, uma concreta autonomia relativamente ao prédio referido sob o nº3, classificado pelos outorgantes da escritura pública como urbano, e pode justamente ser classificado como logradouro de tal prédio nº3.
Desta forma, o prédio em referência constitui parte integrante de prédio urbano e, como tal, não goza a Autora, proprietária confinante, de direito de preferência sobre tal prédio, nos termos do disposto no artº 1381º al.a) 1ª parte C.Civ.
Por este motivo, não pode a acção proceder, sendo a decisão recorrida integralmente de confirmar.

A fundamentação poderá ser resumida desta forma:
I – A comunicação ou notificação para preferir é mais que uma simples proposta para contratar, já que o preferente pode não aceitar a proposta para contratar e querer, todavia, preferir na venda mais tarde ajustada pelo obrigado à preferência.
II - A identificação do comprador e o preço a pagar, discriminado por cada um dos prédios projectados vender, constituem os elementos decisivos para a formação da vontade de contratar, na específica preferência do confinante.
III – Se não existe comunicação do concreto projecto de venda, não existe possibilidade de abdicar expressamente do direito de preferência (renúncia), ou de o ver extinto em consequência de inacção do respectivo titular durante determinado período de tempo – caducidade.
IV - A realização dessa comunicação para preferir, conjugada com o não exercício tempestivo do direito de preferência, integra um facto extintivo do direito invocado pelo preferente, cuja prova ao réu incumbe – artº 342º nº2 C.Civ.
V - O “fim” a que a lei alude no artº 1381º al.a) C.Civ. não pode ser um fim meramente potencial ou virtual – há que configurar um projecto actual e viável diferente da cultura, prova que incumbe ao Réu.
VI – O direito de preferência a que alude o artº 1380º C.Civ. apenas abrange os prédios rústicos, conforme definição do artº 204º nº2 C.Civ.
VII - Não existe venda por preço global, nem ao caso pode ser aplicável o disposto no artº 417º nº1 C.Civ., se na escritura se mostra concretamente discriminado o preço dos diversos bens objecto do contrato.
VIII – A definição de um concreto espaço como prédio urbano ou prédio rústico não depende de critérios matriciais ou registrais, nem da configuração que lhe é dada pelos contraentes em contrato de compra e venda, mas antes da actividade do intérprete, em conjugação com o disposto no artº 204º C.Civ.
IX – A definição de logradouro, integrante de prédio urbano (artº 204º nº2 2ª parte C.Civ.), abrange o terreno adjacente à casa, com carácter de quintal, pátio ou jardim, e o terreno de horta com árvores, na dependência de moradia, servindo de aproveitamento ou suporte às necessidades ocasionais dos donos da casa.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, o recurso interposto, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Porto, 18 de Junho de 2008
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa
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[1] Como factos impeditivos do direito invocado pelo titular da preferência, factos que, se alegados e provados, impedem o efeito jurídico pretendido pelo autor – ut Varela Bol.310/283; são impeditivos não apenas os factos susceptíveis de obstar à válida constituição do direito, como os que retardem o surgir desse direito ou a sua exercitabilidade (ut Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, §21º-III); em contrário, porém, o Ac.S.T.J. 23/5/96 Bol.457/370, defendendo que é o autor quem, por contra-excepção, terá de demonstrar que a construção não é legalmente possível, para lá da intenção do adquirente.