Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0536251
Nº Convencional: JTRP00038738
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: VENDA DE COISA ALHEIA
TERCEIROS
Nº do Documento: RP200601260536251
Data do Acordão: 01/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - O verdadeiro dono do bem ilegitimamente vendido por terceiro pode invocar a nulidade prevista no artigo 892º do CC (e é com a nulidade que a lei sanciona a venda de coisa alheia).
II - A boa fé significa, a ignorância, sem culpa, de que os bens não pertenciam ao vendedor, da alienidade dos bens e de que não prejudicava direito de terceiro sobre esses bens.
III - Não actua de boa fé quem sabe que os bens não pertencem ao vendedor, que a coisa é alheia, como também quem age com desconhecimento assente em culpa grosseira dessa alienidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – B.........., com domicílio em .........., .........., instaurou acção sumária declarativa contra C.......... e marido D.......... e contra E.......... e mulher F.........., alegando que é herdeiro de G.........., a cuja herança pertencem os imóveis mencionados no artigo 7º de petição, que foram objecto de justificação notarial por parte dos primeiros RR.
Que em acção (processo nº .../98, do .º Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de ..........) proposta contra esses RR, foi proferida sentença que declarou os mencionados vens imóveis pertencerem á herança de G.......... e declarou nula a escritura de justificação notarial, determinado o cancelamento de todos os registos realizados com base nessa escritura e subsequentes.
Que entre a data da resposta aos “quesitos” nessa acção de impugnação da justificação notarial e a data da prolacção da sentença, os primeiros RR venderam ao réu E.......... os mencionados prédios, que pertenciam à herança e não as vendedores.
Termina a pedir a procedência da acção e, em consequência, que:
a) seja o A. reconhecido como herdeiro do falecido G..........,
b) seja declarada nula a escritura de compra e venda celebrada entre os RR C.......... e D.........., por um lado, e E.........., por outro, exarada em 9 de Setembro de 2002,
c) sejam restituídos à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de G.......... todo os prédios objecto da compra e venda titulada por essa escritura e
d) seja determinado o cancelamento de todos os registos realizados com base nessa escritura.

Apenas os RR E.......... e esposa contestaram.
Dizem que os sujeitos, as causas de pedir e os pedidos, nesta e na acção 390/98, são os mesmos, pelo que ocorre caso julgado.
O A. é parte ilegítima por não ser parte, ele ou a herança de G.........., na venda feia pelos primeiros aos segundos RR.
Os RR compraram e registaram o direito, beneficiando da presunção emergente do registo.
Quando compraram desconheciam que os bens não pertenciam ao vendedor bem como desconheciam estar a prejudicar direitos do autor ou de quem quer que fosse.
São adquirentes de boa fé.
Pediram a improcedência.

O autor respondeu pela insubsistência das excepções invocadas.

II - No despacho saneador/sentença, julgando não ocorrerem as inovadas excepções de caso julgado e ilegitimidade, concluiu pela inteira procedência da acção.

III - Inconformados, recorrem os RR que terminam as suas alegações:
“1ª
Devem ainda ser considerados assentes no douto despacho saneador, além do mais, os seguintes factos, alegados na contestação, com manifesto interesse para a decisão da causa:
- A herança aberta por óbito de G.......... não registou a acção de declaração de nulidade da Justificação Notarial supra referida no nº 7, que correu termos como nº .../98 pelo .º Juízo deste Tribunal.
- Os segundos RR, aqui apelantes, presumem-se de boa fé, desconheciam que os bens em causa não pertenciam aos vendedores, nem tinham conhecimento da existência de qualquer litígio Judicial entre estes e a referida herança.

Deve fazer-se constar dos pontos 6º e 7º da matéria de facto assente as datas dos eventos jurídicos neles descritos:
- 6… Os RR. procederam ao registo em 10.01.95…
- 7… Intentou em 10.11.98…

A declaração de nulidade da escritura de Justificação Notarial, não constitui venda de bens alheios e o comando do artº 892 do Cód. Civil reporta-se apenas às relações entre o comprador e o vendedor, sendo inaplicável ao caso “sub-júdice”.

A boa fé de terceiros, neste caso dos RR compradores, afere-se pela existência de registo anterior a favor do vendedor e pela ausência de registo da acção do pedido de nulidade da escritura de Justificação Notarial.

Admitindo, por mera hipótese, tratar-se de bens alheios, seriam também inaplicáveis ao caso os comandos do artigo 291 do Código Civil, que apenas regulam direitos inoponíveis entre si, transmitidos pelo mesmo autor ou causante.

No caso, tem assim, concreta aplicação o nº 2 do Art. 17 do Cód. Registo Predial, porquanto o que define o seu âmbito de aplicação é a existência de um registo, a favor do transmitente.

Em referência ao citado art. 17º do C.R.P. estão reunidos todos os requisitos necessários para a aquisição do direito de propriedade, dos prédios em causa, pelos apelantes:
- Pré-existência de um registo a favor dos vendedores.
- A sua actuação na qualidade de terceiros, baseando-se no registo anterior à aquisição a título oneroso.
- A boa fé dos adquirentes e o registo da aquisição, efectuado anteriormente à correcção do registo desconfortante, ou do registo da acção, destinada a cancelá-lo ou alterá-lo.

A anterior sentença que declarou nula a escritura de justificação notarial não produz efeitos em relação aos RR aqui apelantes, que não intervieram nesse processo e por isso são terceiro, em conformidade com o artigo 271 n. 3 do C. P. Civil e demais legislação aplicável.

O douto despacho saneador sentença, assim não decidindo, como não decidiu violou por incorrecta e indevida aplicação dos artigos 892 do Código Civil e por omissão, o art. 17º do Código de Registo Predial.

Nestes termos e com o douto provimento de Vossas Excelências deve revogar-se o saneador sentença aqui impugnado e julgar-se a acção improcedente, com todas as consequências legais”.

O recorrido contra-alegou em defesa do sentenciado.
Cumpre decidir.

IV - Vêm julgados provados na decisão recorrida os seguintes factos:
1- O A. é herdeiro de G.........., falecido em 28.06.1993.
2- O falecido G.........., filho de H.......... e de pai incógnito, faleceu no estado de solteiro, sem deixar ascendentes vivos ou descendentes, nem irmãos.
3- A mãe de G.........., H.........., tinha um único irmão, I.........., casado com J.........., falecido em 10/06/1981.
4- O A. é filho do falecido I.......... e de J.......... .
5- Por escritura de 24/10/1994, celebrada no Cartório Notarial de .........., os RR. C.......... e D.......... procederam a justificação notarial, declarando-se proprietários dos prédios descritos no artigo 7º da petição inicial e na sentença recorrida.
6- Posteriormente, com base naquela escritura, os ditos RR, em 19/01/1995, procederam ao registo daqueles prédios, inscrevendo-os a seu favor na Conservatória do Registo Predial de .......... .
7- Por isso, e, 02/11/1998, a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de G.........., representada por todos os seus herdeiros, os quais se inclui o autor nesta acção, intentou acção declarativa de condenação contra C.......... e marido D.........., impugnando a justificação notarial, que correu termos pelo tribunal Judicial da Comarca de .......... com o nº .../98, .º Juízo.
8- Esta acção foi julgada totalmente procedente, por sentença de 05/09/2002, nos seguintes termos:
“a) Declaro que pertencem á herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de G.........., de que são únicos herdeiros os autores e intervenientes, os oito prédios identificados no nº 1 dos factos provados.
b) Condeno os réus a restituírem àquela herança os referidos prédios.
c) Declaro nula a escritura de justificação notarial, realizada no Cartório Notarial de .......... em 24/10/94, exarada a fls. 95 verso e seguintes do livro de notas para escrituras diversas nº 12-A, em que os réus procederam à justificação da sua posse e à aquisição por usucapião da propriedade dos mesmos prédios.
d) Determino o cancelamento de todos os registos realizados com base na mesma escritura e subsequentes”.
9- Acontece, no entanto, que entre a data da resposta aos quesitos, em 10/12/01, e a da prolação dessa sentença, passaram cerca de nove meses, por motivos relacionados com acumulação de serviço e a licença de parto da Juíza, como, alias, vem referido na própria sentença a final.
10- Contudo, a partir da resposta aos quesitos, que deu como provados os quesitos 1 a 7 e por não provados os quesitos 8 a 14, os réus C.......... e D.......... tinham ficado praticamente cientes da procedência da acção.
11- Por isso, antes que lhes tivesse sido notificada a sentença, resolveram alienar os ditos bens, para impedirem a execução da sentença.
12- Para esse efeito venderam os ditos prédios ao réu E.........., por escritura celebrada em 9 de Setembro de 2002, no Cartório Notarial de .........., pelo preço de € 1.497,25, pela totalidade dos 8 prédios.
13- Os RR compradores registaram a aquisição dos prédios em causa na Conservatória do Registo Predial de .........., a seu favor, registo esse datado de 17.09.2002.
14- O A. procedeu ao registo da presente acção, registo esse datado de 13/05/2003.
Adita-se, com base nos documentos (certidão emitidas pela Conservatória do Registo Predial):
15- A herança de G.......... não procedeu ao registo da acção de impugnação da justificação notarial.

V - Pretendem os recorrentes se leve à factualidade assente os “factos” que se afirma na conclusão 1ª, por manifesto interesse para a decisão da causa.
Quanto à falta de registo da acção de justificação, já se fez menção nos factos provados, independentemente do interesse para a decisão, o que seguidamente se apreciará.
Quanto à presunção de boa fé, é questão que não deve decidir-se em sede facto porque não constitui matéria de facto. A boa fé é conclusão a extrair dos factos que se tiverem por provados. E quanto ao desconhecimento mencionado da alienidade dos bens comprados aos primeiros RR e existência do conflito entre estes e o recorrido, independentemente da dúvida que se possa levantar quanto a realidade da alegação, seguro é que se trata de facto impugnado, pelo que não poderia ser levado esse desconhecimento (de que os bens não pertenciam aos vendedores ou de litígio entre os “vendedores” e a herança) aos factos assentes, antes, se necessidade houver, à base instrutória. Caso contrário, dever-se-ia, então concluir pela boa fé do adquirente.
Não pode proceder essa questão.
Quanto às menções (quanto a datas) nos factos 6 e 7, já constam do espectro factual descrito.

VI – Se o verdadeiro proprietário pode arguir a nulidade da venda a non dominus, nos termos do artigo 892º do Código Civil (ou se o seu regime se aplica apenas nas relações entre o vendedor e comprador), que estipula “é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”.
O regime da venda de coisa alheia, previsto nessa norma, só tem aplicação quando é vendida como própria coisa alheia específica e presente, para que o vendedor não tem legitimidade.
Sendo o contrato de compra venda um contrato que tem como efeito a transferência da propriedade, a sua celebração por não proprietário deve ser sancionada com a nulidade do negócio (embora na lei civil a sujeite a um regime especial), que afecta a virtualidade desse negócio para produzir os seus efeitos translativos normais, nomeadamente entre as partes no mesmo. A lei não se bastou com a ineficácia stricto sensu, antes optou pela invalidade do negócio.
Vem-se afirmando que o verdadeiro proprietário do bem (como outros interessados), vendido por quem não tem legitimidade substantiva para o fazer, não tem legitimidade para invocar a nulidade, já que em relação a ele a venda é res inter alios acta, e será sempre admitido a exercer a reivindicação (artigo 1311º do CC), sem ter que discutir a validade do contrato [L. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 3ª Ed., III, 97/98]. Na verdade, em relação ao verdadeiro proprietário, a venda é ineficaz, uma res inter alios acta, que não pode afectar a sua posição, não altera o seu direito de propriedade. Como é verdade que o proprietário pode reivindicar a coisa de terceiro, sendo-lhe inoponível qualquer venda que a este haja sido efectuado por non dominus, antes ineficaz, pelo que o dono da coisa pode reivindicá-la directamente do adquirente, sem necessidade de prévia declaração judicial de nulidade da venda [A. Varela, RLJ 116/16].
A nulidade prevista para a venda de coisa alheia é uma nulidade atípica ou mista, pois não pode ser oposta pelo vendedor a comprador de boa fé (subjectiva, que consiste na ignorância que a coisa não pertencia ao vendedor - artigo 892º do CC) nem pelo comprador doloso [Tendo o dolo aqui um sentido de má fé, semelhante ao sentido do dolo previsto no artigo 253º do CC- Menezes Cordeiro, Da Boa fé no Direito Civil, (1997) págs. 497 e seguintes] (que sabe que a coisa pertence a terceiro e da falta de legitimidade do alienante, ou que pretende causar prejuízo a outrem) ao vendedor de boa fé – por razões de moralidade e justiça [Segundo Galvão Telles, Contratos Civis, em BMJ/83, pág. 127]. E qualquer deles não poderia deixar de considerar-se um interessado, nos termos do art. 286º do CC. Por outro lado, ao contrário da verdadeira nulidade prevista nesse artigo 286º e seguintes, a nulidade prevista no artigo 892º é sanável, nos termos do art. 895º (ambos do CC).
Mas essas restrições impostas aos contraentes, por agirem de má fé ou com dolo, não são extensivas a outros interessados (e o recorrido, como herdeiro da herança a que este diz pertenceremos bens, é interessado para pedir declaração de nulidade), que podem invocar o vício. E como principal interessado está o verdadeiro titular da coisa ilegitimamente vendida, que pode e tem interesse em invocar a nulidade do negócio jurídico [Cfr. P. Romano Martinez, Contratos em Especial, 1996, pág. 106/107, P. Lima/A. Varela, CC Anotado, II, 2ª Ed., 168 – “ressalvados os desvios apontados, o regime aplicável é o da nulidade … pode, por conseguinte, ser invocada a todo o temo e por qualquer interessado …”; Galvão Telles, BMJ 83/127; Diogo Bártolo, Venda de Bens Alheios, em Estudo de Homenagem ao Professor Doutro Inocêncio Galvão Telles, IV, 401/402; Yara Miranda, Venda de Coisa Alheia, na revista THEMIS, Ano VI, nº 11, 1995, pág. 143; Ac. STJ, de 1870272003, CJ/STJ/I/106. Em sentido contrário, ver Menezes Leitão, ob. cit., 97, exceptuando “naturalmente no caso de ocorrer uma aquisição tabular”, como sucederia na situação do processo, como os recorrentes pretendem, ou quando ali considere a alienação eficaz perante o verdadeiro proprietário]. E podendo ser a relação jurídica titulada pelo proprietário cuja consistência jurídica ou prática ser afectada pela venda a non dominus, não se vê motivo para o verdadeiro titular da coisa ilegitimamente vendida não possa invocar em seu favor a nulidade prevista no artigo 892º do CC.
Na verdade, não tem de requerer judicialmente a declaração de nulidade, pois pode reivindicar a coisa directamente do adquirente ou pedir a restituição da posse. Mas é inafastável que se trata do titular do direito vendido e, portanto, o primeiro interessado em ver declarada nula a venda, até para afastar dúvidas ou aparências enganadoras quanto ao direito. “Para além das acções de reivindicação e de restituição, pode ainda o titular do direito real invocar a nulidade do contrato” [P. Romano Martinez, ob. cit., 107]. A circunstância de o art. 892. do Cód. Civil fazer referência específica ao vendedor e ao comprador não significa que, ao abrigo do artigo 286º do mesmo diploma, a nulidade não possa ser invocada por outro interessado [Segundo se afirmou no Ac. STJ, de 13/12/1984, no BMJ 342/361. V. também Antunes Varela, RLJ 122/233. P. Romano Martinez, ob. cit., 106] e a referência na norma aos intervenientes no negócio é, apenas, para estabelecer as situações em que estes não podem invocar a nulidade. Somos, pois, a concluir que o verdadeiro dono do bem ilegitimamente vendido por terceiro pode invocar a nulidade prevista no artigo 892º do CC (e é com a nulidade que a lei sanciona a venda de coisa alheia).

VII. Quanto á questão da boa fé – a boa fé de terceiros (no caso, dos RR) não se afere pela existência de um registo anterior a favor do vendedor e ausência de registo da acção de nulidade da justificação, mas pela sua posição do adquirente perante o negócio celebrado. A fé pública do registo não determina a boa fé do adquirente que regista. A protecção que do registo resulta para o adquirente é que depende da sua boa fé que não é presumida.
A boa fé significa, como se afirmou, a ignorância, sem culpa, de que os bens não pertenciam ao vendedor, da alienidade dos bens e de que não prejudicava direito de terceiro sobre esses bens. Não actua de boa fé quem sabe que os bens não pertencem ao vendedor, que a coisa é alheia, como também quem age com desconhecimento assente em culpa grosseira dessa alienidade (v.g., face ao preço da venda dos bens, quando irrisório no confronto com o seu valor real). Se os RR se encontravam nessa situação, indiferentes são os registos para afastar a má fé ou afirmar a boa fé.
Esta, deduzida dos factos materiais a revelá-la, e a provar por quem dela beneficia, se relevante na espécie submetida a juízo, pedia a produção de prova, já que foram alegados os factos necessários á sua demonstração (como também à da má fé dos recorrentes). Daí que, nesta fase, não é possível fazer um juízo seguro quanto á actuação de boa fé ou má fé dos RR, quando intervieram como compradores dos bens imóveis em causa.
E, anota-se que, ao contrário do afirmado nas alegações dos recorrentes, na sentença recorrida não se afirma estarem os recorrentes de má fé (apesar de, aí, se duvidar da sua boa fé, com base em indícios que os factos fornecem, mas não mais que isso). Aí se afirma que dependia “de prova, por ser matéria controvertida, a actuação de boa fé por parte dos réus compradores”. Só que se entendeu, na situação, desnecessária a averiguação dessa questão, atentas as datas do negócio e da proposição desta acção e seu registo. Não é de acolher a posição dos recorrentes.

VIII. Quanto à inaplicabilidade do artigo 291º do CC, não têm razão os recorrentes. A ser nula a compra venda, por se tratar de bens alheios, estava-se perante a situação prevista no artigo 291º, nº 2, desse diploma. E, nessa perspectiva, bem decidida estaria a questão, pois que o artigo 17º, nº 2, do CRP, não impõe solução diferente (e que sempre estaria dependente da boa fé do adquirente, que conferiu o registo a favor do transmitente e que registou a aquisição, o que faltaria demonstrar).
É certo que não foi registada a acção de impugnação da justificação notarial (e devia ter sido – arts. 3º, nº 1. b), e 8º, nº 2, do CRP), e que o titular inscrito beneficia da presunção que resulta do artº 7º do CRP, presunção iuris tantum, por isso ilidível por prova em contrário. E só essa omissão deu lugar à controvérsia fundamento desta acção e aos incómodos dos recorridos, mas que aos mesmos são imputáveis.
E que os primeiros RR registaram a justificação, que do registo emergem as presunções previstas no artigo 7º do CRP, cujos efeitos passaram para os recorrentes, pelo registo da aquisição a que procederam.
Não deve esquecer-se que o A. (ou a herança) e os recorrentes não são terceiros para efeitos de registo (como “aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si” - artigo 5º, nº 4, do C.R. Predial), pois não adquiriram de um mesmo transmitente direitos incompatíveis.
Preceitua esse artigo 291º:
1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeita a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação …”.
2. “Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio”.
3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.
Na situação, os RR seriam terceiros de boa fé se desconheciam, sem culpa, que os bens comprados não pertenciam aos vendedores.
Em princípio, a invalidade do negócio é oponível a terceiros. Mas em nome da protecção dos legítimos interesses de terceiros e dos interesses dos tráfico jurídico estabeleceu-se contudo que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio respeitante a bens sujeitos a registo, se a acção não for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio, é inoponível aos terceiros de boa fé adquirentes, a título oneroso, de direitos sobre os mesmos bens [Mora Pinto, em Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Ed., 603], se tiverem registado a aquisição. Antes de decorrido esse prazo, não se reconhecem os direitos de terceiro constituídos sobre as coisas a restituir, mesmo que haja registo da aquisição anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação [Pires de Lima e Antunes Varela, em C.C. Anotado, I, 3ª ED/265]. Decorrido esse prazo, são protegidas as aquisições por terceiro, a título oneroso de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção.
Como a acção foi instaurada e registada dentro dos três anos subsequentes à venda, os direitos dos adquirentes, mesmo que tenham registado a aquisição, não são protegidos dos efeitos da declaração de nulidade [Carvalho Fernandes, em Teoria Geral do Direito Civil, II, 3ª Ed., 479], conforme resulta do artigo 291º, nº 2, do CC. Os recorrentes, mesmo que tenham actuado de boa fé, viam o direito adquirido afectado pela nulidade, não podendo opor a aquisição e registo aos interessados na nulidade [Cfr, Ac. STJ, de27/05/2005, na CJ/STJ/II/74].
Como se referiu atrás, mesmo que apenas aplicável o disposto nos arts. 291º, nº 1, do CC, e 17º, nº 2, do CRP, sempre os terceiros teriam de demonstrar a boa fé ao procederem à aquisição.
E, de qualquer modo, não estariam donos da coisa impedidos de reivindicar desses terceiros invocando sobre o bem uma posse boa, susceptível de lhe conferir a titularidade do direito por via da usucapião (como o demonstraram na acção antes instaurada contra os primeiros réus).
Improcede a questão.

IX. À procedência da acção importa, antes de mais, que a coisa vendida não pertença ao vendedor, ou seja, que se trate de venda de coisa alheia, no sentido atrás afirmado. No caso, que os prédios vendidos aos recorrentes não pertenciam aos vendedores (os primeiros RR) e pertenciam à herança aberta por óbito de G..........., falecido em 28/6/93.
Em acção proposta contra os primeiros RR – C.......... e D.......... – foi declarado que esses imóveis pertencem à herança indivisa aberta por óbito de G.......... e não àqueles RR.
Sucede que nessa acção não foram parte os recorrentes (2ºs RR).
E o autor assenta a alienidade dos prédios, apenas com base nessa sentença.
Preceitua o artigo 271º do CPC que:
1 - Em caso de transmissão por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substitui-lo.
(…)
3 – A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção.
Os recorrentes registaram a aquisição.
E fizeram-no antes do registo da acção (que nem chegou a ser feito).
Deste modo a sentença, proposta contra os primeiros RR, que anulou a justificação notarial e declarou que os prédios justificados pertenciam à herança deixada por G.......... não produz efeitos em relação aos recorrentes, não lhe é oponível; a sentença é ineficaz perante o titular da inscrição da aquisição, prevalecendo a primeira inscrição nos termos do artigo 6º, nº 1, do C.R. Predial. A força de caso julgado não se lhes estende.
O acto sujeito a registo só produz efeitos em relação a terceiros a partir do registo, daí que a acção (sujeita a registo) só produz efeitos em relação ao terceiro adquirente da coisa litigiosa se registada e a partir do registo.
Por o adquirente haver registado a aquisição antes do registo da acção (que nem chegou a ser efectuado), a eficácia do caso julgado limita-se às partes, não produzindo efeitos contra quem adquiriu direitos incompatíveis sobre a coisa, no caso, os recorrentes.
Ora, o Autor para afirmar a propriedade da herança deixada por G.......... relativamente aos imóveis identificado na petição limita-se a apelar à sentença proferida na acção apenas instaurada contra os primeiros RR, que não é oponível aos recorrentes.
E porque não tem essa eficácia, não demonstra esse direito.
Para obter a declaração de nulidade da venda feita pelos 1ºs aos 2ºs RR, necessário se torna demonstrar que os bens não pertenciam àqueles e que, no caso, pertenciam á referida herança. Era sobre o Autor/recorrido que recaía o encargo da prova da alienidade dos bens, como decorre do artigo 342º, nº 1, do CC, para o que tinha o ónus da prévia alegação dos factos que, uma vez provados, permitiam concluir pelo direito da herança.
Sucede que analisando a petição (e mesmo a resposta) não se detecta qualquer facto susceptível de demonstração do direito da herança sobre os bens.
E, sem esses factos, a acção não pode proceder.

X. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revoga-se a douta sentença recorrida e absolve-se os recorrentes do pedido.
Custas pelo recorrido.
Porto, 26 de Janeiro de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira