Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0720560
Nº Convencional: JTRP00040309
Relator: MARIA EIRÓ
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
HERANÇA
HERANÇA JACENTE
HERANÇA INDIVISA
Nº do Documento: RP200705090720560
Data do Acordão: 05/09/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 247 - FLS 104.
Área Temática: .
Sumário: I – Jacente é a herança enquanto não for aceite nem declarada vaga para o Estado.
II – A herança jacente é dotada de personalidade judiciária.
III - Aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente, e quem pode intervir como parte são os herdeiros, ou o cabeça de casal naquelas situações que a lei expressamente prevê.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto.

A presente acção foi intentada pela herança ilíquida e indivisa por óbito de B………. representada pela herdeira C………. e pelo interessado D………., peticionando a autora contra E………. e F………. que seja ordenada a pretendida demarcação entre o lado e extrema poente do prédio urbano pertença dos réus, e a estes doado pelo de cujus e sua mulher, e o lado e extrema nascente do prédio rústico sua pertença.
Alega a autora que os prédios em questão foram relacionados no processo de inventário que corre termos no ..° Juízo Cível deste tribunal para partilha do acervo hereditário do dito B………., onde são interessadas, porque herdeiras, C………., E……… e F………. e que o prédio que imputa aos réus foi a estes doados pelo de cujus e sua mulher.
No despacho saneador proferiu-se sentença em que se decidiu o seguinte:
- indefiro a intervenção principal provocada de G……….;
- julgo verificada a falta de personalidade judiciária da autora e, em consequência, absolvo os réus da presente instância.
Deste despacho foi admitido recurso o qual foi admitido e aceite como agravo.
Conclui o recorrente nas suas alegações:
1a - O M° JUIZ a quo - ao considerar que a herança ilíquida e indivisa por óbito de B………. não tem personalidade judiciária — devia proferir despacho destinado a providenciar o suprimento das excepções dilatórias e convidar a Autora a suprir as irregularidades dos articulados - nos termos do art° 508 do Cód. Proc. Civil.
2a — Ao considerar que falta personalidade judiciária à A. herança ilíquida e indivisa por óbito de B………. - teria de considerar que quem actua em nome dela, neste caso a herdeira C………. e o interessado D………. - actuam em nome próprio.
3a — E, neste último caso - ter-se-á de considerar que a acção é interposta pela herdeira C………. e pelo interessado.
4a - E, por isso - nada obsta que seja admitida a intervenção principal da cabeça-de-casal G………. para aí fazer valer um direito próprio — paralelo ao do Autor (es) ou do(s) Réu(s).
5a — E, dada a inércia da cabeça-de-casal G………. e até a sua oposição à presente acção para demarcação - aos que pretendem recorrer a juízo só resta requerer o incidente de intervenção principal provocada, e assim , vencer a inércia da recusante e garantir a legitimidade activa.
6a - E, que com a intervenção principal da cabeça-de-casal G………. - da Ré E………. e da C……….a — encontram-se reunidas na presente acção todos os únicos e universais herdeiros da herança ilíquida e indivisa por óbito do referido B………. .
7a — Pelo que ter-se-á de considerar que os direitos relativos à herança estão ser exercidos conjuntamente 11a - E, sendo que a demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova - foram indicados documentos e meios de prova para o efeito.
12a - A presente acção destina-se a definir as extremas entre o imóvel doado e os dois prédios que lhe são contíguos e que são pertença da herança ilíquida e indivisa por óbito do referido B……….. - e, por via disso - dado ter de se considerar que a herdeira C………. e o interessado D………. actuaram em nome próprio dada a falta de personalidade judiciária da supracitada herança - ter-se-á de também de considerar que os mesmos têm legitimidade para intentar tal acção.
13a - E, o M° Juiz a quo - por uma questão de economia processual -deveria ter dado um despacho ou decisão para suprimento das excepções dilatórios e aperfeiçoamento dos articulados .
14a - Face a tudo o que foi alegado , devida ser proferida uma decisão ou despacho diferentes - a fim do prosseguimento da presente acção para demarcação.
15a — A decisão recorrida - que julgou manifestamente improcedente o pedido formulado pela Autora e, em consequência , indeferiu a intervenção principal provocada de G………., e, julgou verificada a falta de personalidade judiciária da Autora, e, em consequência , absolveu os Réus da presente instância, com custas a cargo da Autora — viola a Lei e as normas jurídicas com as quais se devida conformar - nomeadamente : arr°s 156°, 193°, 325° e segs, 508°, 659°, 668°,n° l als b), c) do C. P. Civil, art°s 6°, 8° e 9°, 262° e segs, 1353° e segs do Cód. Civil - devendo ser considerada nula e de nenhum efeito.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Balizado o objecto do recurso pelas conclusões das alegações a questão consiste em saber:
1) Se a herança ilíquida e indivisa é dotada de personalidade judiciária;
2) No caso negativo são os herdeiros desta os verdadeiros e directos interessados;
3) Se pudemos considerar no caso dos autos, interpretando a vontade dos autores, como sendo a acção intentada pelos herdeiros da herança indivisa.
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Os factos, o direito e o recurso.
A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte e, só tem personalidade judiciária, quem tiver personalidade jurídica, art.5º, 2 do CPC.
Em vista disto a personalidade judiciária consiste na possibilidade de requerer ou contra si ser requerida, em próprio nome, providência de tutela jurisdicional reconhecida pela lei.
Todas as pessoas, singulares e colectivas, como sujeitos de relações jurídicas, gozam de personalidade judiciária, atento este princípio da equiparação entre personalidade jurídica e personalidade judiciária, confr. art. 67º do CC.
Assim, se a acção em juízo se desdobra entre o autor, requerente, ou demandante e o réu, requerido ou demandado isso pressupõe necessariamente a existência de personalidade judiciária dos dois sujeitos processuais.
A falta deste pressuposto processual constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que conduz à absolvição do réu da instância, (arts. 5º, 494º c), 493º, 2 e 495º do CPC).
A lei prevê, todavia, casos de desvio da regra da coincidência da personalidade judiciária com a personalidade jurídica, admitindo a titulo excepcional, a existência de personalidade judiciária sem personalidade jurídica, como ocorre, no caso que aqui interessa, com a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado, art. 6º a) do CPC.
Esta excepção (desvio à regra da correspondência) visa “acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos)”, A. Varela J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora.
Como é doutrina e jurisprudência unânimes a palavra jacente constante da actual redacção do art. 6º do CPC tem o mesmo conteúdo da expressão da anterior redacção “herança cujo titular não esteja determinado”
Jacente é a herança enquanto não for aceite (art. 2047º CC) nem declarada vaga para o Estado (art. 2046º CC).
Só a herança jacente tem independência judiciária em termos de participação directa em processo judicial, e não a herança indivisa.
Assim, só a herança jacente tem possibilidade de requerer em nome próprio qualquer das providências reconhecidas na lei processual.
Isto significa, repete – se, que tem personalidade judiciária conforme dispõe o art. 6º do CPC – embora não tenha personalidade jurídica.
Neste caso a herança jacente é que é a verdadeira parte na acção, e não os herdeiros. Saliente – se que, mesmo sendo parte tem de ser assegurada a sua representação em juízo, conf. Ac. Rel. Coimbra, 9 de Março de 2004, in CJ, 2004, V. II, pág. 13.
“Entendeu – se que a fórmula proposta pela comissão Varela, que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (art. 2050º do CC), ia longe demais na atribuição da personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante. Aliás, mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (art.2068º e 2071ºCC), sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe ser atribuída personalidade judiciária.
Esclareceu – se que a semelhança exigida aos restantes patrimónios autónomos para a atribuição da personalidade judiciaria consistia em ser indeterminado o seu titular, como acontece no caso dos bens doados ou legados a nascituros (art.952º, 1 e 2033º do CC)”, José Lebre de Freitas CPC Anotado V. I pág. 20.
Se a herança indivisa actua para vários efeitos como património autónomo, este só tem personalidade judiciária se os respectivos titulares não estiverem determinados.
Não perfilhamos, por isso, face à actual redacção do art. 6º a tese de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora no Manual do Processo Civil, pág. 111, nota 1 quando dizem “por analogia (baseado no argumento maiori ad minus) se há – de entender que, estando o processo de inventário em curso, mas não estando efectuada a partilha, é em nome da herança (ou contra a herança) embora carecida de personalidade jurídica que hão – de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário, sendo a herança normalmente representada, nesse caso, pelo cabeça – de – casal (conf. art. 2088º e 2089º do CC) desde que a intervenção deste caiba nos seus poderes de administração.”
Eram conhecidos, à data da propositura da acção os herdeiros de B………. e, segundo a petição inicial estão pendentes autos de inventário, tendo os interessados sido citados para os respectivos termos, e não deduziram oposição. Isto quer dizer que se arrogaram herdeiros, e como tal aceitaram a herança. Não há dúvida, por isso, que não estamos perante herança jacente (do qual fazem parte um conjunto de direitos de entre os quais o direito à demarcação entre as estremas do prédio da herança e o prédio pertença dos réus invocado em juízo), mas de uma herança indivisa.
A decisão recorrida absolveu os RR. da instância por falta de personalidade judiciária desta herança, por entender que se trata de uma excepção insuprível.
Quid iuris?
Como ajustar o art. 6º a) do CPC com os arts.2088º, 2089º e 2091º do CC?
Podemos dizer, desde já, que a articulação dos vários preceitos referentes à herança não são, de todo em todo, coerentes.
Como diz, a propósito deste art. 6º o Ilustre Prof. Castro Mendes no seu Direito Processual, V. II, 1980, pág.18 “ a prática não se tem socorrido muitas vezes deste meio que a lei põe à sua disposição. E isso talvez porque a própria lei, depois de no art. 6º ter afirmado em termos explícitos a personalidade judiciária das heranças de titular não determinado, nos subsequentes arts. do CPC não toma regra geral em atenção esse facto. Raras são as disposições do CPC que dão seguimento ideia do art. 6º; entre elas podemos contar as dos arts.1462º e talvez do art.957º, 2. Vejam – se também as disposições dos art. 2088º e 2089º do CC”.
O art. 6º do CPC, diz respeito ao pressuposto processual da personalidade judiciária, isto é, à faculdade de ser parte, enquanto os art. 2088º, 2089ºe 2091º do CC referem – se ao pressuposto da legitimidade.
Neste sentido, relativamente à herança indivisa e ilíquida, o Dr. Juiz – Conselheiro, José Martins da Fonseca, Herança Indivisa – Sua Natureza Jurídica. Responsabilidade dos Herdeiros Pelas Dividas Da Herança, ROA, Ano 46, pág. 581, refere “deve lembrar – se que estamos perante uma massa de bens sem personalidade jurídica ou judiciária, que pertence em bloco aos co – herdeiros. È uma verdadeira colectividade, com bens e encargos próprios.
Os co – herdeiros têm que ser demandados apenas porque aquela massa de bens não tem personalidade judiciária, mas não têm sequer um direito a uma “quota ideal” sobre a herança. Agem de certo modo como “representantes”da herança.
Estamos perante um caso de legitimidade imposta por lei, apesar de não existir um interesse directo em contradizer…”
Na herança ilíquida e indivisa os herdeiros não são os seus representantes. “A representação exige, pelo menos, capacidade judiciária de representante e representado. Poderá é dizer – se que os herdeiros agem como se fossem representantes da herança e que têm legitimidade para contradizer porque tal lhes é imposto por lei” Sr. Juiz – Conselheiro, J. Martins da Fonseca obra citada pág. 582.
Mas vejamos.
A personalidade judiciária “constitui o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos”, como escreve o Professor Castro Mendes na sua obra, - Dto Processual Civil, ed. 1987, V.II, pág. 18, - e é condição da existência da acção, - Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Teoria do Processo Declarativo, pág. 130 e 132.
O processo civil é a via para a concretização de direitos e obrigações no âmbito de direito privado, por isso aquele que seja atingido na sua esfera jurídica pelos efeitos da decisão judicial deve constituir uma entidade capaz de suportar as suas consequências.
Assim quando a questão substantiva é submetida à apreciação do tribunal não pode haver dúvidas quanto ao referido pressuposto processual, dado que a verdadeira identificação dos sujeitos processuais constitui um factor que, além do mais, serve para delimitar subjectivamente o caso julgado.
Como preliminar do pressuposto processual da legitimidade e da capacidade judiciária para a interposição da presente acção e da apreciação de mérito, terá de se aferir em primeiríssimo lugar da existência da personalidade judiciária.
A herança indivisa – que não se confunde com a herança jacente - não é dotada do pressuposto processual de personalidade judiciária.
Aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente, e quem pode intervir como parte são os respectivos titulares enquanto tal, ou seja, enquanto herdeiros do “de cujus”, titulares do referido património autónomo, ou o cabeça de casal naquelas situações que a lei expressamente prevê. E entre estas contam – se os art. 2088º e 2089º doCC.
Partes, são pois, sempre os herdeiros ou o cabeça de casal enquanto tais. Estes sim dotados de personalidade judiciária.
A regulamentação da administração da herança indivisa prevista no art.2079º e sgts. do CC abrange o período em que há na sucessão um património autónomo hereditário que necessita ser tutelado.
Tratam – se de normas de protecção deste património.
Ao cabeça de casal atribui a lei a administração ordinária e certos actos de disposição, art. 2087º do CC.
Para tornar efectiva esta administração o art. 2088º do CC dispõe que “o cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído”.
E o art. 2089º reza “o cabeça de casal pode cobrar as dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente”.
Todavia fora destes poderes do cabeça de casal os direitos relativos à herança só podem ser exercidos por todos os herdeiros conjuntamente – art. 2091º do CC., porque todos são titulares desse património autónomo.
Revertendo ao caso dos autos.
Por via da aceitação da herança o património do falecido B……… encontrou os herdeiros determinados. Facto que é anterior à propositura desta acção. Logo a posição de autora como parte não pode ser atribuída à herança indivisa, que como vimos carece de personalidade judiciária. Falta – lhe este pressuposto processual insuprível, como muito bem se diz na sentença recorrida, remetendo – se para os seus fundamentos, conf. Ac. STJ 15. 5. 2003 in www.dgsi.pt.
Mas se quem formalmente se apresentou a interpor a acção foi a herança ilíquida e indivisa de B………., representada pela herdeira C………. e seu marido D………., tal aconteceu por erro técnico na identificação do sujeito.
Interpretando o conteúdo da petição inicial logo se vê que o que se pretende é a definição de estremas do prédio da herança que confina com o dos RR. como supra referimos.
A referida C………. e marido não, se arrogaram nos poderes do cabeça de casal, já que cabeça de casal nomeada no inventário é G………. . Antes pretendem a intervenção nos autos de todos os interessados.
Nos arts. 26 e 27 da petição inicial diz – se que a C………. e a Ré E……….. são, juntamente com G………., os únicos e universais herdeiros por óbito de B………. .
E requereu – se a intervenção principal desta, nos termos do disposto no art. 325º CPC.
Concluímos que a referida identificação não foi intencionalmente assumida.
Alias a acção de demarcação não configura um acto de administração ordinária, e como tal não se encontra nos poderes do cabeça de casal.
Deve por isso a acção ser intentada por todos os herdeiros nos termos do art. 2091º do CC.
Esta questão coloca – se, no entanto, em sede de legitimidade, o que é outra questão (art.23º do CPC), a ser apreciada “à posteriori”.
Se atentarmos na forma como foi estruturada a petição inicial podemos concluir que a intenção da herdeira C………. e marido consiste em intervir, enquanto herdeira, como parte na causa na qualidade de autora e fazer intervir a herdeira em falta, para tanto deduziu o respectivo incidente de intervenção de terceiros.
Nada impede que este tribunal considere que os “verdadeiros interessados” no processo porque directamente atingidos pela decisão são afinal os herdeiros daquela herança.
Consideramos que existe uma identificação imperfeita da parte activa de tal forma que se processou herança representada por C………., em vez de C………. e marido na qualidade de herdeiros da herança de B………. .
Interpreta – se, por isso a petição inicial neste sentido, ou seja, devendo compreender – se que a acção é realmente intentada pelos herdeiros, e não pela herança.
Por tudo quanto ficou exposto, e no provimento do agravo revoga – se a decisão recorrida e consequentemente decide – se:
1 – julgar a autora C………. e marido D………., na qualidade de herdeiros da herança por óbito de B………. dotados de personalidade judiciaria;
2 – em face disto devem ser apreciados os restantes pressupostos processuais, e reapreciado o pedido suscitado no incidente de intervenção de terceiros.
3 - Custas pelos recorridos.

Porto, 9 de Maio de 2007
Maria das Dores Eiró de Araújo
Anabela Dias da Silva
Albino de Lemos Jorge