Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0830576
Nº Convencional: JTRP00041190
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: CASO JULGADO
COISA
DIREITO LITIGIOSO
SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: RP200803130830576
Data do Acordão: 03/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 751 - FLS 249.
Área Temática: .
Sumário: I – Ao adquirir a quota do comproprietário que, sem seu assentimento, dera de arrendamento a terceiro parte especificada da coisa em compropriedade, o adquirente continua a poder opor ao arrendatário a nulidade ou a ineficácia do arrendamento quanto a si.
II – A tal não obsta o facto da aquisição ter ocorrido na pendência de acção de despejo, que veio a improceder, sem que o adquirente fosse habilitado como cessionário do transmitente/autor na acção, não operando a eficácia de caso julgado, nos termos do art. 271º nº 3 do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1) - Os autores B………. e C………. intentam acção declarativa ordinária contra a ré “D……….”, pedindo que a Ré seja condenada:
- a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre um prédio urbano composto de casa de três pavimentos e quintal, sito no ………., freguesia de ………., deste Concelho de Penafiel, descrito na Conservatório do Registo Predial de Penafiel, sob o nº 00865/16072001 e inscrito a seu favor;
- a restituir imediatamente aos AA. o rés do chão desse prédio, que ocupam sem qualquer título, livre e desocupado de pessoas e bens e
- a pagar aos AA., a título de indemnização pelos prejuízos causados, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença.

Alegam os autores que são proprietários do aludido prédio urbano, que adquiriram, em parte, por sucessão, e em parte, por compra, que se encontra registado a seu favor, presumindo-se a sua propriedade.
Continuam que todo o rés-do-chão do prédio, com uma área de cerca de mil metros quadrados, se encontra ocupado pela Ré, sem título e contra a vontade dos autores.
Mais afirmam que esse rés-do-chão tem o valor locativo, para indústria, comércio e serviços, que se situa nos € 3,00/m2, devendo os AA serem indemnizados, sendo esse o prejuízo que sofrem com a ocupação da ré.

A Ré contesta alegando a simulação do contrato de compra e venda através do qual a propriedade do imóvel foi transferida dos anteriores proprietários para os Autores.
Mais alega que é arrendatário do imóvel, desde 1983, como já havia sido reconhecida em acção de despejo intentada pelo anterior proprietário, E………., que não pôs em causa a qualidade de arrendatária da ré.
Do que os AA tinham inteiro conhecimento, tendo sido membros da ré até há cerca de 10 anos, conhecendo o arrendamento de cuja celebração sabiam e a que deram consentimento.
Termina a pedir a) se julgue improcedente a acção por via da nulidade do contrato de compra e venda invocado pelos AA, por simulação, b) a não se ser assim, se julgue improcedente a acção por existir um contrato de arrendamento, celebrado entre a ré e o sr. F………., há mais de 20 anos, e c) daí, se julgue improcedente o pedido de indemnização, bem como d) se condene os AA como litigantes de má fé.

Os AA replicam que, além de impugnarem o mais contraposto pela ré, não intervieram na mencionada acção de despejo, cuja sentença não faz caso julgado relativamente a eles, pois as partes, o pedido e a causa de pedir nessa acção não são os mesmos desta acção.
Dizem, ainda, que não intervieram em qualquer contrato de arrendamento que tivesse por objecto o prédio identificado ou parte dele nem prestaram o seu consentimento à celebração desse ou de qualquer outro arrendamento.

Posteriormente, a Ré, em articulado superveniente, vem dizer ser já conhecida a decisão to Tribunal da Relação que, confirmando a sentença que julgou improcedente a acção de despejo atrás alegada, interposta pelo pai da ora Autora, e pela qual se vê que os AA sempre tiveram conhecimento da qualidade de arrendatária da ré, nunca se tendo oposto e sempre o consentiram.
Não obstante a oposição dos AA, o articulado superveniente foi admitido.
Foi junta certidão da sentença e do acórdão confirmatório proferidos na aludida acção de despejo, com nota de trânsito em julgado a 28 de Junho de 2006.

Proferindo despacho saneador, foi decidido verificar-se caso julgado material que se impõe aos AA, definida e definitiva que esta a qualidade de arrendatária da ré, quanto ao prédio (parte) reivindicado, por isso, dispondo esta de título legítimo de ocupação da parte do prédio que lhe foi arrendado.
Na sequência, foi a ré absolvida da instância

2) - Discordando dessa douta decisão, agrava a autora.
Doutamente alegando, conclui:
“1. A sentença recorrida julgou procedente a excepção de caso julgado, por alegadamente se discutir nos presentes autos questão idêntica à da acção n.º …/2001 que correu termos no .. JUÍZO do Tribunal Judicial de Penafiel;
2. São três os requisitos, nos termos do art.º 498.º do C.P.C., para a verificação do caso julgado material: a identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir e nenhum deles se verifica no caso;
3. Os sujeitos são distintos: nos autos é a Agravante como proprietária plena e como anterior comproprietária que exerce o direito de reivindicar a propriedade, naqueloutra acção era E………. na qualidade de senhorio que pede a resolução de um contracto de arrendamento;
4. Da mesma forma os pedidos em causa nas acções em crise são distintos: na presente acção pede-se o reconhecimento do direito de propriedade dos Agravantes do prédio identificado na P.I. e a sua restituição àqueles e na anterior acção pediu-se a declaração de resolução de um contrato de arrendamento tendo por base o incumprimento, visando ambas efeitos necessariamente distintos;
5. Por fim as acções têm distintas naturezas e causas de pedir, uma é real e outra obrigacional e a causa de pedir é naquela o direito de propriedade, o facto jurídico de que emerge e a sua violação e nesta o contrato de arrendamento e o incumprimento do mesmo pela R.;
6. O pressuposto e condição de procedência da reivindicação em causa é a ineficácia do contrato de arrendamento alegado pela Agravada que mesmo que se conceba ser o que foi objecto da citada acção é um facto absolutamente novo, susceptível de produzir efeitos em juízo, configurando “uma nova dimensão” do pedido e causa de pedir;
7. Nunca pode da decisão que se impõe no presente processo resultar qualquer contradição de julgados com a anterior sentença proferida no já mencionado processo;
8. O caso julgado não pode impor-se, por reflexo, a terceiro que, tenha alegado um direito, ou relação jurídica independente e autónoma do direito reconhecido por sentença proferida noutra acção, na qual não interveio e, por isso não pode defender-se, como e o caso dos Agravantes;
9. Tanto mais que estes ainda que tivessem substituído o autor na acção n.º …/2001, não podiam, na fase em que aquela se encontrava, exercer na mesma os direitos que por via desta pretendem efectivar, nem aquele podia suscitar, por lhe não aproveitar, a ineficácia do contrato.
10. De resto, a previsão do art. 271º do C.P.C. que parece ser a pedra basilar de toda a decisão recorrida visa proteger a parte estranha à transmissão, pondo-a a salvo das desvantagens que lhe advierem dessa transmissão e evitar a manipulação dos resultados processuais através de uma perda de legitimidade provocada voluntariamente por uma das partes; não pode conduzir ao efeito perverso de limitar, aliás, excluir o direito que os Agravantes inequivocamente podiam exercer se mantivessem a sua qualidade de meros comproprietários do prédio em causa, detentores de um direito de propriedade menor, enquanto partilhado com outros titulares simultâneos do mesmo direito, relativamente à propriedade plena em que ficaram investidos pela aquisição dos direitos dos ex-comproprietários.
11. Na compropriedade não se está perante um só direito, mas vários direitos, cada um pertencente ao seu titular que incidem sobre a mesma coisa ou uma quota ideal dela.
12. Ao adquirirem o direito do ou dos seus ex-comproprietários às quotas ideais que do prédio em causa lhes pertenciam não podem os Agravantes perder os poderes que o seu anterior direito a uma quota ideal apenas do mesmo prédio lhes conferia.
13. Sobretudo estando em causa, como está, a oneração de parte especificada da coisa comum por contraposição á parte aliquota do seu ex-comproprietário que uma vez efectuada, sem o consentimento dos demais consortes, é havida como oneração de coisa alheia,
14. Cuja consequência é a absoluta ineficácia em relação aos consortes que nela não consentiram;
15. Daí que estes consortes não careçam de fazer anular o contrato, comportando-se antes em relação a ele como se não tivesse sido celebrado.
16. O contrato de venda ou de arrendamento celebrado nessas circunstâncias, como res inter allius acto, é sempre inexistente em relação ao comproprietário que não deu o seu consentimento, não produzindo quaisquer efeitos na sua esfera jurídica, donde o direito de reivindicar a coisa,
17. O que, face à invocada estrutura da compropriedade, não pode ser posto em causa pela decisão da acção de despejo supra aludida, mesmo tendo os Agravantes adquirido na respectiva pendência o direito à parte alíquota do ali autor e seu comproprietário.
18. O contrato que a Agravada opõe aos Agravantes nem sequer é o que constitui a causa de pedir daquela acção de despejo, nem o contrato cuja resolução ali é peticionada.
19. Os Agravantes não peticionam na presente acção apenas a restituição do prédio seu objecto, pedem ainda o reconhecimento do direito de propriedade do mesmo, e se quanto àquela não se vislumbra a excepção de caso julgado que justificou a absolvição da Agravada da instância, contra a qual os Agravantes se insurgem, quanto a este muito menos.
20. Por tudo fez a douta sentença recorrida incorrecta aplicação da Lei e do Direito, nomeadamente dos artigos 271.°, 497.° e 498.° todos do C.P.C. e 1024.° n.º 2 e 1408° do C.C..

Termos em que, julgando procedente o presente agravo e revogando a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue não verificada a excepção de caso julgado material, e ordene o prosseguimento dos autos, praticarão, como sempre, um acto de integral justiça,
JUSTIÇA”

Não foi apresentada resposta à alegação da agravante.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

3) – A decisão impugnada assentou na seguinte situação factual:

a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel, um prédio urbano composto de casa de três pavimentos e quintal, sito no ………., freguesia de ………., deste Concelho de Penafiel, estando este prédio inscrito a seu favor na competente conservatório do Registo Predial de Penafiel, sob o numero 00865/16072001 e inscrito na respectiva matriz sob artigo provisório n.º 995.

b) O referido prédio, em 16/07/2001 encontrava-se inscrito a favor de E………., casado na comunhão geral de bens com G………., por compra e venda.

c) Por óbito de G………. correu termos neste tribunal, sob o nº ../77 o respectivo processo de inventário obrigatório, sendo herdeiros E………., cabeça de casal, H………., menor com 5 anos de idade e B………., menor com 11 anos de idade, respectivamente, cônjuge e filhos da inventariada.

d) No âmbito do referido processo de inventário foi proferida sentença homologatória da partilha, em 11 de Outubro de 1978, transitada em julgado, tendo o imóvel descrito em A) sido adjudicado nos seguintes termos: um terço para o cabeça de casal, E………. e um terço para cada um dos filhos.

e) Pela AP 7/…….. o imóvel descrito em A) foi inscrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel a favor de:
“1) E………., cc I………. em comunhão de adquiridos;
2) B………., c.c. C………. em comunhão geral; e
3) H………., c.c. J………. em comunhão geral; por sucessão deferida em inventário de G………. .

f) No dia 7 de Abril de 2005 foi celebrada escritura pública na qual intervieram como outorgantes:
“Primeiro a) E………. …
B) H………. e mulher J………. …
Segundo – B………. …
Terceiro – I………. …
Quarto – K………. …
Quinto – L……….
Sexto – M………. …
Os primeiros outorgantes declararam: Que pelo preço de cinquenta e sete mil e quinhentos euros, vendem à segunda outorgante B………., dois terços indivisos, do prédio composto de cave, rés-do-chão, andar e quintal, sito no ………., da freguesia de ………., do concelho de Penafiel, descrito na Conservatória do Registo Predial respectiva, sob o número zero zero oitocentos e sessenta e cinco, da freguesia de ………., com registo de transmissão a favor dos vendedores pela inscrição G-DOIS e inscrito no artigo 439, da respectiva matriz urbana, com o valor patrimonial correspondente de 56.913,48 euros;
Que já receberam da compradora o citado preço.
Declarou a segunda outorgante:
Que aceita este contrato nos termos exarados e que já é dona da restante parte…
Declarou, depois, a terceira outorgante:
Que dá a necessária autorização a seu marido para esta venda de um bem próprio dele…
Declararam, finalmente, os primeiros outorgantes H………. e mulher e os quarto a sexta outorgantes:
Que, na qualidade de restantes filhos e nora do primeiro outorgante E………., a este dão a necessária autorização para esta venda feita a favor de sua irmã e cunhada…”

g) Pela AP 16/…….. foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Penafiel a favor de B………. a aquisição de 2/3 do direito de propriedade sobre o imóvel descrito em A).

h) No ..º Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel, no processo sob o n.º …/2001, no qual era Autor E………. e Ré a aqui também Ré, D………., correu termos Acção declarativa com processo sumário, na qual, o Autor, na qualidade de senhorio, pedia a resolução do contrato de arrendamento que, em 23/10/2000, havia celebrado com a Ré, na qualidade de arrendatária e que tinha como objecto o imóvel descrito em A).

i) No âmbito do referido processo veio a ser proferida sentença, em 13 de Junho de 2005, cuja certidão se encontra junta de fls. 188 a 203 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual foram dados como assentes, entre outros, os seguintes factos:
“1 – O Autor é dono e legitimo comproprietário do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, andar e quintal, com a área coberta de 262 m2 e descoberta de 300 m2, a confrontar do norte com a Estrada Nacional, do nascente com N………., do Sul com O………. e do Poente com uma presa de água de consortes e de O………, com o valor patrimonial de 8.100.424$00, sito no ………., freguesia de ………., desta comarca, inscrito na matriz sob o artº 439º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 865/16072001.

4 – A D………. é representada pelo pastor em exercício, P………. .
5 - A fls. 11 dos autos encontra-se um documento do qual consta sob a epígrafe “Declaração” o seguinte teor: “Nós abaixo assinados, E………., I………. e H………. declaram que alugam à D………. …, o rés do chão do prédio sito no ………., freguesia de ………., concelho de Penafiel, pelo preço inalterável de 10.000$00… Mais declaram que o referido rés-do-chão se destina à prática do culto da religião Q………. e respectivo convívio…No caso de a referida D………. pretender dar outros fins diferentes dos indicados, torna-se nulo este contrato, devendo ser devolvido o referido imóvel aos seus proprietários, livre de pessoas e coisas; Feito de boa-fé, pelos outorgantes vai ser assinado. Penafiel, 23 de Outubro de 2000.
6 – O pastor da Ré aceitou a declaração referida em 5 e a ocupação do prédio nos termos declarados.

12 – A Ré sempre pagou as rendas mensal e pontualmente.
13 – No mês de Novembro de 2000 o Autor foi visitado por dois membros da Ré que lhe solicitaram que fizesse uma nova declaração com teor semelhante ao da referida em 5 para vigorar para o ano de 2001 como era habitual fazer no início de cada ano, o que o Autor recusou, não lhe tendo, consequentemente, sido entregue pelos dois membros da Ré o montante em dinheiro correspondente à contrapartida da ocupação do prédio durante o ano de 2001.
14 – A partir de Janeiro de 2001 a Ré passou a depositar as rendas na S………. .
15 – O que acontece até Dezembro de 2001.”

j) Com base na factualidade dada como assente decidiu-se naquela sentença qualificar o contrato celebrado entre E………. e a Ré relativamente ao imóvel descrito em A) nos seguintes termos:
“…
Deve, porém, ser qualificado como arrendamento urbano para outro fim lícito especificado no contrato: a prática do culto da religião Q………. e respectivo convívio.”

l) A final, na referida sentença foi proferida a seguinte decisão:
“Face ao exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência absolvo a Ré de todos os pedidos formulados.
Determino a entrega ao Autor das quantias depositadas em seu nome e à ordem deste Tribunal na S………. na conta …………..”

m) Da sentença referida em I) foi interposto recurso tendo a mesma vindo a ser confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, cuja certidão consta de fls. 204 a 213, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pelo que transitou em julgado em 28 de Junho de 2006.

n) A escritura referida em F) foi celebrada na pendência da acção referida em H).

4) – Sendo pelas conclusões das alegações que se delimita âmbito do recurso (arts.684º/3 e 690º/1 e 3, ambos do CPC, na versão aplicável) cabe averiguar e decidir se a decisão (sentença) proferida no processo mencionado na supra alínea h) do quadro factício assente, vincula a agravante, com força de caso julgado (material).

5) – Na (presente) acção de reivindicação formulam-se outros pedidos, incluindo o do reconhecimento da propriedade (o que foi clara e motivadamente impugnado), cuja apreciação a decisão judicial transitada em julgado, proferida em acção de despejo (proc. nº …/2001, do º juízo do tribunal judicial de Penafiel), intentada pelo alegado “transmitente”, não poderia obstar.
A questão do caso julgado, nos contornos revelado no processo, no acolhimento da oponibilidade da sentença proferia naquele processo aos aqui AA, limitar-se-ia à existência de título legítimo de ocupação/gozo do prédio (a relação arrendatícia), obstando a nova apreciação da existência do arrendamento, implicando a improcedência da acção, no que toca aos pedidos de restituição do imóvel bem como à pretensão indemnizatória.
Na fundamentada decisão recorrida, quanto ao assunto que versa, analisou-se, desde logo a questão do caso julgado (a questão da existência de uma arrendamento válido, em que a ré tem a qualidade de arrendatária, seria questão definitivamente decidida que vincula os AA), como impeditivo da apreciação (novamente) da questão submetida a juízo com absolvição da ré da instância.
Porque não se controvertem outras em recurso, apenas dessa questão se conhece.
Não obstante a bem fundamentada decisão recorrida, quanto à questão do caso julgado, permitimo-nos dissentir da solução encontrada.

A excepção do caso julgado (material), como impedimento (excepção dilatória) à repetição da causa (e nova apreciação da mesma questão), evitando que o tribunal, em posterior da acção, fique colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão transitada em julgado (já não passível de recurso ordinário), implica a verificação da tríplice identidade em ambas as causas, prevista nos arts. 497º e 498º do CPC, de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente ..., mas também a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica ...” e a autoridade de caso julgado manifesta-se no seu efeito positivo de proibição de contradição de decisão transitada e no seu aspecto negativo de proibição repetição da decisão; traduz-se no “comando de omissão ou a proibição de acção respeitante ao impedimento subjectivo à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e ao impedimento subjectivo à contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente” (Miguel Teixeira de Sousa, em “O objecto da sentença e o caso julgado material”, no BMJ 325, págs. 325, págs. 176 e 179). “Assim, verifica-se que o caso julgado material pode valer em processo posterior como autoridade de caso julgado, quando o objecto da acção subsequente é dependente do objecto da acção anterior, ou como excepção de caso julgado, quando o objecto da acção posterior é idêntico ao objecto da acção antecedente” (Idem, 178).

Como regra, a eficácia do caso julgado está limitada às partes na acção em que a decisão transitada em julgado foi proferida. A excepção de caso julgado requer, por isso, a identidade de sujeitos, o que acontece quando as partes, numa e noutra das acção, são as “mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica”, ou que “na relação ventilada” ocupem a mesma posição (que ocupavam ao tempo da causa anterior).
Na douta decisão em recurso conclui-se pela «identidade dos sujeitos sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica uma vez que, como já decorre do supra exposto, os Autores da presente acção foram substitutos do Autor na relação substantiva em causa na primeira acção, ficando a existir divergência entre a substituição substancial e a processual já que naquele processo, por não ter existido habilitação, o ali Autor continuou a ter legitimidade activa para prosseguir na acção. – artº 271º, nº 1 do CPC
Como bem escreve Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 2001, 319, “não é repetível perante o substituído (por exemplo o adquirente da coisa litigiosa que não se habilite como parte) o objecto da acção, pendente ou já definitivamente julgada perante o substituto processual”».
Para assim concluir considerou-se «com a venda operada por parte do E………. aos Réus da sua quota sobre o imóvel, existiu transmissão por acto entre vivos da parte que o Autor detinha na coisa litigiosa, o imóvel arrendado. Assim sendo, mesmo não tendo existido habilitação por parte dos aqui Autores (na qualidade de adquirentes) na acção, a sentença proferida naquela acção produz efeitos em relação a estes, pois aquela não era uma acção sujeita a registo – artº 271º, nº 3 do CPC» e, por essa razão, a anterior acção produziu «efeitos em relação aos aqui Autores e estando a mesma transitada em julgado está definitivamente reconhecida a existência do contrato de arrendamento nos termos ali decididos e a qualidade de arrendatária da aqui Ré relativamente àquele imóvel».
Não temos como imperioso assim concluir porque também não se tem como necessário que aquela acção (de despejo) produziu efeitos em relação aos autores.
No entanto, e a não ser que tais efeitos se produzam (de sucessão dos AA na posição processual do transmitente E………., não obstante a não intervenção daqueles na acção anterior) – questão a aferir de seguida – não existe inteira coincidência das partes em ambas as acções. Acolá, o autor actua como senhorio, posição na relação na relação material diversa da posição que os AA têm na relação ventilada na presente acção (pretensos titulares da propriedade plena).

Adianta-se que, se os pedidos numa e noutra das acções não coincidem na totalidade, parte dos efeitos pretendidos – a restituição do imóvel – são os mesmos, admitindo-se, pois que, quanto aos pedidos, nesta e na anterior acção, existe identidade parcial, o que não impediria a apreciação dos restantes efeitos não abrangidos no âmbito da sentença transitada.
Já quanto à causa de pedir – como o facto jurídico (concreto) de que emerge o pedido, o efeito jurídico requerido pelo autor (artigo 498º/4 do CPC) – entendemos não verificada a identidade exigida para a excepção de caso julgado. Na causa anteriormente proposta, a causa de pedir assentou na relação de arrendamento, que tinha como titulares E………. e a ré/agravada, bem como no incumprimento (ou na prática pela ré de facto legitimador da resolução pelo senhorio, consistente na falta de pagamento da renda e uso do arrendado para fim diverso do contratual). Para esse efeito, é irrelevante que o autor fosse ou não comproprietário, bastava ser locador (nem é necessário ter direito real sobre a coisa para poder arrendá-la). Já na presente acção, a causa de pedir – em atenção à teoria da substanciação, acolhida na lei processual – reside no título de aquisição do direito (de propriedade), concretizado na alegação dos factos que o demonstram e, in casu, na aquisição por sucessão e por compra e na “aquisição” registral (presunção emergente da inscrição do imóvel no registo a favor dos AA). É diversa a causa de pedir em ambas as acções, posição que não é afectada pelo apelo da ré à relação de arrendamento e anterior sentença transitada em julgado (ainda que dotada de autoridade da caso julgado, a impedir decisão contrária ou com ela incompatível, no restrito domínio em que julgou) para obstar à pretensão restitutória e indemnizatória dos AA.

Nos termos do artigo 1057º do CC, “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo, sem prejuízo das regras do registo”.
Se o senhorio cede o direito com base no qual celebrou o arrendamento, o adquirente desse direito “adquire” também a qualidade de locador, com os direitos e obrigações inerentes a essa qualidade.

Desde 1978 (e, pelo menos, até 07 de Abril de 2005) que o prédio identificado no processo era compropriedade (em partes iguais) de E………., B………. (a autora) e H………., sendo estes filhos daquele.
Alegadamente, nesta data, E………. vendeu a sua quota (1/3 indiviso) no prédio (o que igualmente fez o outro comproprietário, H……….) à autora (casada em regime de comunhão geral de bens com o autor), adquirindo (o que ainda não está assente no processo) por essa via a totalidade do prédio.

Assente (por sentença transitada em julgado) que, em acção intentado pelo “transmitente” E………., que este deu de arrendamento à ré a parte do prédio ocupada por esta e que não ocorreu causa de cessação do arrendamento, importa averiguar se essa decisão vincula a autora (no sentido de se lhe impor a permanência do arrendamento), como adquirente da posição do senhorio (anterior comproprietário E………., sendo certo que, pelo que consta da alínea i.5 da matéria de facto, não seria apenas E………. a locar o prédio, mas também o outro comproprietário – H………. – estando porém, aqui, em consideração apenas a posição daquele por efeito da transmissão do seu direito).

Na data da alegada venda (Abril/05), ainda estava pendente a acção de despejo (ainda não havia sido proferida sentença), intentada pelo transmitente E………., que veio a prosseguir, como demandante, na acção e nessa qualidade até final, não tendo havido habilitação dos AA.
Como decorre do artigo 271º/1 do CPC, “no caso da transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”.
Porém, “a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção” (nº 3 desse preceito), e mesmo que a não intervenção do adquirente resulte do seu desconhecimento da pendência da acção (com o eventual prejuízo para a sua defesa), o que se justifica por razões de segurança jurídica, obstando-se a que, por via da prática de sucessivos actos de transmissão do direito ou coisa em litígio, se frustrasse a eficácia da sentença.

A ser o identificado E………. o único proprietário do prédio, transmitida a propriedade da coisa arrendada, recebiam os AA a posição contratual de senhorio. Tendo em conta o disposto nas normas dos arts. 1057º do CC e 271º do CPC, a decisão proferida no processo nº …/2001 necessariamente os vinculava, no que concerne à existência e subsistência da relação arrendatícia, com força de caso julgado (material), inviabilizando nova apreciação dessa questão. Apesar de ter transmitido o direito, o transmitente do direito litigioso continua a ter legitimidade para prosseguir (por si) na causa como parte processual até ser substituído pelo adquirente, que fica vinculado pela sentença, mesmo que o processo decorra à sua revelia. O substituto litiga em seu nome, mas a sentença produz efeitos (também) em relação ao substituído.

A basear-se a posição jurídica dos AA apenas no direito transmitido por E………., ser-lhe-ia oponível a sentença que julgou a existência (por aquele confessada) do arrendamento válido e frustrou a pretensão resolutória do transmitente, não podendo aqueles por em causa, nesta acção (ou noutra), a situação que “adquiriram”. Neste alinhamento, indiscutível que entre a Ré e o referido E………. vigorava um válido contrato de arrendamento relativo ao imóvel (parte) em causa no processo, com aquela na qualidade de arrendatária, a sentença era oponível aos adquirentes.

Mas o referido E………. (ou ele e o filho) não era o único proprietário do imóvel em causa. Era apenas comproprietário de um terço (indiviso), pelo que não tinha legitimidade para, sem assentimento dos demais consortes, onerar parte determinada do imóvel ou dá-la de arrendamento.
“Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular…” (artigo 1405º/1 do CC).
Mas, conforme artigo 1024º do CC, a locação constitui um acto de administração ordinária (do consorte administrador). No entanto, “o arrendamento de prédio indiviso feito pelo consorte ou pelos consortes administradores só se considera válido quando os restantes comproprietários manifestem, antes ou depois do contrato, o seu assentimento” (artigo 1024º/2 do CC), por qualquer modo admitido em direito, caso se não imponha a adopção da forma solene da escritura pública.
Consentimento (dos AA) alegado, mas não conhecido por via da decisão adoptada.
Não existindo consentimento prévio ou posterior, o contrato é nulo (só se considera válido – diz a lei), ou melhor, é ineficaz em relação ao consorte que nele não consentiu e enquanto nele não assentir.

Se bem que questão controvertida, dizem os AA (na resposta) não terem consentido na celebração do arrendamento (nem dele tiveram conhecimento, como não teriam conhecimento da acção de despejo – alegam). Certo é (apenas) que não intervieram nessa outra acção dirimida entre E………. e a ré.
Independentemente desse aspecto (em discussão), a não ter havido a aquisição das quotas dos demais comproprietários, seguro seria o direito dos AA invocarem a nulidade (ou, noutra posição, quiçá mais correcta, a ineficácia, sendo uma res inter alia acta) do contrato de arrendamento celebrado entre o seu pai E………. e a ré (a nele não terem assentido).
Delimitado o direito adquirido (dois terços indivisos) do seu (AA) direito de compropriedade, enquanto consortes, o contrato de arrendamento (nos termos em que alegam) não lhes é oponível ou não era válido. Por isso que, a não terem dado o seu assentimento ao negócio, estariam a tempo de o impugnarem, firmados no seu direito emergente da relação de comproprietários do imóvel.
Acontece (e acresce) que, não sendo o contrato eficaz ou válido, precisamente por faltar o seu assentimento, não se sana a invalidade do contrato apenas por via da aquisição das quotas dos demais proprietários. Por lhe falar aquele requisito de validade (ou de eficácia), ao adquirirem a quota do comproprietário locador, não passam a adquirir, necessariamente, por via da eficácia da sentença nos termos do disposto no artigo 271º do CPC, uma relação locatícia válida ou eficaz (ou a eles oponível – ainda que indiscutível na relação com o transmitente) subsistindo o seu direito de se lhe oporem, isto é, de poderem demonstrar a sua invalidade.
Na posição que alegam, na relação ao arrendamento e na acção proposta pelo transmitente, os AA eram terceiros que não podem ver, por via da sentença e da aplicação do disposto no artigo 271º do CPC, o seu direito (de verem declarada a invalidade ou ineficácia do arrendamento) eliminado ou reduzido por via da sentença.
A sentença transitada em julgado proferida naqueloutra acção não constitui excepção de caso julgado (com o feito da absolvição da instância) que obste à apreciação da (in)validade/(in)eficácia do contrato de arrendamento invocado pela ré, relativamente aos AA/recorrentes, consoante a sua posição em relação a esse contrato exposta pelas partes na contestação e réplica. Para cujo conhecimento, além do demais pedido, o processo deve prosseguir.

6) - Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao agravo, revogando-se a douta decisão recorrida, devendo dar-se prosseguimento ao processo.
Custas pela agravada.

Porto, 13/03/2008
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira